Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9018/16.0T8LSB.L1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: CLÁUSULA PENAL
REDUÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / FIXAÇÃO CONTRATUAL DOS DIREITOS DO CREDOR.
Doutrina:
- Ana Maria Morais Antunes, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p. 1174 e 1175;
- António Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização, Coimbra, Almedina, 1990, p. 457 e ss.;
- João Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, Coimbra, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1995, 2.ª edição, p. 272 e ss.;
- Nuno Manuel Pinto Oliveira, Cláusulas acessórias ao contrato, Cláusulas de exclusão e de limitação do dever de indemnizar e cláusulas penais, Coimbra, Almedina, 2008, 3.ª edição, p. 86 e ss. e 132 e ss. ; Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 938 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 811.º, N.ºS 2 E 3 E 812.º.
Sumário :
I. Na cláusula penal em sentido estrito não há nexo de dependência entre o valor da pena convencionada e o montante dos danos sofridos.

II. O preceituado no n.º 3 do artigo 811.º do CC é aplicável apenas na hipótese prevista no n.º 2 da mesma norma, isto é, na hipótese de as partes terem convencionado uma indemnização pelo dano excedente.

III. A redução (equitativa) prevista no artigo 812.º do CC exige que a pena convencionada seja “manifestamente excessiva”, o que significa uma desproporção substancial e uma desproporção ostensiva.

IV. Na ponderação do excesso manifesto devem ser ponderados vários índices e não apenas o da existência e da extensão dos prejuízo efectivos.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO



AA, Limited, moveu contra BB, Lda., a presente acção declarativa de condenação sob a forma comum, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:

a) quantia de € 1.800.000 por incumprimento grave e culposo do contrato, por causa imputável à ré, acrescida dos juros vincendos à taxa legal até efectivo e integral pagamento;

b) quantia € 580.000,00 a título de custos suportados pela Autora acrescida dos juros vincendos à taxa legal até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, ter celebrado com a ré, em 06.05.2015, um contrato, designado de “contrato de mediação de contratação de espectáculo musical'', nos termos do qual a autora contrataria o tenor CC e a orquestra sinfónica que habitualmente o acompanha para realização de um espetáculo musical ao vivo na cidade de …, entre os dias 9 e 13.11.2015, pagando a ré à autora a quantia de1.800.000,00, em duas tranches iguais, nos dias 30.06.2015 e 30.09.2015.

Mais alegou que as partes acordaram que a autora poderia resolver o contrato por falta de pagamento total ou parcial do preço e que a resolução por motivo imputável à ré não a exoneraria do pagamento da totalidade do preço acordado e em dívida (cláusula 11.ª, n.° 4, do contrato), que a ré não efectuou o pagamento das referidas tranches nas datas acordadas, apesar de a autora ter reclamado esse pagamento inúmeras vezes e de a ré ter feito promessas e dado garantias de que o faria, em consequência do que a autora resolveu o contrato mencionado em 22.10.2015, quando faltavam menos de 20 dias para a data prevista para a realização do espectáculo.

Acrescentou que, em virtude da conduta da ré, suportou custos com a contratação da orquestra, gestão, coordenação, planificação e artistas, no montante de € 580.000,00.

Citada, a ré contestou, alegando, em resumo, que o contrato entre as partes celebrado tem a natureza de mandato sem representação, que a cláusula 11.ª, n.° 4, do contrato integra uma cláusula penal com dupla função sancionatória ou compulsória e indemnizatória, que é nula, por ter um carácter draconiano e ofender o princípio da boa fé e as regras da proibição do abuso de direito, já que, não se realizando o espectáculo, nenhum dos valores cobertos pelo preço (remuneração da autora, do artista e da orquestra sinfónica e despesas de viagem) pode integrar um dano reparável, e constituiria um enriquecimento sem causa da autora.

Mais referiu que não é certo que o espectáculo pudesse realizar-se na data prevista de 10.11.2015, por razões apenas imputáveis a CC, quer de agenda, quer de saúde, que os prejuízos invocados pela autora não são prejuízos próprios, que a mesma não os concretiza, nem demonstra que os suportou, sendo certo que os mesmos sempre estariam incluídos no pedido de indemnização formulado pela autora e sustentado na cláusula 11.ª, n.º 4, do contrato.

A autora respondeu, referindo que o contrato celebrado entre ela e a ré não se enquadra em nenhum dos modelos a que correspondem regimes diferenciados, antes tendo o seu objecto, obrigações, deveres e direitos sido definidos pelas partes no uso do princípio da liberdade contratual, não configurando a sua qualificação jurídica uma excepção; que a cláusula 11.ª, n.º 4, do contrato constituí uma cláusula penal, que as partes estabeleceram para o caso de a autora ter de resolver o contrato por incumprimento da ré, ficando dispensada de alegar e provar os danos, não se configurando uma situação de abuso de direito nem de enriquecimento sem causa.

Realizou-se a audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho saneador, procedeu-se à identificação do objeto do processo e à enunciação dos temas da prova, sem reclamações.

E realizou-se, depois, a audiência final, vindo a ser proferida sentença que julgando parcialmente procedente, por provada, a ação, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 1.800.000,00 (um milhão e oitocentos mil euros), acrescida dos juros de mora vencidos desde a data da citação (28.09.2016) e até integral pagamento, à taxa legal, absolvendo-a do mais contra si peticionado.


Inconformada com esta decisão, dela apelou a ré para o Tribunal da Relação de Lisboa, pugnando pela revogação da decisão do Tribunal de 1.ª instância, reiterando, os argumentos antes aduzidos e pugnando pela revogação da sentença.

A final, decidiram os Exmos. Juízes Desembargadores deste Tribunal, por unanimidade e sem fundamentação essencialmente diferente, o seguinte:

- revogar a decisão recorrida na parte em que decidiu não dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça que seja ainda devida, e, consequentemente, dispensar o pagamento de 80% de tal remanescente;

- julgar, no mais, improcedente a apelação, e, em consequência manter, no mais, a sentença recorrida”.


