Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
047599
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES MAGALHÃES
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRAZO
RECURSO PENAL
PRISÃO PREVENTIVA
ARGUIDO DETIDO
Nº do Documento: SJ19950927047599
Data do Acordão: 09/27/1995
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: ACORDÃO Nº 5/95 DR287/95 Iª SERIE A DE 14-12-1995, PÁG. 7877 A 7879
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O TRIBUNAL PLENO
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
O disposto nos artigos 103.º, n.º 2, alínea a), e 104.º, n.º 2, do Código de Processo Penal não é aplicável ao recurso interposto em processo à ordem do qual inexistem arguidos presos, ainda que o recorrente esteja preso à ordem de outro processo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, no plenário da Secção Criminal:

O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça e o arguido AA interpuseram recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão deste Tribunal de 10 de Julho de 1994, por se achar em oposição com o Acórdão deste mesmo Tribunal de 24 de Novembro de 1993.

No acórdão recorrido decidiu-se que ao recurso interposto num processo por um arguido preso à ordem de outro processo é aplicável o regime legal de prazos de processo de arguido preso, consignado nos artigos 103.º e 104.º do Código de Processo Penal, ou seja, que os prazos correm em férias.
Solução contrária se encontrou no Acórdão de 24 de Novembro de 1993, onde se decidiu que o regime de prazos já referido relativo a processos com arguidos presos só é aplicável aos recursos interpostos no processo à ordem do qual o recorrente se encontra preso, e não aqueles outros à ordem dos quais se não encontre preso, ainda que o arguido não esteja em liberdade.
Subiram os autos a este Supremo Tribunal, vindo, por Acórdão deste Tribunal de 26 de Abril de 1995, a decidir-se que o recurso deverá prosseguir, por ambos os acórdãos terem sido proferidos no domínio da mesma legislação e terem dado solução oposta à mesma questão (artigo 437.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
Os recorrentes apresentaram alegações.

O Minitério Público concluiu que deve fixar-se jurisprudência nos seguintes termos:

