Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4413/19.6T8VCT.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
CONHECIMENTO PREJUDICADO
OBJETO DO RECURSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
O caso julgado formal tem eficácia meramente intraprocessual, pelo que, numa nova acção com as mesmas partes e o mesmo objecto de acção anterior que tenha terminado com a absolvição da instância do réu, salvo disposição legal em contrário, pode ser proferida decisão divergente da proferida na primeira acção.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


Recorrente: AA

Recorrida: Massa insolvente da Portelinha – Transportes, Lda.


1. AA deduziu acção declarativa contra a Massa Insolvente da sociedade Portelinha – Transportes, Lda., pedindo que a ré seja condenada a reconhecer que o autor é dono e legítimo possuidor e proprietário, com exclusão de outrem, do prédio urbano constituído por edifício destinado a fábrica de serração e logradouro com a área coberta de 1000 m2 e descoberta de 2000 m2, sito no lugar de ..., da ... e de ..., concelho de ..., a confrontar de norte, sul e nascente com caminhos públicos e do poente com a ré, não descrito na CRP de ..., inscrito na matriz sob o artigo ...99 urbano (antes artigo ...64 urbano).

Mais pede que a ré seja condenada a ver ordenado que o prédio rústico, descrito na CRP de ... sob o número ... 93 de ..., é constituído de ... e ... com 3600 m2, sito no lugar de ..., ... e de ..., concelho de ..., a confrontar do norte com caminho público, do sul e poente com ... e do nascente com o prédio urbano do autor, inscrito na matriz sob o artigo ...72 rústico da freguesia de ....

Finalmente, pede ainda que a ré seja condenada a restituir o transformador levantado do prédio ou a pagar o seu valor de € 3.000,00 e a pagar a reparação da cabine de alta tensão danificada, no valor de € 1.000,00.


2. A ré contestou excepcionando o caso julgado e a ilegitimidade ativa e passiva, e pedindo a condenação do autor como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor da ré em quantia não inferior a € 2.500,00.


3. A final, foi proferido despacho saneador com a seguinte decisão:

Em face do exposto, julgo, nos termos do disposto nos artigos 595 n.º 1 alínea a), 186º n.ºs 1 e 2 alínea b), 576º n.ºs 1 e 2, 577º alínea b) e 578º do Código de Processo Civil, inepta a petição inicial, e, consequentemente, absolvo a ré da instância”.


4. Inconformado, o autor AA interpôs recurso de apelação.


5. Em 13.07.2021 foi proferida pelo Tribunal da Relação de … a seguinte decisão:

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão de absolvição da ré da instância, nos termos sobreditos”.


6. Ainda inconformado, o autor AA vem agora interpor recurso de revista, pugnando pela revogação do Acórdão recorrido e pelo proferimento de nova decisão que julgue a acção, desde já procedente ou, se assim não for, que ordene o prosseguimento dos autos

 Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª- O Meritíssimo Juiz, ao transcrever a douta sentença do processo n.º 3757/17.6… para a presente ação, referenciando a demanda anterior com a mesma pretensão e idêntico requerimento, além de deixar de julgar, está, objetivamente, a declarar-se impedido, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 115º do Código de Processo Civil.

2ª-Transcrevendo a sentença da demanda anterior, na ação posterior, não proferiu sentença na segunda ação.

3ª- Não obstante o fato de ser transcrita da primeira ação para a segunda, a mesma sentença produz efeitos na segunda ação que impedem o juiz de prosseguir nesta ação, por efeito do caso julgado formal.

4ª- Assim, justificam-se os recursos interpostos de apelação e revista.

5ª- Bem como se justifica declarar impedido o Meritíssimo Juiz, por ter repetido a sentença da primeira ação na segunda ação, e de ter alertado ter sido o juiz da primeira, sem se declarara impedido, na segunda.

6ª- Além disto, na primeira ação deixou de cumprir o douto acórdão da Relação de 8/2/2018 que lhe ordenou o prosseguimento da ação do processo n.º 3757/17.6… .

7ª- O procedimento do Meritíssimo Juiz viola o disposto no n.º 4 do artigo 20º e 203º da Constituição da República Portuguesa.

8ª- Deve ser declarado impedido de prosseguir os termos da presente ação.

9ª- O douto acórdão, ora impugnado, ao confirmar a sentença da ação do processo n.º 3757/17.6..., viola o disposto no artigo 653º do CPC, designadamente o seu n.º 3.

10ª- A douta sentença limitou-se a apreciar a ineptidão da petição inicial que consiste na verificação de vícios ou imperfeições do requerimento inicial.

11ª- A douta sentença não fixa fatos provados e não provados, porquanto se limita a julgar a petição inicial inepta, sem resolver nenhuma questão material da ação.

12ª- Aliás, se julgasse alguma questão material, a petição não podia ser qualificada de inepta, porque teria produzido efeitos.

13ª- O douto acórdão recorrido, ao considerar que a douta sentença vai além do caso julgado formal, sem indicar a matéria de fato fixada que serviu de premissa para eventual decisão que tenha resolvido alguma questão material, está a conhecer de questões sobre que não deve pronunciar-se, incorrendo na nulidade previstas nas alíneas b) e d) segunda parte do n.º 1 do artigo 615º do CPC.

14ª- O julgamento da ineptidão da petição inicial constitui caso julgado formal.

15ª- O caso julgado formal não produz efeitos fora do processo, pelo que o douto acórdão, ao verificar o caso julgado e a autoridade do caso julgado da primeira ação para a segunda, viola o disposto no artigo 620º do CPC.

16ª- O douto acórdão, tendo deixado de se pronunciar sobre a pretensão do autor, de discutir a questão de a petição inicial ser inepta ou não, incorre na nulidade prevista na alínea c) primeira parte do n.º 1 do artigo 615º do CPC.

17ª- A decisão do douto acórdão, de conhecer oficiosamente o caso julgado, constitui manifesto erro de direito processual e viola o disposto nos artigos 279º n.º 1, 581º, 582º, 620º e 621º do CPC.

18ª- O autor alegou e provou, com documentos juntos com a petição inicial, que é sócio fundador, titular de todas as quotas da SOCIMEL, e … da sociedade, desde o ano de 1979.

19ª- A qualidade de proprietário de todas as quotas, desde o ano de 1979, confere, ao autor, os mais amplos poderes deliberativos e executivos da sociedade, e relega os poderes de gerência para uma mera formalidade de representação do proprietário pelo próprio proprietário.