Mantendo-se inconformada, vem a ré apresentar, então, recurso de revista, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 2, als. a) e b), do CPC (revista por via excepcional), pugnando pela revogação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

Nas suas alegações de recurso, formulou a recorrente as seguintes conclusões:

a) Nos presentes autos de recurso, encontram-se preenchidos os pressupostos da revista excepcional, nos termos do Artigo 672º, n.º 1, al. a) do CPC;

b) As duas grandes questões em concreto aqui discussão, e que justificam a presente revista excepcional, são o alcance do conceito de cláusula penal manifestamente excessiva, nos termos e para os efeitos dos Artigos 811º, n.º 3 e 812º do C. Civ. e a sua redução prevista no Artigo 812º, n.º 1 do C. Civ., decorrente da excepção da nulidade da cláusula penal suscitada na contestação de fls.- dos autos, por violação das regras do abuso de direito e do princípio geral da boa fé – Artigos 280º, 294º, 334º, 762º e 811º, n.º 3 do C. Civ.

c) Estas duas grandes questões reclamam a sua apreciação e julgamento, sendo claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito e são de grande relevo social para a estabilidade das soluções jurídicas mais adequadas e consentâneas com os interesses sujeitos a julgamento, quer sejam os das partes no presente processo, quer sejam para a comunidade em qualquer caso futuro ou pendente.

Com efeito, Venerandos Conselheiros

d) A Alegante deduziu em contestação na 1ª instância da acção - artigos 4º a 29º a nulidade da cláusula penal integrante da Cláusula 11ª, n.º 4 do Contrato de fls., por se tratar de uma penalidade draconiana, manifestamente excessiva, nos termos das citadas normas do Código Civil.

e) O que aqui se discute, e já assim foi feito na acção em 1ª instância e na apelação em 2ª instância, é o montante excessivo da penalidade contratual, fixada por remissão para a cláusula financeira de remuneração fixada no Contrato, resultante dos termos conjugados das suas Cláusulas 2º e 11º, n.º 4, cujos contornos sobre o seu conteúdo devem ser ponderados para o efeito.

f) O douto Acórdão recorrido não fez essa análise, a qual foi discutida em 1ª instância, tendo daí incorrido no erro de Direito de considerar a cláusula penal em causa válida e adequada aos danos virtuais e hipotéticos em que a Recorrida incorreria.

g) Como ensina o Prof. Pinto Monteiro, na obra citada acima nas presentes alegações, o Artigo 812º do C. Civ. «encerra um princípio geral, destinado a corrigir excessos ou abusos decorrentes do exercício da liberdade contratual, ao nível da fixação das consequências do não cumprimento das obrigações.»

h) No caso da acção, esta questão do caracter manifestamente excessivo da cláusula penal concretamente aplicada e decidida em 1ª e em 2ª instância, deve ser apreciada e julgada para uma melhor aplicação do Direito.

i) Da conjugação daquelas Cláusulas 2ª, n.ºs 1 e 4 e 11ª, n.º 4 a cláusula penal foi estabelecida para cobrir custos que, no caso concreto em discussão no presente recurso, nunca poderiam comportar-se na noção de danos,

j) Considerando-se aí, nomeadamente, os custos inerentes a toda a logística necessária à realização do espectáculo que não teve lugar e à remuneração de CC e Orquestra, que não se verificaram nem, sequer, foram reclamados.

k) De acordo com o depoimento da testemunha DD, de que o douto Acórdão recorrido se socorre para sustentar erradamente, e sem fundamento, que haveria danos, estava prevista a deslocação de 128 pessoas a …, entre Orquestra, técnicos em geral – luzes, som, instrumentos – convidados, diplomatas, etc e que eram necessários 7 dias para a logística.

l) Nenhum destes custos, ou parte dos mesmos, foram provados na acção, como se lê na sentença da 1ª instância.

m) Os eventuais danos associados a esses custos estariam sempre comportados nos € 580.000,00 reclamados pela Recorrida, que foram considerados não provados na acção.

n) No douto Acórdão recorrido baralha-se, inequivocamente, esses hipotéticos danos julgados não provados, pelas razões acima citadas constantes da sentença da 1ª instância, com os eventuais danos referentes ao montante da Cláusula penal em discussão.

o) Sustenta-se no douto Acórdão recorrido, em síntese, que a cláusula penal visava «colocar a na situação em que estaria caso o contrato tivesse sido cumprido».

p) Não é racionalmente admissível considerar-se no objecto de uma pena convencional custos associados e dependentes da preparação e realização do espectáculo que não se verificaram, nem nunca poderiam verificar-se.

q) O douto Acórdão recorrido, à semelhança da sentença proferida em 1ª instância, faz aplicação ao caso concreto em discussão de uma penalidade exigida à Alegante com violação directa da disciplina jurídica. do abuso de direito e da boa fé – Artigos 334º e 762º - a qual é, pois, nula, nos termos dos Artigos 280º, n.º 2 e 294º do C. Civ.

r) Pelo que, a sua fixação e aplicação no caso dos presentes autos, cobrindo danos que, em concreto, seria impossível verificarem-se é inequivocamente desmesurada e desproporcional, sendo, por isso e no quadro dos normativos acima citados, nula.

s) O douto Acórdão recorrido incorre, ainda, em erro de aplicação do regime jurídico previsto no Artigo 812º do C. Civ..

t) Face à invocação expressa das excepções de nulidade e ilegitimidade de exercício da penalidade em causa na acção, impunha-se-lhe decidir, pelo menos, a redução da cláusula penal, o que no caso iria ao grau zero, como tem seguido a jurisprudência corrente citada e a doutrina dominante, como se lê das passagens do Prof. Pinto Monteiro acima invocadas e nos autores para que o mesmo remete.

