Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2889
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLECTIVO
LEITURA DA SENTENÇA
NULIDADE
PROVA
PROIBIÇÃO DE PROVA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CONSTITUCIONALIDADE
JULGAMENTO
LEITURA PERMITIDA DE AUTOS E DECLARAÇÕES
TESTEMUNHA
DEPOIMENTO
DEPOIMENTO INDIRECTO
Nº do Documento: SJ200811130028895
Data do Acordão: 11/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I -De acordo com o art. 372.º, n.º 3, do CPP, “a sentença é lida publicamente pelo presidente ou por outro dos juízes. A leitura do relatório pode ser omitida. A leitura da fundamentação ou, se esta for muito extensa, de uma sua súmula, bem como do dispositivo, é obrigatória, sob pena de nulidade”. Como a lei não diz quando é que a súmula, de tão breve, nem sequer como tal pode ser considerada, deve apurar-se caso a caso da sua suficiência.
II - O art. 32.º, n.º 5, da CRP dispõe que “O processo penal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”. A fim de ser dada eficácia real a este comando constitucional, os arts. 355.º, 356.º e 357.º do CPP consagraram uma disciplina que obriga a produzir ou examinar em audiência a prova, com as excepções que ali se assinalam. Corolário deste regime é a regra-base da proibição de leitura em audiência de autos e declarações prestadas em fases preliminares do processo. Para que esta disciplina não fosse defraudada, é que se diz no art. 128.º que a testemunha é interrogada “sobre factos de que possua conhecimento directo” e se proíbe, em princípio, o depoimento chamado indirecto, no art. 129.º do CPP. Não fora assim, perante a proibição de leitura de um determinado auto em audiência, bastaria chamar a depor a entidade que lavrou o auto, e pô-la a dizer o que nele se continha, ou seja, aquilo que a pessoa então ouvida lhe havia dito. Por isso é que, de acordo com uma importante corrente jurisprudencial, as limitações postas ao depoimento indirecto, no art. 129.º do CPP, só têm razão de ser estando em causa depoimentos, declarações ou interrogatórios que tenham sido reduzidos a auto e constem do processo.
III - De sublinhar que o n.º 1 do art. 129.º referido condiciona, desde logo, as restrições que estabelece, ao facto de “o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas”. Com a expressão “o depoimento resultar” não pode, senão, ter-se querido dizer, que o depoimento se analisa, tem por conteúdo e objecto, o que se ouviu dizer a pessoas determinadas. Nesse caso, o juiz pode chamar a depor as pessoas cujo depoimento se relata. E, ou se desinteressa do depoimento indirecto, nomeadamente em face da prova de que já dispõe, ou chama mesmo a depor as pessoas a quem se atribui determinado relato. Mas estas pessoas não têm sempre e em absoluto que ser ouvidas para que o depoimento indirecto tenha efeito. A morte, a anomalia psíquica daquelas pessoas, ou a impossibilidade de serem encontradas, faz com que se possa avançar, mesmo sem ter havido o desejado contraditório. O que leva a pensar que, na disciplina legal, é suficiente a tentativa de realização do contraditório, e não se exige a efectivação desse contraditório, para que o depoimento indirecto seja aproveitado.
IV - Considerando que, no caso em apreço:
- se está perante uma factualidade analisada numa operação policial, que teve lugar no decurso das investigações de seguimento, intercepção de uma arguida, apreensão de droga e da viatura modificada onde ela era transportada, bem como da detenção da condutora; detenção em flagrante delito, ou seja, quando o crime estava a ser praticado;
- os agentes policiais que protagonizaram essa operação depuseram em audiência, dando conta do seu desenrolar, e incluíram no seu relato, como era natural, aquilo que foi a reacção da arguida ao que lhe estava a acontecer;
não estamos perante depoimentos dos elementos da PJ que versam sobre outro depoimento, ou perante depoimentos que têm por objecto o que outra pessoa disse; estamos perante depoimentos que relatam directamente factos, a que as testemunhas que os produzem assistiram, a saber, uma perseguição, intercepção, apreensão e detenção, no momento em que o crime estava a ser cometido, e em que, muito naturalmente, estão incluídas as reacções verbais da pessoa que estava a ser alvo da operação policial; não tem, pois, cabimento, chamar aqui à colação a problemática das limitações, postas pela lei, ao depoimento das chamadas “testemunhas de ouvir dizer”.
Decisão Texto Integral:
Em processo comum , o Tribunal Colectivo da 1.ª Vara de Competência Mista Cível e Criminal de Loures, por acórdão de 20-09-2007, decidiu:
a) condenar o arguido AA, melhor identificado nos autos, pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos arts. 21.°, n.° 1, e 24.°, al. c), do DL 15/93, de 22-01, com referência às tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma, na pena de 11 (onze) anos de prisão;
b) nos termos dos arts. 35.°, n.° 1, e 36.°, n.°s 2 e 5, do DL 15/93, de 22-01, declarar perdido a favor do Estado o veículo automóvel da marca "BMW", modelo "525 TDS", de matrícula ...-...-... .
De tal decisão interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Recorreu igualmente o arguido, para o Tribunal da Relação de Lisboa, das seguintes decisões:
a) despacho de fls. 10 180 a 10 182, datado de 03-10-2007, que declarou a excepcional complexidade do processo;
b) despacho de fls. 10 165, datado de 21-09-2007, que indeferiu a irregularidade da leitura por súmula do acórdão da 1.ª instância.

Por acórdão de 26-06-2008, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento aos recursos dos despachos supra indicados e concedeu parcial provimento ao recurso do acórdão proferido, mantendo a condenação do recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos arts. 21.° e 24.°, al. c), do DL n.° 15/93, de 22-01, e reduzindo a pena aplicada para 10 (dez) anos de prisão.
É desta decisão que agora foi interposto, pelo arguido, o presente recurso para este Supremo Tribunal de Justiça. Requereu audiência oral para debate das questões levantadas nas conclusões


A) DECISÃO DA PRIMEIRA INSTÂNCIA

I - MATÉRIA DE FACTO
No acórdão da 1.ª Vara de Competência Mista Cível e Criminal de Loures de 20-09-2007, foram considerados os seguintes:

a) Factos provados (transcrição):
«1 - O arguido AA, que cumpria pena de prisão, em Portugal, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, evadiu-se para Espanha, onde fixou residência.
2 - Para iludir as autoridades policiais, o arguido AA passou a utilizar várias alcunhas e nomes falsos, designadamente: «Zé de Braga», «Galego», «Lieto», «José Bruno Bruno» e «José António».
3 - O arguido AA tinha contactos, entre outros, com BB, que utilizava as alcunhas de «Russo» e de «Estoino» ou «Estonho», CC, que era conhecido pela alcunha de «Moca», DD, EE, conhecido por «Quim», FF e GG, conhecido pelo nome de «Júlio» e, devido à sua deficiência física, com a alcunha de «Marreco», todos pessoas das suas relações.
4 - O arguido GG, nas suas deslocações, fazia-se transportar, entre outras, na viatura automóvel da marca "Mercedes", modelo 280, com a matrícula espanhola ...-...-..., registada em nome de José Bruno Bruno, uma das identidades falsas por ele utilizadas.
5 - Pela mesma altura, o referido BB utilizava a viatura da marca "Opel", modelo "Calibra", com a matrícula ...-...-... .
6 - FF e EE ("Quim") mantinham entre si uma relação amorosa e partilhavam a casa que era a residência da primeira, sita na Estrada de ....., Vivenda M...., V... de B..., em Alverca.
7 - Nessa casa eram guardados produtos estupefacientes, designadamente heroína, pertencentes ao arguido AA.
8 - No dia 18 de Setembro de 2000, CC ("Moca") entregou à FF o veículo automóvel da marca "BMW", modelo "525 TDS", com a matrícula ...-...-..., pertencente ao arguido AA.
9 - Essa viatura foi conduzida pelo CC ("Moca") até à Costa da Caparica, onde se encontrou com a FF e com o EE ("Quim").
10 - Depois de receber essa viatura, a FF dirigiu-se para o norte do país, mais precisamente para a zona de Póvoa de Varzim, onde, juntamente com o EE ("Quim"), ficou hospedada (no "Hotel Torre-Mar") na noite de 21 para 22 de Setembro.
11 - Na tarde do dia 22 de Setembro de 2000, a FF, seguindo instruções do arguido AA, viajou do norte para a sua casa em Alverca, fazendo-se transportar no "BMW 525 TDS", de matrícula ...-...-..., que ela própria conduziu.
12 - Chegada a Alverca, a FF carregou no interior desse veículo, num depósito disfarçado, situado nas traseiras do banco de trás, 13 embalagens de um produto acastanhado, com o peso bruto total de 13,520 quilogramas (peso líquido de 12,660 kgs) e, ainda, um saco de plástico contendo o mesmo produto, com o peso bruto de 514,5 gramas (peso líquido de 485,015 gramas), produto esse que o exame toxicológico a que foi submetido no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária revelou ser heroína.
13 - Esse produto estupefaciente pertencia ao arguido AA e era todo o que, na altura, a FF tinha arrecadado na sua casa de residência, em Alverca.
14 - Carregado o produto na viatura, a FF iniciou, logo de seguida, a viagem de regresso ao norte, levando consigo os filhos, sendo, porém, interceptada e detida na zona da saída da A1 para Leiria.
15 - Foram-lhe, então, apreendidos (além de 3 telemóveis, 83 500$00 e 1000 pesetas espanholas) as 13 embalagens e o saco de heroína que transportava e o referido veículo BMW, modelo 525 TDS, de matrícula ...-...-..., em que tal produto era transportado.
16 - Na sequência da busca efectuada na casa de residência da FF, foram-lhe apreendidos, além do mais, os papéis que estão a fls. 478 a 480 dos autos.
17 - A FF já em ocasiões anteriores tinha efectuado transportes de substâncias estupefacientes (heroína e cocaína) para o arguido AA.
18 - Nos dias 21 e 22 de Novembro de 2000, o arguido AA, sendo transportado pelo CC ("Moca"), encontrou-se com o GG ("Júlio").
19 - Em 6 de Março de 2001, a FF, presa preventivamente, contactou telefonicamente o arguido EE (Quim), dizendo-lhe que mandasse recado ao arguido AA («o lá de cima») e ao BB (Estoino) [«o cá de baixo»], para estes a auxiliarem economicamente, sob pena de os denunciar à Polícia Judiciária.
20 - O EE ("Quim") disse-lhe, então, para escrever isso num papel, para ele mandar uma filha dele entregar ao BB ("Estoino"), lá no bairro.
21 - Em 18 de Maio de 2001, foi detido EE ("Quim") e, na altura, foi-lhe apreendido, além do mais, o papel junto como documento a fls. 2642 que contém uma mensagem da FF dirigida ao BB ("Estoino").
22 - Nessa mensagem, a Georgina informava o BB ("Estoino") de que iria dizer, em julgamento, que não o conhecia, aconselhando-o a dizer o mesmo e, ainda, relativamente ao arguido AA (que referia pelo nome de «José Bruno» e de «Galego»), a dizer que foi este que veio ter com ele, ou que é seu familiar, ou até a dizer que o seu filho ia casar com a filha dele, e que utilizava o seu telemóvel numa altura em que não tinha cartão, e que ele, BB, lhe tinha emprestado o dele, e avisando-o, finalmente, para não falar com o EE ("Quim"), nem pelo telefone.
23 - Em 8 de Dezembro de 2000, II (conhecido por "Nelo" ou "Nel"), irmão do AA, teve um contacto telefónico com HH, informando-o de que iria, nesse dia, buscar produto estupefaciente e pretendendo saber se este estava interessado em comprar.
O HH, todavia, informou-o de que ainda tinha que receber o dinheiro da venda do produto anteriormente recebido, pelo que só dentro de 2 ou 3 dias iria a casa do II (Nelo ou Nel) para adquirir mais produto.
24 - Em 29 de Dezembro de 2000, o II (Nelo ou Nel) teve um contacto telefónico com o HH, a quem ofereceu, para venda, produto estupefaciente (heroína ou cocaína) ao preço de 4.600 contos o quilo, produto este que se preparava para ir buscar a Espanha.
Tendo o HH retorquido que o preço era elevado, o II (Nelo ou Nel) respondeu-lhe que havia aí, para venda, um produto a 4.400 contos, mas que não tinha qualidade («não balachim»).
Como o HH argumentasse que ainda iria ter despesas com a deslocação a Braga, para ir buscar o produto, o Nel sugeriu que ele viesse num táxi, cujo frete seria suportado por ambos, a meias.
O HH não tinha dinheiro suficiente, na altura, para comprar um quilo de produto estupefaciente (apenas tinha disponíveis 3.600 a 3.700 contos), e o II respondeu-lhe que não fazia mal, que lhe faria o preço a 4.500 contos o quilo («quatro papiros e meio»), e que o resto pagaria mais tarde, proposta que aquele aceitou.
Na sequência de tal acordo, o II deslocou-se a Espanha, na tarde do dia 29 de Dezembro de 2000, onde obteve do seu irmão AA um quilo de produto estupefaciente (heroína ou cocaína), que transportou para Portugal, tendo chegado a sua casa, em Braga, com o produto, por volta das 20:04 horas.
De posse do produto, o II acordou com o HH que, no dia seguinte de manhã, se deslocaria à Gafanha da Nazaré, para o entregar, acompanhado de um correio («rambo»), que procederia a esse transporte.
Ficou, ainda, entre eles acordado que quem iria receber o produto seria o «Riqueza», irmão do HH, que entregaria o dinheiro ao II.
Após ter feito a entrega desse produto ao HH, o "Nel" contactou telefonicamente a esposa daquele (JJ), pedindo-lhe explicações pelo facto de a mãe desta ter tido conhecimento de operação e recomendando que da mesma não fosse dado conhecimento a ninguém.
No mesmo contacto, o II (Nelo ou Nel) perguntou à JJ se o marido desta precisava de mais produto estupefaciente, respondendo-lhe ela que não sabia e que ligasse mais tarde, à noite, para falar com ele.
No mesmo dia (10 de Janeiro de 2001), o HH entregou ao "Nel" um saco, contendo dinheiro, para pagamento da parte restante (500 contos) do preço do produto estupefaciente que recebera deste, saco no qual, por lapso, enviou 100 contos a mais.
25 - Em 13 de Janeiro de 2001, o II (Nelo ou Nel) deslocou-se a Espanha, de novo, para se abastecer de produtos estupefacientes junto de seu irmão AA.
Na mesma data, o "Nel" teve um contacto telefónico em que comunicou à esposa do HH a deslocação que ia fazer, e perguntou se este precisava de produto estupefaciente (heroína ou cocaína) para ele trazer.
A Amélia respondeu-lhe que não tinha o dinheiro («pernum») suficiente, afirmando ter apenas 2.500 contos, tendo-lhe retorquido o "Nel" que não fazia mal, pois ele esperava pelo pagamento do resto.
Nesse dia (13.01.2001), por volta do meio dia, foram detidos, pela Polícia Judiciária, os arguidos LL, MM e NN, altura em que lhes foi apreendida heroína que seria proveniente do OO.
Tendo sido informado disso, o II avisou a JJ e o HH do que se tinha passado («...houve dois paílhos e um calon que foram estraduns em Lisboa...») e de que, devido a esse facto, não iria ter disponível, já nesse dia, o produto estupefaciente, só o devendo ter com ele no dia seguinte, à tarde (domingo), ou na 2.a feira.
No dia seguinte (domingo), já de posse do produto estupefaciente (heroína ou cocaína), o "Nel" comunicou à JJ que iria ele próprio a bater a estrada, com um correio (um «lacorrilho», não cigano) atrás, para levar o produto ao HH, informando-a, também, de que tal correio deveria cobrar entre 100 e 150 contos pelo transporte do produto e de que, aquando do anterior fornecimento de produto estupefaciente que lhes fizera, o correio lhe tinha exigido o pagamento de 100 contos («cem véus»).
26 - Em 23 de Março de 2001, o arguido AA contactou telefonicamente o "Nel", perguntando-lhe se não tinha ninguém que comprasse meio quilo («meia peçazinha») de produto estupefaciente (heroína ou cocaína), a pronto pagamento («co pernum na mão»).
O II respondeu-lhe que, nesse momento, não tinha ninguém interessado, observando-lhe, no entanto, que tinha tido um interessado em comprar tal produto pouco tempo antes, e que o arguido AA, quando o contactou para lho fornecer, lho não forneceu, por, na altura, não o ter.
27 - No dia 10 de Maio de 2001, o II (Nelo ou Nel) entrou, de novo, em contacto com o arguido AA, pedindo-lhe que lhe fornecesse produto estupefaciente (heroína ou cocaína), que pagaria a pronto pagamento (com o «pernum» na mão), por ter comprador para o adquirir imediatamente.
No dia 13 de Maio de 2001, em contacto telefónico, o arguido AA informou o arguido II (Nelo ou Nel) de que, no dia seguinte, lhe forneceria o produto, por já ter quantidade suficiente para o efeito.
28 - O arguido AA foi condenado, por acórdão de 6 de Julho de 1990, na pena de 8 anos de prisão, e multa de 400.000$00, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, pena que cumpria quando se evadiu e fugiu para Espanha.
29 - Tal condenação, todavia, não demoveu o arguido de continuar a praticar o mesmo crime.
30 - O arguido AA, ao praticar os factos acima descritos, relacionados com a detenção, transporte, compra, venda e oferecimento para venda daquele produto (heroína e/ou cocaína), cujas características estupefacientes bem conhecia, agiu voluntária e conscientemente, visando alcançar rendimentos muito elevados, que a natureza e a grande quantidade do produto lhe proporcionariam.
Agiu com inteira liberdade de determinação e sabendo que todos aqueles actos eram penalmente puníveis.
(…) 31 - O arguido nasceu em Braga e é o penúltimo de sete filhos de uma família de etnia cigana.
Residiu com os pais, numa situação de sedentarismo, na Póvoa de Varzim.
Frequentou a escola e diz ter a 4.a classe.
Aos 19 anos de idade, casou com A... da C... M..., também de etnia cigana, de quem tem quatro filhos, com idades compreendidas entre os 17 e os 23 anos.
Desde muito novo que acompanhava os pais na venda ambulante de artigos de vestuário.
No Estabelecimento Prisional de Coimbra tem mantido um comportamento adequado às normas internas, mas não beneficiou de qualquer medida de flexibilização da pena de prisão que aí cumpre(ia).
Tem o apoio da mulher, dos filhos e de outros familiares, que o visitam regularmente na cadeia».