20ª- Após a dissolução administrativa da SOCIMEL, não foram apuradas dívidas, pelo que todo o ativo pertence ao sócio proprietário de todas as quotas.

21ª- Atendendo a que o ativo da sociedade dissolvida é destinado em primeiro lugar ao reembolso das entradas efetivamente realizadas, como se prevê no n.º 2 do artigo 156º do CSC, através da dissolução oficiosa da SOCIMEL, tem o direito de propriedade do ativo, desde que foi adquirido pela sociedade.

22ª- A não ser assim entendido, o autor tem acessão de igual posse à da antecessora proprietária, dado que lhe sucede em igual posse, por título diferente da sucessão por morte.

23ª- O fato de o prédio reivindicado não ter sido relacionado no ativo da sociedade, no processo administrativo de dissolução, não tem consequências, porque o que releva, na sucessão da posse e na atribuição da propriedade, é a existência do imóvel no património social da dissolvida sociedade, à data da dissolução.

24ª- O justo título de aquisição da SOCIMEL é a acessão reconhecida pela douta sentença do processo n.º 3…0/1998.

25ª-A acessão ocorreu no momento em que a SOCIMEL tem maior valor em obra do que vale o terreno de implantação, então arrendado, entre 1979 e 1980.

26ª- A transformação da propriedade social em propriedade singular do autor dá-se em 26/1/2011, mas tem efeitos em 1979, na data da constituição da SOCIMEL, da aquisição das quotas dos irmãos, restantes sócios, e da realização da obra, tudo entre 1979 e 1980.

27ª-O autor como único proprietário das quotas sociais, tem o direito de propriedade do imóvel desde a acessão, reconhecida judicialmente, porque com a dissolução da sociedade sucede o pagamento das entradas realizadas, substituindo-se a propriedade coletiva em propriedade singular do titular de todas as quotas.

28ª- O autor é o proprietário do prédio que reivindica desde a acessão, porque adquire o bem a título oneroso pelo pagamento das suas entradas, por título diferente da sucessão por morte, na data da dissolução da sociedade, pelo que à sua posse acresce a da SOCIMEL.

29ª- O Meritíssimo Juiz fundamenta que o autor não alega qualquer título legítimo de adquirir, porque não atende à exposição dos fatos e à prova, nomeadamente de que o autor é sócio fundador e proprietário de todas as quotas, desde 1979, da SOCIMEL, dissolvida por decisão administrativa na que não se verifica passivo, que o património é do autor, e que do património social faz parte o prédio urbano reivindicado.

30ª- Preconiza a verificação do saldo social e a partilha dos bens sociais, para através dela o ativo regressar à esfera jurídica do autor, mas a verificação de saldo positivo é irrelevante pela ausência de passivo, a partilha é impossível, porque o autor é titular das quotas todas, e a propriedade do prédio está provada por sentença.

31ª- O Meritíssimo Juiz decide que o autor não beneficia da presunção de registo, mas o autor prova o direito de propriedade através da douta sentença do processo n.º 3…0/1998 e da qualidade de único proprietário da sociedade e, além disso, a aquisição pela acessão produz efeitos entre as partes.

32ª- A petição inicial não tem qualquer omissão de alegação de fatos para sustentar a pretensão formulada.

33ª- A petição inicial expõe os fatos necessários e suficientes para o pedido que conclui, e não sofre de vício de ineptidão.

34ª- O tribunal argumenta que, na vigência da sociedade o autor é possuidor precário, atendendo à sua qualidade de gerente, mas o autor, além de gerente, é o proprietário da sociedade, pelo que a fundamentação da questão da posse do bem reivindicado devia tem em consideração que o autor é o único proprietário das quotas, que não há dívidas sociais, e que o autor é o proprietário dos bens sociais, à data da dissolução, a título oneroso, em pagamento das entradas.

35ª- Assim, a posse do autor coincide com o início da posse da sociedade, porque os bens são para pagamento das entradas e atribuídos aos sócios, no caso concreto ao único proprietário de todas as quotas.

36ª- A petição inicial não é confusa, os fatos alegados não são contraditórios, pelo contrário, são claros e inteligíveis.

37ª- A interpretação que o tribunal faz do articulado não tem correspondência com a expressão e documentação da petição inicial, como se requer no artigo 238º do Código Civil.

38ª- O autor prova que o prédio que reivindica foi adquiridos pela SOCIMEL por acessão industrial imobiliária, que não foi reclamado passivo na dissolução administrativa, que é sócio fundador, e que adquiriu as restantes quotas dos mais constituintes da pessoa coletiva, e que o prédio que reivindica foi construído no terreno arrendado.

39ª- O direito adquirido foi reconhecido por douta sentença proferida no processo n.º 3…0/1998 e transitada em julgado no dia 4/2/1999.

40ª- Na douta sentença em causa foi reconhecida a obra da SOCIMEL no terreno arrendado.

41ª- Decidiu-se que o terreno de implantação da unidade fabril e que a obra foi feita no terreno arrendado pela SOCIMEL.

42ª- A decisão prevalece sobre qualquer outra que a contrarie.

43º- Prevalece sobre qualquer decisão administrativa.

44ª- O registo constante do averbamento e da área adquirida, por acessão, no prédio descrito sob o número noventa e três é feito sem título que lhe respeite, portanto com base num título falso, e, como tal é nulo, nos termos da alínea a) do artigo 16º do Código do Registo Predial.

45º- O prédio reivindicado não foi transmitido para a ré, nem para terceiros.

46ª- Qualquer ato sobre o prédio reconhecido na douta sentença do processo n.º 3…0/1998 carece da intervenção do autor, sob pena de ineficácia, por falta de legitimidade para o transmitir.

47ª- A douta sentença do processo n.º 3…0/1998 prova que o registo do prédio descrito sob o número noventa e três tem descrição errada e impõe-se a sua retificação para rústico.

48ª- A ação pode e deve ser declarada procedente.

49ª- A douta sentença viola a lei referida na alegação, e, nomeadamente, o disposto nos artigos 204º n.º 2, 236º, 238º, 309º, 1018, 1251º, 1252º, 1253º, 1256º, 1316º e 1340º do Código Civil, 147º, 156º do Código das Sociedades Comerciais, e 625º n.º 2 do Código de Processo Civil”.


7. Pugnando pela manutenção do Acórdão recorrido ou pela declaração de ineptidão da petição inicial e fazendo uso do seu direito de resposta, a ré apresentou contra-alegações, concluindo:

1. Entende-se como ponderado o acórdão do Tribunal da Relação do Porto que defende que não poderá uma nova ação ter uma petição inicial cujos elementos seja iguais aos da primeira.

