Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2037/13.0TBPVZ.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: NEGÓCIO FIDUCIÁRIO
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
DIREITO DE PREFERÊNCIA
ABUSO DE DIREITO
GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO-PROMESSA
SIMULAÇÃO
ARRENDATÁRIO
NEGÓCIO ATÍPICO
INVALIDADE
OPONIBILIDADE DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 04/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL /FALTA E VÍCIOS DA VONTADE / OBJECTO NEGOCIAL, NEGÓCIOS USURÁRIOS / EXERCÍCIOS E TUTELA DOS DIREITOS – DIREITOS DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / ARRENDAMENTO DE PRÉDIOS URBANOS / DIREITO DE PREFERÊNCIA.
Doutrina:
-Beleza dos Santos, Simulação, Coimbra Editora, 1921, p. 120 e ss.;
-Calvão da Silva, Acórdão do STJ de 16-05-2000, RLJ, Ano 133, p. 88;
-Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 3ª edição revista e actualizada, Universidade Católica Editora, p. 317;
-Castro Mendes, Direito Civil (teoria geral), III, 1973, p. 296;
-Catarina Pires, Alienação em Garantia, Coimbra, Almedina, 2010, p. 99;
-Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Colecção Teses, Almedina 2000, p. 86;
-Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Coimbra 1983, p. 177 e 178;
-Maria Bárbara Valente Guedes, Da proibição do pacto comissório: fundamento e extensão, Universidade Católica Portuguesa, p. 35;
-Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, p. 211 e 212;
-Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Colecção Teses, Almedina, 1995, p. 259, 280, 288 e 289;
-Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2015, 2.ª Edição, Almedina, p. 568.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 241.º, 280.º, 334.º E 1091.º, N.º 1, ALÍNEA A).
NOVO REGIME DE ARRENDAMENTO URBANO, APROVADO PELA LEI N.º 6/2006, DE 27/02, NA REDACÇÃO RECTIFICADA PELA DECLARAÇÃO N.º 24/2006, DE 17/04: - ARTIGOS 26.º, N.º 1, 27.º E 28.º.
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 04-05-1956, BMJ 57, P. 342 A 345;
- DE 28-01-1997, PROCESSO N.º 87557, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 04-03-1997, IN CJSTJ V (1997), I, P. 121-125;
- DE 11-05-2006, PROCESSO N.º 06B1501, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-11-2009, PROCESSO N.º 1842/04.3TVPRT.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 23-02-2012, PROCESSO N.º 1942/06.5TBMAI.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-02-2015, PROCESSO N.º 174/12.8TBLGS.E1.S1, IN WWW. DGSI.PT;
- DE 21-01-2016, PROCESSO N.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Para além das garantias previstas na lei – garantias tout court –, sejam pessoais ou reais, pode surgir a utilização de outros institutos ou figuras jurídicas com finalidade diversa prevista na lei, que as partes utilizam, por acordo, para desempenhar funções de garantia.

II - Dentro do género, surge a figura da alienação fiduciária ou venda em garantia, a qual constitui um negócio fiduciário nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade.

III - O contrato fiduciário, que não se confunde com a simulação relativa (art. 241º do CC), visto a transmissão da propriedade do bem do vendedor para o comprador ser querida, tem associado o risco de abuso do fiduciário em resultado da evidente desproporção entre o meio, em abstracto excessivo para o fim considerado, mas necessário, e o fim visado.

IV - A respeito da validade dos negócios fiduciários, na vigência do actual CC, é dominante, na doutrina e na jurisprudência, a tese da sua admissibilidade.

V - Acolhendo esta tese, entende-se por acertado o entendimento de que a celebração de negócios jurídicos fiduciários é, em abstracto, válida no ordenamento jurídico português, sem prejuízo de se poder sindicar a licitude do respectivo objecto em face do disposto no artigo 280.º do CC, em particular, na vertente de fraude à lei.

VI - Numa situação em que os réus outorgaram entre si, simultaneamente, uma escritura de compra e venda – onde o primeiro declarou vender e os segundos declararam comprar – e um contrato-promessa de compra e venda – onde os segundos declararam prometer vender e o primeiro declarou prometer comprar – do mesmo imóvel, tendo tais negócios em vista garantir o pagamento do empréstimo de uma quantia de € 30 000, a celebração destes dois contratos de sinal contrário – um com natureza real e outro com natureza obrigacional – relacionados funcionalmente por um nexo ou escopo de garantia, constituem negócio fiduciário válido.

VII - Tal negócio não é, no entanto, oponível à autora arrendatária do imóvel transmitido, titular de direito de preferência, nos termos do art. 1091.º, n.º 1, al. a), do CC, uma vez que o contrato de compra e venda tem eficácia real ou erga omnes, enquanto o contrato-promessa tem eficácia relativa ou meramente obrigacional.

