Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4669/13.8TBFUN-C.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
FALTA DE RESPOSTA À IMPUGNAÇÃO
Data do Acordão: 11/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS / RESPOSTA À IMPUGNAÇÃO / SANEAMENTO DO PROCESSO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), p. 397 e ss. e 431 e ss.;
- Carvalho Fernandes e João labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado. Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, p. 531;
- José Lebre de Freitas, A acção declarativa comum à luz do Código revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 2011 (2.ª edição), p. 218 e ss.;
- Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 339.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 131.º, N.º 3 E 136.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 615.º, N.º 1, ALÍNEA D).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 18-10-2016, PROCESSO N.º 106/13.6TYVNG-B.P1.S1;
- DE 23-10-2018, PROCESSO N.º 650/12.2TBCLD-B.C1.S1;
- DE 23-10-2018, PROCESSO N.º 650/12.2TBCLD-B.C1.S1;
- DE 30-05-2019, PROCESSO N.º 156/16.0T8BCL.G1.S2, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

Na hipótese de falta de resposta à impugnação da lista provisória de créditos, prevista no artigo 131.º, n.º 3, do CIRE, são necessariamente admitidos os factos alegados na impugnação, mas o juiz não fica dispensado de proceder às diligências necessárias e adequadas à verificação do crédito, nos termos do artigo 136.º do CIRE.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrido: BB, S.A.

1. Por apenso ao processo onde foi declarada a insolvência de “CC, Lda.”, aberto o concurso de credores, veio o administrador da insolvência, nos termos do artigo 129.º do CIRE, apresentar a lista dos credores por si reconhecidos, entre eles, AA, que tendo reclamado créditos no montante de € 350.000,00, viu ser-lhe reconhecido um crédito no valor de € 200.000,00, por, no entender daquele administrador, “não haver na reclamação de créditos comprovativo do valor de € 150.000,00 de alegadas benfeitorias. Invoca direito de retenção sobre os bens imóveis apreendidos para a Massa Insolvente sob as verbas n.ºs 14 e 15. O crédito reconhecido deverá ficar condicionado ao não cumprimento do contrato promessa de compra e venda”.

2. Essa lista veio a ser impugnada, no que para o presente recurso interessa:

a) Pelo credor AA, uma vez que, tendo reclamado créditos no valor de € 350.000,00, sendo € 150.000,00 a título de benfeitorias por si realizadas em dois lotes de terreno, apreendidos para a massa insolvente, e que a CC havia declarado prometer vender-lhe, e que ele havia declarado prometer comprar-lhe, apenas viu ser-lhe reconhecido, condicionadamente, um crédito no valor de € 200.000,00, correspondente ao dobro do sinal prestado;

b) Pelo credor BB, S.A., na parte em que reconheceu e graduou com prioridade sobre o seu crédito sobre a CC, garantido por hipoteca, o referido crédito reclamado por AA no valor de € 200.000,00, por o considerar garantido pelo direito de retenção de que se afirma titular sobre os dois lotes de terreno referidos em a).

O interessado AA respondeu à impugnação apresentada pelo BB, nos termos do artigo 131.º do CIRE, pugnando pela sua improcedência e para que o crédito por si reclamado seja integralmente reconhecido como privilegiado, nos termos da reclamação de créditos por si oportunamente apresentada.

3. Por requerimento datado de 30.06.2016, veio AA pedir a ampliação do pedido, pretendendo que lhe fosse reconhecida a titularidade de um crédito no montante de € 313.500,00, a título de benfeitorias realizadas naqueles dois lotes de terreno. O pedido de ampliação foi admitido por decisão de 12.09.2016.

4. Na subsequente tramitação dos autos, realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que, na parte que releva para a decisão do presente recurso:

A) julgou “a impugnação da lista de credores reconhecidos, deduzida pelo BB, S.A. totalmente improcedente e, por conseguinte, reconhecer que AA é titular de um direito de crédito sobre os “prédios urbanos (lotes 9 e 10) descritos, respetivamente, na Conservatória do Registo Predial de ... sob os n.ºs ... e …, no valor global de 514.000,00€ (a saber: 200.000,00€ + 314.000,00€)”;

B) graduou créditos da seguinte forma:

VERBAS 14. e 15.:

1. As dívidas da massa insolvente saem precípuas do produto da venda das VERBAS 14. e 15.;

2. Do remanescente dar-se-á pagamento:

2.1. Aos CRÉDITOS GARANTIDOS da credora FAZENDA NACIONAL, decorrente do IMI, sendo que (i) a quantia de 340,05 deve ser imputada à verba 14 e (ii) a quantia de 343,04€ deve ser imputada à VERBA 15.;

3. Do remanescente dar-se-á pagamento:

3.1. Ao CRÉDITO GARANTIDO do credor DD, no montante de 514.000,00€ (a saber: 200.000,00€ + 314.000,00€), por beneficiar de direito de retenção sobre as VERBAS 14. e 15.;

4. Do remanescente dar-se-á pagamento:

4.1. Ao CRÉDITO GARANTIDO do credor BB, S.A., no montante global de 1.230.691,46€ (a saber: 636.071, 16€+549.351,43€+5.338,87+39.930,00€);

O CRÉDITO GARANTIDO SOB CONDIÇÃO do credor BB, S.A., no valor de 39.930,00€, será atendido nos termos do artigo 181.° do CIRE.

5. Do remanescente dar-se-á pagamento:

5.1. Ao CRÉDITO PRIVILEGIADO da FAZENDA NACIONAL, no valor global de 87,34€, decorrente de IRS;

6. Do remanescente dar-se-á pagamento:

6.1. Aos CRÉDITOS COMUNS, entre os quais o saldo remanescente dos créditos garantidos (i) do EE, S.A., (ii) de FF e (iii) de GG, na eventualidade dos mesmos (créditos) não virem a ser integralmente satisfeitos à custa do produto da venda das VERBAS 1. a 9. (cfr. artigo 174.°, n.º 1, 2.ª parte, do CIRE);

Os CRÉDITOS COMUNS serão pagos em paridade e sujeitos a rateio na proporção”.

5. O BB não se conformou com o assim decidido e interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, pugnando pela revogação da decisão do Tribunal de 1.ª instância.

6. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o Acórdão de 26.06.2018, em que se concluiu pelo inexistência de qualquer dos créditos alegados por AA e se decidiu:

Por todo o exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em considerar procedente a apelação, julgando, em consequência, não reconhecidos, na sua totalidade, os créditos reclamados por AA, pelo que revogam a sentença proferida em primeira instância, na parte em que:

4.1 – Julgou 'a impugnação da lista de credores reconhecidos, deduzida pelo BB, S.A., totalmente improcedente e, por conseguinte reconhece[u] que AA é titular de um CRÉDITO GARANTIDO, por direito de retenção sobre os “prédio urbanos (lotes 9 e 10) descritos, respetivamente, na Conservatória do Registo Predial do ..., sob os n.os ...e ...”, no valor de 514.000,00 (a saber: 200.000,00€ + 314.000,00€)';

4.2 – Graduou créditos de AA, para serem pagas pelo produto da venda das verbas 14 e 15, ou seja, dos lotes 9 e 10 identificados em 4.1.”.

7. Inconformado, por sua vez, AA vem interpor o presente recurso de revista. Pede que o presente recurso seja julgado procedente e, consequentemente, julgada procedente a nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa arguida ou, caso assim se não considere, seja o presente recurso julgado procedente, revogando-se o dito acórdão e mantendo-se o decidido pelo Tribunal de 1.ª instância, tudo com as demais consequências legais.