2. “O conhecimento do caso julgado pode ser perspetivado em duas vertentes distintas, que de todo se podem confundir, mas complementam-se, ou seja, enquanto a força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica, a excepção destina-se a impedir nova decisão inútil, com ofensa ao princípio da economia processual”.

3. Ambas as sentenças, quer a que foi proferida no processo 3757/17.6… e a proferida no processo nos autos melhor identificado, são iguais. O Código do Processo Civil, nos seus artigos 590.º e 581.º, prescreve que a exceção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido deliberada por sentença transitada em julgado.

4. Com esta exceção de caso julgado, pretende-se tutelar, no essencial, o prestígio e a credibilidade da função judicial e os valores da segurança jurídica e da certeza do direito.

5. Termos pelos quais, deverá ser mantido o acórdão recorrido na íntegra.

6. Mantém-se por outro lado, que a petição inicial é inepta.

7. Em matéria de cumprimento dos requisitos da petição inicial, preceitua a alínea d), do nº 1, do artigo 552º, do Código de Processo Civil, que, na petição inicial, “deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir”, definindo o citado diploma legal, no artigo 581º, nº 4, esse elemento objetivo da instância como “o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida”.

8. O Recorrente reivindica para si um prédio que, alega, pertenceu à sociedade Socimel – Sociedade de Madeiras de Embalagem Lemos, Lda. Trata-se assim de ação de reivindicação.

9. “A ação de reivindicação tem como causa de pedir o ato ou facto jurídico concreto que gerou o direito de propriedade (ou outro direito real – cfr art. 1315º, do C. Civil) na esfera jurídica do peticionante e, ainda, os factos demonstrativos da violação desse direito. Ao reivindicante cabe o ónus de alegação e o, correlativo, ónus da prova de que é proprietário da coisa e de que esta se encontra em poder do réu.

10. Deste modo, e no que concerne aos Direitos Reais, o autor necessitava demonstrar exaustivamente a propriedade alegada, devendo invocar-se os factos tendentes a demonstrar que não só se adquiriu a coisa por um título, mas também que o direito de propriedade já existia na pessoa do transmitente.

11. Ora, o Recorrente não alega os factos essenciais demonstrativos da existência de um título de transmissão, e claro está porque o mesmo não existe nem nunca existiu.

12. Assim, se é certo que o Recorrente alegou a dissolução da sociedade, importava ter existido partilha de modo a que, sendo real o que alega o prédio ingressasse no seu património.

13. Sucede, porém, que tal não foi feito ou alegado e como muito bem se destaca na sentença recorrida “a aquisição não se opera ope legis, mas na sequência daqueles actos de liquidação e partilha que fazem parte do procedimento de dissolução. O título é precisamente a decisão prevista no artigo 25º do RPAD (cfr., igualmente, o disposto no artigo 20º, nºs. 5 e 6, do RPAD)”, não invocando o recorrente qualquer título, no sentido de modo legítimo de adquirir, para aposse que alega exercer sobre o prédio que reivindica na alínea a) do petitório.

14. Em segundo lugar, o prédio, conforme alegado pelo Recorrente não se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial competente, pelo que também não pode beneficiar da aludida presunção emergente do registo.

15. Em terceiro lugar, e quanto à alegada “posse” da ação e da formulação dada não se compreende, a que título e com que animus, o Recorrente se coloca e se apresenta na acção relativamente à sociedade que representava e ao prédio que, umas vezes era possuído pela sociedade e, outras vezes, era possuído pelo Recorrente.

16. Pelo que, e pelas razões expostas, nos termos do artigo 595º, 1, e al. a) do artigo 180º do Código de Processo Civil, também não merece qualquer censura a sentença proferida em primeira instância”.


8. Em 11.10.2021 foi proferido pela Exma. Desembargadora do Tribunal da Relação de … um despacho admitindo a subida dos autos.


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Como é sabido, o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC).

As conclusões do recorrente – deve dizer-se – não primam pela sua clareza, pelo que a identificação e a enunciação das questões não é fácil.

Identificaram-se três grupos de questões, sendo que o primeiro grupo se relaciona com alegados vícios da sentença (cfr. conclusões 1.ª a 12.ª), em particular com um alegado “impedimento” que, no entender, afectaria o juiz de 1.ª instância (cfr. conclusões 1.ª a 5.ª e 8.ª).

Ora, este primeiro bloco de questões / argumentos não pode ser apreciado aqui. Com efeito, o recurso de revista incide apenas sobre acórdãos da Relação (cfr. artigo 671.º, n.º 1, do CPC), não cabendo a este Supremo Tribunal, fora dos casos excepcionalmente previstos na lei (cfr., nomeadamente, artigo 644.º, n.º 1, ex vi do 678.º do CPC), apreciar e revogar sentenças, como parece pretender o recorrente nesta parte do recurso.

Acresce que que estão em causa questões / argumentos novos, que não foram suscitados perante o Tribunal recorrido e por isso tão-pouco foram apreciados por ele (veja-se isto, claramente, quanto ao alegado “impedimento” do juiz de 1.ª instância), o que preclude, por sua vez, o seu conhecimento por este Supremo Tribunal. Como é sabido e constitui jurisprudência consolidada[1], os recursos visam a reponderação, por parte do tribunal ad quem, das questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo e não a pronúncia sobre questões que lhe são levantadas ex novo ou pela primeira vez, com excepção daquelas que sejam de conhecimento oficioso.


Subsistem, então, duas questões, que são as seguintes:

1.ª) se o Acórdão recorrido é nulo pelas causas previstas no artigo 615.º, n.º 1, als. b) e d), 2.ª parte, e al. c), 1.ª parte, do CPC; e

2.ª) se o Tribunal decidiu bem ao ter absolvido a ré da instância.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Consta da fundamentação de facto do Acórdão recorrido o seguinte:

A sentença recorrida tem o seguinte teor:

Na presente acção, o Autor formula quatro pedidos, sendo os enunciados nas alíneas c) e d), decorrência e consequência dos dois primeiros (A causa de pedir enunciada na petição inicial desta acção é exactamente igual à causa de pedir enunciada na petição inicial da acção comum nº 3757/17.6…, com excepção dos enunciados constantes dos artigos 69º a 71º da petição desta acção; os pedidos formulados na presente acção sob as alíneas a) e b) são iguais aos pedidos formulados na referida acção comum nº 3757/17.6… sob as alíneas a) e b) do petitório formulado a final da petição inicial desta última acção). Vejamos os enunciados dos dois primeiros pedidos.