VIII - Visando a autora exercer o direito de preferência sobre o imóvel pelo valor de € 30 000, correspondente ao montante do empréstimo garantido com a sua alienação, quando sabia que o respectivo valor de mercado ascendia a € 118 000 e já havia sido anteriormente notificada para exercer o direito de preferência pelo preço de € 100 000, no contexto do conjunto dos factos provados, choca e ofende o sentimento geral de justiça da comunidade, pelo que o resultado iníquo da procedência do exercício formal desse direito deverá ser corrigido pela figura do abuso de direito (art. 334.º do CC).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório:

AA propôs a presente acção comum contra BB, CC e DD, pedindo que lhe fosse reconhecido o direito de preferência na venda realizada pelo 1º réu aos 2ºe 3º réus da fracção “AJ” do prédio sito na Praça …, nº …, Bloco …, 3º Nascente, Póvoa do Varzim, da qual é arrendatária, venda que se realizou pelo preço de € 30.000,00 e de que lhe não foi dado conhecimento. Pediu ainda a substituição dos réus compradores pela autora e o cancelamento de todos os registos efectuados após aquela transmissão sobre a fracção autónoma em causa.

Depositou o preço fixado na escritura pública de compra e venda.


Citados, vieram os réus contestar e deduzir reconvenção.

Alegaram que, a solicitação do pai do primeiro réu, os segundos réus emprestaram-lhe a quantia de 30.000 euros, em 2012, recebendo do primeiro réu a fracção “AJ” em garantia, sendo que o valor declarado na escritura corresponde ao valor emprestado, muito inferior ao valor patrimonial de 83.250 euros (de que a autora tinha conhecimento). Que na data da outorga da venda celebraram um contrato-promessa de compra e venda da mesma fracção a favor do autor pelo montante de € 35.800,00, não pretendendo nem vender nem comprar, configurando a pretensão da autora abuso do direito de preferência e enriquecimento sem causa.

Pediram, em consequência, a improcedência da acção ou, assim não se entendendo, por via de reconvenção, a condenação da autora no exercício do direito de preferência pelo valor de € 83.250,00.

Na réplica a autora pugnou pela inadmissibilidade ou indeferimento da reconvenção e ampliou a causa de pedir e o pedido, este traduzido no exercício do direito de preferência pelo valor de 35.800 euros e pela condenação dos réus em indemnização no valor de 8.150 euros, correspondente aos juros e despesas judiciais.


A reconvenção, bem como a ampliação da causa de pedir e do pedido não foram admitidos, salvo quanto ao valor peticionado de 8.150 euros.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente a acção nos seguintes termos:

«a) reconhece que existe o direito da A. AA de preferir na aquisição efectuada pelos 2ºs Rs. CC e DD ao 1º R. BB do imóvel referido no facto 3 desta decisão;

b) determina a substituição dos 2ºs Rs. pela A. no negócio objecto de preferência e referido em 3 da matéria de facto provada;

c) absolve os Rs. quanto ao demais peticionado (cancelamento dos registos posteriores à propositura da acção)».


O réu BB interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão proferido em 30 de Maio de 2017, decidido, com voto de vencido, julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

 

Ainda inconformado, interpôs o réu BB recurso de revista, finalizando a sua alegação com as seguintes conclusões relevantes:

«(…)

7. Nos presentes autos e como bem refere o teor do voto de vencido da decisão ora em causa, “… a situação factual não quadra com um negócio translativo de propriedade tout court, pois tem acoplado um pacto fiduciário de natureza obrigacional.”

8. O negócio realizado pelos réus integra a categoria dos «negócios fiduciários com fim de garantia», mais precisamente na chamada «alienação fiduciária em garantia» que corresponde aquela em que «um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito, com a finalidade de garantia de um credito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade.”

9. Estaremos, pois, perante o carácter temporário da alienação do imóvel do Recorrido e a existência de uma obrigação de revenda a cargo do 2.º Réu, logo que a dita finalidade de garantia se mostre consumida.

10. O Recorrente e o 2.º Réu apenas quiseram com os contratos efetuados no dia 31/01/2012 como, na nossa modesta opinião, a factualidade considerada provada pelo tribunal da Relação indicia, garantir um empréstimo através da transmissão temporária do imóvel em causa nos autos. O contrato de compra e venda não foi um fim em si mesmo, mas um mero instrumento de constituição de uma garantia.

11. Na verdade, a função de garantia só se cumpre se a propriedade for transferida para a esfera do fiduciário: a garantia da dívida consiste na precisamente na transmissão da propriedade até que a dívida seja paga.