B) ACÓRDÃO RECORRIDO

O acórdão da Relação de Lisboa, ora recorrido, fundamentou a sua decisão nos seguintes termos (transcrição parcial dos pontos que mais se prendem com o recurso para este S.T.J.):
« 3. O arguido José Dias Garcia veio levantar as seguintes questões/recorreu:
a) Do despacho que declarou a excepcional complexidade do processo.
b) Do despacho de indeferiu a irregularidade "pelo facto de não ter sido lido em audiência os meios de prova e convicção do Tribunal de forma correcta".
c) Relativamente à falta de fundamentação da decisão recorrida.
d) O arguido veio ainda invocar erro de julgamento.
e) Do Depoimento Indirecto.
f) Sobre a validade das escutas telefónicas.
g) Sobre a valoração de depoimentos e declarações quando excederam 30 dias entre a sua realização e a leitura do acórdão condenatório.

4. Relativamente ao despacho que declarou os autos como de especial complexidade.
(…)

5. A leitura do acórdão decorreu 30 após a audiência da última produção da prova.
(…)

5. Sobre a irregularidade da leitura por súmula do acórdão recorrido.
Dispõe o Artigo 372.° do C.P.Penal (Elaboração e assinatura da sentença):
1 - Concluída a deliberação e votação, o presidente, ou, se este ficar vencido, o juiz mais antigo dos que fizerem vencimento, elaboram a sentença de acordo com as posições que tiverem feito vencimento.
2 - Em seguida, a sentença é assinada por todos os juízes e pelos jurados e se algum dos juízes assinar vencido, declara com precisão os motivos do seu voto quanto à matéria de direito.
3 - Regressado o tribunal à sala de audiência, a sentença é lida publicamente pelo presidente ou por outro dos juízes. A leitura do relatório pode ser omitida. A leitura da fundamentação ou, se esta for muito extensa, de uma sua súmula, bem como do dispositivo, é obrigatória, sob pena de nulidade.
4 - A leitura da sentença equivale à sua notificação aos sujeitos processuais que deverem considerar-se presentes na audiência.
5 - Logo após a leitura da sentença, o presidente procede ao seu depósito na secretaria. O secretário apõe a data, subscreve a declaração de depósito e entrega cópia aos sujeitos processuais que o solicitem.
O recorrente indica a fls. 10200 na sua conclusão 1.: "... o Sr Juiz se limitou em sede de fundamentação de facto, a dizer o seguinte: os meios de prova e as razões de convicção do tribunal são muito extensos pelo que vou referi-los por súmula. E acrescentou, segundo os apontamentos que o signatário recolheu, logo na altura: A prova reside na prova testemunhal produzida em audiência, essencialmente, nos depoimentos dos senhores agentes da P.J. e nas escutas telefónicas não declaradas nulas".
Não diz a lei em rigor, dependendo do caso concreto, saber se o juiz cumpriu a exigência legal de indicar por súmula a fundamentação da decisão. Tomando como boa a descrição do que o Exmo. Advogado do arguido faz do que sucedeu na audiência de leitura do acórdão consideramos, com o devido respeito, que não lhe assiste razão.
Como se pode constatar pela decisão dos autos (acórdão) a mesma, na parte da fundamentação, é muito extensa tendo 24 (vinte e quatro) páginas, pelo que não nos merece censura o facto de o Senhor Juiz presidente do tribunal colectivo ter feito aquela e apenas a mencionada (pelo Exmo. Advogado do arguido) referencia à fundamentação.
Não procede, assim, a invocada nulidade.