Com efeito, Venerandos Conselheiros

u) Como consta das suas páginas 41 e 44, no douto Acórdão recorrido decide-se erradamente pela não aplicação desta disciplina jurídica, com fundamento em que a Alegante não teria pedido na acção a redução da cláusula penal e em que não teriam sido alegados e discutidos factos na acção de onde se retiraria a possibilidade de o Tribunal proceder a essa declaração de nulidade e/ou redução,.

v) A Alegante não só invocou e pleiteou um conjunto de factos demonstrativos da consequência jurídica da nulidade da cláusula penal em discussão e do exercício ilegítimo da sua exigência, mas também o julgamento e a fixação da matéria de facto na acção mostram o carácter draconiano e desproporcionado do seu montante.

w) Desde logo, dos artigos 10º a 30º da Contestação de fls.- extrai-se com meridiana clareza que a Alegante sustentou de forma suficiente e explícita a factualidade e o Direito relativos à nulidade da cláusula penal e à necessidade de, no mínimo, o Tribunal fazer aplicação do Artigo 812º do C. Civ..

x) Pelo que, o douto Acórdão recorrida violou, pois, o Artigo 812º do C. Civ., cuja aplicação no caso, face à prova produzida e não produzida na acção, impõe a declaração da nulidade e/ou a redução da cláusula penal em discussão.

y) Neste quadro de razões, o douto Acórdão recorrido deve ser revogado por violação dos Artigos 280º, n.º 2, 294º, 334º, 762º e 812º do C. Civ.”.


A autora / ora recorrida apresentou, por seu turno, contra-alegações, pugnando pela não admissão da revista ou, no caso contrário, pela sua improcedência.


O recurso foi distribuído à Formação referida no 672.º, n.º 3, do CPC e esta decidiu, por Acórdão de 19.06.2019, que “a reponderação da temática suscitada no recurso não atingiu o necessário patamar da segurança interpretativa e daí que o seu evidente relevo jurídico seja de molde a justificar latamente a intervenção clarificadora deste Supremo Tribunal”, sendo que, face a isso, “sem necessidade de apreciar o também invocado relevo social”, admitiu a revista excepcional, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 2, al. a), do CPC.

Admitida e distribuída a revista, cumpre agora apreciar e decidir as questões suscitadas.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir são, fundamentalmente, as seguintes:

1.ª) se a cláusula 11.ª, n.º 4, do contrato celebrado entre as partes é nula por violação dos artigos 280.º, n.º 2, 294.º, 334.º, 762.º, n.º 2, e 811.º, n.º 3, do CC;

2.ª) se a cláusula 11.ª, n.º 4, do contrato celebrado entre as partes pode e deve ser reduzida.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido[1]:

1. A Autora dedica-se e exerce a atividade de promoção e contratação de artistas para eventos e espetáculos;

2. A R. dedica-se à produção de espetáculos musicais;

3. No âmbito da sua atividade, a Autora concebeu e projetou a apresentação de um espetáculo de ópera na África Austral;

4. Para o efeito, a Autora preparou um espetáculo denominado “EE", escolhendo para direção e interpretação o tenor CC;

5. Concebeu ainda a Autora que o espetáculo se realizaria na cidade de …, para integrar as celebrações do aniversário dos 40 anos de independência da República Popular de Angola, a decorrer a 11.11.2015;

6. Tendo em conta que o tenor CC já há mais de 45 anos dirige, na temporada de Outono - de 10 de Outubro a 20 de Novembro – a Ópera no … de New York, a Autora contactou-o previamente para lhe apresentar o projeto, saber do seu interesse e disponibilidade;

7. Na sequência do contacto da Autora, o tenor CC solicitou ao programador do … de New York permissão para se ausentar num dos seguintes períodos: de 6 a 8 de Novembro de 2015 ou de 13 a 15 de Novembro de 2015;

8. O interesse e a disponibilidade de CC foi confirmado à Autora, por carta de 07.03.2014, cuja cópia consta de fls. 9 e que se dá por reproduzida;

9. Nessa sequência, a Autora promoveu a apresentação do projeto junto das mais altas instâncias governativas, designadamente junto do Ministério da Cultura de Angola;

10. Tal projeto denominado "EE" consistia num concerto de ópera dirigido e interpretado por CC, acompanhado, entre outros, pelos cantores líricos angolanos FF e GG, a realizar-se na …, na cidade de …, num dos períodos de 6 a 8 de Novembro de 2015 ou de 13 a 15 de Novembro de 2015, integrado nas celebrações do aniversário dos 40 anos de independência da República Popular de Angola, com a duração de duas horas e capacidade máxima para 6.000 pessoas, conforme documento de fls. 9v a 12, que se dá por reproduzido;

11. O projeto da Autora teve acolhimento por parte da Ministra da Cultura de Angola, através de carta datada de 13.08.2015, enviada à Autora, cuja cópia consta de fls. 12v, que se dá por reproduzida, na qual lhe comunicava a anuência para a inclusão do concerto de CC nas cerimónias de comemoração dos 40 anos de independência da Republica Popular de Angola;

12. Por carta datada de 01.09.2014, cuja cópia consta de fls. 13 e que se dá por reproduzida, o tenor CC confirmou à Autora a sua disponibilidade para participar, dirigindo e interpretando o espetáculo em causa, uma vez que lhe tinha sido concedida autorização pelo … de New York para se ausentar no dia 10.11.2015;

13. No dia 19.03.2015, a Ré remeteu à Autora o e-mail cujo teor consta de fls. 13v e 14, que se dá por reproduzido, através do qual refere ter contactado a Ministra da Cultura de Angola, que informou a Ré de que o Ministério da Cultura não tinha recursos para apoiar materialmente o evento e que convinha escrever uma carta à Comissão Preparatória e apresentar uma proposta na óptica de realização com sponsors privados, e que iria endereçar uma carta à Comissão coordenadora e outra à primeira dama;

14. A Ré manifestou interesse em produzir e realizar o espetáculo;

15. Em 26.03.2015 e 22.04.2015, a Autora remeteu à Senhora Embaixadora de Espanha em Angola os e-mails, cujo teores constam de fls. 16 e 17, que se dão por reproduzidos;