12. Embora da dita escritura de 31/01/2012 não resulte, expressamente, a cláusula fiduciária, a factualidade dada por provada manifesta-no-la, pois; a/ o negócio do Recorrente garante de uma dívida; b/ tão só foi efetuada a título temporário e resulta necessariamente a obrigação do 2.º Réu retransmitir a propriedade ao Recorrente; c/ a propriedade do bem apenas se mantém na esfera do 2.º Réu pelo tempo necessário à satisfação da finalidade que presidiu à sua transmissão (garantia do crédito), devendo retornar à esfera do Recorrente logo que tal desiderato se cumpra.

13. Estão, pois, preenchidos os pressupostos mínimos para que possamos considerar a existência de um negócio fiduciário, podendo inferir-se dos termos do negócio a existência de “alienação fiduciária em garantia.”

14. Aliás, na factualidade dada por provada pelo Tribunal recorrido, verifica-se a diferença típica neste tipo de negócios, entre o montante do crédito fiduciário que serve de preço à escritura pública realizada no dia 31/12/2012 no montante de 30.000,00€ e o seu valor de mercado, ou valor matricial, respectivamente 118.000,00€ (n.° 7 e 13 da fundamentação de facto) e 82.000,00€ (valor tributário). O valor que no ato de escritura serve de preço de transacção não corresponde, pois, claramente ao preço real do imóvel, ou seu valor tributário, mas ao montante que o Recorrente garantiu ao 2.º Réu.

(…)

19. O segundo Réu jamais pagou o valor do preço para a “venda do imóvel”, mas sim o montante convencionado com o Recorrente para garantir o empréstimo efectuado ao pai do Recorrente, e, tão só até ao retorno do bem à sua esfera patrimonial.

20. Estamos, Venerandos Conselheiros, perante um negócio complexo em que um mútuo motiva os restantes termos do negócio que estão amalgamados a este e que motivaram a outorga da dita escritura, não podendo colher a nível de direito, perante tudo o já alegado, a conclusão da literalidade do artigo 1410º do Código Civil pois a temporalidade limitada da fidúcia não o permitiria, pois certamente a Recorrida pretende a transferência de propriedade sem prazo.

21. Venerandos Conselheiros continuamos, na nossa modesta opinião, convictos que se algum direito assistisse à Recorrida sempre existiria um abuso de direito a mesma exerceria sempre de modo anormal um direito próprio violando a sua afectação substancial, funcional e teleológica, contrariando o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito;

22. a) Por um lado, porque a Recorrida tinha conhecimento que o imóvel tem um valor superior a 30.000,00 euros. (Cf. 14 factos provados), aliás cerca de quatro anos antes da escritura ora em causa não quis preferir por 100.000,00 € (Cf. 9 factos provados), um imóvel cujo valor de mercado é de 118.000,00 € (n.º 7 e 13 da fundamentação de facto) e o valor tributário é de 82.000,00 € ; b) Por outro lado, continua, até à data, a pagar a renda ao Recorrente (Cf. 20 factos provados); e não pretende preferir senão pela quantia dos 30.000,00€ vertidos na escritura, factualidade muito vantajosa para a mesma, aproveitando o negócio do Recorrente que, apenas, garante um empréstimo.

23. A existir o direito na esfera da Recorrida esta estará a abusar do mesmo, e o abuso do direito equivalerá à falta do direito, obtendo-se assim os efeitos que se produziriam se alguém praticasse um acto que não pode realizar, pois excede manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim social ou económico desse direito.

24. Mais que não fosse, cremos que a proceder a dita Preferência sempre se verificaria uma vantagem de carácter patrimonial na esfera da Recorrida que se quantificaria entre o valor que a mesma depositou nos presentes autos para invocar a preferência; 30.000,00 € e o valor de mercado do imóvel que importa na quantia de 118.000,00 €».

Termos em que, para que se não faça uma menos correcta interpretação dos artigos 874.º, 1410.º e 334.º, todos do Código Civil, bem como da figura jurídica “alienação fiduciária em garantia”, deverá revogar-se a decisão ora em crise com a consequente improcedência da acção e absolvição dos réus do pedido.


A autora apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentos:

De facto:

Julgada a impugnação da decisão sobre a matéria de facto pela Relação, resultaram provados os seguintes factos:

1. A A. habita desde o início do contrato de arrendamento, celebrado em 1 de Setembro de 1975, a fracção autónoma identificada pela letra “AJ” de um prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito à Praça …, n.º …, Bloco …, 3.º Nascente, Póvoa de Varzim, descrita na respectiva Conservatória de Registo Predial.[1]

2. O arrendamento de tal prédio foi celebrado pela antecessora do 1º R. ao marido da A. e depois foi transferido para a A. através de atribuição de casa de morada de família e transferência de arrendamento, proferida por sentença transitada em julgado no âmbito do processo n.º 2026/08.7TBPVZ, que correu termos pelo 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim.