6. Relativamente à falta de fundamentação da decisão recorrida.
(…)

7. Do Depoimento Indirecto.
O Tribunal, de uma forma clara e exaustiva, esclareceu a razão da utilização do "depoimento indirecto". Tal respeita ao depoimento dos agentes relativamente ao que a Georgina Rodrigues lhes disse aquando da sua detenção. Em nosso entender, não ocorreu qualquer depoimento indirecto mas antes a reprodução do que a mesma disse na altura da detenção e que ouviram de viva voz.
Os depoimentos dos Inspectores da Polícia Judiciária foram valorados como meio de prova ao abrigo do disposto no art° 129.° do C.P.P.
Entendemos que não ocorreu depoimento indirecto e que por isso os depoimentos são perfeitamente válidos, como aliás decidiu o Acórdão do S.T.J. de 19 de Dezembro de 2007, proc.° n° 07P4203, Relator: SANTOS CABRAL, in www.dgsi.pt, aplicável mutatis mutandis ao caso vertente:
"Importa aqui sinalizar questão colocada pelo recorrente AA em relação à valoração de depoimento indirecto de agente policiais.
A invocação incorre em manifesto erro conceptual, considerando que falamos de agentes de autoridade que relataram a sua intervenção em actos processuais, ou inscritos na investigação criminal a que procederam e que se inscreveram directamente na percepção directa que tiveram (falamos de vigilâncias; seguimentos; abordagens ou buscas).
Testemunho directo na acepção mais básica do termo.
Na verdade, no testemunho indirecto não se afere de um testemunho puro e simples. Trata-se de um testemunho não dos factos, mas do testemunho dos factos, pois quem testemunha declarando o que sabe sobre estes não se encontrava presente quando os mesmos ocorreram. Rigorosamente falando, não se pode testemunhar, enquanto declaração, um facto que outra pessoa disse que viu ou ouviu acontecer, assim como também não se pode testemunhar que a mesma viu ou ouviu, pois a pessoa que testemunha um facto através de uma outra que lho contou não se encontrava presente na ocorrência deste.
Manifestamente que o agente policial que relata as diligências a que procedeu em sede de investigação dá nota de algo que é um facto pessoal por si protagonizado e não algo que só tenha conhecimento por intermédio de outrem.
Encontramo-nos, assim, perante a questão da definição e relevância do depoimento indirecto.
A essência da prova testemunhal é a de que a mesma se refere às declarações que efectua uma pessoa sobre aquilo que percebeu pessoal e directamente. A prova testemunhal caracteriza-se pela sua imediação com o acontecimento que se presenciou visual ou auditivamente.
Perante tais características essenciais da prova testemunhal não admiram as reservas suscitadas pelo depoimento indirecto em que está ausente a relação de imediação entre a testemunha e o objecto por ele percebido. Tais reservas não se situam apenas nos sistemas processuais penais contemporâneos e já no direito romano não se admitia a testemunha de ouvir dizer.
O direito anglo-americano, em que ainda prevalece, em larga medida, o sistema de provas legais, declara igualmente inadmissível o testemunho por ouvir dizer (hearsay). Segundo Kenny a desvalia desse tipo de prova foi reconhecida na Inglaterra desde 1202, encontrando-se em velhos textos de Bracton, do século XIII, a desaprovação do testemonium de auditu alieno. O testemunho por ouvir dizer ainda hoje não é admitido (salvo em poucos casos excepcionais) não por sua irrelevância mas por sua insegurança (hearsay is forbidden for unreliability, not for irrelevancy) Tal proibição da prova por “ouvir dizer” flui também de certos princípios do processo penal conforme à common law, nomeadamente a regra da oralidade do testemunho. Não é admissível a prova que não for produzida diante do júri.
Pronunciando-se sobre o tema, e de uma forma radical, Manzini, afirma que "as atestações indirectas, os conhecimentos reflexos, as deposições por ter ouvido dizer, não têm carácter de testemunho, senão que apenas podem ser consideradas como elementos inseguros de informação, através dos quais se pode eventualmente chegar ao verdadeiro testemunho” E, resumindo as objecções fundamentais, acrescenta: "Com efeito, em tais depoimentos a percepção sensorial que interessa à prova, não é do depoente, senão de quem a manifestou ao mesmo depoente. E o confidente, que seria a verdadeira testemunha, se não é imaginário, escapa à responsabilidade do que disse se o outro não o revela, e se subtrai também à valoração de sua credibilidade; além do fato de que o que se conta de boca em boca se altera e se deforma progressivamente.”
A questão em apreço, a já citada relevância do depoimento indirecto - artigo 129 do Código de Processo Penal - mereceu do legislador português uma solução restritiva que passa pela necessidade de confirmação por parte da pessoa indicada como transmitente. Em termos de direito comparado tal norma tem correspondência em ordenamentos tão diversos como o italiano - artigo 195 do respectivo Código - ou mexicano - artigo 289 do Código Federal de Procedimientos Penales.
Apesar de tal princípio existem excepções representadas por aquelas pressuposições de indisponibilidade do testemunho presencial. Entre as excepções admitidas cabe mencionar aquelas que derivam da antiga doutrina conhecida como res gestae termo que, como indica Hendler, faz referência Às expressões produzidas no momento em que teve lugar o facto que é objecto de litígio.
Se atendermos à jurisprudência do TEDH (caso Kostovski c. Holanda e caso Wundisch contra a Áustria) encontra-se hoje largamente sedimentada a ideia de que os elementos de prova devem ser produzidos diante do acusado em audiência pública tendo em conta a necessidade do exercício do contraditório pelo que a regra é, em principio a não admissão do depoimento indirecto.
No caso vertente as testemunhas, que são agentes policiais, e se encontravam no exercício das suas funções, relatam os factos de que tiveram a percepção directa.
Não apresentam uma versão percepcionada por outrem dos factos imputados ao arguido mas elucidam o tribunal sobre aquilo que viram e ouviram na altura.
Entende-se, assim, que a proibição de valoração do depoimento indirecto deve ser entendida nos exactos termos propostos pelo artigo 129 do Código de Processo Penal e quando, como no caso vertente, a referência a terceiro assume natureza meramente instrumental, e explicativa do próprio depoimento directo, não existem razões para a proibição constante daquele normativo.
Não tem fundamento a invocada nulidade".
Resulta assim que o mesmo sucedeu no caso vertente, já que os agentes da Polícia Judiciária foram ouvidos sobre factos de que tiveram percepção directa, não se tratando por isso de um depoimento indirecto.
Improcede, assim, a invocada nulidade.

8. Sobre a validade das escutas telefónicas.
(…)

9. Sobre a violação do disposto nos art.°s 138.° n.° 4 e 355.° a 357.°, todos do C.P.Penal, relativamente ao depoimento de testemunhas.
(…)

10. De acordo com o acórdão do STJ de 19/10/95 – DR I Série de 28/12/95, a existência de algum dos vícios do art.° 410 n.° 2 do C.P.P. é de conhecimento oficioso.
(…)