Em primeiro lugar, pede que a Ré seja condenada a reconhecer que o Autor é dono e legítimo possuidor e proprietário, com exclusão de outrem, do prédio urbano constituído por edifício destinado a fábrica de serração e logradouro com a área coberta de 1000 m2 e descoberta de 2000 m2, sito no lugar de ..., da ... e ..., concelho de ..., a confrontar do norte, sul e nascente com caminhos públicos e do poente com a Ré, não descrito na Conservatória do Registo Predial de ... e inscrito na matriz predial sob o artigo ...99º urbano (anterior artigo …64º urbano).

Em segundo lugar, pede que seja ordenado que o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número ... ...93, é constituído de ... e ... com 3600 m2, sito no lugar de ..., da ... e ..., concelho de ..., a confrontar do norte com caminho público, do sul e poente com ... e do nascente com o prédio urbano do Autor, inscrito na matriz predial sob o artigo …72º rústico da freguesia de ....

De acordo com o disposto no artigo 186º do Código de Processo Civil: “1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

2 - Diz-se inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.

A causa de pedir corresponde ao conjunto dos factos constitutivos do direito que o autor quer fazer valer (os que integram a previsão da norma ou das normas substantivas que estatuem o efeito pretendido – cfr. artigos 552º, nº 1, alínea d), 5º, nº 1, 574º, nº 1 e 581º, nº 4, todos do Código de Processo Civil).

Em matéria de cumprimento dos requisitos da petição inicial, preceitua a alínea d), do nº 1, do artigo 552º, do Código de Processo Civil, que, nesse articulado, “deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir”, definindo o citado diploma legal, no artigo 581º, nº 4, esse elemento objectivo da instância como “o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida”.

A ineptidão petição inicial poderá resultar de uma multiplicidade de causas que se agrupam, por sua vez, em dois grupos, no que especificamente à causa de pedir respeita, previstos no artigo 188º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil: a ininteligibilidade e a falta de causa de pedir. Estaremos perante uma causa de pedir inexistente quando, na alegação, faltem os factos essenciais à pretensão deduzida. Estaremos em face de uma causa de pedir ininteligível quando a narração constante da petição é equívoca, ambígua e difusa – ininteligibilidade de facto – ou quando aquela enunciação de facto é destituída de qualquer significação jurídica – ininteligibilidade de direito.

Vejamos.

Em síntese, o Autor reivindica para si um prédio que, alega, pertenceu à sociedade Socimel – Sociedade de Madeiras de Embalagem Lemos, Lda..

Tendo em conta a forma como o Autor estruturou a causa de pedir e formulou os respectivos pedidos, resulta insofismável ter o mesmo lançado mão de uma acção de reivindicação, tal como ela se encontra configurada no artigo 1311º, nº 1, do Código Civil: “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”.

Constituindo o poder de reivindicar um momento essencial da propriedade, não gozasse o proprietário de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem – cfr. artigo 1305º do Código Civil -, a acção de reivindicação compreenderá, para que assim seja apelidada, de dois pedidos concomitantes: (i) o pedido de reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio) e (ii) o pedido de entrega da coisa objecto desse direito (condemnatio). Como se intuirá, atentas as características dos direitos reais, consubstanciadas no direito de sequela e no direito de preferência – Oliveira Ascensão fala de “razões absolutas” (In Acção de Reivindicação, ROA, 57º, Abril de 1997, pp. 511 e seguintes) -, o momento processual da reivindicação é, essencialmente, o reflexo do poder do dono de ir buscar a sua coisa, a concretização jurídico-processual do seguimento ou sequela.

Constituindo o objecto da acção sub judice, uma coisa corpórea, pois só estas, nos termos do disposto no artigo 1302º do Código Civil, podem ser objecto dos direitos reais (incluindo-se, aqui, as universalidades de facto), a causa de pedir surge, necessariamente, como complexa, impendendo sobre o autor o ónus de alegar e provar de que é o proprietário do prédio e que o mesmo se acha abusivamente ocupado pelo réu. Como refere Oliveira Ascensão, “réu é quem tem a coisa em seu poder” (pág. 529, obra citada).

Para que obtenha ganho de causa, em obediência ao preceituado no artigo 581º, nº 4, do Código de Processo Civil que, adoptando o princípio da substanciação (que se opõe ao princípio da individuação ou da individualização. Para esta teoria bastaria a mera invocação da propriedade), definiu a causa de pedir, quanto às acções reais, na base do facto jurídico de que procede o direito real, o autor necessita de provar mais do que um título de aquisição derivada, como, por exemplo, um contrato de compra e venda, tendo em conta que tais formas de aquisição são apenas translativas do direito e não exaustivas do mesmo. Nestes termos exige-se uma demonstração exaustiva da propriedade alegada, devendo invocar-se os factos tendentes a demonstrar que não só se adquiriu a coisa por um título, mas também que o direito de propriedade já existia na pessoa do transmitente, em obediência ao velho princípio de que nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet. Com efeito, um negócio de aquisição derivada não basta para provar que se adquiriu o direito a que o negócio respeita, pois nada garante que o transmitente tivesse esse direito.

Consciente que tal prova – diabolica probatio na expressão de Acúrsio – é extremamente difícil de conseguir, o legislador estabeleceu presunções legais do direito de propriedade, entre as quais se pode destacar a emergente da inscrição no registo predial (artigo 7º, do Código do Registo Predial) ou aquela que emerge da posse (artigo 1268º, nº 1, do Código Civil).

Ora, em primeiro lugar, o Autor não alega os factos essenciais demonstrativos da existência de um título de transmissão.

Com efeito, o Autor, na petição inicial, começa logo por alegar, no artigo 3º, que “o activo da sociedade é propriedade do Autor, nos termos do disposto no artigo 158º das Código das Sociedades Comerciais”. E no articulado de 08.08.2020 (requerimento nº …….87), alega que “a sucessão da titularidade do bem na esfera jurídica do autor dá-se pela dissolução” (artigo 11º) e que “a partilha é realizada pelos sócios e, sendo o autor sócio de todas as quotas, o activo pertence ao autor, apenas pelo efeito da dissolução” (artigo 12º) e que “mesmo depois de liquidada e extinta a sociedade o sócio único, se não o tiver feito antes, fica com o bem para si, nos termos do disposto no artigo 164º do CSC”.