3. Em 31/01/2012, no 1.º Cartório Notarial de Competência Especializada de …, o 1º R. declarou vender aos 2ºs Rs., que declaram comprar, a fracção identificada em 1.º, pelo preço de € 30.000,00.

4. À A. não foi dado conhecimento desta venda, nem o projecto da mesma, nem o seu preço e condições, por qualquer dos Rs..

5. Em 30/08/2013 a A. depositou à ordem destes autos o valor de 30.000,00 euros.

6. No dia 10/10/2008, através de notificação judicial avulsa, a A. foi notificada para exercer o direito de preferência da fracção em causa nos presentes autos pelo preço de 100.000,0 euros.

7. Aquando da última avaliação, efectuada pela Repartição de Finanças respectiva, o valor patrimonial do imóvel foi fixado em 83.250,00 euros.

8. O pai do 1º R. necessitava de dinheiro e, por esse motivo, acordou com o 1º e com o 2º R. que este lhe entregaria a quantia de 30.000,00 euros com obrigação de este restituir essa quantia acrescida de juros e, para garantir a restituição desta quantia, o 1º R. vendia aos 2ºs Rs. o imóvel referido em 3, pelo preço de 30.000,00 euros.

9. Com data de 31/01/2012, foi outorgado o documento de fls. 72, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, em que os 2ºs Rs. Declararam prometer vender ao 1º R., que declarou prometer comprar, o mesmo imóvel, pelo preço de 35.800,00 euros, que seria pago na data da realização da escritura pública.

10. Mais estipularam, nesse documento, que a escritura pública de compra e venda seria outorgada no prazo máximo de 12 meses a contar da presente data, tendo como data limite o dia 31/01/2013.

11. Posteriormente, com data de 02/12/2012, o 1º R. e os 2ºs Rs. elaboraram um aditamento ao referido acordo, declarando prorrogar o cumprimento do contrato prometido até 30/08/2013.

12. A quantia entregue pelos 2ºs Rs. ao pai do 1º R. não foi ainda por este restituída na totalidade.

13. O imóvel tem o valor de mercado de 118.000,00 euros.

14. Apesar da idade do prédio e do apartamento, este último, por intervenção da arrendatária ao longo dos anos, sofreu intervenções que são mais-valias.[2]

15. A A. tinha conhecimento que o imóvel tem um valor superior a 30.000,00 euros.

16. Após a data de 31/01/2012, o 1º R. continuou a remeter à A. correspondência, dirigida ao seu ex-marido, alegando a sua qualidade de proprietário.

17. O que fez por carta de 07/02/2013, pretendendo agendar uma visita ao imóvel que foi realizada pelo pai.

18. E por carta de 15/05/2013, que se destinou a informá-la da transição para o NRAU com o pedido de aumento de renda.

19. Por carta de 19/04/2013, a administração do condomínio solicitou ao 1º R. a liquidação das prestações em atraso.

20. Em representação do 1º R., o mandatário deste solicitou à A. o pagamento das prestações de condomínio.

21. Após ter tido conhecimento do acto referido em 3, a A. procedeu ao pagamento da renda ao 2º R. e este deu-lhe indicação para continuar a pagar as rendas ao 1º R., o que esta vem fazendo desde essa data.

22. Para exercer o seu direito de preferência, a A. contratou o advogado constituído nos autos, a quem terá de pagar retribuição, em montante não apurado.

23. Da descrição predial electrónica 2714, freguesia da Póvoa de Varzim, da Conservatória do Registo Predial consta apenas a inscrição da aquisição pelos 2ºs Rs. ao 1º R do imóvel referido.


Não resultou provado que:

a) O contrato-promessa tivesse sido outorgado em 31/01/2012.

b) O 1º R. nada quisesse vender e os 2ºs Rs. nada quisessem comprar.

c) O valor de 5.800,00 euros que acresce aos 30.000,00 euros no contrato- promessa dissesse respeito a juros.

d) A A. tivesse qualquer conhecimento sobre os termos do negócio que foi celebrado entre o 1º R. e os 2ºs Rs..

e) Fosse o 1º R. a pagar todas as despesas de IMI do imóvel.

f) Os 2ºs Rs. não tivessem comunicado a transferência da propriedade ao condomínio.

g) O 1º R. tivesse continuado a receber toda a correspondência relativa à fracção.

h) A A. tivesse recorrido a uma particular para lhe emprestar o dinheiro para o depósito nestes autos, a juros.

i) A retribuição acordada entre a A. e o seu mandatário nestes autos.


       De direito:

       Balizado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente, salvo a apreciação de questão de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4, ex vi do artigo 679º do Código de Processo Civil –, são colocadas à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça as questões de saber:

- se a autora tem direito de preferência na alienação do imóvel;

- e, em caso afirmativo, se ocorre abuso no exercício desse direito.