16. Na iminência da celebração do contrato de Mediação de Contratação de Espetáculo Musical, foi contactado o tenor FF com vista à sua contratação para participar no concerto a dar pelo tenor CC;

17. A Autora, como primeira outorgante ou mediadora, e a Ré, como segunda outorgante ou promotora, subscreveram, em Lisboa, o acordo escrito cuja cópia consta de fls. 18v a 23, que se dá por reproduzido, datado de 06.05.2015, que intitularam de “Contrato de Mediação de Contratação de Espectáculo Musical", nos termos do qual a Ré declarou contratar a Autora para esta contratar o artista CC, que realizaria um espetáculo musical ao vivo protagonizado por si e pela Orquestra Sinfónica que o acompanha, entre os dias 09 e 13 de Novembro de 2015, na cidade de …, em Angola, em dia, local e hora a confirmar;

18. Nos termos dos n.°s 1 e 2 da cláusula 2.ª do referido acordo, «pela mediação e presença do Artista e Orquestra Sinfónica para a realização do espetáculo, a segunda outorgante pagará à primeira outorgante a quantia líquida de €1.800.000,00», por transferência bancária, da seguinte forma:

«a) a 30 de Junho de 2015 - 50% do preço acordado, ou seja € 900.000 a título de sinal e reserva de data para o espetáculo;

b) a 30 de Setembro de 2015 - o remanescente do preço acordado correspondente aos restantes 50% do preço, ou seja, € 900.000»;

19. De acordo com o n.° 3 da cláusula 2.ª do referido acordo, «o preço inclui apenas a contratação e respetiva remuneração do Artista bem como dos elementos da Orquestra Sinfónica e ainda todas as despesas de viagem de Espanha até ao aeroporto de …, em Angola e regresso ao país de origem»;

20. De acordo com o n.° 4 da cláusula 2.ª do referido acordo, «o preço referido no ponto 1 não inclui custos, encargos e despesas designadas mas não exclusivamente com alojamento, alimentação, deslocação de meios humanos durante a estadia destes em Angola, transporte, segurança, promoção, publicidade, difusão de anúncios e spots, taxas e quaisquer outros encargos decorrentes de utilização de marcas registadas, patentes e ou licenças»;

21. A cláusula 9.ª do referido acordo previa as consequências do cancelamento ou da não realização e suspensão do Espetáculo;

22. O n.° 1 da cláusula 11.ª do referido acordo previa que «a falta de cumprimento de alguma ou algumas das obrigações assumidas neste contrato por qualquer das partes, constitui a outra no direito de o resolver, com ressalva das limitações contidas no texto contratual ou exercício desse direito»;

23. O n.° 3 da cláusula 11.ª previa que «a primeira outorgante poderá resolver o presente e/ou proceder ao cancelamento do espetáculo nas seguintes situações: a) Falta de pagamento total ou parcial do preço nos termos do disposto no n.° 1 da cláusula 2.ª alíneas a) e b), i.e., a 30 de Junho de 2015 - € 900.000 (novecentos mil euros) e a 30 de Setembro de 2015 os remanescentes € 900.000 (novecentos mil euros)»;

24. Nos termos do n.° 6 da cláusula 11.ª «a resolução opera-se mediante comunicação escrita enviada à parte contrária através de qualquer meio de transmissão escrita ou electrónica de dados»;

25. Nos termos do n.° 4 da cláusula 11.ª, «a resolução ou cancelamento do espectáculo por motivo imputável à segunda outorgante não a exonera do pagamento da totalidade do preço acordado e em dívida»;

26. Nos termos da cláusula 16.a, «toda a correspondência contratual deverá ser remetida: PRIMEIRA OUTORGANTE: Ao Cuidado do Senhor - HH Email:HH@hotmail.com; SEGUNDA OUTORGANTE: Ao Cuidado do Senhor - II Email: II@gmail.com»;

27. Da assinatura do contrato referido deu a Ré conhecimento, por correio eletrónico de 12.05.2015, cuja cópia consta de fls. 23v, que se dá por reproduzida, enviado com cópia à Autora, aos empresários junto dos quais tinha recolhido apoios, expressando ainda a importância de desbloquearem a verba correspondente ao pagamento da primeira tranche, no montante de € 900.000;

28. Por e-mail de 08.05.2015, cujo teor consta de fls. 24 e v., e que se dá por reproduzido, a Autora deu conhecimento à senhora embaixadora de Espanha em Angola da assinatura do referido contrato;

29. Em 18, 19 e 28 de Maio de 2015, a Autora e a Ré trocaram entre si os e-mails cujos teores constam de fls. 25 e verso, que se dão por reproduzidos;

30. A Ré não efetuou, na data prevista, o pagamento da primeira tranche, no valor de € 900.000,00;

31. Em 06 e 16 de Julho de 2015 e a Autora remeteu à Ré os e-mails cujos teores constam de fls. 26 e v, que se dão por reproduzidos, através dos quais solicitou à Ré que agilizasse o pagamento a informou que estava a incumprir acordos de pagamento com as partes envolvidas;

32. Em 16 e 27 de Julho de 2015, a Ré remeteu à Autora os e-mails cujos teores constam de fls. 27 e 28, que se dão por reproduzidos, através dos quais transmitiu à Autora, que apesar do atraso, o pagamento iria ser efetuado, referindo a seriedade dos seus apoios;

33. Confiando e acreditando que a Ré procederia ao pagamento acordado, a Autora continuou a publicitar e promover o concerto a realizar;

34. A Autora remeteu, via Embaixador de Angola em Espanha, um convite ao Presidente da República Popular de Angola e família para o concerto que daria o tenor CC no dia 25.07.2015, em … .

35. A Autora deu conhecimento à Ré de que iria fazer esse convite, por correio eletrónico de 07.07.2015, cuja cópia consta de fls. 29 e que se dá por reproduzido.

36. Tal convite foi aceite, tendo estado presente, no concerto dado pelo tenor CC, o Presidente da República Popular de Angola e respetiva família.