Será assim?

Não cremos que seja.

Uma sociedade pode ser dissolvida administrativamente [cfr. Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais - RPAD (Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março)], por deliberação dos sócios (cfr. artigos 141º e 142º do Código das Sociedades Comerciais) ou por justificação notarial ou, ainda, por procedimento simplificado de justificação (cfr. artigo 141º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais). No regime legal actualmente em vigor, a modalidade de dissolução administrativa substituiu a dissolução judicial, que deixou de ser uma modalidade autónoma ab initio, encontrando-se reservada para os casos subsequentes a decisão judicial em processo de insolvência (cfr. artigo 141º, nº 1, alínea e), do Código das Sociedades Comerciais) e para os casos que resultem de impugnação judicial de uma deliberação de dissolução dos sócios (cfr. artigo 42º, nº 4, do Código das Sociedades Comerciais) ou de dissolução administrativa (cfr. artigo 12º do RPAD).

A liquidação, prevista nos artigos 146º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais, é, em regra, o último acto juridicamente relevante da vida da sociedade e o respectivo encerramento corresponde ao seu desaparecimento da ordem jurídica. Na liquidação procede-se ao apuramento da situação patrimonial da sociedade: (i) realização do activo patrimonial; (ii) satisfação do passivo; e (iii) determinação do destino do respectivo saldo líquido. No processo de liquidação, designam-se os liquidatários, procede-se ao apuramento das contas e, caso o saldo final seja positivo, à partilha.

No caso de dissolução administrativa (RPAD), “se do requerimento apresentado, do auto elaborado pelo conservador ou dos demais elementos constantes do processo não for apurada a existência de qualquer activo ou passivo a liquidar, o conservador declara simultaneamente a dissolução e o encerramento da liquidação da entidade comercial” (cfr. artigo 11º, nº 4, do RPAD).

Ora, tendo o Autor alegado a dissolução da sociedade, importava que tivesse alegado, ou que tal resultasse dos autos ou dos documentos juntos, que o saldo final da liquidação tivesse sido positivo e que, pela partilha, tivesse tal prédio ingressado no seu património. Sucede, porém, que o Autor nada alegou nesse sentido e com esse conteúdo, optando, antes (e, porventura, por não ter havido tal liquidação e partilha) por invocar as normas citadas para construir uma aquisição do prédio da sociedade ope legis. Ora, a aquisição não se opera ope legis, mas na sequência daqueles actos de liquidação e partilha que fazem parte do procedimento de dissolução. O título é precisamente a decisão prevista no artigo 25º do RPAD (cfr., igualmente, o disposto no artigo 20º, nºs. 5 e 6, do RPAD).

Portanto, o Autor não invoca qualquer título, no sentido de modo legítimo de adquirir, para a posse que alega exercer sobre o prédio que reivindica na alínea a) do petitório.

Em segundo lugar, o prédio, conforme alegado pelo Autor não se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial competente, pelo que também não pode beneficiar da aludida presunção emergente do registo.

Em terceiro lugar, resta a alegada “posse”.

O Autor alega, nos artigos 1º e 2º da petição inicial, que é o sócio único da referida Socimel e seu único representante legal. Alega, nos artigos 33º a 35º da petição inicial, que a sociedade que representava intentou uma acção no Tribunal Judicial da ..., contra a Junta de Freguesia de ..., cuja sentença declarou que a referida sociedade adquiriu, por acessão industrial imobiliária, o direito de propriedade incidente sobre o prédio reivindicado na alínea a) do petitório. Alega, nos artigos 11º e 37º da petição inicial, que a referida Socimel construiu a sua unidade fabril no prédio reivindicado. Alega, no artigo 44º da petição inicial, que as instalações industriais pertencem à Socimel.

Contraditoriamente com o alegado e referido supra, o Autor alega, no artigo 49º da petição inicial, que, “por si e anteriormente da sociedade Socimel, no ano de 1979, entrou na posse do terreno” reivindicado. Alega, no artigo 51º da petição inicial, que a partir de 1995 exercitou a posse do prédio através do consentimento que deu à sociedade Madeicunha para utilizar o imóvel. Alega, no artigo 52º, que depois da insolvência da sociedade Madeicunha exerceu a posse da fábrica através da sociedade Socimel até à dissolução iniciada em 2009.

Por fim, alega, no artigo 53º da petição, que a partir da dissolução da Socimel (28.02.2011), exerceu a posse em nome próprio sobre o prédio reivindicado. Também no artigo 8º do referido articulado de 08.08.2020, o Autor alega que “exerceu a posse do imóvel urbano através da Socimel e a partir da dissolução daquela sociedade em nome próprio” (itálico nosso).

O conjunto de factos alegados pelo Autor na petição inicial são confusos, contraditórios e ininteligíveis: não se compreende, afinal, a que título e com que animus, o Autor se coloca e se apresenta na acção relativamente à sociedade que representava e ao prédio que, umas vezes era possuído pela sociedade e, outras vezes, era possuído pelo Autor. Sendo, no entanto, certo, conforme alegado pelo Autor no artigo 52º da petição inicial, que a partir da dissolução da Socimel exerceu a posse invocada em nome próprio. E, conforme alegado, tal dissolução ocorre em 28.02.2011.

De acordo com o alegado, o Autor, antes daquela dissolução, é um detentor ou possuidor precário do prédio em causa reivindicado. É o que nos diz o artigo 1253º, alínea c), do Código Civil: “são havidos como detentores ou possuidores precários: (…) os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem”.

E o artigo 1290º preceitua que “os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título”.

Conjugando o disposto nos artigos 1294º, 1295º, 1296º e 1297º do Código Civil, verifica-se que a aquisição por usucapião ocorre, consoante as características da posse e relativamente a bens imóveis, decorrido que se encontre um determinado prazo, entre 10 e 20 anos.

Tendo a referida sociedade Socimel sido dissolvida e liquidada em 2011 e tendo a presente acção sido proposta em 2019, ainda não decorreu qualquer prazo que permita ao Autor adquirir o bem imóvel por usucapião, sendo certo que nada foi alegado, de forma inteligível, que permita concluir, no domínio da alegação, que tenha ocorrido, antes daquela dissolução uma inversão do título da posse (cfr. artigo 1265º, do Código Civil). Posse que, a existir, sempre teria de se concluir como sendo não titulada a partir daquela dissolução.

Em suma: do alegado pelo Autor não se retira a totalidade dos factos essenciais à pretensão que deduz, faltando, no caso e consequentemente, causa de pedir.