11. O arguido veio ainda invocar erro de julgamento.
(…)

12, Qualificação jurídica dos factos e medida da pena.
12.1. Estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos que permitiram condenar o arguido, em autoria material, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art° s 21°, n° 1 e 24.° alínea c) do DL n° 15/93 de 22.1, com referência às tabelas I-A (Heroína) e I-B (Cocaína), na pena de 11 (onze) anos de prisão.
Incorre na prática do crime de tráfico previsto no art° 21° "quem, sem para tal se encontrar autorizado, (...) produzir, comprar, vender, ceder ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40°, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III ..." sendo a moldura penal abstracta de 4 a 12 anos de prisão.
E constitui jurisprudência actualmente pacífica que o crime de tráfico de estupefacientes, em qualquer das suas modalidades, é um crime de perigo abstracto ou presumido, pelo que não se exige, para a sua consumação, a existência de um dano real e efectivo. O crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido (a saúde pública).
Conforme resultou apurado, o arguido comercializava HEROÍNA e COCAÍNA que, entre as substâncias estupefacientes, são consideradas drogas duras, gerando dependência e habituação, e com consequências nefastas tanto para o consumidor, sobretudo os jovens , como para a sua família e a própria sociedade.
O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes daquele produto, agiu deliberada, livre e conscientemente, conhecendo bem a ilicitude da sua conduta, e mesmo assim determinou-se a empreendê-la, agindo com dolo directo (cfr. Art.° 14°, do C.P.).
O artigo 21°, n° 1, do Decreto-Lei n° 15/93 contém a descrição fundamental – o tipo essencial – relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes.
O art.° 24.° do D.L. 15/93 prevê a agravação nas seguintes circunstâncias, além de outras, quando as substâncias ou preparações foram distribuídas por grande número de pessoas (al. b)), ou o agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória (al. c)) ou, ainda o agente actuou como membro de bando (al. j.)).
Contudo, como de forma evidente resulta da letra da lei, a agravação da alínea b), não ocorre quando os produtos se destinem a ser distribuídos por grande número de pessoas, mas tão só quando se prova que já foram, efectivamente, distribuídos, dessa forma contribuindo o agente para a disseminação da droga, o que justifica agravamento da censura (vd. Ac. do STJ, de 7.Out.04 in Proc. 04P828, Relator Santos Carvalho, acessível em www.dgsi.pt: "A lei não considera como agravante a intenção de distribuir as substâncias ou preparações por grande número de pessoas, mas a sua efectiva distribuição a grande número de pessoas").
O estupefaciente que foi apreendido era, de facto, susceptível de ser distribuído por muitas pessoas, no entanto, exigindo o tipo criminal, para a verificação desta agravante, como vimos, a distribuição efectiva, teremos de concluir que os factos não preenchem esta alínea do art. 24.°, em relação ao arguido.
Relativamente à agravante constante da alínea j) do art.° 24.°, como bem decidiu o acórdão recorrido, não se encontra verificada a circunstancia aí descrita já que o conceito de bando exige uma certa permanência e não uma união ocasional para a prática de crimes.
No que diz respeito à agravação da alínea c), do art.24.°, de forma clara resulta da letra da lei que preenche a respectiva previsão o agente que "obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória".
A dificuldade reside na definição do que seja "avultada compensação remuneratória".
Não definindo a lei esse conceito, deve o mesmo ser apurado caso a caso, pelas circunstâncias concretas que permitam concluir por uma acentuada ilicitude face à subjacente ao tipo base. Na verdade, o crime base do artigo 21.° está projectado para assumir a função típica de acolhimento dos casos de tráfico de média e grande dimensão, tanto pela larga descrição das variadas acções típicas, como pela amplitude dos limites da moldura penal, que indiciam a susceptibilidade de aplicação a todas as situações, graves e mesmo muito graves, de crimes de tráfico. Por isso, as circunstâncias susceptíveis de conduzirem à agravação desse tipo, terão de ser preenchidas por circunstâncias susceptíveis de revelar uma especial ilicitude, em particular no caso em causa da alínea c); terão de ser significativas as quantidades transaccionadas, apreendidas ou os valores obtidos com a actividade, de forma a se estar inequivocamente perante "grande tráfico", situado já na parte superior da cadeia que tem na base inferior o traficante de rua, com ligações internacionais ou pelo menos relações com agentes do tráfico internacional.
Como decidiu o Ac. da Relação de Lisboa de 11.Fev.03 , P° 00102645, Relator: Simões de Carvalho, in www.dgsi.pt: "1 - A integração do conceito indeterminado de "avultada compensação remuneratória" que constitui a circunstância agravante qualificativa do tráfico de estupefacientes prevista na alínea c) do art. 24° do Dec. Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, deve fazer-se de uma forma intra-sistemática e autónoma em relação à equivalência com os escalões de valor previstos no art. 202° C. Penal. II - Com recurso à hermenêutica jurídica, a ponderação do circunstancialismo próprio que gira à volta do tráfico de droga, com os pormenores e frequentes "nuances" da cada caso, impõe ao julgador que se determine mais pela ponderação global dos diversos factores em jogo do que pela simples atenção à aritmética dos exames que permitem os valores em causa. III - O que não quer dizer que se afaste "in limine" toda e qualquer menção aos montantes do citado art. 202° C. Penal e que podem e devem servir como quadro de referência".
O juízo do Tribunal a quo fundado nas regras da experiência comum não permite tirar outra conclusão que não seja a de que os factos dados como provados só permitem o seu enquadramento na norma agravativa do artº 24°, alínea c), de todo estando excluída a sua subsunção no tipo legal do art° 21°, esse destinado a outras quantidades de droga e portanto valores.
Constitui mesmo um facto notório para que a venda de 13 Kgs. de heroína são altamente lucrativos, podendo gerar lucros de larguíssimas dezenas de milhares de euros.
Não restam pois dúvidas de que a conduta do arguido preenche os elementos objectivos e subjectivos do crime de tráfico previsto no citado art. 21°, n.° 1 e 24.° alínea c) do D.L. n.° 15/93, com referência às Tabelas I-A e I-B, anexas ao citado diploma, a que corresponde a moldura penal abstracta de 5 anos e 4 meses a 16 anos de prisão.
12.2. Da análise do acórdão sob recurso consideramos que a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, é clara e incontroversa.
O acórdão em recurso, na sua bem elaborada e suficiente fundamentação de facto – em consonância com o principio da livre apreciação da prova, enunciado no art.° 127.° do C.P.P. – e de direito, analisou todos os pressupostos que permitiram tipificar a matéria fáctica dada como provada.
Relativamente ao acórdão dos autos entende-se pela fundamentação qual o raciocínio lógico que levou o Tribunal a dar como assentes os factos provados.
Registe-se que a explicitação dos motivos que levaram à decisão sobre a matéria de facto e à formação da convicção do julgador, tem de ser feita globalmente, tendo em atenção os factos dados como provados, o que no caso é completamente perceptível.
A ilicitude dos factos deve ser apreciada de uma forma global ponderando a qualidade da droga, a quantidade em causa e bem assim os "meios, modalidades e circunstâncias da actividade do tráfico, como por exemplo, se é ou não sistemático, sua amplitude, a existência de estruturas organizativas ainda que rudimentares, o papel desempenhado nesse tráfico, a disponibilidade económica correlativa a essa actividade, a quantidade de estupefacientes destinada ao tráfico em comparação com a detida para consumo pessoal" (cfr. Lourenço Martins, Droga - Comentários às Decisões de 1ª Instância, 1993, p. 271 e nota 4, citando a Rivista Penale).
Tendo o arguido praticado facto típico, ilícito e culposo e não se encontrando reunidos os pressupostos da dispensa de pena, impõe-se a aplicação de pena, como consequência jurídica da prática do crime.
A determinação da medida da pena continua compreendida dentro da faculdade discricionária do juiz (Cavaleiro Ferreira, "Boletim dos Institutos de Criminologia", 64) após a subsunção dos factos aos preceitos penais e respeitando os pressupostos a que se refere o artigo 71.° do Código Penal.
E um dos princípios basilares do Direito Penal reside na compreensão de que toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.
A medida da pena não é pura matemática, antes uma operação complexa desenrolada em três fases:
- escolhem-se os fins das penas, pois só a partir deles se podem ajuizar os factos do caso concreto relevantes para a determinação da pena e a valoração que lhes deve ser dada (o n.° 1 indica a culpa do agente em primeiro lugar, mas no mesmo nível situa as exigências de prevenção), lembrando que agora dispõe o art. 40.°, n.° 1 sobre as finalidades da punição – protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade;
- fixam-se os factores que influem no doseamento da pena, as circunstâncias concorrentes no caso concreto que, em relação com os fins das penas, têm importância para a determinação do tipo e gravidade da pena (indicados, exemplificativamente, no n.° 2);
- tecem-se os considerandos que fundamentam a determinação efectuada (de acordo com o n.° 3).
É conhecida a severidade do ordenamento jurídico português contra os traficantes de produtos estupefacientes.
As exigências de prevenção geral, não é despiciendo salientá-lo, são elevadas, atenta a natureza do ilícito em causa, que, hodiernamente, dentro da panóplia de tipos legais de crimes, é seguramente dos que maior repulsa social concita em decorrência dos malefícios que potencia, sobejamente conhecidos e referidos pelo acórdão recorrido.
Igualmente são patentes as necessidades de prevenção especial.
Escreve-se num recente relatório elaborado pelas Nações Unidas: "...a luta contra o abuso de drogas é, antes de mais e sobretudo um combate contra a degradação e a destruição de seres humanos. A toxicomania priva ainda a sociedade do contributo que os consumidores de drogas poderiam trazer à comunidade de que fazem parte. O custo social e económico do abuso de drogas é, pois, exorbitante, em particular se se atentar nos crimes e violências que origina e erosão de valores que provoca".
O Acórdão do S.T.J. de 01.07.1993, Processo n.° 43022, expressa que o crime de tráfico de droga é "...um dos crimes mais repugnantes e flageladores da sociedade actual".
Sendo finalidades das penas, a protecção de bens e valores jurídicos e a reintegração do agente delituoso na sociedade (prevenção geral e prevenção especial, respectivamente), há que buscar um ajustado equilíbrio entre elas, equilíbrio esse que não inibe que, perante o caso concreto, uma dessas finalidades possa e deva prevalecer sobre a outra.
Ora, os bens e valores jurídicos protegidos e tutelados no e pelo art.° 21°, n.°.l, do DL n.°. 15/93 são indiscutivelmente muito valiosos – o que explica a severidade das sanções e a amplitude do horizonte típico – pelo que não podem ficar indefesos por via de uma eventual supremacia (ou prevalência) do escopo da ressocialização sobre o da sua eficaz salvaguarda: quando assim suceda ou seja, quando a prevenção especial deva ceder o lugar à prevenção geral, competirá ao arguido, na fase da execução penal, demonstrar que o desiderato reintegrador venha ou possa vir a ser assegurado.
No entanto, face às finalidades das penas, em caso algum pode a pena ultrapassar a medida da culpa (art. 40.° n.° 2 do C.Penal).
Relativamente à medida da pena, atente-se naquilo que a esse respeito se refere no Ac. do S.T.J. de 6/05/1998 in B.M.J. n°477, p.100:
"1 - Sendo a culpa, o juízo de censura dirigido ao agente pela conduta que livremente assumiu, na definição da medida da pena cumpre ter presente que não há pena sem culpa e que a medida da pena não pode ultrapassar a da culpa.
2 - As exigências da prevenção geral, considerada esta como prevenção positiva ou de integração, definem o limite mínimo da medida concreta da pena
3- A prevenção especial, no sentido positivo de reintegração do agente na sociedade determina afixação da medida concreta da pena num “quantum” situado entre o limite mínimo exigido pela prevenção geral e o máximo ainda adequado à culpa".
O arguido cometeu um crime de tráfico de estupefacientes, p.e p. pelo artigo 21° e 24°, al. c) do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela 1-A, anexa àquele diploma, correspondendo ao mesmo a moldura penal abstracta de 5 anos e 4 meses a 16 anos de prisão.
São elevadas as exigências de prevenção geral e especial, positivas e negativas.
Actuou com um grau de ilicitude muito elevado.
O grau de culpa é acentuado pois o arguido já cumpriu pena por crime de tráfico de estupefacientes, bem conhecendo os efeitos nefastos de tais substâncias na saúde de seres humanos.
Não podemos deixar de sublinhar a danosidade social do ilícito praticado pelo arguido, pois graves são as consequências do facto, no que se refere à saúde física e psíquica de todos aqueles que consomem heroína e os malefícios que causa igualmente às respectivas famílias e à própria comunidade.
O arguido não demonstrou qualquer arrependimento (vd. Ac STJ de 21-06-2007, proc.° 07P2042, Relator: Cons. SIMAS SANTOS, in www.dgsi.pt: "2 - Há arrependimento relevante quando o arguido mostre ter feito reflexão positiva sobre os factos ilícitos cometidos e propósito firme de, no futuro, infleclir na sua conduta anti-social, de modo a poder concluir-se pela probabilidade séria de não recair no crime. O arrependimento é um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite um juízo de confiança no comportamento futuro do agente por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não voltará a delinquir. Revela uma reinserção social, consumada ou prestes a consumar-se, pelo que as exigências de prevenção, na determinação da medida judicial da pena, são de diminuta relevância").
Partindo da factualidade apurada, à ausência de arrependimento, o elevado grau de ilicitude dos factos, a intensidade do dolo do agente, o grau de violação dos deveres impostos, as consequências relevantes da conduta do arguido, os antecedentes criminais, e sua situação pessoal e familiar (tem a 4.ª classe como habilitações, o apoio da mulher e filhos, e bom comportamento prisional) bem como as especiais exigências de prevenção geral e especial, nos termos dos art.°s 70.°, 71.° e 40.°, todos do Código Penal, afigura-se-nos equilibrada a pena de 10 (dez) anos de prisão a aplicar ao arguido, alterando-se assim a pena aplicada na l.ª Instância.”