Formula o recorrente as suas alegações sob forma de conclusões, conforme se reproduz:

A)      O presente recurso de revista é admissível nos termos gerais, independentemente da oposição de acórdãos, uma vez estarmos perante um apenso do processo de insolvência que tem por objeto a verificação e reclamação de créditos – vide artigos 14.º n.º 1 e 41.º n.º 1 do CIRE;

B)        O administrador de insolvência ao incluir os créditos reclamados pelo ora Recorrente (a saber: o dobro em sinal correspondente a € 200.000,00) na «lista de credores reconhecidos» - ponto de facto número 18 da matéria assente - declarou, tacitamente, que recusou o cumprimento do contrato promessa de compra e venda objeto dos presente dissídio, nos termos do artigo 217.º e 219.º do Código Civil e do artigo 102.º n.º 1 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas – neste sentido atente-se ao doutamente decidido pelos Acórdãos proferidos por este Supremo Tribunal de Justiça em 22.02.2011 e em 13.11.2014, nos processo números 1548/06.9TBEPS-D.G1.S1 e 1980/11.6T2AVR-B.C1.S1, respetivamente;

C) O crédito do ora Recorrente não pode ser tido como um crédito sob condição, pela circunstância de o administrador de insolvência aguardar pela prolação da decisão que vier a ser proferida no apenso de verificação e graduação de créditos, como se esta integrasse um acontecimento futuro e incerto para efeitos do n.º 1 do artigo 50.º do CIRE, sob pena de violar o aludido preceito legal - aliás na esteira do doutamente decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 28.04.2009, no processo número 183/07.9TYVNG.P1 e pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 13.07.2017, no processo número 20213/16.2T8LSB.L1-2;

D)        Razão pela qual, o contrato promessa objeto dos presentes autos deve ter-se por definitivamente incumprido, sendo esse incumprimento imputável à insolvente (em conformidade com o decidido por douto Acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, em 13.11.2014, no processo número 1980/11.6T2AVR-B.C1.S1);

E)        O Tribunal a quo incorreu, ainda, em erro de julgamento ao pressupor que o documento junto a fls. 320-321 dos autos - através do qual HH na qualidade de sócio gerente da sociedade comercial CC Lda. prestou a devida, plena e integral quitação do pagamento do preço, a que alude o contrato promessa objeto do presente dissídio – teria sido impugnado pelo credor BB S.A. - quando na verdade tal não ocorreu - e, por essa via, o Tribunal da Relação de Lisboa apreciou livremente as declarações no mesmo contidas infirmando-as por prova testemunhal, face ao que levou à alteração da matéria de facto dada por provada pelo tribunal de primeira instância, no que respeita ao ponto de facto 7.-A constante da douta sentença e, assim, considerou como não pago por DD, o preço de € 100.000,00 (cem mil euros), referido no contrato promessa de compra e venda objeto dos presentes autos, nem integralmente e nem mediante a entrega de cheques na data de vencimento das referidas letras - violando, dessa forma, os artigos 374.º, 376.º números 1 e 2, 393.º número 2 e 358.º número 2 do Código Civil;

G)        É que, na realidade, a referida declaração tem força probatória plena, não admitindo prova testemunhal e equivalendo a uma confissão extrajudicial - na esteira do doutamente decidido nos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Guimarães no mencionado processo número 6/14.2TBAMR-D.G1, em 11.01.2018, pelo Tribunal da Relação de Lisboa no mencionado processo número 9235/15.0YIPRT.L1-7, em 19.04.2016, pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos mencionados processos números 04B3073, 160/12.8TVLSB.L1.S1, e 8034/10.0TBMTS.P1.S1 em 07.10.2004, 02.11.2017 e 17.06.2014 respetivamente e, ainda, pelo Tribunal da Relação de Coimbra no aludido processo número 352/08, em 14.07.2010;

H)        Erro de julgamento esse, que é suscetível de ser superado nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC;

I)         Razão pela qual e, de acordo com os pontos de facto números 3 e 7 da matéria de facto dada como definitivamente assente pelo Tribunal da Relação de Lisboa, impõe-se forçosamente, considerar provado o seguinte facto: «O preço referido no contrato mencionado em 3, foi integralmente pago por AA mediante a entrega de cheques na data do vencimento das letras.» e, em conformidade, declarar reconhecido o crédito do ora recorrente, o credor AA, referente ao sinal em dobro no montante de € 200.000,00 (duzentos mil euros);

J)         A questão da tutela do consumidor, do credor AA, apenas foi suscitada pela primeira vez, em sede de alegações, pelo BB S.A., não tendo o tribunal de 1.ª instância a apreciado e, concomitantemente sobre a mesma não se tendo pronunciado, razão pela qual por se tratar de uma questão ex novo sobre a mesma não podia o Tribunal da Relação de Lisboa se pronunciar, como, indevidamente, o fez;

K)        Ao fazê-lo, o Tribunal da Relação cometeu a nulidade prevista no artigo 615.º, número 1, al. d), do CPC, nulidade que aqui se argui para todos os devidos e legais efeitos - conforme decorre do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 24.10.2012 no processo número 2965/06.0TBLLE.E1 e pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 14.12.2006, no processo número 125/06.9TTAVR.C1 – a qual é susceptível de ser suprida e reformada nos termos do preceituado no artigo 684.º do CPC;

L)         De resto a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão n.º 4/2014 não deve ser aplicada aos processos pendentes, como é o do caso sub judice uma vez que aquando da apresentação dos articulados respetivos – mormente a reclamação de créditos - não estava, ainda, em vigor a restrição do direito de retenção ao promitente-comprador com a qualidade de consumidor;

M)       Tanto para mais quando nenhuma das partes, ou seja, nem pelo credor reclamante nem pelo credor impugnante, respetivamente e em sede própria, alegaram factos que seriam pertinentes para concluir que o promitente-comprador era ou não consumidor, por não ser, designadamente, à data da apresentação da reclamação de créditos, previsível a exigência desse requisito que não estava previsto na lei e cuja relevância/necessidade só mais tarde começou a ser suscitada na doutrina e jurisprudência e por não ser sequer exigível que as partes ponderassem ou admitissem a pertinência desses factos em termos de poderem, agora, ser responsabilizadas pelas consequências da sua não alegação – neste sentido atente-se aos acórdãos proferidos por este Supremo Tribunal de Justiça no processo número 135/12.7TBMSF.G1.S1 de 16.02.2016 e pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 02.02.2016, no processo número 1516/14.7TBCLD-B.C1;

N)        O que significa que deve ser reconhecido o direito de retenção ao credor DD, ora recorrente ao abrigo do artigo 755.º n.º 1 alínea f) conjugado com o artigo 442.º do Código Civil com base na sua qualidade de promitente comprador que foi investido na posse dos lotes de terreno objeto do dito contrato promessa de compra e venda - vide ponto de facto número 9 da matéria considerada definitivamente provada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido – tendo inclusivamente sobre cada um deles, mandado construir uma moradia - vide ponto de facto número 10 da matéria considerada definitivamente provada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido -, e que na pendência do processo de insolvência, verificou-se o incumprimento definitivo do contrato e o pagamento do preço;

O)        Ainda assim que se não entenda a realidade é que o ora recorrente não destinou os lotes de terreno à revenda mas antes, como se disse, à construção de duas moradias unifamiliares – vide pontos de facto números 16 e 17 - que pretendia destinar ao seu próprio uso e de um irmão que quer compensar – pelo que a ser esta questão objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça só poderá o credor ser considerado consumidor atenta a prova produzida e relatada na matéria assente;

P)        A impugnação promovida pelo credor AA - com fundamento na indevida exclusão da lista de credores reconhecidos de parte do seu crédito (respeitante às benfeitorias) - não tinha se não que ser julgada procedente – uma vez que não foi sujeita a qualquer resposta ou oposição, nem pelo próprio administrador de insolvência, nem por qualquer outro credor, mormente pelo BB S.A., atento o efeito cominatório pleno, prevalecendo aqui o princípio da autorresponsabilização dos interessados que, não cumprindo o ónus que a lei sobre eles faz impender, terão de suportar as consequências desvantajosas – vide Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido em 26.11.2013, no processo número 733/09.6TBABT-R.E;

Q)        O Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido ao não ter julgado reconhecido o crédito e graduado o mesmo como garantido, correspondente às benfeitorias no montante de € 314.000,00 violou o preceituado no artigo 131.º número 3 do CIRE.