      A resposta às referidas questões implica que comecemos por analisar os contornos do litígio na perspectiva do direito de preferência invocado pela autora.

Arrogando ser titular do direito de preferência na compra e venda da fracção autónoma de que é arrendatária e ter sido preterida no exercício desse direito potestativo, veio a autora propor a presente acção de preferência ao abrigo do disposto no artigo 1410.º do Código Civil.

       A lei reguladora do direito de preferência a considerar é a vigente na data em que se concretizou o acto de alienação, uma vez que o direito legal de preferência não passa de uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário, que só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo, como constitui jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. os Acórdãos de 28.01.1997, proc. n.º 87557, de 12.11.2009, proc. n.º 1842/04.3TVPRT.S1 e de 21.01.2016, proc. n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt).

       À data da outorga da escritura de compra e venda em causa – 31 de Janeiro de 2012 – a lei conferia ao arrendatário direito de preferência na compra e venda do local arrendado há mais de três anos – artigo 1091.º, n.º 1, al. a), aplicável ex vi do disposto nos artigos 27.º, 28.º e 26.º, n.º 1, do Novo Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção rectificada pela Declaração n.º 24/2006, de 17 de Abril.

       Constituem, assim, pressupostos legais para o exercício do direito legal de preferência em questão: (i) a qualidade de arrendatária da autora; (ii) a duração dessa qualidade por período superior a três anos; e (iii) a celebração do contrato de compra e venda do local arrendado.

A verificação dos dois primeiros pressupostos está atestada pelos factos provados e não foi sequer problematizada nos autos pelas partes.

Na verdade, os factos provados mostram que, em 31 de Janeiro de 2012, os réus outorgaram escritura pública de compra e venda, na qual o primeiro réu declarou vender aos demais, que, por sua vez, declaram comprar-lhe a aludida fracção “AJ” pelo preço de € 30.000,00, sem que o vendedor tivesse dado prévio conhecimento do negócio à autora, arrendatária da fracção desde 2008, por força da transmissão para si da posição do seu ex-cônjuge, arrendatário da mesma desde a celebração do contrato de arrendamento para habitação em 1976 (pontos de facto nºs 1, 2, 3 e 4).

A controvérsia centra-se na qualificação jurídica do negócio celebrado entre os réus, relativamente ao qual a sentença de 1.ª instância e o acórdão da Relação entenderam tratar-se apenas de um contrato de compra e venda.

Esta última decisão foi, no entanto, proferida por maioria, tendo sido lavrado desenvolvido voto de vencida no qual a Exma. Desembargadora que o subscreve entendeu tratar-se de um negócio atípico, qualificando-o como um negócio fiduciário na modalidade de alienação em garantia, tese sufragada pelo recorrente na respectiva alegação de recurso.

      Os factos provados revelam que os réus subscreveram também um contrato-promessa de compra e venda, com data de 31-01-2012, no qual os segundos (compradores) declararam prometer vender e o primeiro (vendedor) declarou prometer comprar, pelo preço de € 35.800,00, a aludida fracção “AJ” até 31-01-2013, prazo posteriormente prorrogado pelos promitentes para 30-08-2013 (pontos de facto nºs 9 e 10). 

Não pode desconsiderar-se, ao contrário do que se entendeu no acórdão sob censura, a celebração dos dois contratos com sinal inverso entre os mesmos contraentes, um com natureza real e outro com natureza obrigacional.

O sentido de os réus terem outorgado simultaneamente uma escritura de compra e venda – onde o primeiro declarou vender e os segundos declararam comprar – e um contrato-promessa de compra e venda – onde os segundos declararam prometer vender e o primeiro declarou prometeu comprar – do mesmo imóvel tem de procurar encontrar-se no conjunto da facticidade provada.

      Encontramo-nos perante negócios formais, como são os contratos de compra e venda e promessa de compra e venda celebrados – artigos 410º e 875.º do Código Civil – nos quais o sentido das declarações neles insertas deve, prioritariamente, corresponder à vontade real das partes – artigos 236.º e 238.º do mesmo código –.

Tendo isso presente e volvendo aos factos provados, apurou-se que o pai do 1º R. necessitava de dinheiro e, por esse motivo, acordou com o 1º e com o 2º R. que este lhe entregaria a quantia de € 30.000,00 com obrigação de lhe restituir essa quantia acrescida de juros e, para garantir a sua restituição, o 1º R. vendia aos 2ºs réus a referida fracção “AJ” por tal montante, ou seja, pelo preço de € 30.000,00 (ponto de facto nº 8).

     Os réus, ao abrigo do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405.º, n.º 2, do Código Civil, que confere às partes a possibilidade de modelarem livremente o conteúdo dos contratos, juntaram, uniram ou coligaram dois contratos, o de compra e venda e de promessa de compra e venda, relacionando-os funcionalmente à luz de um nexo ou escopo de garantia.