37. A Autora deu conhecimento à Ré da aceitação do convite e da presença do Presidente da República Popular de Angola, por correio eletrónico de 27.07.2015, cuja cópia consta de fls. 31 e que se dá por reproduzido, ao qual a Ré respondeu;

38. Em 25.08.2015, a Autora remeteu à Ré o e-mail cujo teor consta de fls. 32 que se dá por reproduzido, pelo qual lhe comunica que já teve que proceder a pagamentos para o cachet dos artistas e orquestra, tendo a Ré respondido “agradeço que continue a aguardar porque é gente de bem e vai cumprir";

39. Em 08.09.2015, a Autora remeteu à Ré o e-mail cujo teor consta de fls. 32v, que se dá por reproduzido, pelo qual lhe pede que confirme a transferência e alerta-a para o facto de se estar a aproximar a data prevista para o espetáculo e ser necessário coordenar viagens, ensaios, vistos, equipas técnicas de mais de 100 pessoas;

40. Em 12.09.2015, a Autora remeteu à Ré o e-mail cujo teor consta de fls.33 que se dá por reproduzido, pelo qual reclama à Ré o cumprimento dos acordos alcançados, adiantando ainda que já não tinha argumentos para justificar o atraso às pessoas com quem se tinha comprometido;

41. Em 13.09.2015, a Ré remeteu à Autora o e-mail cujo teor consta de fls.33 que se dá por reproduzido, pelo qual refere “aguarde que tudo acontecerá sem problemas”;

42. Em 17.09.2015, a Autora remeteu à Ré o e-mail cujo teor consta de fls. 33v, que se dá por reproduzido, pelo qual a informa que foi contactada pelo manager de CC (através da Sociedade JJ) que lhe transmitia a sua preocupação e assombro pelo atraso no cumprimento do contrato e que considerando a dimensão do evento teria que ter já tudo preparado para publicitar o espetáculo no mundo inteiro, acrescentando que CC pediu autorização ao … de Nova York para atuar no dia 10.11.2015 em Angola e que era necessário para a logística uma permissão de 7 dias;

43. Em 18.09.2015, a Ré remeteu à Autora o e-mail cujo teor consta de fls. 33v, que se dá por reproduzido, pelo qual refere ter consciência da gravidade da situação;

44. Em 21.09.2015, a Ré remeteu à Autora o e-mail cujo teor consta de fls. 34 que se dá por reproduzido, pelo qual refere “Tenha calma, que tentarei dar uma resposta esta semana e acredito que seja positiva...'1;

45. Em 14.10.2015, a Ré remeteu à Autora o e-mail cujo teor consta de fls.34v, que se dá por reproduzido, pelo qual informa que no final do dia seguinte "teremos uma posição", apelando por isso à calma e garantindo que “o assunto nunca ficará mal resolvido" e que conhece as regras contratuais;

46. Em 02.10.2015, a Ré ainda não tinha efetuado nem o pagamento da primeira prestação devida a 30.06.2015, nem o pagamento da segunda devida a 30.09.2015;

47. Em 22.10.2015, a Autora remeteu à Ré o e-mail cujo teor consta de fls. 35 e v, que se dá por reproduzido, pelo qual declarou resolver o contrato referido nos n.°s 17 e seguintes;

48. A Tosca de Puccini estava, com um ano de antecedência, programada pelo … de Nova York com direcção de CC, a par de outros maestros, para os dias 2, 6, 11, 14, 18, 21, 25 e 28 de Novembro de 2015;

49. De acordo com uma alteração que teve lugar, CC ficou programado para dirigir apenas nos dias 6, 14, 18 e 21 de Novembro de 2015;

50. Essa alteração deveu-se ao facto de CC ter sido operado de urgência em meados de Outubro de 2015;

51. Para a realização de um espetáculo como o previsto no contrato referido nos n.°s 17 e segs, para além da logística e do período relativo às viagens de ida e volta, é necessário todo o trabalho preparatório de ensaios, entre outros atos relacionados;

52. A deslocação de CC de Nova York a …, teria um tempo mínimo, considerando o trajeto mais curto, de 19 horas e meia e, num trajeto normal, teria um tempo de viagem de 33 horas e meia;

53. O regresso de CC de … a Nova York teria um tempo mínimo, considerando o trajeto mais curto, de 22 horas e 50 minutos e, num trajeto normal, teria um tempo de viagem de 46 horas e meia;

54. Não há, como não havia na altura, voos diretos entre Nova York e … e volta;

55. Relativamente à Orquestra, oriunda da zona de Barcelona, teria um tempo mínimo de ida Barcelona/… de 21 horas e 40 minutos.

56. CC dirigiu a Tosca no … de Nova York no dia 14.11.2015, tendo sido substituído no dia 6 de Novembro de 2015 por se encontrar em fase final de recuperação da operação a que se sujeitou.

57. Em face do que consta dos n.°s 11 e 12, a Autora contactou a empresa KK, com vista a produzir o espetáculo;

58. A empresa KK revelou interesse em produzir o espetáculo;

59. A Ré disse, pelo menos, à Autora que habitualmente conseguia patrocínios junto do empresário LL e que se deveria recorrer-se à Presidência da República para ver se o espetáculo era enquadrável nas festividades do 11 de Novembro, presididas pela Presidência da República;

60. A Autora acabou por optar pela Ré para a produção e realização do espetáculo;

61. A Autora deu conhecimento da realização do espetáculo às embaixadas de Espanha em Angola e de Angola em Madrid, na pessoa dos seus Embaixadores, após terem ficado assentes os pontos principais de colaboração da Ré;

62. A Autora deu conhecimento ao embaixador de Angola em Madrid da assinatura do contrato referido nos n.°s 17 e segs., do número de pessoas envolvidas e pediu o seu apoio para agilização de vistos e contratação de companhia aérea para deslocação de toda a equipa necessária para a realização do espetáculo;