R) Ademais é manifesta a contradição entre a conclusão do Tribunal a quo e a matéria assente – designadamente os pontos de facto 9, 10 e 11 - razão pela qual, só no âmbito de um manifesto erro de julgamento se pode concluir que, pelas regras da experiência comum, não tenha sido o credor AA a edificar tais moradias;

S) Pelo que deverá ser reconhecido, verificado e graduado como garantido o crédito de AA, aqui recorrente, no valor de € 314.000,00 referente às benfeitorias por este edificadas sobre os lotes de terreno objeto do mencionado contrato promessa, sob pena de violação do preceituado no artigo 754.º conjugado com o previsto nos artigos 1273.º e 479.º do Código Civil.

T)        Por tudo o exposto o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido violou os artigos 217.º n.º 1, 219.º, 374.º, 376.º números 1 e 2, 393.º número 2 e 358.º número 2, 442.º, 479.º, 754.º, 755.º, n.º 1 alínea f), 1273.º todos do Código Civil, artigo 50.º n.º 1, 102.º n.º 1 e 131.º n.º 3 do CIRE”.

7. O credor BB, S.A., vem, por seu turno, apresentar contra-alegações, onde, com vista à total improcedência do recurso, formula as seguintes conclusões:
I. Vem o Recorrente interpor recurso de revista do douto Acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa por entender que o Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 217.º, n.º 1, 219.º, 374.º, 376.º, n.º 1 e 2, 393.º, n.º 2 e 358.º, n.º 2, 442.º, 479.º, 754.º, 755.º, n.º 1 alínea f), 1273.º todos do Código Civil e artigos 50.º, n,º 1, 102.º, n.º 1 e 131.º do CIRE.
II. Para tanto, alega, em síntese, que o Tribunal da Relação i) incorreu em erro de julgamento, ao considerar o crédito do Recorrente, como crédito sob condição, por violação do disposto no art.º 50.º do CIRE; ii) incorreu em erro de julgamento, quando desconsiderou a força probatória plena do documento de fls. 320 – 321; iii) extravasou o respectivo poder jurisdicional, quando apreciou a questão da tutela do consumidor, para efeitos do disposto no artigo 754º do CC, incorrendo em nulidade e, finalmente, iv) violou o disposto no art.º 131.º, n.º 3 do CIRE, no que respeita ao crédito emergente das benfeitorias.
III. No que concerne à 1º questão, diferentemente do alegado, o Tribunal da Relação de Lisboa concluiu, outrossim, pela não reconhecimento da totalidade dos créditos reclamados por AA; é, assim, manifestamente infundado o recurso quanto ao alegado reconhecimento do referido crédito, como condicional.
IV. No que concerne â 2º questão, perante a falta de prova (desde logo, documental) e a manifesta contradição entre a declaração de HH junta a fls. 320-321, o teor do contrato-promessa de compra e venda e, fundamentalmente, o depoimento, do mesmo HH, em sede de audiência de julgamento, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que este (depoimento) último infirmou o teor da mencionada declaração; concluindo pela indemonstração, in totum, do crédito reclamado pelo recorrente.
V. Relativamente à 3º questão, não só o BB, S.A, em sede de impugnação à lista de credores reconhecidos, efectivamente se pronunciou no sentido do não reconhecimento do reclamado direito de retenção pelo Recorrente AA, pelo facto, de o Recorrente não lograr demonstrar néenhum dos elementos constitutivos, a que alude o disposto no ar.º 754.º do C.C. – cfr. fls. 287 a 301 dos autos,
VI. Como, para concluir se o Recorrente goza ou não do alegado direito de retenção, o tribunal têm que necessariamente apreciar se este integra, ou não, a qualidade de devedor (“consumidor “), para efeitos do mencionado dispositivo legal.
VII. Depois, uma vez que AUJ 4/2014 veio, antes de mais, dirimir as querelas doutrinárias e jurisprudências, já existentes à data da reclamação dos créditos pelo ora Recorrente, relativamente ao indicado conceito – de devedor (“consumidor”) – a apreciação pelo Tribunal da Relação da questão da tutela do consumidor não se tratou, de todo, da pretensa questão nova.
VIII. Por último, relativamente à 4º questão, uma vez que o ora Recorrido - expressamente – impugnou o crédito reclamado pelo Recorrente por conta das alegadas benfeitorias, cfr. os artigos 20.º a 23.º da impugnação do BB à lista de credores reconhecidos, inexiste a alegada violação do disposto no artigo 131º, n.º 3 do CIRE.
IX. Em síntese, bem decidiu o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ao concluir pelo não reconhecimento, na sua totalidade, dos créditos reclamados por AA.

9. Respondeu também o Ministério Público, manifestando-se no sentido da improcedência do recurso.

10. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

1.ª) se, ao pronunciar-se sobre a qualidade de consumidor relativamente ao recorrente, o Tribunal recorrido incorreu na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC;

2.ª) se, ao apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal recorrido incorreu na violação de alguma norma de Direito probatório material;

3.ª) se deve ser reconhecido ao recorrente a titularidade do crédito de 200.000, respeitante ao incumprimento do contrato-promessa pelo administrador da insolvência;

4.ª) se deve ser reconhecido ao recorrente a titularidade do crédito de 314.000, respeitante a benfeitorias por si realizadas; e

5.ª) se deve ser reconhecido ao recorrente um direito de retenção por esses créditos.


                                                           *

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS
São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido[1]:

1.         Da certidão de registo predial referente ao prédio urbano (lote 9), descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ...consta que a sociedade CC, LDA. adquiriu o mesmo por “compra”, conforme AP. 1 de 2005/08/10;

2.         Da certidão de registo predial referente ao prédio urbano (lote 10), descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º … consta que a sociedade CC, LDA. adquiriu o mesmo por “compra”, conforme AP. 1 de 2005/08/10;

3.         O documento cuja cópia se encontra a fls. 71-72 dos autos, intitulado «Contrato Promessa de Compra e Venda», contém os seguintes dizeres:

Contraentes:

PRIMEIRO:

CC - …, Lda.ª (…), como promitente vendedor e adiante designado por primeiro contraente.

SEGUNDO:

AA (…), como promitente-comprador, e adiante designado por segundo contraente.

Pelo primeiro contraente foi dito:

TERCEIRO:

Que é dono e legítimo proprietário de dois prédios urbanos designados por Lotes n.ºs. 9 e 10, com as respectivas áreas de 285, m2 e 252,00 m2, omisso na matriz, sito às ... freguesia e concelho do ....

QUARTO:

Que, pelo presente contrato promete vender à segunda contraente, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, os aludidos lotes pelo preço de € 100.000,00 (CEM MIL EUROS).

QUINTO:

Nesta data, o segundo contraente como forma de pagamento entrega ao primeiro contraente 4 Letras subscritas no valor de € 25.000,00 (VINTE E CINCO MIL EUROS), cada uma, com início a 23/05/06 e a com a última liquidação 17/05/07 de que presta quitação.

SEXTO:

A escritura será celebrada no prazo de 120 dias, com referência à data deste contrato, automaticamente renovável por igual período.

(…)

Pelo segundo contraente foi dito:

Que o presente contrato satisfaz a vontade de ambos, ficando o mesmo subordinado aos princípios legais aplicáveis e importando o seu não cumprimento o direito à execução específica, nos termos do art. 830.º do Código Civil.