C) RECURSO

I - MOTIVAÇÃO DO RECORRENTE

Apresentou as seguintes conclusões (transcrição):
«1 - O acórdão recorrido é nulo na parte em que tomou posição sobre a irregularidade da leitura do acórdão de 1ª Instância.
2 - E é nulo porquanto se limitou a afirmar a bondade do ocorrido sem justificar adequadamente.
3 - A nulidade tem sustentáculo nos artigos 374°, n° 2, 379° e 425°, n° 4, todos do CPP.
4 - O depoimento dos inspectores da PJ R... S..., M... S... B..., P... C..., V... A... e A... G..., no que diz respeito ao ocorrido em 22 de Setembro de 2000, sustentado no que eventualmente terá dito FF, é um depoimento indirecto, nessa parte, no que à factualidade objecto da prova concerne.
5 - Assim, tal depoimento, nessa parte, e engloba o cerne da acusação, a propriedade da viatura e todo o estupefaciente nela apreendido, não pode ser valorado, face ao disposto nos artigos 124°, 128°, 129°, n° 1, 356° e 357°, todos do CPP, que a decisão recorrida violou.
6 - Por isso, por mera cautela, vem, de novo, arguir a inconstitucionalidade (vide Ac. TC 213/94) da interpretação de tais normativos, no sentido com que foram efectivamente aplicados na 1ª Instância, e a que a 2ª Instância tentou fugir, isto é, no sentido de admitir que possa servir como meio de prova o depoimento que resultar do que se ouviu dizer a determinada pessoa, quando a inquirição dessa mesma pessoa não for possível, por ser co-arguido, que se recusou a depor, por ter essa qualidade e mesmo que as testemunhas sejam inspectores da PJ que com ela contactaram e a detiveram em flagrante delito, por violação do artigo 32°, n° 1 e 5 da CRP.
SEM PRESCINDIR
7 - A decisão recorrida balizou-se numa medida abstracta da pena de valores superiores aos legais.
8 - Efectivamente, devendo ponderar entre 5 e 15 anos, avaliou entre 5 anos e 4 meses e 16 anos.
9 - Para além disso, não ponderou objectivamente as características específicas constantes do n° 31 da matéria apurada. Aí ressalta, antes de mais, a sua limitadíssima preparação intelectual, o facto de não ter tido medidas de flexibilização no cumprimento da pena pela pendência de processos nos quais viria a ser absolvido e a estabilização social, pessoal e profissional e bem assim os facto de terem passado mais de 7 anos sobre os factos em apreço sem notícia de ter cometido quaisquer ilegalidades e ter demonstrado durante todos estes anos de reclusão bom comportamento.
10 - Assim, a pena concreta não deveria ser nunca superior a 6 anos de prisão.
11 - Ao ter entendido de outra forma, violou a decisão recorrida os artigos 21° e 24° do DL 15/93 e 71° do CP.»

Termina concluindo que deve ser revogado o acórdão recorrido.