63. Em simultâneo, a Autora mantinha reuniões com a coordenação da direção artística de CC para preparar o espetáculo;

64. A Autora deu conhecimento à Ré, por correio eletrónico, de, pelo menos, alguns dos contactos e reuniões referidos nos n.°s 62 e 63;

65. A Ré só começou a ter intervenção do processo que levou à promoção do espetáculo de CC em … a partir de 19.03.2015.

E vem como não provado o seguinte:

A) que, em face do que consta dos n.°s 11 e 12, a Autora tenha começado a promover e a publicitar o espetáculo, com vista a encontrar um produtor;

B) que tivessem surgido, desde logo, várias empresas interessadas em produzir o espetáculo, para além da referida no n.° 58 dos factos provados;

C) que, para além do que consta do n.° 59 dos factos provados, a Ré tivesse adiantado à Autora que tinha bons contactos junto das mais altas instâncias do país e que contaria com o apoio do empresário LL e da Primeira-dama da República Popular de Angola, junto dos quais iria procurar apoios para a sua realização;

D) que tivessem sido a seriedade da apresentação feita pela Ré e as garantias por si dadas à Autora, reforçada pelos contactos que a Ré ia fazendo e dos quais dava conhecimento à Autora por correio eletrónico, que deram confiança e segurança à Autora para optar pela Ré para a produção e realização do espetáculo;

E) que tivesse sido por isso que a Autor cessou desde logo quaisquer contactos com outros potenciais interessados;

F) que a Autora tenha dado conhecimento à Ré, por correio eletrónico, de todos os contactos e reuniões;

G) que, com a contratação da orquestra, gestão, coordenação, planificação e artistas a Autora tenha despendido o montante total de580.000,00, que não inclui o cachet do tenor CC e respetiva Orquestra;

H) que os únicos contactos que a Ré teve com a Ministra da Cultura de Angola, em ligação direta com a Autora, tenham sido em 17 ou 18 de Março;

I) que não fosse certo que o espetáculo pudesse realizar-se na data prevista de 10.11.2015, por razões apenas imputáveis a CC e à programação do mesmo;

J) que, considerando a alteração de programação da Tosca de Puccini no … de Nova York, fosse inviável que CC desse o espetáculo em … no dia 10;

K) que, ainda que CC não tivesse sido operado de urgência, o espetáculo não fosse realizável, face à programação do … de Nova York relativa à ópera Tosca, à necessidade dos 7 dias a que se refere o e-mail de 17.09.2015 e à autorização dada para aquele se ausentar apenas no dia 10.11.2015;

L) que não fosse conciliável o tempo de viagens e a sua preparação, nomeadamente os ensaios, com o cumprimento das obrigações de CC para com o … de Nova York.


O DIREITO

É tempo de apreciar as alegações da recorrente e ver se lhe assiste razão.

Se bem se compreendeu o raciocínio (explícito e implícito) da recorrente, ele parece ser, em termos esquemáticos, o seguinte:

a) existe uma relação entre a pena convencionada na cláusula 11.ª, n.º 4, do contrato celebrado entre as partes e os (certos) danos sofridos pela autora / recorrida, (relacionados com os custos inerentes à logística necessária à realização do espectáculo e à remuneração de CC e orquestra) [cfr., em especial, as conclusões i), j), k), l) e p) das alegações];

b) existindo uma tal relação, a cláusula 11.ª, n.º 4, do contrato é nula pois prevê uma pena draconiana / desmesurada / desproporcional /manifestamente excessiva por referência ao montante daqueles danos, violando, assim, os artigos 280.º, n.º 2, 294.º, 334.º, 762.º, n.º 2, e 811.º, n.º 3, do CC danos, [cfr., em especial, as conclusões d), q), r) e x) das alegações]; e

c) sendo a cláusula 11.ª, n.º 4, do contrato nula, deve ela ser reduzida ao abrigo do disposto no artigo 812.º do CC e, designadamente, reduzida a zero, pois a autora / recorrida não logrou provar a existência de danos [cfr., em especial, as conclusões t) e x) das alegações].

Sucede que os pressupostos em que assenta o raciocínio da recorrente não são inteiramente correctos.

Se não, veja-se, começando por abordar a 1.ª questão, que é a de saber se a cláusula 11.ª, n.º 4, do contrato celebrado entre as partes é nula por violação dos artigos 280.º, n.º 2, 294.º, 334.º, 762.º, n.º 2, e 811.º, n.º 3, do CC.

Recorde-se que na cláusula 11.ª, n.º 4, do contrato celebrado entre as partes se dispõe: “a resolução ou cancelamento do espectáculo por motivo imputável à segunda outorgante não a exonera do pagamento da totalidade do preço acordado e em dívida (cfr. ponto de facto n.º 25).

Trata-se, em primeiro lugar, claramente, de uma cláusula penal, como bem a qualificaram as instâncias.

Trata-se, em segundo lugar, de uma cláusula com função tendencialmente compulsória / sancionatória (cláusula penal em sentido estrito), pois do respectivo texto resulta que foi fixada com completa abstracção de / completa despreocupação com os danos decorrentes de um eventual incumprimento, logo, independentemente da existência e do montante destes danos. Trata-se, por outras palavras, de uma cláusula em que uma pena foi convencionada pelas partes com o fim de impelir, de modo especial, o devedor a cumprir (meio de compulsão ao cumprimento).