Feito no ..., em duplicado, aos dezoito dias do mês de Maio de 2006 (…).»;

3-A.     Tal documento foi subscrito por HH, “1º Contraente”, e por AA, como “2º Contraente”;

4.         Da certidão de registo predial referente ao prédio urbano (lote 9), descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ..., consta que o II, S.A. é titular de uma hipoteca voluntária que garante o valor máximo de 1.849.500,00€, conforme AP. 7 de 2006/08/10;

5.         Da certidão de registo predial referente ao prédio urbano (lote 10), descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º …, consta que o II, S.A. é titular de uma hipoteca voluntária que garante o valor máximo de 1.849.500,00€, conforme AP. 7 de 2006/08/10;

6.         Da certidão de registo predial referente ao prédio urbano (lote 10), descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ..., consta que o II, S.A. é titular de uma hipoteca voluntária que garante o valor máximo de 507.650,00€, conforme AP. 5210 de 2011/04/29;

7.         No dia 30 de Agosto de 2007, HH, na qualidade de sócio-gerente da sociedade CC, LDA., emitiu a seguinte declaração:

            «Aos trinta dias do mês de agosto de 2007, eu, HH, sócio e gerente da sociedade comercial CC - …, Lda. (…), na dita qualidade de gerente e com poderes para o ato da aludida sociedade declaro ter recebido de AA (…) por conta do pagamento integral do preço acordado no contrato promessa de compra e venda, celebrado em 18 de maio de 2006, relativo a dois prédios urbanos designados por Lotes n.ºs 9 e 10, com as respetivas áreas de 285 m2 e 252 m2, sito às ..., freguesia e concelho do ..., as quantias adiante discriminadas, através dos cheques infra numerados e nas datas aí referidas:
· 7.000,00 € (SETE MIL EUROS), a que corresponde o cheque número ..., emitido em 22/08/2006, sobre o EE, S.A.;
· 7.000,00 € (SETE MIL EUROS) e 18.000,00 € (DEZOITO MIL EUROS) a que correspondem os cheques números ... e ... respetivamente, ambos emitidos em 23.11.2006 sobre o EE, S.A.;
· 10.080,00 € (DEZ MIL E OITENTA EUROS), a que corresponde o cheque numero ..., emitido em 15/12/2006, sobre o EE, S.A.;
· 674.06 € (SEISCENTOS E SETENTA E QUATRO EUROS E SEIS CÊNTIMOS), 7,000,00 € (SETE MIL EUROS) e 18,000,00 € (DEZOITO MIL EUROS), a que correspondem os Cheques números ..., ... e ... respetivamente, todos emitidos em 19/02/2007, sobre o EE, S.A.;
· 7,000,00 € (SETE MIL EUROS) e 18.000,00 € (DEZOITO MIL EUROS), a que correspondem os cheques números ... e ... respetivamente, emitidos em 29/05/2007, ambos sobre o ..., S.A.
· 10,000,00 € (DEZ MIL EUROS), a que corresponde o cheque número ..., emitido em 30.04.2007, sobre o EE, S.A.

            Na sequência do que, pela presente, a referida sociedade comercial presta a devida, plena e integral quitação»;

8.         No dia 16 de dezembro de 2010, o II, S.A. emitiu a seguinte declaração certificada:
«Título de Cancelamento de Hipoteca

            O II, SA. Sociedade Aberta, anteriormente designado II e Comercial de Lisboa, SA (…) DECLARA pelo presente documento e nos termos legais autorizar o CANCELAMENTO da inscrição hipotecária AP.7 de 2006/08/10, que incide sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do ..., Freguesia de ..., sob o número ..., cuja hipoteca foi constituída a seu favor, por prescindir da sua garantia.

            Lisboa 16 de dezembro de 2010.»

9.         Após a assinatura do documento de fls. 71-72, AA entrou em poder dos lotes de terreno ali identificados;

10.       Em cada um desses lotes de terreno foi construída, pela sociedade KK, Lda., a mando de AA, uma moradia unifamiliar, faltando instalar, em cada uma delas, equipamentos de cozinha, peças sanitárias e revestimento de escadas de acesso ao andar;

11.       AA foi quem diligenciou pela instrução do processo n.º 404/2009-2.10.2009 referente à “comunicação prévia” n.° ..., efetuada junto da CÂMARA DO MUNICIPAL DO ... relativamente ao “lote …”, apesar de o mesmo ter sido tramitado em nome da sociedade CC, LDA.:

12.       AA foi quem diligenciou pela instrução do processo n.º ...-2,10.0054 referente à “comunicação prévia” n.° ..., efetuada junto da CÂMARA DO MUNICIPAL DO ... relativamente ao “lote 10”, apesar de o mesmo ter sido tramitado em nome da sociedade CC, LDA.;

13.       Diversos materiais utilizados na construção das moradias edificadas nos lotes 9 e 10 foram adquiridos na ...;

14.       A mão-de-obra utilizada na construção daquelas moradias integrava pessoas residentes na ...;

15.       Os materiais utilizados na construção das moradias edificadas nos lotes 9 e 10, adquiridos na ..., assim como as pessoas nela residentes, e que integravam a mão-de-obra utilizada naquela construção, eram transportados para a ... do ... por via marítima;

16.       Do relatório de Peritagem, datado de 27 de Maio de 2016, referente ao Lote …, consta o seguinte com interesse para a boa decisão da causa:

Imóvel Moradia Familiar – T3
Morada: Sítio das ..., ......
1. Descrição da Zona e do Imóvel
O valor das benfeitorias edificadas no lote n.º 9 é de 168 500.00 euros

(Cento e sessenta e oito mil e quinhentos euros)

As benfeitorias encontram-se edificadas e localizadas no sítio das ... na freguesia e concelho da … .... Uma moradia unifamiliar de r/ch e andar do tipo T3. O piso térreo é composto por sala ampla, cozinha, instalação sanitária, garagem e vão de escadas de acesso ao andar. O andar divide-se em três quartos, duas casas de banho, uma delas privativa e varanda.

Em relação aos arranjos exteriores, está impermeabilizado em redor da moradia e restante logradouro é destinado a jardim. A moradia encontra-se concluída, pronta a receber equipamentos de cozinha, peças sanitárias e revestimento de escadas de acesso ao andar.

A moradia ainda não se encontra inscrita na Matriz e não descrita na Conservatória do Registo Predial de ... (...). Apenas encontra-se inscrito o Lote com área de 285,00 m2 de terreno destinado a construção inscrito na matriz sob o art. ... e descrito na ... sob o n.º ....

Refere-se que, para o apuramento da área bruta de construção (abc) foi necessário recorrer aos serviços da Câmara Municipal de ... (...) e proceder à consulta do projeto de Arquitetura.

O imóvel está situado em loteamento no Sitio das ..., dista uns dois km do centro da cidade/vila de ... e a 1,5 km da …. O local apresenta-se com presença de imóveis destinados à habitação.

Possui boas acessibilidades viárias e o transporte público é fraco, um pouco como por toda a ....

O estacionamento é feito em parque público do loteamento e privado dentro do lote.

O loteamento não se encontra consolidado, existindo espaço livre para novas edificações.

17.       Do relatório de Peritagem, datado de 27 de Maio de 2016, referente ao Lote …, consta o seguinte com interesse para a boa decisão da causa:

Imóvel Moradia Familiar – T3
Morada: Sítio das ..., ......
1. Descrição da Zona e do Imóvel
O valor das benfeitorias edificadas no lote n.º … é de 148 500.00 euros

(Cento e quarenta e oito mil e quinhentos euros)

As benfeitorias encontram-se edificadas e localizadas no sítio das ... na freguesia e concelho da .... Uma moradia unifamiliar de r/ch e andar do tipo T3. O piso térreo é composto por sala ampla, cozinha, instalação sanitária, garagem e vão de escadas de acesso ao andar. O andar divide-se em três quartos, duas casas de banho, uma delas privativa e varanda.

Em relação aos arranjos exteriores, está impermeabilizado em redor da moradia e restante logradouro é destinado a jardim. A moradia encontra-se concluída, pronta a receber equipamentos de cozinha, peças sanitárias e revestimento de escadas de acesso ao andar.