II - RESPOSTA

Na resposta ao recurso interposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO junto da Relação de Lisboa pronuncia-se nos termos seguintes (transcrição):
«Abordemos muito sumariamente as três questões que constituem o objecto do recurso.
1ª - Nulidade por omissão de fundamentação na parte relativa à alegada irregularidade da leitura por súmula do acórdão da 1ª instância
Invocando o art. 374° n° 2, ex vi do art. 425° n° 4, ambos do CPP, o recorrente sustenta que a Relação não fundamentou o decidido na parte relativa ao alegado vício cometido na leitura por súmula da condenação da 1ª instância.
(…) O recorrente alegara que o sr. Juiz da 1ª instância tinha exercido de modo insuficiente e irregular a faculdade de fundamentação por súmula. O acórdão da Relação, ao pronunciar-se sobre essa matéria, disse não haver qualquer irregularidade porquanto a decisão era muito extensa (24 páginas) o que justificava perfeitamente o recurso à súmula. Eis, com toda a clareza, a fundamentação do decidido - a extensão do acórdão! É uma fundamentação que tem a rara virtude da concisão sem sacrifício mínimo da semântica relevante. E uma coisa é não fundamentar, outra, bem diferente, é omitir razões, impedindo que quem queira impugnar o possa fazer adequadamente. Não é o caso. O recorrente pode não concordar com o decidido, mas os motivos da decisão, esses foram-lhe explicados: o acórdão tinha 24 páginas. Portanto, nenhuma omissão houve, comprometedora do exercício do seu direito de impugnação.
2ª - Proibição do depoimento indirecto
Insiste o recorrente na tese de que o tribunal da 1ª instância considerou relevantes os depoimentos dos inspectores da PJ na parte em que relataram afirmações ouvidas à arguida Georgina no momento em que foi detida, o que violaria o art. 129° do CPP.
O acórdão recorrido analisa exaustivamente essa questão, caracterizando com todo o rigor e com válidos subsídios doutrinários e jurisprudenciais o conceito de depoimento indirecto. Seria despiciendo acrescentar o que quer que fosse a tal argumentação pelo que nos limitamos a dar-lhe inteira adesão, para ela remetendo. Sublinhamos apenas que, mesmo que dúvidas houvesse, a arguida foi chamada a depor e só não o fez porque, no uso de um direito inerente à sua qualidade processual, se recusou a falar, o que afasta a proibição prevista no art. 129° n° 1 do CPP.
3ª Medida da pena
A Relação baixou a pena de 11 anos para 10 anos de prisão. Considerando a natureza do crime e as funestíssimas consequências sociais a ele associadas, o grau de culpa do arguido, as exigências de prevenção geral e especial e todas as demais circunstâncias influentes na dosimetria da pena, de modo nenhum se pode considerar excessiva a década de reclusão que lhe foi imposta (o que é válido, mesmo que a moldura fosse a que o recorrente infundadamente pretende)».

Termina concluindo que o recurso não merece provimento.

Subidos os autos, o Exm.º Procurador - Geral Adjunto neste STJ apôs o seu visto.

Colhidos os vistos legais, procedeu-se a julgamento.



D) APRECIAÇÃO

a) Como se deduz das conclusões do recorrente, o seu recurso surge centrado na nulidade do acórdão recorrido, invocando a falta de fundamentação da decisão, na parte relativa à questão da leitura por súmula do acórdão da 1.ª instância;
b) Contesta, ainda, a valoração de prova que entende ser proibida, no que respeita ao depoimento prestado pelas testemunhas que identifica, na parte em que relataram o que ouviram dizer a testemunha que recusou depor em julgamento;
c) Insurge-se, finalmente, quanto à moldura da pena aplicável ao crime pelo qual foi condenado, que entende ser de 5 a 15 anos de prisão, bem como quanto à medida concreta da pena a aplicar, que sustenta não dever ser superior a 6 anos de prisão.

São estas, pois, as questões que cumpre tratar.

a) A invocada nulidade por omissão de pronúncia, arguida ao abrigo dos 374°, n° 2, 379° e 425°, n° 4, todos do C.P.P., assentaria, na visão do recorrente, no facto de se não ter justificado adequadamente a correcção da atitude do tribunal de 1ª instância, relativamente à opção de não ler o acórdão todo em audiência.
De acordo com o artº 372º nº 3 do C.P.P., “a sentença é lida publicamente pelo presidente ou por outro dos juízes. A leitura do relatório pode ser omitida. A leitura da fundamentação ou, se esta for muito extensa, de uma sua súmula, bem como do dispositivo, é obrigatória, sob pena de nulidade”.
A acta de fls. 10 161 refere que
Iniciada a diligência, pelas 09:30 horas, o Sr. Juiz Presidente procedeu à leitura do acórdão que antecede e ordenou o depósito do mesmo na secretaria, nos termos do disposto do artº 372º nº 5 do C.P.P.
Finda a leitura do acórdão o ilustre mandatário do arguido pediu a palavra e o Sr. Juiz perguntou-lhe se pretendia usar da palavra para interpor recurso do acórdão proferido.
O ilustre mandatário do arguido respondeu que não tinha nada que informar para que efeito tinha que usar da palavra e então o Sr. Juiz deu por encerrada a diligência.”
A versão apresentada pelo arguido, na motivação do recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa, não coincide inteiramente com o ali consignado, porque refere que “ o Sr, Juiz a quo disse publicamente que só dava a palavra para a interposição do recurso”. Seja como for, o arguido fez juntar aos autos o documento de fls. 10 163 onde explicita que pediu a palavra para arguir a irregularidade da falta de leitura do acórdão, e que, por uma segunda vez, voltou a pedir a palavra, o que justificou com o propósito de lavrar um protesto.
No recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente arguiu a nulidade do nº 3 do artº 372º do C.P.P., ou seja, da falta de leitura do acórdão nos termos impostos por lei. Era sobre este ponto que a Relação fora chamada a pronunciar-se, e fê-lo nos termos atrás transcritos. No fundo, e em síntese, achou que, a crer na versão apresentada pelo Exmº defensor do recorrente, “segundo os apontamentos que (…) recolheu logo na altura”, era perfeitamente aceitável que o Mmº Juiz Presidente do colectivo, que julgou o arguido, em primeira instância, tivesse tomado a opção que tomou. Nos termos do apontamento tomado, o Sr. Juiz disse que as razões da convicção do tribunal eram muito extensas e por isso optava por uma súmula. O tribunal da Relação concordou, porque aquela fundamentação se estendia por 24 páginas. E quanto ao que se refere na motivação que foi a dita súmula, a Relação não levantou objecções.
A questão que é agora sujeita à apreciação deste tribunal não é, manifestamente, a da correcção da decisão da Relação, neste particular. É a da insuficiência do acórdão recorrido por omissão, por não se ter pronunciado sobre questão sobre a qual se devia ter pronunciado. De acordo com o comando do artº 379º nº 1 al. c) do C.P.P., existe uma nulidade quando o tribunal “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
Ora, o tribunal da Relação pronunciou-se, de facto, sobre a questão que devia apreciar, que era a da nulidade do nº 3 do artº 372º do C.P.P.. Não se pronunciou com a extensão ou profundidade que o recorrente gostaria, mas pronunciou-se de modo suficiente.
Em vez de estar a ler 24 páginas da motivação, tinha-se optado, na 1ª instância, por ler uma súmula, e o acórdão recorrido achou bem.
Como a lei não diz quando é que a súmula nem sequer súmula é, por ser demasiado breve, devendo apurar-se caso a caso da sua suficiência, o acórdão recorrido aceitou como súmula, com conteúdo bastante, aquilo que o recorrente diz que foi a súmula.
O acórdão recorrido não padece de omissão de pronúncia neste particular, pelo que improcede nesta parte o recurso.

b) A segunda questão apresentada é a da valoração de prova reputada proibida.
Importa que nos situemos na factualidade que se deu por provada sob os pontos 8 a 15, reportada à entrega da viatura do arguido, de marca BMW 525 TDS, a FF, viatura que dispunha de um depósito disfarçado nas traseiras do banco de trás, do carregamento que ela fez, na viatura, de vários quilos de heroína, e o início da viagem, no decurso da qual a Georgina foi interceptada, apreendidos o veículo e o produto estupefaciente.
Recorde-se que no acórdão de 1ª instância, em sede de fundamentação da convicção dos julgadores, se disse a fls. 10 136:
“Importantes na formação da convicção do tribunal foram os depoimentos dos inspectores da P.J. (R... S..., M... S... B..., P... C..., V... A... e A... G...), que participaram no seguimento e detenção da FF.
No que agora interessa estas testemunhas relataram a reacção da FF quando foi detida, nos seguintes termos: disse, imediatamente, que o carro não era dela, mas sim de um cigano de nome “Zé”, da zona de Braga, e negou que transportava, ou que fosse do seu conhecimento que transportava, algo de ilícito; depois que encontraram a heroína no compartimento adaptado para o efeito, a FF disse que a droga era do dono do carro.”