      Com efeito, pretenderam, primeiramente, transmitir a propriedade do imóvel do 1º réu para os 2ºs réus para garantir o reembolso do empréstimo. E, uma vez cumprido o empréstimo e esvaziada de sentido útil a garantia constituída, pretenderam assegurar a retransmissão da propriedade do imóvel novamente para o 1º réu (pontos de facto nºs 8 a 11).

Este é o sentido que se extrai da globalidade dos factos apurados, nomeadamente, da motivação subjacente à outorga da escritura de compra e venda da fracção – para garantir a restituição da quantia mutuada ao pai do 1º réu (ponto de facto nº 8) –, da simultânea celebração dos dois contratos em causa e, bem assim, da posterior actuação dos contraentes, em particular, no que respeita ao recebimento das rendas pelo 1º réu (vendedor) e às comunicações feitas por este à autora, enquanto arrendatária, com vista à visita ao locado pelo seu pai, ao aumento da renda e ao pagamento das prestações de condomínio (pontos de facto nºs 15 a 19).

      Da junção destes dois tipos resulta a celebração de um negócio fiduciário, contrato atípico, construído geralmente por referência a um tipo contratual conhecido, susceptível de ser adaptado a uma finalidade diferente da sua própria, através de uma convenção de adaptação (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Colecção Teses, Almedina, 1995, pág. 259) e, mais concretamente, dentro do género, uma alienação fiduciária ou venda em garantia, isto é, um negócio nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito, com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade (in Catarina Pires, Alienação em Garantia, Coimbra, Almedina, 2010, pág. 99).

     Efectivamente, para além das garantias previstas na lei – garantias tout court –, sejam pessoais ou reais, pode surgir a utilização de outros institutos ou figuras jurídicas com finalidade diversa prevista na lei, mas que as partes utilizam, por acordo, para desempenhar funções de garantia.

     A doutrina destaca, como exemplos de aproveitamento para fins de garantia, de figuras a cujo delineamento não presidiu a consideração de tal função, a «alienação em garantia, a cessão em garantia, a promessa de aquisição de créditos, o depósito “in escrow” e a procuração irrevogável. Na alienação em garantia há a utilização de um tipo contratual de alienação (normalmente a compra e venda) como tipo de referência, para um fim indirecto de garantia. Mais especificamente, estamos perante um contrato construído através da adjunção ao negócio de alienação de um patum fiduciae, que disciplina os termos em que o fiduciante-alienante e o fiduciário-adquirente adaptam a operação realizada aos fins de garantia – fidúcia cum creditore –» (Januário Gomes, in Assunção Fidejussória de Dívida, Colecção Teses, Almedina 2000, pág. 86).

     O contrato fiduciário, que não se confunde com a simulação relativa (artigo 241º do Código Civil), visto a transmissão da propriedade do imóvel do vendedor para o comprador ser querida, tem associado o risco de abuso do fiduciário em resultado da evidente desproporção entre o meio, em abstracto excessivo para o fim considerado, mas necessário, tendo em vista esse mesmo fim.

      A circunstância de o fiduciário ficar investido numa situação jurídica que excede em muito o necessário para o fim visado – em concreto, os réus ficaram investidos, por força da escritura de compra e venda, na propriedade plena de um bem imóvel com o valor de mercado de € 118.000,00 para garantia de um empréstimo de € 30.000,00 – suscita a questão da validade do negócio fiduciário. 

A tese da inadmissibilidade absoluta dos negócios fiduciários no direito português prevalecia na vigência do Código Civil de 1867, sendo preconizada na doutrina, nomeadamente, por Beleza dos Santos, (Simulação, Coimbra Editora, 1921, págs. 120 e sgs.), e Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Coimbra 1983, págs. 177-178), e assumida na jurisprudência no Acórdão deste Supremo Tribunal de 04-05-1956 (in BMJ 57, págs., 342-345).

Assentava (assenta), no que concerne ao contrato de compra e venda com o fim de garantia, no argumento de que a causa da compra e venda, traduzida na permuta da prestação preço pela prestação entrega da coisa vendida, não corresponde à causa que determinou a sua celebração, isto é, a garantia do crédito, traduzindo tal divergência a incompatibilidade estrutural do contrato positivo de transmissão e do pacto fiduciário que o desfigura, merecedora da negação da sua validade.