A moradia ainda não se encontra inscrita na Matriz e não descrita na Conservatória do Registo Predial de ... (….). Apenas encontra-se inscrito o Lote com área de 252,00 m2 de terreno destinado a construção inscrito na matriz sob o art. ... e descrito na ... sob o n.º ....

Refere-se que, para o apuramento da área bruta de construção (abc) foi necessário recorrer aos serviços da Câmara Municipal de ... (...) e proceder à consulta do projeto de Arquitetura.

O imóvel está situado em loteamento no Sitio das ..., dista uns dois km do centro da cidade/vila de ... e a 1,5 km .... O local apresenta-se com presença de imóveis destinados à habitação.

Possui boas acessibilidades viárias e o transporte público é fraco, um pouco como por toda. a ....

O estacionamento é feito em parque público do loteamento e privado dentro do lote.

O loteamento não se encontra consolidado, existindo espaço livre para novas edificações.

18.       Na “lista de credores reconhecidos” ficou consignado que AA é titular de um “crédito privilegiado”, no valor global de 200.000,00€;

19.       Da “lista de credores reconhecidos” consta o seguinte “comentário”: “crédito reclamado. Reconhecido apenas por 200.000,00€, por não haver na reclamação de créditos comprovativo do valor de 150.000,00€, de alegadas benfeitorias. Invoca direito de retenção sobre os bens imóveis apreendidos para a massa insolvente sob as verbas n.os 14 e 15. O crédito reconhecido deverá ficar condicionado ao não cumprimento do contrato promessa de compra e venda”.

20.       Pela Ap.04.20010625, foi inscrita na Conservatória do Registo Comercial da Câmara ... a constituição da sociedade KK, Lda., com o seguinte teor:

Objeto: Construção civil e obras públicas

Sócios e quotas:

Quota: 4.000.00 Euros

Titular: AA

Estado civil: Casado

Nome do cônjuge: LL

Regime de bens: Comunhão de adquiridos

Quota: 1.000,00 Euros

Titular: LL

Estado civil: casada

Forma de obrigar/Órgãos sociais

Forma de obrigar: A assinatura do gerente:

(…)

Órgãos designados:

Gerência

AA;

21.       Pela Insc. 4 Ap. ..., foi registada na mesma Conservatória, a dissolução e encerramento da liquidação da matrícula da sociedade KK, Lda.;

22.       Pela Insc. Of. ..., foi registada na mesma Conservatória o cancelamento da matrícula da sociedade KK, Lda.

O DIREITO

Antes de se passar à análise do recurso, deixa-se uma primeira nota sobre a sua admissibilidade.

Como tem sido recorrentemente afirmado em Acórdãos desta 6.ª Secção e constitui posição estabilizada no Supremo Tribunal de Justiça[2], o disposto no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE restringe-se aos recursos interpostos no âmbito do processo de insolvência (maxime sentença de declaração de insolvência) e do incidente de embargos à sentença da declaração de insolvência, não se aplicando à generalidade dos apensos do processo de insolvência. Estando em causa um apenso de verificação e graduação de créditos, ao presente recurso aplica-se, não o regime especial do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, mas o regime recursivo geral, ficando o recorrente dispensado de demonstrar a existência da oposição de julgados exigida naquele preceito.

Passe-se, pois, à 1.ª questão, que é de saber se, ao pronunciar-se sobre a qualidade de consumidor relativamente ao recorrente, o Tribunal recorrido incorreu na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

Sustenta o recorrente que a questão da tutela do consumidor era uma questão nova, sobre a qual não podia o Tribunal da Relação de Lisboa pronunciar-se; ao fazê-lo, cometeu a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC [cfr. conclusões J) e K)].

Não tem, todavia, razão.

A “questão da tutela do consumidor” (como lhe chama o recorrente) não é, na verdade, uma genuína questão. Estava em causa, segundo o Tribunal recorrido, um pressuposto de aplicação de uma norma invocada pelo recorrente, que, enquanto tal, o Tribunal tinha todo o poder de apreciar.

Diga-se, de qualquer modo, que, a partir do momento em que o Tribunal a quo concluiu pela inexistência do direito, a qualidade de consumidor deixou de ter qualquer relevância para a decisão final, devendo entender-se que as considerações tecidas o foram em obter dictum.

Pode seguir-se para a 2.ª questão, ou seja, a de saber se, ao apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal recorrido incorreu na violação de alguma norma de Direito probatório material.

Nunca é demais esclarecer, a propósito da decisão sobre a matéria de facto do Tribunal recorrido, que os poderes de que o Supremo Tribunal de Justiça dispõe neste âmbito são meramente residuais. Conforme resulta do n.º 3 do artigo 674.º e do n.º 3 do artigo 682.º do CPC, este Supremo Tribunal pode verificar a conformidade da decisão sobre a matéria de facto às normas do Direito probatório material e ordenar a sua ampliação[3] [4]. E pode ainda apreciar o uso que a Relação faz dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC, uma vez que o “mau uso” (uso indevido, insuficiente ou excessivo destes poderes) é susceptível de configurar violação da lei de processo e, portanto, de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do artigo 674º, nº 1, al. b), do CPC[5] [6]. Não tem, contudo, o poder de sindicar os resultados a que chegou o Tribunal recorrido na sua decisão sobre a matéria de facto.

O recorrente alega que a alteração da decisão sobre a matéria de facto introduzida pelo Tribunal a quo contraria o disposto em normas de Direito probatório material. Diz, mais precisamente, o recorrente:

O Tribunal a quo incorreu [] em erro de julgamento ao pressupor que o documento junto a fls. 320-321 dos autos - através do qual HH na qualidade de sócio gerente da sociedade comercial CC Lda. prestou a devida, plena e integral quitação do pagamento do preço, a que alude o contrato promessa objeto do presente dissídio – teria sido impugnado pelo credor BB S.A. - quando na verdade tal não ocorreu - e, por essa via, o Tribunal da Relação de Lisboa apreciou livremente as declarações no mesmo contidas infirmando-as por prova testemunhal, face ao que levou à alteração da matéria de facto dada por provada pelo tribunal de primeira instância, no que respeita ao ponto de facto 7.-A constante da douta sentença e, assim, considerou como não pago por DD, o preço de € 100.000,00 (cem mil euros), referido no contrato promessa de compra e venda objeto dos presentes autos, nem integralmente e nem mediante a entrega de cheques na data de vencimento das referidas letras - violando, dessa forma, os artigos 374.º, 376.º números 1 e 2, 393.º número 2 e 358.º número 2 do Código Civil” [cfr. conclusão E)].

Trata-se, visivelmente, de uma questão cuja apreciação não exorbita dos poderes deste Supremo Tribunal, por conseguintes, pode e deve ser apreciada.

Com relevo para a decisão ora em crise diz-se no Acórdão recorrido:

Considera também o banco apelante que deve ser considerado não provado o ponto de facto 7-A, cuja redação é a seguinte:

«O preço referido no contrato mencionado em 3., foi integralmente pago por AA mediante a entrega de cheques na data de vencimento das letras.»

Como é sabido, a eficácia/força probatória dos documentos particulares diz apenas respeito à materialidade ou realidade das declarações que nos mesmos são exarados, que não à sua exatidão ou à sua verosimilhança[7].

Vejamos, então, face à prova produzida nos autos, analisada conjugada e criticamente, e à luz das regras de experiência, da lógica, da normalidade das coisas, se deve ser julgada procedente a impugnação da decisão da 1.ª instância quanto à matéria factual vertida no ponto de facto 7-A.