O disposto nos artigos 103.º, n.º 2, alínea a), e 104.º, n.º 2, do Código de Processo Penal não é aplicável ao recurso interposto em processo à ordem do qual inexistam arguidos presos, ainda que o recorrente esteja preso à ordem de outro processo.
O arguido recorrente concluiu que deve fixar-se jurisprudência nos seguintes termos:
1 - As disposições do artigo 103.º, n.º 2, alínea a), e dos artigos 104.º, n.º 2, do Código de Processo Penal aplicam-se, no respeitante a arguidos detidos ou presos, somente aos processos em que estes se encontrem em tal situação à ordem do próprio processo e não à ordem de quaisquer outros actos.
2 - Efectivamente, a contagem de prazos e a prática de actos processuais no tempo e nos termos gerais é susceptível de afectar aqueles detidos ou presos na sua liberdade, interesse este (da garantia da liberdade das pessoas) que explicita e deliberadamente constitui a ratio dos preceitos em questão.
Em contrapartida, em princípio, um detido ou preso à ordem de um processo não pode ser imediatamente afectado na sua liberdade pelo tempo dos actos praticados em outro processo.
Considerando este plenário que é inquestionável a oposição de julgados reconhecida no acórdão preliminar, cumpre agora apreciar e decidir.
Como se constata da análise da declaração de vencido lavrada no acórdão fundamento, são de três tipos os argumentos em que se apoia a tese de que havendo arguido preso é-lhe aplicável o regime de prazos supramencionados, em todos os processos que lhe respeitem como arguido e não só no processo à ordem do qual esteja preso.
O primeiro argumento assenta no elemento literal do artigo 103.º, n.º 2, alínea a), «actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos», por contraposição a «processos com arguidos presos».
O segundo argumento é o de que a lei atende à situação do arguido, concedendo-lhe um tratamento prioritário, e não à celeridade processual.
O terceiro argumento é a invocação da analogia com o regime de custas a favor do arguido preso, prevista no artigo 523.º do Código de Processo Penal, que, segundo a jurisprudência, beneficiaria os arguidos presos, quer estivessem presos à ordem desse processo, quer estivessem presos à ordem de outro, já que o que relevaria seria a situação do arguido e não do processo.
Ora, põe-se face a esta tese, e também àquela que se lhe opõe, o problema da interpretação da lei em direito processual penal, valendo quanto a tal interpretação todos os bem conhecidos princípios estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil e devendo sempre atender-se ao fim específico do processo penal e a que este ramo do direito é como que um «direito constitucional aplicado» - v. no que importa agora considerar, e em especial, o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Como diz Engisch in Introdução ao Pensamento Jurídico, 2.ª ed., p. 112, «o preceito da lei deve, na dúvida, ser interpretado de modo a ajustar-se o mais possível às exigências da vida em sociedade e ao desenvolvimento de toda a nossa cultura».
Refere o Prof. Castanheira Neves, in «O actual problema metodológico da interpretação jurídica» Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117.º, p. 193: «o legislador não usa palavras e exprime enunciados que terão, porventura, um sentido linguístico gramatical comum apenas para comunicar (digamos literalmente) em sentido comum, quer antes prescrever uma intenção jurídica através dessas palavras e desses enunciados».
A exigência da interpretação jurídica tem fundamento normativo e o que a faz imprescindível é o acto normativo da utilização metodológica (metodológico-normativa) de um critério jurídico no juízo decisório de um concreto problema normativo-jurídico.
Ou seja, o que se pretende com ela não é compreender, conhecer a norma em si, mas sim obter dela ou através dela o critério exigido pela problemática e adequada decisão justificativa do caso.
O que significa, evidentemente, que é o caso e não a norma o prius problemático - intencional e metódico (v. Prof. Castanheira Neves, Revista citada, ano 118.º, p. 258).
Ora, sendo assim, e tendo em conta uma interpretação teleológica, actual e razoável (cf. Engisch, ob. cit.) há que ter como boa, no caso sub judice, não a solução do acórdão recorrido, mas a solução oposta encontrada no acórdão fundamento.
Com efeito, e na conformidade do que se expôs, há que acentuar que, tendo embora a sua importância, o elemento literal é apenas um dos elementos de que o intérprete se deve socorrer, como resulta do preceituado no artigo 9.º do Código Civil, pelo que não é decisivo para o caso sub judice o dizer que «actos processuais relativamente a arguidos detidos ou presos» - artigo 103.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal não é o mesmo que referir «processos com arguidos detidos ou presos».
E até porque a dita expressão legal se refere ao momento temporal em que devam ser praticados certos actos e não à contagem de prazos de actos processuais, acrescendo que quando o legislador disciplinou a contagem dos prazos referiu-se já não a «actos processuais» mas sim «a processos nos quais devam praticar os actos», como se vê do n.º 2 do artigo 104.º do Código de Processo Penal.
Por outro lado, também não é de acolher a afirmação de que a lei atende à situação do arguido, dando-lhe um tratamento prioritário, e não à celeridade processual.
É desta, na verdade, que se trata, no contexto do processo concreto e como reflexo da situação do arguido, como bem acentua o Ministério Público.
E assim, o regime de prazos excepcionais a que se aludiu aplica-se tão-só aos processos à ordem dos quais existia um arguido detido ou preso, como forma ope legis de celeridade processual, sucedendo até que logo que o processo deixe de ter qualquer arguido preso passa a ter a disciplina do regime normal.
Em suma, do que se trata é da apontada celeridade processual, que só tem, obviamente, justificação nos processos à ordem dos quais exista um arguido detido ou preso.
Por último, diremos que também não colhe o que se invoca em matéria de isenção de custas em benefício do arguido preso estabelecida no artigo 523.º do Código de Processo Penal, já que esta situação de que tal goza nada tem a ver com a já apontada problemática da celeridade processual.
Tal favorecimento ao arguido assenta pura e simplesmente na sua situação de privação da liberdade, não sendo sequer uma presunção juris et de jure da sua incapacidade de custear as despesas do processo, sendo expressão do seu direito fundamental à liberdade, à defesa e ao acesso ao direito e aos tribunais, com ele conexionado, constitucionalmente consagrados nos artigos 20.º, 27.º, 28.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Por tudo o exposto, e sem necessidades de mais amplas considerações, se concede provimento aos recursos do Ministério Público e do arguido e, nos termos do artigo 445.º, n.º 1, do Código Processual Penal, fixa-se, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais a seguinte jurisprudência:
O disposto nos artigos 103.º, n.º 2, alínea a), e 104.º, n.º 2, do Código de Processo Penal não é aplicável ao recurso interposto em processo à ordem do qual inexistam arguidos presos, ainda que o recorrente esteja preso à ordem de outro processo.
Consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido e decide-se que é tempestivo o recurso em causa interposto pelo arguido e determina-se o prosseguimento dos autos (artigo 445.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
Sem tributação.

Lisboa, 27 de Setembro de 1995.


