Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
353/14.3T8AMT-E.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: CONSUMIDOR
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
DIREITO DE RETENÇÃO
BEM IMÓVEL
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
INSOLVÊNCIA
VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 10/31/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DE OBRIGAÇÃO / ANTECIPAÇÃO DO CUMPRIMENTO, SINAL / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO.
Doutrina:
-Jorge Miranda e Rui Medeiro, Constituição Portuguesa Anotada, 125;
-Pestana de Vasconcelos, Cadernos de Direito Privado, n.º 33, 8.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 442.º, N.ºS 2 E 3, 755.º, N.º 1, ALÍNEA F) E 759.º, N.º 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 13.º.
D.L. N.º 24/2014, DE 14-2 (QUE TRANSPÔS A DIRECTIVA 2011/83/EU DO PARLAMENTO E DO CONSELHO).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 19-05-2004, PROCESSO N.º 356/04;
- DE 23-06-2004, PROCESSO N.º 466/04;
- DE 20-03-2014, PROCESSO N.º 4/2004, ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA;
- DE 29-05-2014, PROCESSO N.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-02-2016, PROCESSO N.º 135/12.7TBMSF.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 05-07-2016, PROCESSO N.º 1129/11.5TBCVL-C.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-07-2016, PROCESSO N.º 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-02-2017, PROCESSO N.º 427/12.5TBFAF-F.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-07-2017, PROCESSO N.º 1594/14.9TJVNF.2.G1.S2, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:


- DE 19-05-2004, PROCESSO N.º 606/2003.
Sumário :
I - Consagrando o direito de retenção ao promitente-comprador de prédio urbano ou de fracção autónoma, mediante os DL n.º 238/80, de 18-07, e DL n.º 379/86, de 11-11, teve o legislador a intenção de proteger um particular credor, o consumidor, ou seja, o promitente-comprador que é a parte mais débil, mais vulnerável, na relação contratual.

II - O segmento uniformizador do AUJ n.º 4/2014 não incluiu o conceito de consumidor, pelo que cabe aos tribunais trabalhar esse conceito casuisticamente, a partir da indispensável componente factual, por não ser esta uma questão estritamente jurídica.

III - Qualquer que seja a amplitude com que se aprecie a figura do consumidor, esta nunca poderá abarcar as situações em que uma entidade compra ou promete comprar imóveis para o mercado imobiliário de arrendamento ou de revenda, porque isso equivaleria, na prática, colocar o legislador no ponto de partida, em 1980.

IV - Não estando em causa situações iguais, a diferenciação de tratamento, ali introduzida pelo legislador, não contende com o princípio da igualdade ínsito no art. 13.º da CRP.

V - O TC tem afirmado a não inconstitucionalidade – face aos princípios da confiança e da segurança jurídica – da opção legislativa que conferiu o direito de retenção ao promitente-comprador consumidor, uma vez que a prevalência de uma garantia oculta, como o direito de retenção, sobre uma garantia real registada, como a hipoteca voluntária, encontra justificação na tutela dos direitos dos particulares, protegendo-os dos específicos interesses económicos.

VI - Afirmando-se os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica em nome de um mínimo de previsibilidade em relação aos actos de poder, será difícil, mesmo impossível, divisar a violação desses princípios quando se sabe que as normas dos arts. 442.º, n.º 2, e 755.º, al. f), ambos do CC, já vigoram desde 1986.

Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 353/14.3T8AMT-E.P1.S1

REL. 6[1]

*

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I.          RELATÓRIO

“AA, S.A.”, intentou acção de verificação ulterior de créditos, ao abrigo do disposto no artigo 146º, nº 1, do CIRE, contra a “Massa Insolvente de BB - Produtos Farmacêuticos, S.A., os Credores da Massa Insolvente e BB - Produtos Farmacêuticos, S.A.”, pedindo o reconhecimento e graduação dos seus créditos, no valor de 1.864.226,08 €.