Conforme de viu:

a) Consta do documento de fls. 71-72, intitulado «Contrato-Promessa de Compra e Venda»:

-    «Que, pelo presente contrato promete vender à segunda contraente, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, os aludidos lotes pelo preço de € 100.000,00 (CEM MIL EUROS).» - Cláusula 4ª;

- «Nesta data, o segundo contraente como forma de pagamento entrega ao primeiro contraente 4 Letras subscritas no valor de € 25.000,00 (VINTE E CINCO MIL EUROS), cada uma, com início a 23/05/06 e a com a última liquidação 17/05/07 de que presta quitação.» - Cláusula 5ª.

b)  Consta do documento de fls. 320-321:

«Aos trinta dias do mês de agosto de 2007, eu, HH, sócio e gerente da sociedade comercial CC - …, Lda. (…), na dita qualidade de gerente e com poderes para o ato da aludida sociedade declaro ter recebido de AA (…) por conta do pagamento integral do preço acordado no contrato promessa de compra e venda, celebrado em 18 de maio de 2006, relativo a dois prédios urbanos designados por Lotes n.ºs … e …, com as respetivas áreas de 285 m2 e 252 m2, sito às ..., freguesia e concelho do ..., as quantias adiante discriminadas, através dos cheques infra numerados e nas datas aí referidas:
· 7.000,00 € (SETE MIL EUROS), a que corresponde o cheque número ..., emitido em 22/08/2006, sobre o EE, S.A.;
· 7.000,00 € (SETE MIL EUROS) e 18.000,00 € (DEZOITO MIL EUROS) a que correspondem os cheques números ... e ... respetivamente, ambos emitidos em 23.11.2006 sobre o EE, S.A.
· 10.080,00 € (DEZ MIL E OITENTA EUROS), a que corresponde o cheque numero ..., emitido em 15/12/2006, sobre o EE, S.A.;
· 674.06 € (SEISCENTOS E SETENTA E QUATRO EUROS E SEIS CÊNTIMOS), 7,000,00 € (SETE MIL EUROS) e 18,000,00 € (DEZOITO MIL EUROS), a que correspondem os Cheques números ..., ... e ... respetivamente, todos emitidos em 19/02/2007, sobre o EE, S.A.;
· 7,000,00 € (SETE MIL EUROS) e 18.000,00 € (DEZOITO MIL EUROS), a que correspondem os cheques números ... e ... respetivamente, emitidos em 29/05/2007, ambos sobre o ..., S.A.
· 10,000,00 € (DEZ MIL EUROS), a que corresponde o cheque número ..., emitido em 30.04.2007, sobre o EE, S.A.

Na sequência do que, pela presente, a referida sociedade comercial presta a devida, plena e integral quitação.»

Resultou do depoimento da testemunha HH, que: - o preço referido na cláusula 4ª do documento de fls. 71-72 foi efetivamente pago na sua totalidade por AA, através do saque de quatro letras «descontadas no EE», cada uma no valor de € 25.000,00; - essas letras venceram-se ao longo de um ano, cada uma delas a três meses de distância; - nenhuma dessas letras foi reformada; - na data de vencimento de cada uma dessas letras, AA emitiu e entregou à testemunha um cheque no montante titulado na respetiva letra.

Um tal depoimento não coincide, na verdade, com o teor do transcrito documento de fls. 320-321.

Como se vê:
- a totalidade das quantias mencionadas nesse documento de fls. 320-321 (€ 102.754,06) não coincide com o valor indicado na cláusula 4ª (€ 100.000,00, correspondente ao preço dos lotes nele identificados) e com o somatório das quantias referidas na cláusula 5ª (4 x € 25.000,00 x 4 letras = € 100.000,00), ambas do documento de fls. 71-72;
- o documento de fls. 320-321 faz referência a 10 cheques (cada um deles titulando valores dispares e indicando diferentes datas), como tendo sido entregues por AA à CC para pagamento da quantia de € 100.000,00, indicada na cláusula 4ª do documento de fls. 71-72; ora, resultou do depoimento prestado em audiência pela testemunha HH, o subscritor daquele documento de fls. 320-321, que na data de vencimento de cada uma das letras, no valor de € 25.000,00, lhe foi entregue um cheque no mesmo montante.

Por outro lado, resultou dos esclarecimentos prestados em audiência pelo administrador da insolvência da CC, MM, que:

- não encontrou elementos contabilísticos da CC que comprovem o recebimento, por esta, da quantia indicada na cláusula 4ª do documento de fls. 71-72;

- tal quantia não se mostra refletida na contabilidade da insolvente;

- reconheceu créditos reclamados por AA no valor de € 200.000,00, apenas e só por se lhe afigurarem “explícitos” de modo a que os demais credores sobre eles se pudessem pronunciar;

- foi por não dispor de elementos contabilísticos referentes ao documento de fls. 71-72, ou seja, por não haver registo contabilístico do recebimento, pela CC, da quantia referida na sua cláusula 4ª, que não cumpriu o contrato promessa que tal documento consubstancia;

- o teor da impugnação do BB à reclamação, por AA, do crédito de € 200.000,00, constituiu mais uma razão para não cumprir o contrato-promessa;

- desconhece a razão pela qual as alegadas entregas, por AA à CC, das quantias referidas na cláusula 5ª do documento de fls. 71-72, não se mostram refletidas da contabilidade da empresa.

Acresce que não foi junto aos autos:

a) cópia de qualquer uma das quatro letras (no valor de € 25.000,00, cada uma) referidas na cláusula 5ª do documento de fls. 71-72, e a que HH igualmente fez referência no seu depoimento;

b) cópia de qualquer um dos cheques que HH, no depoimento prestado na audiência final, referiu terem-lhe sido entregues por AA na data do vencimento de cada uma das letras referidas na cláusula 5ª do documento de fls. 71-72;

c) cópia de qualquer um dos cheques referidos no documento de fls. 320-321,

d) qualquer extrato que reflita operações bancárias referentes às letras e/ou aos cheques referidos em a) a c) supra,

pois os documentos que se encontram a fls. 82-141 nada têm a ver com as letras referidas em a), com os cheques referidos em b) e c), ou com os extratos referidos em d).

Perante tudo isto, considera este tribunal que os elementos probatórios carreados para os autos não permitem concluir que «o preço referido no contrato mencionado em 3., foi integralmente pago por AA mediante a entrega de cheques na data de vencimento das letras.»

Ante a falta de elementos probatórios demonstrativos de tal facto, aquilo que efetivamente parece fazer sentido, à luz das regras da experiência comum, da lógica, da normalidade das coisas, é a dedução, a suposição, levantada pela testemunha NN (foi colaborador da CC durante sete ou oito anos, até 2013; as suas funções consistiam em mostrar lotes de terreno pertença da CC e casas por esta construídas, a potenciais interessados na sua aquisição) no depoimento que prestou na audiência final, no sentido de que os lotes de terreno 9 e 10 foram entregues pela CC a AA, no âmbito de um acerto de contas relativamente à empreitada que teve por objeto a construção de moradias no denominado empreendimento das ..., em que foi empreiteira a sociedade KK, Lda.[8] (da qual foi sócio gerente AA), e dona da obra, a CC. Na verdade, resultou do depoimento daquela testemunha que havia contas a acertar entre as duas sociedades no âmbito daquela empreitada; ou seja, a CC era devedora de quantias em dinheiro para com a KK, pelo que supõe, deduz, que a entrega pela CC a AA, daqueles dois lotes de terreno, seria uma forma de pagamento de parte do preço da referida empreitada (a empreitada efetuada pela KK, à CC, no empreendimento das ...). Trata-se apenas de uma suposição, de uma dedução, mas que não deixa de ser perfeitamente plausível, se tivermos em conta que os únicos sócios da sociedade KK foram AA e mulher, LL, casados segundo a comunhão de adquiridos, exercendo ele o cargo de gerente, obrigando-se a sociedade apenas com a sua assinatura.

No mais, a testemunha NN revelou desconhecer, de todo, pormenores referentes ao documento fls. 71-72; confirmou, no entanto, que quem construiu as moradias edificadas nos lotes 9 e 10, foi a sociedade KK; quanto ao destino das moradias, aquilo que sabe resulta apenas do que afirmou ter-lhe sido dito por AA.