E mais adiante centra o tema do seguinte modo:
A questão coloca-se em relação às declarações não formalizadas em auto prestadas perante um órgão de polícia criminal: é admissível e poderá ser valorado o depoimento de um agente da polícia que reproduz o que ouviu dizer à vítima de um crime ou a uma pessoa que depois vem a ser constituída arguida?
Nenhum dos referidos inspectores da P.J. interrogou, formalmente, a FF e por isso a questão está em saber se podem ser valorados os seus depoimentos na parte em que reproduziram o que ela lhes disse quando foi abordada e detida.”
Seguidamente, o acórdão de 1ª instância refere-se à doutrina e jurisprudência que versam o tema, inclusivamente do Tribunal Constitucional, para concluir que os depoimentos e questão deviam ser valorados. Passa em seguida a contemplar o que considerou “outros elementos de prova que, inequivocamente, revelam que o arguido AA se dedicava ao tráfico de droga”.
O acórdão recorrido adopta uma posição igual, ao reconhecer validade aos depoimentos em apreço, e louva-se sobretudo no Ac. deste S.T.J. de 29/12/2007, Pº 4203/07 , da 3ª Secção, que transcreve parcialmente.

De acordo com o art. 32º nº 5 da C.R.P., “O processo penal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”. A fim de ser dada eficácia real a este comando constitucional, os artº 355º, 356º, e 357º do C.P.P. consagraram uma disciplina que obriga a produzir ou examinar em audiência a prova, com as excepções que ali se assinalam. Corolário deste regime é a regra-base da proibição de leitura em audiência de autos e declarações prestadas em fases preliminares do processo. Ora, para que esta disciplina não fosse defraudada, é que se diz no artº 128º que a testemunha é interrogada “sobre factos de que possua conhecimento directo” e se proíbe, em princípio, o depoimento chamado indirecto, no artº 129º do C.P.P.. Não fora assim, perante a proibição de leitura de um determinado auto em audiência, bastaria chamar a depor a entidade que lavrou o auto, e pô-la a dizer o que nele se continha, ou seja, aquilo que a pessoa então ouvida lhe havia dito. Por isso é que, de acordo com uma importante corrente jurisprudencial, as limitações postas ao depoimento indirecto, no artº 129º do C.P.P., só têm razão de ser estando em causa depoimentos declarações ou interrogatórios que tenham sido reduzidos a auto e constem do processo.
De sublinhar, que o nº 1 do artº 129º referido, condiciona, desde logo, as restrições que estabelece, ao facto de “o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas”. Com a expressão “o depoimento resultar” não pode, senão, ter-se querido dizer, que o depoimento se analisa, tem por conteúdo e objecto, o que se ouviu dizer a pessoas determinadas.
Nesse caso, o juiz pode chamar a depor as pessoas cujo depoimento se relata. E das duas uma, ou se desinteressa do depoimento indirecto, nomeadamente em face da prova de que já dispõe, ou chama mesmo a depor as pessoas a quem se atribui determinado relato. Mas estas pessoas não têm sempre e em absoluto que ser ouvidas para que o depoimento indirecto tenha efeito. A morte, a anomalia psíquica daquelas pessoas, ou a impossibilidade de serem encontradas, faz com que se possa avançar, mesmo sem ter havido o desejado contraditório. O que leva a pensar que, na disciplina legal, é suficiente a tentativa de realização do contraditório, e não se exige a efectivação desse contraditório, para que o depoimento indirecto seja aproveitado. Daí que o Tribunal Constitucional, no seu Ac. 440/99, já tenha perfilhado a tese de que não há diferença substancial entre a situação de não se encontrar a pessoa que deveria depor, e a situação de se encontrar essa pessoa, e ela se recusar a depor, beneficiando de certo estatuto processual.
Seja como for, importa sublinhar que se está, no caso em apreço, perante uma factualidade analisada numa operação policial, que teve lugar no decurso das investigações, de seguimento, intercepção de uma arguida, apreensão de droga e da viatura modificada onde ela era transportada, bem como da detenção da condutora. Detenção da condutora em flagrante delito, ou seja, quando o crime estava a ser praticado.
Os agentes policiais que protagonizaram essa operação depuseram em audiência, dando conta do seu desenrolar, e incluíram no seu relato, como era natural, aquilo que foi a reacção da FF ao que lhe estava a acontecer. Segundo o acórdão recorrido, “estas testemunhas relataram a reacção da FF quando foi detida”.
Vê-se assim que, neste particular, não estamos perante depoimentos dos elementos da P.J. que versam sobre outro depoimento, ou perante depoimentos que têm por objecto o que outra pessoa disse. Estamos perante depoimentos, que relatam directamente factos, a que as testemunhas que os produzem assistiram, a saber, uma perseguição, intercepção, apreensão e detenção, no momento em que o crime estava a ser cometido, e em que, muito naturalmente, estão incluídas as reacções verbais da pessoa que estava ser alvo da operação policial. Não tem, pois, cabimento, chamar aqui à colação a problemática das limitações, postas pela lei, ao depoimento das chamadas “testemunhas de ouvir dizer”.
Termos em que, também neste ponto, improcede o recurso interposto.

c) Por último, interessa ver a medida da pena aplicada.
Não oferece qualquer contestação que o arguido praticou o crime do artº 21º nº 1 e artº 24 al. c), do DL 15/93, de 22 de Janeiro, pelo que, tem razão o recorrente, quando alega que a pena a aplicar se há-de encontrar numa moldura de 5 a 15 anos de prisão.
Temos seguido o ensinamento de Figueiredo Dias, no sentido e ser possível a sindicância da determinação da medida da pena, como matéria de direito que é, “quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada” (in “Direito penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 197).
O artº 71º do C. P. vem-nos dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, com o que teremos que ter em mente o disposto no artº 40º do C.P., que assinala a toda a pena, como finalidades, a defesa de bens jurídicos e a reinserção social do arguido.

Daí que a doutrina venha a defender, ainda pela mão de Figueiredo Dias, (Cfr. ob. cit. pags. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente naquela tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na referida reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cf. idem pág. 229).

Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir.

O nº 2 do artº 71º do C. P. manda atender , na determinação concreta da pena, “ a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”.

Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime.

Voltando agora ao caso concreto, importa desde logo atentar nas prementes necessidades de prevenção geral, que atiram o limite inferior da sub-moldura com que temos que lidar, no caso, para uma medida elevada. Recuperam-se aqui as considerações feitas tanto no acórdão de 1ª instância, como no recorrido, sobre os malefícios do tipo de estupefaciente em jogo. Retira-se da decisão do colectivo de Loures a passagem segundo a qual, “O caso que se julga situa-se numa zona intermédia do circuito de comércio e distribuição de estupefacientes, em que não há, ainda, contacto com os consumidores.
Não há aqui pequeno ou médio tráfico.
É fácil imaginar quão danosas para a saúde pública seriam as consequências da distribuição, pelos consumidores, dos cerca dos 13 quilos de heroína apreendidos.”
Quanto às necessidades de prevenção especial, estamos perante um indivíduo de 47 anos de idade, com passado criminal na área do tráfico de droga (ponto 28 da matéria de facto provada), que se evadiu da cadeia quando cumpria pena por tráfico, foi para Espanha e daí passou a exercer o mesmo tipo de actividade (pontos 1, 2, 3 e 4 dos facto provados). Importantes, pois, também, as necessidades de prevenção especial.
A ilicitude é forte, e a culpa, também pela personalidade, elevada.
Não militam circunstâncias atenuativas relevantes.
Por todo o exposto, e tendo em conta a moldura penal de 5 a 15 anos de prisão, pelo crime imputado, considera-se ajustada a pena de nove anos e seis meses de prisão.



D – DECISÃO

Termos em que se decide, neste Supremo Tribunal de Justiça, conceder parcial provimento ao recurso, e assim reduzir a pena aplicada ao recorrente para nove anos e seis meses de prisão, em tudo o mais se mantendo o já decidido.



Taxa de justiça: 10 U.C.


Lisboa, 13 de Novembro de 2008

Souto de Moura (Relator)
Soares Ramos