Em face do exposto, julgo, nos termos do disposto nos artigos 595º, nº 1, alínea a), 186º, nºs. 1 e 2, alínea b), 576º, nºs. 1 e 2, 577º, alínea b), e 578º, do Código de Processo Civil, inepta a petição inicial, e, consequentemente, absolvo a Ré da instância.

Custas pelo Autor.

Consequentemente, resulta prejudicado o conhecimento da deduzida ampliação do pedido formulada no articulado nº 36975254, sendo certo que nenhuma alteração pretendeu introduzir quanto aos factos essenciais necessários ao prosseguimento dos presentes autos”.


O DIREITO


Nota prévia sobre a admissibilidade do recurso

Verifica-se que o Tribunal recorrido confirmou a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância. Fê-lo, porém, com fundamentação essencialmente diferente: enquanto este Tribunal absolveu a ré da instância com fundamento exclusivo na ineptidão da petição inicial, aquele Tribunal absolveu a ré da instância com base no fundamento adicional da excepção de caso julgado, abordando uma questão não alegada na apelação mas que era de conhecimento oficioso.

Não se configura aqui, pois, o impedimento designado “dupla conforme” (cfr. artigo 671.º, n.º 3, a contrario, do CPC) e, verificando-se os requisitos gerais de recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça, a revista deve ser admitida pela via normal.


1. Da alegada nulidade do Acórdão recorrido

O recorrente sustenta que o Acórdão recorrido padece de nulidade sob dois pontos de vista:

a) atendendo a que “o douto acórdão recorrido, ao considerar que a douta sentença vai além do caso julgado formal, sem indicar a matéria de fato fixada que serviu de premissa para eventual decisão que tenha resolvido alguma questão material, está a conhecer de questões sobre que não deve pronunciar-se, incorrendo na nulidade previstas nas alíneas b) e d) segunda parte do n.º 1 do artigo 615º do CPC” (cfr. conclusão 13.ª); e

b) atendendo a que “o douto acórdão, tendo deixado de se pronunciar sobre a pretensão do autor, de discutir a questão de a petição inicial ser inepta ou não, incorre na nulidade prevista na alínea c) primeira parte do n.º 1 do artigo 615º do CPC” (cfr. conclusão 16.ª).

Desde já, pode antecipar-se que não assiste razão ao recorrente. Se não veja-se.

a) Quanto à nulidade primeiramente referida, diga-se antes de mais, que uma coisa é a nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, outra coisa é a nulidade por conhecimento de questões de que o tribunal não podia tomar conhecimento, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.

Tentando ordenar os argumentos, parece poder concluir-se que o recorrente imputa, em primeiro lugar, ao Acórdão recorrido nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto por ele não ter indicado a matéria de facto que serve de base à decisão.

A verdade, porém, é que, além de o Tribunal recorrido ter identificado um facto (não obstante único) no ponto II (“Fundamentação”) e antes da fundamentação de direito, não pode ignorar-se que este deve ser lido em conjunto com os factos relatados no ponto I (“Relatório”). Juntos, eles são manifestamente suficientes para a decisão – e para a fundamentação de facto da decisão proferida pelo Tribunal a quo.

Em suma: constando do Acórdão recorrido a fundamentação de facto relevante para a decisão não pode dizer-se que há nulidade por falta de fundamentação de facto.

O recorrente imputa ao Tribunal recorrido, em segundo lugar, a nulidade consistente no conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, comummente designada “excesso de pronúncia”. Dever-se-ia esta nulidade, segundo o recorrente, ao facto de o Tribunal recorrido ter considerado que a douta sentença ofendia o caso julgado formal.

Sucede que esta questão é de conhecimento oficioso, pelo que o tribunal não só podia como devia conhecer dela. Como resulta do Acórdão recorrido, o caso julgado qualifica-se como uma excepção dilatória [cfr. artigo 577.º, al. i), do CPC], que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (cfr. artigo 576.º, n.º 2, do CPC) e que – o mais importante para o presente efeito – que, independentemente de a questão ser suscitada pelas partes, o tribunal tem o poder e o dever de a conhecer oficiosamente (cfr. artigo 578.º do CPC)[2]. Trata-se de uma manifestação do princípio jura novit curia (artigo 5.º, n.º 3, do CPC).

Não há dúvidas, pois, de que o Tribunal não só podia como devia ter tomado conhecimento dela, pelo que improcede a alegação do recorrente.

b) Relativamente ao vício que o recorrente associa à nulidade regulada na al. c), 1.ª parte, do n.º 1 do artigo 615º do CPC, parece existir um lapso. O recorrente quer, com certeza, referir-se à al. d), 1.ª parte, do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (omissão de pronúncia), já que aquilo que alega neste ponto é que o Tribunal recorrido deixou de se pronunciar sobre a pretensão do autor, de discutir a questão de a petição inicial ser inepta ou não.

Relativamente a este ponto, diga-se a questão da ineptidão da petição inicial foi logo identificada e formulada como questão da apelação.

É verdade que, depois, o Tribunal recorrido concentrou a sua atenção na excepção de caso julgado, mas não deixa de se assinalar que finalizou o Acórdão com a seguinte observação:

Diremos, ainda, em jeito de nota final e, verdadeiramente, como uma decorrência, aliás, do que ficou dito, quanto ao caso julgado, que, tal como no Acórdão deste Tribunal da Relação de 15 de novembro de 2018, que confirmou a primeira sentença de ineptidão da petição inicial (sufragando inteiramente o entendimento da 1.ª instância) e que aqui damos como reproduzido, sempre seria de confirmar a sentença ora recorrida, cópia daquela outra confirmada por este Tribunal no processo 3757/17.6….G2”.

O significado desta observação não é absolutamente claro. Será que é seguro entender-se que ela representa uma tomada de posição do Tribunal recorrido sobre a questão da ineptidão da petição inicial?

Seja como for, e para o que aqui importa, o certo é que o Tribunal recorrido não tinha o dever de se pronunciar sobre tal questão. Uma vez convencido de que existia excepção de caso julgado e qualificando-se esta como uma excepção dilatória [cfr. artigo 577.º, al. i), do CPC], que dá lugar à absolvição da instância (cfr. artigo 576.º, n.º 2, do CPC), sempre ficaria prejudicada, por inutilidade, a apreciação da excepção de ineptidão de petição inicial.