Seja como for, tal como acima afirmado, os elementos probatórios carreados para os autos não permitem concluir que «o preço referido no contrato mencionado em 3., foi integralmente pago por AA mediante a entrega de cheques na data de vencimento das letras.»

Aliás, diga-se, não é sequer crível que uma pessoa experiente em negócios na área da construção civil, como é caso de AA, pelo que os autos revelam, se dispusesse, a título individual, no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda, a pagar a totalidade do preço dos imóveis dele objeto, no montante de € 100.000,00, incidindo sobre os mesmos hipoteca registada a favor de um banco.

Pelo exposto, considerando-se não provado o ponto de facto 7-A”.

As normas cuja violação é alegada (todas do CC) são as seguintes:

Artigo 374.º (Autoria da letra e da assinatura)

1. A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras.

2. Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade.

Artigo 376.º (Força probatória)

1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.

2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.

Artigo 393.º (Inadmissibilidade de prova testemunhal)

(…) 2. Também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.

Artigo 358.º

(…) 2. A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.

Ora, vendo bem, não há qualquer violação destas normas:

a) não há violação do artigo 374.º do CC porquanto o Tribunal a quo não pôs em causa a autoria da letra ou da assinatura do documento junto a fls. 320-321 dos autos (através do qual HH na qualidade de sócio gerente da sociedade comercial “CC, Lda.” prestou quitação do pagamento do preço a que alude o contrato promessa);

b) não há violação do artigo 376.º, n.ºs 1 e 2, do CC porquanto o Tribunal a quo não pôs em causa que o documento junto a fls. 320-321 dos autos tinha força probatória plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor;

c) não há violação do artigo 393.º, n.º 2, do CC porque o Tribunal a quo não admitiu prova testemunhal contra o facto plenamente provado acima referido nem contra quaisquer outros; e

d) não há violação do artigo 358.º, n.º 2, do CC porque não porque o Tribunal a quo não desrespeitou a força probatória da confissão extrajudicial contida no documento junto a fls. 320-321 dos autos ou em quaisquer outros documentos.

Diversamente, o Tribunal a quo, admitindo que o documento junto a fls. 320-321 dos autos era de autoria de HH e fazia prova plena quanto às declarações feitas por este, tomou como firme o respectivo conteúdo, ou seja, que HH declarou prestar quitação do pagamento do preço [9]. No que respeita, porém, ao tema do pagamento do preço, não tem aquele documento qualquer “serventia probatória” pois tudo quanto dele resulta, como se viu, é que HH declarou prestar quitação e não, de modo algum, que o preço tenha sido efectivamente pago. Estava, pois, o tribunal, quanto ao último, autorizado a apreciar, como fez, todos os elementos de prova carreados para os autos (designadamente, documental e testemunhal) e a apoiar-se neles, bem como nas regras da experiência, para formar a sua convicção.

Em síntese: a eliminação do facto sob o número 7-A deveu-se simplesmente à insuficiência de elementos probatórios que permitissem ao Tribunal formar a convicção de que o preço referido no contrato tivesse sido integralmente pago por AA mediante a entrega de cheques na data de vencimento das letras. A decisão de dar como não provado o ponto de facto 7-A da decisão sobre a matéria de facto proveniente do Tribunal de 1.ª instância está, assim, plenamente justificada e – repete-se – não acarreta qualquer violação das normas aplicáveis.

Posto isto, estão reunidas as condições necessárias para se analisar a 3.ª questão, respeitante à titularidade pelo recorrente do crédito de 200.000, respeitante ao incumprimento do contrato-promessa pelo administrador da insolvência.

Inexistindo motivo para censurar o Tribunal recorrido quanto à sua decisão sobre a matéria de facto, a resposta à questão não oferece dificuldades.

Não tendo ficado provado que AA tenha entregado à sociedade CC aquela quantia, logo que tenha prestado sinal, e nem que tenha sofrido algum dano pelo não cumprimento do contrato-promessa, não é possível reconhecer-se-lhe o crédito invocado.

Para que existisse um crédito, seria, em qualquer caso, necessário que o contrato-promessa tivesse sido definitivamente incumprido, o que – deve esclarecer-se – não ocorreu, ao contrário do que pretende o recorrente [cfr., em especial, conclusões B) e D)], por declaração tácita, através da inclusão, pelo administrador da insolvência, do crédito do recorrente na lista de créditos reconhecidos.

Se se atentar bem nos factos provados, verifica-se que o administrador da insolvência teve o cuidado de qualificar o crédito como condicional, subordinando-o, não, como sustenta o recorrente, à decisão sobre a impugnação [cfr., em especial, conclusão C)], mas sim, nos termos permitidos pelo artigo 50.º, n.º 1, do CIRE, à condição (suspensiva) do incumprimento do contrato-promessa (facto 19.). Deduzir que, nessa altura e por via da inclusão do crédito nestes termos, o administrador está a declarar a recusa de cumprimento não é razoável, na óptica de um normal declaratário.

E nem se diga que as normas dos artigos 217.º, n.º 1, e 219.º do CC e do artigo 102.º, n.º 1, do CIRE impõem uma solução diversa: as duas primeiras não impedem, de facto, que a recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência seja feita por via de declaração tácita, mas a primeira norma define-a e define-a como aquela que “se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam[10]. Ora, os factos não só não revelam, com toda a probabilidade, aquela declaração, como directamente a contrariam[11].

Chega-se, pois, à 4.ª questão, relativa à titularidade do crédito de 314.000, pelo recorrente, respeitante a benfeitorias por si realizadas

Relativamente a esta questão defende o recorrente que “[a] impugnação promovida pelo credor AA - com fundamento na indevida exclusão da lista de credores reconhecidos de parte do seu crédito (respeitante às benfeitorias) - não tinha se não que ser julgada procedente – uma vez que não foi sujeita a qualquer resposta ou oposição, nem pelo próprio administrador de insolvência, nem por qualquer outro credor, mormente pelo BB S.A., atento o efeito cominatório pleno, prevalecendo aqui o princípio da autorresponsabilização dos interessados que, não cumprindo o ónus que a lei sobre eles faz impender, terão de suportar as consequências desvantajosas (…)” e que “[o] Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido ao não ter julgado reconhecido o crédito e graduado o mesmo como garantido, correspondente às benfeitorias no montante de € 314.000,00 violou o preceituado no artigo 131.º número 3 do CIRE” [cfr. conclusões P) e Q)].

Esta última questão obriga a concentrar a atenção na parte final da norma do artigo 131.º, n.º 3, in fine, do CIRE, determinando que “a resposta [à impugnação] deve ser apresentada (…) sob pena de a impugnação ser julgada procedente[12].

Ora, a verdade é que a falta de resposta à impugnação não tem o efeito cominatório pretendido pelo recorrente.

Como se esclareceu em Acórdão desta 6.ª Secção[13], na verificação de créditos, o juiz nunca está dispensado de desenvolver uma mínima actividade jurisdicional, devendo proceder à apreciação dos créditos antes de declarar o seu reconhecimento[14]. Concretamente, no caso de falta de resposta à impugnação, os factos alegados nesta devem, é certo, ser admitidos, mas o crédito não pode deixar de ser objecto de apreciação judicial.

É esta a interpretação adequada do artigo 131.º, n.º 1, do CIRE. E é esta a única solução compaginável como o disposto no n.º 5 da norma (geral) do artigo 136.º do CIRE, que é aplicável a todos os créditos com excepção dos incluídos na lista e não impugnados (e, ainda assim, quando o juiz não encontre erro manifesto) (cfr. artigo n.º 1 do artigo 136.º do CIRE) e dos que mereçam a aprovação de todos os presentes na tentativa de conciliação (cfr. n.º 3 do artigo 136.º do CIRE). Diz-se aí que “[só] se consideram ainda reconhecidos os demais créditos que possam sê-lo em face dos elementos de prova contidos nos autos”.