      A tese da admissibilidade, seguida na doutrina, entre outros, por Pedro Paes de Vasconcelos (ob cit. pág. 280), Castro Mendes (Direito Civil (teoria geral), III, 1973, págs. 296), Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil, II, 3ª ed, revista e actualizada, Universidade Católica Editora, pág. 317) e Pestana de Vasconcelos (Direito das Garantias, 2015, 2.ª Edição, Almedina, pág. 568) e na jurisprudência pelos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11-05-2006 (proc. n.º 06B1501) e de 23-02-2012 (proc. n.º 1942/06.5TBMAI.P1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt, é dominante na vigência do actual Código Civil de 1966 e baseia-se: (i) no disposto nos artigos 405.º e 1306.º, n.º 1, do Código Civil, o primeiro, por consagrar o “princípio da autonomia da vontade”, o segundo, por prever que aos direitos reais se aportem, por negócio jurídico, restrições de natureza obrigacional, prevendo assim como legítima a fidúcia; (ii) no apelo à confusão do argumento central da tese contrária entre a questão da divergência entre a causa (função) concreta do contrato e a causa (função) típica do tipo de referência, que tem como consequência a negação da qualificação do contrato fiduciário como correspondente ao tipo de referência (compra e venda), e a questão da apreciação da tutela jurídica da causa (função) concreta do contrato fiduciário, juízo de mérito relativo à licitude do mesmo, e (iii) no acolhimento expresso pelo D.L. n.º 105/2004, de 8 de Maio, enquanto modalidade dos contratos de garantia financeira, da alienação fiduciária em garantia, espelho da abertura do ordenamento jurídico a tal realidade negocial, por princípio, axiologicamente neutra.

      No acolhimento dos argumentos desta segunda tese, mormente do disposto nos artigos 405.º e 1306.º e no D.L. n.º 105/2004, de 8 de Maio, diploma que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2002/47/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos acordos de garantia financeira, temos por acertado o entendimento de que a celebração de negócios jurídicos fiduciários enquanto negócios atípicos é, em abstracto, válida no ordenamento jurídico português, sem prejuízo de se poder sindicar a licitude do respectivo objecto em face do disposto no artigo 280.º do Código Civil, em particular, na vertente de fraude à lei.

      Por este prisma, não se pode considerar imediatamente inválido, sem mais, o negócio celebrado entre os réus e, em consequência, esvaziá-lo de quaisquer efeitos, mormente o do nascimento do direito de preferência na esfera jurídica da autora, arrendatária da fracção autónoma vendida.

       Questão diversa é a da oponibilidade do negócio fiduciário à autora.

O negócio fiduciário celebrado entre os réus resultou, como antes se focou, da aposição, por negócio jurídico, de uma restrição (de natureza obrigacional) ao contrato de compra e venda por via da celebração do contrato-promessa de compra e venda, consentida pelo disposto na 2ª parte do nº 1 do artigo 1306º do Código Civil.

Como é sabido, o contrato de compra e venda tem eficácia real ou erga omnes (artigos 406.º, n.º 2, 408.º, n.º 1, 874,º e 879.º al. a), todos do Código Civil) enquanto o contrato-promessa tem eficácia relativa ou meramente obrigacional, não só porque não foi registado, podendo sê-lo (cfr. artigo 2.º, n.º 1, als. f) e v) do Código do Registo Predial), como também porque, impondo o pacto fiduciário, de que o contrato-promessa é expressão, uma restrição à faculdade de livre disposição do imóvel não prevista na lei, esta lhe confere, expressamente, essa eficácia (cfr. artigos 1305.º e 1306.º, n.º 1, 2ª parte, do Código Civil e anotação de Calvão da Silva ao Acórdão do STJ de 16-05-2000, in RLJ, ano 133, pág. 88).

      Por aqui, os réus, e mais concretamente o réu recorrente, não poderiam opor à autora o referido contrato-promessa – negócio-meio ou negócio indirecto da venda para garantia – e, com ele, o pacto fiduciário para obviar ao exercício do direito de preferência com o argumento de que não ocorreu apertis verbis uma compra e venda ou uma dação em cumprimento geradoras desse direito.  

      Em suma, à autora apenas pode ser oposta a celebração, pelos réus, de um contrato de compra e venda, o único com eficácia real, o que se mostra necessário e suficiente à verificação do direito de preferência.

      Não obstante a presença dos pressupostos formais do direito de preferência da autora na compra e venda outorgada entre os réus, daí não decorre, necessariamente, o êxito da sua pretensão, como veremos.

      Na verdade, a questão última está em saber se, em concreto, o exercício de tal direito se configura como abusivo, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, caso em que a ordem jurídica o considera ilegítimo e lhe subtrai a tutela (artigo 334.º do Código Civil).

De forma sintética podemos afirmar que o instituto do abuso do direito, bem como os princípios da boa-fé e da lealdade negocial, são meios de que os tribunais devem lançar mão para obtemperar a situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora dos seus direitos ou do exercício da acção, o faz de uma maneira que, objectivamente e atenta a especificidade do caso, conduz a um resultado que viola o sentimento de Justiça prevalecente na comunidade, que, por isso, repudia tal procedimento, apenas formalmente respeitador do Direito, mas que, em concreto, o atraiçoa – Acórdão do STJ de 11-02-2015 (proc. n.º 174/12.8TBLGS.E1.S1, in www. dgsi.pt).