Dispõe-se no artigo 608.º, n.º 1, do CPC sobre a ordem do julgamento (aplicável aos recursos de apelação e de revista, por força dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC):

Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica”.

Improcedem, em conclusão, todas as alegações de nulidade do Acórdão recorrido.


2. Da absolvição da ré da instância

Como se viu, o Tribunal a quo absolveu a ré da instância com fundamento na excepção de caso julgado.

Na fundamentação de direito desenvolvida no Acórdão recorrido, começa o Tribunal a quo por recordar que:

a exceção do caso julgado foi suscitada pela ré na contestação e ao autor foi dada oportunidade de se pronunciar sobre a mesma, o que ele fez, em articulado próprio, considerando não ocorrer a dita exceção pelos motivos que aí aduziu, pelo que não se vê necessidade de dar nova oportunidade às partes para se pronunciarem sobre tal exceção”.

Passa depois a apreciar a questão, expondo, no essencial, o seguinte raciocínio:

Em 2017, o autor intentou ação, que seguiu sob o número 3757/17.6…, contra “Portelinha – Transportes, Lda.”, em que formulou exatamente o mesmo pedido que na ação de que agora nos ocupamos (intentada em 26/12/2019), à exceção dos pedidos constantes das alíneas c) e d) desta última, pedidos esses que se prendem apenas e tão-somente com os factos ora acrescentados n.ºs 69, 70 e 71 relativos à retirada de um transformador do prédio alegadamente propriedade do autor.

(…)

A petição inicial destes autos é cópia integral da petição inicial introduzida naquele outro processo, à exceção destes artigos 69.º a 71.º e do artigo 36.º, onde se refere que a sociedade ré foi declarada insolvente (o que já se sabia na ação anterior que prosseguiu, apesar da insolvência).

Ora, nesse processo 3757/17.6…, foi proferida sentença, a 04/07/2018, em que se julgou inepta a petição inicial e, consequentemente, se absolveu a ré da instância.

Tal sentença foi confirmada por Acórdão deste Tribunal da Relação, proferido a 15/11/2018, ainda com recurso para o STJ, onde o recurso não foi admitido (…).

Assim, aquela sentença que julgou inepta a petição inicial transitou em julgado.

Posteriormente, o autor intentou ação contra a massa insolvente de “Portelinha – Transportes, Lda.”, exatamente igual à primeira, como já vimos.

É certo que, em caso de absolvição da instância, o autor não está impedido de propor outra ação sobre o mesmo objeto – artigo 279.º, n.º 1 do CPC (sendo que este artigo pretende, sobretudo, evitar que da absolvição da instância decorra o desaproveitamento de efeitos civis que se produzem com o início da instância) – contudo não pode, como veremos, propor outra ação com uma petição inicial exatamente igual à primeira, quando esta já foi julgada inepta. A possibilidade conferida por este artigo de se propor outra ação sobre o mesmo objeto, passa, necessariamente, pelo suprimento da, ou das exceções que conduziram, na primeira ação, à absolvição da instância.

Repare-se, aliás, que as duas sentenças, a proferida no processo 3757/17.6… e a proferida neste processo, são exatamente iguais, sendo a ora recorrida uma transcrição da primeira (proferidas pelo mesmo Sr. Juiz), a que se acrescentou aquela nota de rodapé já acima salientada sobre a repetição das causas de pedir em ambas as ações e um último parágrafo, já após a decisão (“Consequentemente, resulta prejudicado o conhecimento da deduzida ampliação do pedido formulada no articulado nº 36…254, sendo certo que nenhuma alteração pretendeu introduzir quanto aos factos essenciais necessários ao prosseguimento dos presentes autos”).

(…)

No caso concreto, como já vimos, a primeira ação foi interposta contra a sociedade Portelinha e, após a sua declaração de insolvência, foi o Tribunal da Relação que considerou que a ação devia prosseguir os seus trâmites, vindo a terminar com a sentença de ineptidão. Ou seja, após a declaração de insolvência e a decisão do Tribunal da Relação, a ré passou a ser a massa insolvente, a mesma ré da ação de que nos ocupamos, sendo óbvio que uma e outra são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica.

O mesmo se passa quanto ao pedido, uma vez que os pedidos acrescentados sob as alíneas c) e d), como bem se salienta na sentença recorrida, são decorrência e consequência dos dois primeiros, derivando diretamente dos factos acrescentados sob os números 69.º a 71.º, relativos à retirada do transformador do prédio que se pretende que seja reconhecido como do autor.

E dúvidas não existem que a pretensão deduzida nas duas ações é exatamente a mesma e procede dos mesmos factos jurídicos, o que, aliás, sempre resultaria de a segunda petição inicial ser cópia da primeira.

Ainda que pudesse considerar-se que a massa insolvente de uma sociedade, após a declaração de insolvência desta, não é o mesmo sujeito que a própria sociedade, então sem dúvida, que operaria, neste caso a autoridade de caso julgado.

(…)

Diremos, ainda, em jeito de nota final e, verdadeiramente, como uma decorrência, aliás, do que ficou dito, quanto ao caso julgado, que, tal como no Acórdão deste Tribunal da Relação de 15 de novembro de 2018, que confirmou a primeira sentença de ineptidão da petição inicial (sufragando inteiramente o entendimento da 1.ª instância) e que aqui damos como reproduzido, sempre seria de confirmar a sentença ora recorrida, cópia daquela outra confirmada por este Tribunal no processo 3757/17.6….G2”.

Numa palavra: o Tribunal da Relação de … absolveu a ré da instância com fundamento na excepção de caso julgado.

O que dizer?

Como ensina Manuel de Andrade, o caso julgado (fórmula abreviada de “caso que foi julgado”) encontra a sua razão de ser na necessidade de salvaguarda do prestígio dos tribunais e da certeza e da segurança jurídicas[3].

Na expressão “caso julgado” cabem, em rigor, a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, muitas vezes designadas, respectivamente, como a “vertente negativa” e a “vertente positiva” do caso julgado[4].

A excepção de caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior. Nesta vertente, o caso julgado compreende limites (subjectivos e objectivos): pressupondo o caso julgado uma repetição de causas, a repetição pressupõe, por sua vez, identidade dos sujeitos, identidade do pedido e identidade da causa de pedir (cfr. artigo 581.º do CPC).

Ao lado da excepção de caso julgado assente sobre a decisão de mérito proferida em processo anterior, existe a excepção de caso julgado baseada em decisão anterior proferida sobre a relação processual. À primeira chama-se “caso julgado material” e está regulada no artigo 619.º do CPC e à segunda chama-se “caso julgado formal” e está regulada no artigo 620.º do CPC.