Alega, para o efeito, que:

- A Insolvente “BB - Produtos Farmacêuticos, S.A.”, era credora da “Massa Insolvente de CC - Indústria de Produtos de Saúde, Lda.”, por força da resolução dos contratos-promessa de compra e venda e aditamentos a favor desta, que incidem sobre os seguintes imóveis: a) Prédio urbano sito na Avenida ..., nº 000, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do registo Predial de ... sob o nº 0050; b) Prédio urbano sito na Avenida ..., nº 001, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 0051;

- “A Massa Insolvente de CC - Indústria de Produtos de Saúde, Lda.”, representada pela sua Administradora de Insolvência, Dra. DD, por falta de liquidez, fixou o preço e cedeu a sua posição, com o consentimento da Insolvente, à actual credora reclamante, por meio de acordo de cessão de posição contratual celebrado entre as partes, em 19 de Dezembro de 2013, passando a ora credora/reclamante a ser titular exclusiva de todos os direitos e obrigações resultantes dos contratos identificados;

- Por conseguinte, em 12 de Janeiro de 2014, entre a insolvente e a credora foi celebrado um aditamento aos contratos-promessa referentes aos imóveis, pelo qual pretendiam antecipar a realização da outorga da escritura de compra e venda;

- O preço global tinha sido fixado em 1.800.000,00 €;

- Ficou convencionado que a realização da escritura prevista em contrato-promessa a ser outorgada até 30 de Junho de 2019, passaria a ser antecipada até 31 de Dezembro de 2014, beneficiando, assim, de uma redução de preço pelo montante de 600.000,00 €;

- Encontram-se quitados os seguintes montantes: a) O valor de 662.113,04 €, a título de sinal e reforços de sinais, com início em 27.05.2009 até 13.06.2012; b) A quantia de 270.000,00 €, como reforço de sinal quitado no acordo de cessão da posição contratual celebrado em 19.12.2013, totalizando o total já quitado de 932.113,04 €;

- O remanescente do preço total, ou seja, 267.886,96 €, seria pago no acto de outorga das escrituras;

- Tendo sido acordada a celebração da escritura de compra e venda até final de Dezembro de 2014, a mesma não foi realizada pelo facto de a credora ter tido conhecimento da situação de insolvência da “BB – Produtos Farmacêuticos, S.A.”, decretada e publicada em 11.11.2014;

- A perda de interesse por parte da credora, em consequência da mora da insolvente e o não cumprimento da obrigação desta última no prazo acordado, e mesmo naquele prazo que o credor lhe concedeu, levam a concluir por definitivamente incumprido o contrato-promessa e conferem ao credor o direito à resolução deste;

- No acto de assinatura do acordo de cessão da posição contratual de 19.12.2013, a credora adquiriu todos os direitos e obrigações, nomeadamente a posse dos referidos imóveis.

A credora “BANCO EE, S.A.”, contestou, alegando que os contratos-promessa são nulos, por inobservância da forma e das formalidades legalmente exigidas, pois que nenhum deles foi sujeito a reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes por entidade competente, nem foi certificada a existência de licença de utilização ou de construção dos imóveis. Por outro lado, a Autora não goza do direito de retenção sobre os imóveis em causa, pois, é uma sociedade anónima, cujo objecto social se prende com actividades do ramo imobiliário.

A Autora respondeu, concluindo pela improcedência das excepções invocadas pela credora.

Após julgamento, a 1ª instância, na parcial procedência da acção:

a) Reconheceu à Autora o direito de receber da Massa Insolvente a quantia de 1.324.226,08 €, a título de sinal, acrescida de juros de mora, desde a decisão até integral pagamento;

b) Julgou verificado o direito de retenção invocado pela autora referente aos seguintes imóveis: Prédio urbano sito na Avenida ..., nº 000, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do registo Predial de ... sob o nº 0050; b) Prédio urbano sito na Avenida ..., nº 001, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 0051.

O “BANCO FF, S.A.”, recorreu dessa decisão para o Tribunal da Relação do … que, julgando procedente a apelação, revogou a sentença da 1ª instância.

Desse acórdão vem agora interposta revista pela Autora “AA, S.A.”, em que formula as seguintes conclusões:

I. O douto acórdão da Relação preteriu o direito de retenção da recorrente, em contraponto com o decidido na sentença da 1ª instância.

Para o efeito,

II. Acolheu fielmente a jurisprudência firmada no AUJ 4/2014, descurando tudo o mais que sobre a matéria deveria ter sido levado em consideração.

Assim,

III. Deu prevalência ao conceito de ‘promitente-comprador consumidor’ quando nada na lei aponta nesse sentido.

Na verdade,

IV. Fazendo apelo aos decretos-leis que surgiram no nosso ordenamento jurídico (236/80, de 18 de Julho, e 378/86, de 11 de Novembro), em ambos os diplomas surge qualquer referência, por mínima que seja, à qualidade de ‘promitente-comprador consumidor’.

Bem pelo contrário,

V. No preâmbulo do diploma de 86, o legislador refere de forma inequívoca que ‘nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se confine a tão estreitos limites’.

E que limites seriam esses?

VI. Sem qualquer dúvida, restringir o direito de retenção tão só ao promitente-comprador consumidor, visto este numa perspectiva redutora, de promitente adquirente de uma fracção habitacional.