Se não fosse aquela a interpretação do artigo 131.º, n.º 3, do CIRE, qualquer sujeito que se arrogasse a titularidade de um direito de crédito sem dispor de título válido conseguiria ver a sua pretensão acolhida por mero efeito da inércia dos contrainteressados. Constituir-se-ia um crédito onde só existia um crédito fictício, o que não pode ser um resultado pretendido ou tolerado pelo Direito. Em caso algum o valor (formal) da celeridade ou outros valores do tipo podem prevalecer sobre valores de natureza diversa (substancial) como o apuramento da verdade e a justiça material.

Uma interpretação da qual resultasse do artigo 131.º, n.º 3, do CIRE um efeito cominatório pleno seria, além do mais, dificilmente sustentável no plano constitucional, por implicar, justamente, um efeito cominatório pleno, que é susceptível de violar o acesso ao direito e à tutela jurisdicional fixados no artigo 20.º da CRP.

Em conclusão, o não reconhecimento judicial do crédito, contrariando o peticionado na impugnação e apesar da falta de resposta à impugnação, não constitui ofensa do disposto no artigo 131.º, n.º 3, do CIRE.

Alega ainda o recorrente que “existe a contradição entre a conclusão do Tribunal a quo e a matéria assente – designadamente os pontos de facto 9, 10 e 11 - razão pela qual, só no âmbito de um manifesto erro de julgamento se pode concluir que, pelas regras da experiência comum, não tenha sido o credor AA a edificar tais moradias” [cfr. conclusão R)].

Mas também esta alegação deve ser desatendida, sendo os factos mencionados perfeitamente compatíveis.

Segundo o facto sob o número 9., após a assinatura do documento de fls. 71-72, AA entrou em poder dos lotes de terreno ali identificados; segundo o facto sob o número 10., em cada um desses lotes de terreno foi construída, pela sociedade KK, Lda., a mando de AA, uma moradia unifamiliar, faltando instalar, em cada uma delas, equipamentos de cozinha, peças sanitárias e revestimento de escadas de acesso ao andar; e, segundo o facto sob o número 11., AA foi quem diligenciou pela instrução do processo n.º 404/2009-2.10.2009 referente à “comunicação prévia” n.° ..., efetuada junto da CÂMARA DO MUNICIPAL DO ... relativamente ao “lote …”, apesar de o mesmo ter sido tramitado em nome da sociedade CC, LDA.

Resulta destes factos, claramente, que quem construiu as moradias foi a sociedade “KK, Lda.”, de que AA é sócio-gerente. O facto de ser este último quem entra em poder dos lotes de terreno ou diligencia pela comunicação à Câmara em nada se estranha, podendo perfeitamente ser compreendido à luz da sua qualidade de sócio-gerente daquela sociedade.

Em contrapartida, e como sublinhou o Tribunal recorrido, não resulta destes nem de quaisquer outros factos assentes nos autos “que AA, pessoa singular, tivesse custeado, suportado, do seu bolso, a expensas do seu património privado, a construção das moradias edificadas nos lotes de terreno … e …”; “[r]ecaía sobre AA, também neste caso por imposição do art. 342º, n.º 1, o ónus de alegação e prova de ter custeado, suportado, do “seu bolso”, a expensas do seu património privado, a construção das moradias edificadas nos lotes de terreno … e …; ou seja, de ter sido ele, à custa do seu património privado, quem suportou as despesas, no valor dos créditos reclamados (€ 313.500,00), com a construção daquelas moradias”, não o tendo feito, não pode este crédito ser-lhe reconhecido[15].

Quanto à alegada violação das normas dos artigos 479.º, 754.º e 1273.º do CC [cfr. conclusões S) e T)], diga-se, por fim, que ela não existe: não existe violação do artigo 1273.º do CC porque, não tendo AA provado que (foi) ele (quem) realizou benfeitorias necessárias ou úteis, não pode invocar direito à restituição; não existe violação do artigo 479.º do CC porque não, não tendo AA provado que houve enriquecimento sem causa à sua custa, não existe obrigação de restituir; não existe violação do artigo 754.º do CC porque, não tendo AA provado ser titular do crédito, não pode arrogar-se um direito de retenção.

Em face da resposta dada às últimas duas questões, ou seja, não se identificando qualquer crédito de que seja titular o recorrente, fica prejudicada a apreciação da questão final, sobre a eventual existência de uma garantia constituída pelo direito de retenção e, consequentemente, fica prejudicada a discussão dos temas que lhe andam associados, entre os quais avulta o da qualidade de consumidor.


                                   *

III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.

                                                           *

Custas pelo recorrente.

                                                           *

                                                           LISBOA, 12 de Novembro de 2019

                                                            

Catarina Serra (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1] Note-se que a decisão sobre a matéria de facto foi alterada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
[2] Cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2016, Proc. 106/13.6TYVNG-B.P1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[3] Determina-se no primeiro destes dispositivos que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais não pode ser objecto de recurso de revista”, só podendo o Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido no respeitante à matéria de facto quando, nessa fixação, tenha havido “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”.
[4] Sobre isto cfr., por todos, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 397 e s. e pp. 431 e s.
[5] Em particular, a propósito do disposto no artigo 662.º do CPC, salienta Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 339) que “[o] n.º 4 do artigo 662.º é perentório a determinar a irrecorribilidade das decisões através das quais a Relação exerce os poderes previstos nos n.ºs 1 e 2 (…). Portanto, o Supremo não pode julgar se a prova foi bem ou mal avaliada e se o facto foi bem ou mal dado como provado. Por ex., não é sindicável a reapreciação da prova sujeita à livre apreciação, como sejam a prova testemunhal, a prova por documento sem força probatória plena, a prova pericial e a prova por presunções judiciais”.

[6] Sobre isto cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2019, Proc. 156/16.0T8BCL.G1.S2, relatado pela presente relatora (disponível em http://www.dgsi.pt).
[7] “Cfr. Ac. do STJ, de 18.04.2002, Proc. 02B717 (Ferreira de Almeida), e Ac. desta Relação, de 20.02.2014, Proc. n.º 5836/09.4YYLSB-B.L1 (Vítor Amaral), ambos in www.dgsi.pt”.
[8] Doravante apenas “...”.
[9] Assente a veracidade da autoria do documento particular (que é o aqui está em causa), a força probatória plena refere-se apenas às declarações atribuídas ao seu autor e nunca abrange sequer os factos que nele sejam narrados como tendo sido praticados ou percepcionados pelo seu autor. Esta é uma importante diferença relativamente à força plena dos documentos autênticos, que, ao contrário, alcança os factos que nele são referidos como tendo sido praticados / atestados pela autoridade ou oficial público documentador. Cfr., neste sentido, por todos, José Lebre de Freitas, A acção declarativa comum à luz do Código revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 2011 (2.ª edição), pp. 218 e s..
[10] Sublinhados nossos.
[11] Como se diz, justamente, no Acórdão recorrido, “[s]ignifica isto que o administrador da insolvência remete, pelo menos aparentemente, para momento posterior, a opção definitiva sobre o seu cumprimento ou não cumprimento”.
[12] Itálicos nossos.
[13] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.10.2018, Proc. 650/12.2TBCLD-B.C1.S1, relatado pela presente relatora (disponível em http://www.dgsi.pt).
[14] Também para Carvalho Fernandes e João labareda [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado. Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, cit., p. 531], o disposto no artigo 131.º, n.º 3, do CIRE não dispensa, portanto – continua a não dispensar, mesmo depois daquela alteração – o juiz de desenvolver a típica actividade jurisdicional tendente a verificar os créditos, não devendo, portanto, associar-se à falta de resposta à impugnação um efeito cominatório pleno.
[15] Não pode ser-lhe reconhecido a título pessoal, que é o que ele invoca. A situação seria, naturalmente distinta se o recorrente se apresentasse como representante ou titular de poderes de representação da sociedade “KK, Lda.” (gerente, liquidatário, administrador da insolvência).