João Fernando Fernandes de Magalhães - Herculano Carlindo Machado Moreira de Lima - José Sarmento da Silva Reis - José Joaquim da Costa Figueirinhas - Eduardo Júlio Vaz dos Santos - Humberto Carlos Amado Gomes (dispensei o visto) - Pedro Elmano de Figueiredo Marçal - António de Sousa Guedes - Joaquim Daniel Araújo dos Anjos - José Moura Nunes da Cruz - Manuel de Andrade Saraiva - Sebastião Duarte Vasconcelos da Costa Pereira - Bernardo Guimarães Fisher de Sá Nogueira (vencido, pelas razões expostas na declaração que junto) - Humberto Carlos Amado Gomes (vencido, pelas razões expostas pelo Exmo. Conselheiro Sá Nogueira, que traduzem a corrente jurisprudência que tenho seguido) - Manuel Luís Pinto Sá Ferreira - Victor Ferreira da Rocha.

Declaração de voto


Vencido, pelas razões indicadas no voto de vencido no processo 44383 e que em seguida transcrevo:

Vencido, pelas razões que constavam do projecto que elaborei como relator e que se transcrevem.
Sucede, todavia, que, embora se possa, no processo penal, vir a proceder à aplicação subsidiária das regras do processo civil relativas à nulidade da decisão, a arguição de nulidade feita pelo reclamante não procede, como se passa a demonstrar:
Os mencionados artigos 103.º e 104.º do Código de Processo Penal estabelecem, no que respeita a arguidos presos, uma excepção quanto à contagem normal dos prazos processuais, pois determinam que os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas, se praticam mesmo em período de férias ou fora dos dias úteis e que correm em férias os prazos processuais respeitantes a arguidos nessas condições.
É um facto que uma parte importante da jurisprudência tem vindo a sustentar que um processo em que o arguido ou arguidos se encontrem presos ou detidos, mas à ordem de outros autos, não deve ser considerado como «processo de arguido preso», para efeitos de urgência ou de aceleração do processado, mas não se considera que tal posição se mostre como correcta, à luz dos textos legais.
Com efeito, os citados artigos indicam expressamente que a excepção às regras normais de contagem de prazos e de prática de actos se aplicam aos «actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas», mas não afirmam, como seria correcto se fosse verdadeira aquela interpretação doutrinária, que tal excepção se aplica a «processos com arguidos detidos ou presos».
E compreende-se que o não façam, se se tiverem em atenção os seguintes factores:
a) O que interessa ao legislador não é a rapidez processual dos processos em que haja arguidos detidos ou presos, mas, sim, que às pessoas que se encontrem numa dessas situações seja dado um tratamento prioritário na apreciação dos processos penais que lhes respeitem.
É por isso que se mostra já estabilizada a jurisprudência no sentido de que a isenção de pagamento de imposto nos recursos interpostos em 1.ª instância de que beneficiam os arguidos presos, de acordo com o artigo 523.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, se aplica a todos os casos em que o arguido se encontre preso e não apenas àqueles em que ele o esteja à ordem do processo em que o recurso é interposto;
b) O entender-se que a lei só consideraria o processo à ordem do qual se encontrasse alguém detido ou preso conduziria a dois tipos de actuações absurdas:
1) Nos casos em que, num processo, houvesse arguido ou arguidos presos à ordem do mesmo e arguido ou arguidos presos à ordem de outro ou outros processos correriam os prazos encurtados para os primeiros, mas não para os segundos (salvo se, da contagem dos últimos, resultassem reflexos negativos na situação daqueles);
2) Nos casos em que, por razões de índolo processual, um arguido detido ou preso que se encontrasse à ordem de outro processo e fosse colocado à ordem de outro haveria aceleração dos actos durante o período em que ele estivesse à ordem deste último processo, mesmo que, por exemplo, tal ocorresse no decurso de um prazo para interpor recurso, mas essa aceleração deixaria de existir logo que ele voltasse a ser colocado à ordem do processo primitivo ou de algum outro.
Estas simples enumerações das situações apontadas, conjugadas com a letra da lei, levam à conclusão de que, como se referiu, a única interpretação possível é a de que a aceleração de prazos para a prática de actos processuais, prevista pelos artigos 103.º e 104.º já referidos, se aplica a todos os processos respeitantes a arguidos presos ou detidos, quer a sua situação de privação de liberdade resulte de se encontrarem à ordem desse processo, quer resulte de se encontrarem à ordem de quaisquer outros autos.
Não se verifica, portanto, a apontada nulidade invocada pelo requerente. Indeferiria, por conseguinte, a respectiva arguição.
Pelas razões indicadas, votei a manutenção do acórdão recorrido e a fixação da jurisprudência obrigatória no sentido de que:
Processos de arguidos presos, para os efeitos de celeridade processual consignados nos artigos 103.º, n.º 2, alínea a), e 104.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, são todos os processos em que existam arguidos presos, quer estes se encontrem detidos à ordem desses autos, quer o estejam à ordem de outro processo.
Bernardo Guimarães Fisher de Sá Nogueira.