Dentre os comportamentos sancionados pelo abuso do direito conta-se, como categoria, o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, que, segundo Menezes Cordeiro, agrega as sub-hipóteses do (i) de exercício danoso inútil, (ii) de exigir o que de seguida se deve restituir e (iii) de desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem, esclarecendo que trata-se de uma fórmula antiga e intuitiva de abuso do direito: mercê de conjunções extraordinárias, ocorre um exercício jurídico, aparentemente regular, mas que desencadeia resultados totalmente alheios ao que o sistema poderia admitir em consequência do exercício. A redução dogmática do desequilíbrio faz apelo, consoante as circunstâncias, ora ao princípio da confiança, ora ao da primazia da materialidade subjacente. (…) O segundo reporta-se a exercícios de puro desequilíbrio objectivo (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, pág. 211-212).


Estes ensinamentos relevam sobremaneira no presente caso, porquanto, por um lado, estão verificados os pressupostos legais do exercício do direito de preferência da autora pelo valor de € 30.000,00 declarado na escritura de compra e venda, não lhe sendo oponível o contrato-promessa e o pacto fiduciário, com eficácia meramente obrigacional, celebrado entre os réus; por outro lado, a conceder-se o exercício do direito de preferência, a autora adquirirá um imóvel que tem o valor de mercado de € 118.000,00 (ponto de facto nº 13) pelo valor de € 30.000,00, que a autora sabe ficar aquém do valor de mercado (ponto de facto nº 14), tanto mais que, por notificação judicial avulsa realizada em 10-10-2008, havia já sido notificada para exercer o direito de preferência relativamente à fracção de que é arrendatária pelo preço de € 100.000,00 (ponto de facto nº 6). 

    Acresce que o valor declarado na escritura a título de preço, repete-se, os 30.000 euros, corresponde ao valor do empréstimo garantido e não ao valor do imóvel transmitido, precisamente porque a compra e venda serviu o fim atípico de garantia e não o fim típico de troca do negócio celebrado. A propósito, refere Maria Bárbara Valente Guedes que o caso típico de alienação fiduciária em garantia (ou seja, de fidúcia cum creditore) é representado pela venda em garantia: o devedor vende ao credor um bem que antes lhe pertencia mas este último não paga efectivamente o preço convencionado porque ele corresponde (efectivamente ou por declaração das partes) ao montante do seu crédito (in Da proibição do pacto comissório: fundamento e extensão, Universidade Católica Portuguesa, pág. 35).

A desproporção objectiva evidenciada, que conhece na relação jurídica entre a autora (preferente) e o 1.º réu (obrigado à preferência) a vantagem injustificada de a primeira adquirir um imóvel por um quarto do seu valor de mercado e a correspondente desvantagem de o segundo receber apenas esse valor a título de preço, no contexto dos factos provados nos pontos 6, 7, 13 e 15 a 21, choca e ofende o sentimento geral de justiça da comunidade, que não legitima o resultado iníquo da procedência do exercício formal do direito e que deverá ser corrigido pela figura do abuso do direito.

       Em situação com contornos comuns – exercício do direito de preferência na aquisição de um bem por 1.200 quando tinha o valor de 7.000 – já este STJ, por Acórdão de 04 de Março de 1997, in CJ/Supremo V (1997), 1, 121-125, afirmou existir abuso do direito para negar a pretensão aquisitiva solicitada na acção.

     Deve, pois, a materialidade subjacente sobrepor-se à legalidade estritamente formal que envolve o direito de preferência para, em concreto, nas condições em que pretende ser exercido, merecer a censura judiciária e ser denegado, veredicto que corresponde ao sentimento geral de justiça. 

Neste particular, quanto aos riscos do negócio fiduciário, avisadamente referia Pedro Paes de Vasconcelos que no julgamento das questões que lhe sejam submetidas emergentes de contratos fiduciários, podem e devem os tribunais recorrer ao princípio da boa fé e ao instituto do abuso do direito sem timidez (ob cit, págs. 288 e 289).

      Existe, pois, abuso do direito, em consequência do que a acção deve ser julgada improcedente.


     III. Decisão:

     Termos em que se acorda no Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista e julgar a acção improcedente, com a consequente absolvição dos réus dos pedidos contra eles formulados, revogando-se o acórdão recorrido.

      Custas pela autora em todas as instâncias.


Lisboa, 26 de Abril de 2018


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado

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[1] Facto alterado pela Relação.

[2] Facto aditado pela Relação.