O raciocínio, bem explicado pelo Tribunal de 1.ª instância, é perfilhado pelo Tribunal recorrido. Diz-se na sentença: “em face do teor literal da cláusula em apreço e sendo certo que nada mais se provou relativamente ao escopo das partes, teremos que concluir que as estas não pretenderam liquidar o montante da indemnização devida em consequência do incumprimento do contrato por culpa da R., mas antes criar um mecanismo compulsório, uma cláusula penal em sentido estrito. É o que resulta, desde logo, do facto de as partes terem acordado que a. teria direito à pena independentemente de o incumprimento da R. causar ou não danos à A., abstraindo, portanto, do dano (contrariamente ao que sucede, por exemplo, nas cláusulas 6.ª, n.º 2, 7.ª, n.º 5, 9.ª, n.º 2 ii do contrato). Aponta no mesmo sentido o facto de as partes terem estabelecido a pena para o caso de o credor vir a resol[ver] []o contrato, envolvendo, assim, a fixação da pena a perda da contraprestação (isto é, as partes pretenderam que a pena fosse devida sem que a. tivesse que realizar a sua contraprestação, o que é bem revelador do carácter compulsório da cláusula penal). Acresce que o montante da pena devido (equivalente à totalidade do preço acordado e ainda em dívida) visa, claramente, proporcionar à A. um benefício equivalente ao que iria obter caso o contrato fosse cumprimento, o que permite concluir que que a pena constitui uma forma de satisfação do interesse que levou a A. a contratar. Estamos, pois, em face de uma cláusula penal em sentido estrito”.

Não tem, portanto, razão a recorrente quando estabelece um nexo de dependência entre o valor da pena convencionada e o montante dos danos (comprovadamente) sofridos pela autora / recorrida (e que, segundo ela, apenas respeitariam aos custos inerentes à logística necessária à realização do espectáculo e à remuneração de CC e orquestra).

Partindo (incorrectamente) desta convicção, sustenta a recorrente que a cláusula é nula por manifestamente excessiva e por violação do disposto os artigos 280.º, n.º 2, 294.º, 334.º, 762.º, n.º 2, e 811.º, n.º 3, do CC, e, portanto, deve ser reduzida a zero, não tendo a autora / recorrida demonstrado que sofreu aqueles danos.

Ora, como se depreende do que atrás fica dito, não cabia à autora / recorrida provar estes danos ou quaisquer outros danos para exigir o cumprimento, qua tale, da cláusula penal. Tendo em conta como a cláusula foi desenhada / redigida pelas partes, a constituição da ré / recorrente na obrigação de cumprir a pena nela fixada não estava dependente do montante e nem sequer da existência de danos. Bem ao contrário, para a cláusula ser declarada nula ou a pena ser reduzida (seja reduzida a zero, seja reduzida tout court), conforme era pretensão da recorrente, era sobre ela que recaía o ónus da prova.

Mas vá-se por partes, uma vez que, a certa altura, a matéria a apreciar respeita já ao domínio da 2.ª questão.

Analise-se, em primeiro lugar, a alegação de nulidade da cláusula no quadro dos artigos 280.º, n.º 2, 294.º, 334.º, 762.º, n.º 2, e 811.º, n.º 3, do CC.

Para que esta pretensão da ré / recorrente procedesse, a nulidade teria de ser flagrante / indiscutível. O que bem se compreende. Tendo a cláusula penal sido estipulada pelas partes no âmbito da sua plena liberdade contratual, as limitações ao exercício dos direitos que dela decorrem devem ter carácter excepcional, sob pena de desrespeito da sua função coercitiva e frustração das legítimas expectativas do titular daqueles direitos.

Sucede que não foi especificado de que forma é que (nem está demonstrado que) a cláusula penal em causa nos autos contraria a ordem pública ou os bons costumes (artigo 280.º, n.º 2, do CC), contraria a lei (artigo 294.º do CC), contraria a proibição do abuso de direito (artigo 334.º do CC) ou contraria a boa fé (artigo 762.º, n.º 2, do CC). Relativamente a esta última, diga-se que, aliás, que ela não constitui uma regra / um princípio geral de validade dos contratos / cláusulas contratuais mas uma regra de conduta do devedor.

Tudo quanto a recorrente afirma é que a cláusula é draconiana / desmesurada / desproporcional / manifestamente excessiva tendo em conta a (in)existência de danos produzidos na esfera jurídica da autora / recorrida (a autora não pagou as remunerações do artista nem dos elementos da Orquestra Sinfónica nem suportou as despesas de viagem). Mas este, como se viu, é um argumento irrelevante para o presente efeito, não dependendo a validade ou a eficácia desta cláusula penal dos danos efectivamente ocorridos.

Depois, quanto ao artigo 811.º, n.º 3, do CC, também invocado, pela recorrente, como fundamento de nulidade da cláusula, a sua aplicação ao caso dos autos não é, pura e simplesmente, equacionável. Como resulta da sua localização, ele está ligado ao disposto no n.º 2 por um nexo de subordinação sistemática e é preciso lê-lo em conformidade com isso. Decorre daqui que ele é aplicável – apenas é aplicável – na hipótese prevista no n.º 2, ou seja, na hipótese de as partes terem convencionado uma indemnização pelo dano excedente[2]. Nesta hipótese – e apenas nesta hipótese –, a exigência pelo credor de uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal configura a violação de uma norma imperativa – a norma imperativa do n.º 3[3].

Não se vê, em síntese, fundamento para pôr em causa a validade da cláusula penal em apreço nos autos.

Não significa isto, necessariamente, que não haja lugar à redução da cláusula penal, nos termos do artigo 812.º do CC. De facto, e ao contrário do que parece também discorrer a ré / recorrente, a redução da cláusula nos termos desta última norma não pressupõe que ela seja nula. A cláusula penal – diz-se na norma do artigo 812.º, n.º 1, do CC – pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente. Mas com isto já se entra no domínio da 2.ª questão.

A 2.ª questão é, justamente, a de saber se a cláusula 11.ª, n.º 4, do contrato celebrado entre as partes pode e deve ser reduzida ou, desdobrando a questão em duas, se ela pode e se ele deve ser reduzida.

Como se acaba de dizer, a nulidade da cláusula penal não é pressuposto da redução (redução equitativa) prevista no artigo 812.º do CC. Exige-se apenas ela seja “manifestamente excessiva”.

Questão distinta desta – e prévia – é a de saber em que termos pode a cláusula penal ser reduzida ou, mais precisamente, de saber se, no caso em apreço, se se concluir que aquele pressuposto se verifica, o tribunal tem a faculdade de proceder à redução.