Tanto o caso julgado material como o caso julgado formal pressupõem o trânsito em julgado da decisão. No entanto, enquanto o caso julgado formal tem apenas força obrigatória dentro do processo em que a decisão é proferida, o caso julgado material tem força obrigatória não só dentro do processo como, principalmente, fora dele[5].

Por seu turno, a autoridade de caso julgado tem o efeito de impor uma decisão e por isso constitui a “vertente positiva” do caso julgado. Diversamente da excepção de caso julgado, a autoridade de caso julgado funciona independentemente da verificação daquela tríplice identidade[6] mas nunca pode impedir que se volte a discutir e dirimir aquilo que ela não definiu. Por outras palavras, e como se depreende do disposto nos artigos 91.º e 581.º do CPC, a autoridade do caso julgado abrange a decisão contida na sentença bem como, em certos termos, os seus fundamentos. A eficácia do caso julgado não se limita, de facto – saliente-se – à decisão final. Na realidade, “embora se aceite que a eficácia de caso julgado não se estende aos motivos da decisão, é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado[7].

Depois destes breves esclarecimentos, é possível responder à questão do recurso, que é a de saber se o Tribunal decidiu bem ao absolver a ré da instância com fundamento na excepção de caso julgado formado na anterior acção.

Verifica-se que nesta acção foi decretada a absolvição da instância por ineptidão da petição inicial, o que significa que foi proferida, não uma decisão de mérito, mas sim uma decisão que incide apenas sobre a relação processual.

Ora, como se viu atrás, quando a decisão incide apenas sobre a relação processual, o caso julgado é meramente formal, o que quer dizer que tem força obrigatória apenas dentro do processo (cfr. artigo 620.º do CPC) e não obsta a que, entre as mesmas partes, o pedido deduzido seja novamente formulado, com a mesma causa de pedir, em nova acção, uma vez que este, sendo formal, tem apenas eficácia  intraprocessual.

Assim, sendo proposta uma segunda acção com o mesmo objecto e as mesmas partes, nunca poderia verificar-se a excepção de caso julgado e – já agora também se diz, para rebater a fundamentação subsidiária do Tribunal a quo – nem o juiz desta acção poderia estar vinculado a proferir decisão idêntica à da primeira acção, por respeito à autoridade do caso julgado formal[8].

Bem vistas as coisas, é a solução mais correcta e que se pode fundamentar, parafraseando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.2021[9], nos seguintes termos:

[a]pesar de a possibilidade de serem proferidas decisões contraditórias em processos diferentes, mas com objeto idêntico e com as mesmas partes, poder causar alguma perplexidade, há que ter presente que essas decisões apenas decidem da admissibilidade daquele processo seguir os seus termos com vista à apreciação do mérito da causa, em nada definindo as relações jurídicas entre as partes em litígio, pelo que não existe qualquer solução material cuja definitividade importe salvaguardar.

Se, para a credibilidade do sistema judicial, pode ser importante a coerência e uniformização das suas decisões, mesmo que estas tenham um alcance meramente processual, esse já não é um interesse abrangido pelo princípio da segurança jurídica, enquanto princípio estruturante do Estado de direito democrático, e não tem o peso necessário para impor que, no modelo do processo equitativo, tais decisões, quando recaiam sobre a verificação dos pressupostos processuais, tenham necessariamente efeitos extraprocessuais, impondo-se em processos distintos daqueles onde foram proferidas”.

Tudo visto, pode concluir-se, em síntese, que, tendo a anterior decisão incidido sobre a relação processual e sendo o caso julgado por ela formado meramente formal, deve a decisão de absolvição da instância com fundamento na excepção de caso julgado proferida pelo Tribunal a quo ser revogada.

Mais deve ser ordenado o prosseguimento dos autos para a apreciação da questão suscitada no recurso de apelação e cujo conhecimento ficou prejudicado por aquela decisão – a ineptidão da petição inicial.


*


III. DECISÃO

Pelo exposto, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se a baixa dos autos ao Tribunal recorrido para que aí se aprecie a questão suscitada na apelação.



*


Sem custas.

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Lisboa, 16 de Dezembro de 2021


Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] Cfr., entre tantos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 29.09.2016. Proc. 291/12.4TTLRA.C1.S2, onde se diz: “Os recursos não visam criar e emitir decisões novas sobre questões novas (salvo se estas forem de conhecimento oficioso), mas impugnar, reapreciar e, eventualmente modificar as decisões do tribunal recorrido sobre pontos questionados e 'dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu'”.
[2] Isto porque as excepções dilatórias resultam da violação de regras relativas a pressupostos processuais ou requisitos de ordem técnica. Cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra, Almedina, 2018, p. 657.[3] Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, pp. 306-307.
[4] Além de ser utilizada na doutrina, a distinção é habitual na jurisprudência. Cfr., por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.03.2017, Proc. 1375/06.3TBSTR.E1.S1, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 22.06.2017, Proc. 2226/14.0TBSTB.E1.S1.
[5] Salientando este facto cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985 (2.ª edição), pp. 308-309.
[6] Esta independência não abrange, porém, a identidade subjectiva, circunscrevendo-se à identidade objectiva (a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira). Cfr., neste sentido, entre outros, os Acórdãos de 19.06.2018, Proc. 3527/12.8TBSTS.P1.S2, de 13.09.2018, Proc. 687/17.5T8PNF.S1, de 6.11.2018, Proc. 1/16.7T8ESP.P1.S1, de 28.03.2019, Proc. 6659/08.3TBCSC.L1.S1, de 30.04.2020, Proc. 257/17.8T8MNC.G1.S1, de 11.11.2020, 214/17.4T8MNC.G1.S1, e de 9.12.2021, Proc. 5712/17.7T8ALM.L1.S1.
[7] Cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, cit., p. 715 (itálicos dos autores).
[8] Pese embora algumas vozes em contrário como Miguel Teixeira de Sousa [“O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material (O Estudo sobre a Funcionalidade Processual)”], in: Boletim do Ministério da Justiça, 1983, n.º 325, pp. 155-159. Segundo este autor, o caso julgado incidente sobre uma decisão de absolvição da instância obriga a que no processo subsequente se julgue identicamente.
[9] Acórdão desta 2.ª Secção, proferido em 14.10.2021, no Processo 1040/19.1T8ANS-A.C1.S1, e relatado pelo ora 2.º Adjunto.