Poder-se-ia remeter a questão para a discussão, mais lata, sobre os poderes de controlo judicial da cláusula penal e, mais precisamente, sobre a possibilidade de redução oficiosa. Confrontam-se aqui as duas teses previsíveis: uma que faz depender a redução da cláusula penal de um pedido do devedor e outra que admite que, em certas circunstâncias, o tribunal a reduza ex officio[4].

Cabe dizer que foi a primeira que mereceu a preferência das duas instâncias. Diz-se na sentença: “é necessário que o devedor solicite a redução da pena, ainda que de forma indirecta (por exemplo, contestando o seu valor), não podendo o tribunal intervir oficiosamente”. E diz-se no Acórdão recorrido: “o uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo citado artigo 812°, não é oficiosa, mas dependente de pedido do devedor da indemnização”.

Para resolver o caso dos autos entende-se, porém, que não será necessário tomar posição na contenda. Como é consensualmente admitido, isto é, pelos adeptos de uma e de outra correntes, pode e deve ponderar-se o comportamento do devedor e extrair dele sinais quanto à vontade ou não de redução. Ora, a repetida alegação da recorrente de que a cláusula é “manifestamente excessiva” encerra, implicitamente, uma contestação do montante convencionado a título de pena e um pedido de redução desta – é um pedido implícito de redução, equiparável ao pedido explícito, expressamente formulado por via de acção ou de reconvenção e enquadrável no artigo 812.º, n.º 1, do CC[5].

Fica, então, por tratar apenas a última (sub-)questão, que é de saber se a cláusula penal estabelecida pelas partes no contrato deve ser reduzida.

Como se disse, o único requisito estabelecido pela lei é a de que a cláusula penal seja “manifestamente excessiva”, pelo que só cumpre responder a uma pergunta: é a cláusula penal estabelecida pelas partes no contrato uma cláusula manifestamente excessiva?

Como adverte alguma doutrina, o conceito de “excesso manifesto” é um conceito indeterminado que tem de ser concretizado caso a caso, não bastando a existência de um simples excesso e exigindo-se uma desproporção que seja, por um lado, substancial ou significativa e, por outro, patente, evidente ou “que salte aos olhos”[6].

Competia à ré / recorrente provar que a pena era manifestamente excessiva nestes termos – únicos termos em que se justificaria a sua redução. Mas isso não aconteceu.

Sendo muitos e variados os índices que a doutrina aponta como devendo ser ponderados para a decisão do julgador[7] e retendo apenas alguns dos mais importantes[8], poderia, por exemplo, a ré / recorrente ter provado a inexistência ou insignificância de prejuízos efectivos. Mas isto, por si só, não bastaria, dada a natureza da cláusula penal (compulsória, logo independente da existência e da extensão dos danos). Teria ré / recorrente de ter provado, além disso, por exemplo, que a gravidade da ilicitude por si cometida e a gravidade da sua culpa no incumprimento do contrato eram especialmente leves. Teria, enfim, a ré / recorrente de ter provado que, pelo conjunto de elementos obtidos por aplicação destes e de outros critérios, se justificava a redução da pena. Mas, como se disse, tal prova não foi produzida.

Olhando para os factos provados, acredita-se, de qualquer forma, que a produção desta prova seria difícil. A ré não só incumpriu totalmente a sua obrigação de pagamento do preço nos termos estipulados, como se esforçou especialmente por manter a contraparte na ilusão de que, sendo “gente de bem”, cumpriria até poucos dias antes da realização do evento (cfr. pontos de facto n.ºs 31 a 33 e n.ºs 38 a 45 dos factos provados).

Mais uma vez, tudo quanto a ré / recorrente alegou para justificar a sua afirmação de que a cláusula era manifestamente excessiva era a inexistência de danos / custos suportados pela autora / recorrida. Ora, como se disse repetidamente, o dano efectivo não é nem pode ser, por si só, fundamento de redução da pena.

Tudo considerado, embora não existisse, em abstracto, impedimento a uma redução equitativa da pena convencionada, não se vê, em concreto, motivo para fazer uso do disposto no artigo 812.º, n.º 1, do CC, devendo, portanto, a cláusula penal manter-se nos termos acordados pelas partes.



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III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.



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Custas pela recorrente.



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LISBOA, 12 de Setembro de 2019


Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

João Bernardo

__________

[1] Diga-se que a decisão sobre a matéria de facto foi impugnada pela ré / apelante mas foi mantida inalterada pelo Tribunal recorrido.

[2] É esta a interpretação (restritiva) propugnada por António Pinto Monteiro (Cláusula penal e indemnização, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 457 e s., segundo a qual ficam excluídas do âmbito de aplicação da norma as cláusula penais compulsórias ou stricto sensu e as cláusulas que fixem penas para a ofensa de deveres inquantificáveis.

[3] Sobre a matéria cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Cláusulas acessórias ao contrato – Cláusulas de exclusão e de limitação do dever de indemnizar e cláusulas penais, Coimbra, Almedina, 2008 (3.ª edição), pp. 86 e s., e autores aí citados.

[4] Sobre a discussão cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Cláusulas acessórias ao contrato – Cláusulas de exclusão e de limitação do dever de indemnizar e cláusulas penais, cit., pp. 132 e s. e autores citados na nota 250.

[5] Sobre a questão cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Cláusulas acessórias ao contrato – Cláusulas de exclusão e de limitação do dever de indemnizar e cláusulas penais, cit., pp. 133-134, e autores citados nas notas 251 e 252.

[6] Cfr. por exemplo, António Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização, cit., pp. 724 e s., João Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, Coimbra, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1995 (2.ª edição), pp. 272 e s., e, mais recentemente, Ana Maria Morais Antunes, in: Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, pp. 1174-1175.

[7] Cfr., por todos, Ana Maria Morais Antunes, cit. p. 1174.

[8] Seguindo aqui Nuno Manuel Pinto Oliveira (Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 938 e s.) e enunciando os critérios da extensão dos danos causados pelo incumprimento, da gravidade da ilicitude e da gravidade da culpa.