VII. Não levou em consideração os institutos sobre a temática do contrato-promessa, bem como do direito de retenção, consagrados no nosso ordenamento jurídico.

VIII. Como corolário, fez tábua rasa sobre o princípio consagrado de que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, mesmo que esta tenha sido anteriormente constituída,

IX .Convocou a Lei de Defesa do Consumidor para justificar o conceito de promitente-comprador consumidor, quando, pela própria filosofia inerente ao próprio diploma, este enquadramento se encontra totalmente despido de um critério minimamente rigoroso.

Por outro lado,

X. Ao fazer apelo à sobredita lei, vem criar uma cisão fatal entre esta e a Directiva Comunitária 2011/83/EU, de 25 de Outubro, já que esta última excluiu desde logo - n.º 3, al. e) do art. 3º - qualquer subsunção em que as partes se movam em sede de criação, aquisição ou transferência de direitos sobre imóveis.

XI. E o seu artigo 4º refere: “Os Estados-Membros não devem manter ou introduzir na sua legislação nacional disposições divergentes das previstas na presente directiva, nomeadamente disposições mais ou menos estritas, que tenham por objectivo garantir um nível diferente de protecção dos consumidores, salvo disposição em contrário na presente directiva”.

XII. Ora foi exactamente aquilo que não foi feito no douto acórdão recorrido. Isto é,

XIII. A interpretação dada, ao convocar a LDC, foi-o no sentido do conceito de promitente-comprador ser aplicado tão só ao consumidor, quando tal interpretação viola frontalmente a disposição aqui avocada.

XIV. Deriva daqui, desde logo, uma contradição interpretativa que não tem justificação, em virtude da LDC não ancorar em si mesma um conceito que se aproxime daquele outro defendido no douto acórdão.

Mais,

XV. Só se entende o convocar da Lei do Consumidor, porque o douto acórdão viu-se, à míngua de outro tipo argumentativo, justificar uma posição que, salvo melhor e douta opinião, não tem consistência.

XVI. Mesmo admitindo que o douto acórdão mais não fez do que aplicar ‘tout court’ o AUJ 4/2014, não levou em consideração a posição dominante na nossa doutrina sobre a matéria em causa, nomeadamente no que concerne à traditio e concomitante direito de retenção.

XVI-A[2].Ao admitir, ab initio, a existência no nosso ordenamento jurídico de dois tipos de promitentes compradores, valorizando um, em detrimento do outro, o douto acórdão vem violar o princípio da igualdade e confiança, traves mestras do nosso sistema constitucional.

XVII.   Como decorrência dessa separação nítida, o douto acórdão não levou em consideração o tráfego jurídico-comercial existente, precludindo, desde logo, a possibilidade dos demais ‘promitentes compradores expurgados do conceito de consumidores’ poderem fazer face aos mecanismos existentes no nosso ordenamento jurídico, especialmente as matérias vertidas nos arts. 410º e ss. e 442º, conjugadas do CC, poderem aqueles alcandorarem-se a foros de cidadania, em virtude daqueloutros, inseridos num verdadeiro gueto semântico, do ‘instituto do consumidor promitente comprador coitadinho’, terem à sua disposição meios que os tornem ‘diferentes dos demais’, quando o seu (deles) tempo, há muito que se esgotou.

XVIII.  Em resumo:

a) O douto acórdão não teve em atenção o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 378/86, no sentido de aí estar devidamente expresso que: ‘nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se confine a tão estreitos limites’, querendo referir-se ‘estreitos limites’ à condição de promitente-comprador tão só de fracção habitacional para seu uso. Ora, a interpretação dada pelo douto acórdão recorrido ultrapassa em muito e sem qualquer motivo de ordem dogmática ou outra a orientação contida no sobredito preâmbulo.

b) Violou o consignado na alínea f) do n.º 1 do art. 755º, conjugado com o n.º 2 do art. 442º, e ainda, tendo em vista o n.º 2 do art. 759º, todos do Código Civil, da mesma forma, violou o art. 3º, n.º 3, da Directiva 2011/83/EU, de 25 de Outubro.

Sem prejuízo,

c) De não ter levado em consideração a doutrina dominante sobre a matéria, nomeadamente defendida, entre outros, por Menezes Cordeiro, Gravato de Morais, João Calvão da Silva, que defendem, sem margem para dúvidas, que no caso de contrato-promessa de compra e venda, com tradição do bem objecto do contrato prometido, o promitente comprador, independentemente da sua qualidade e do destino a dar ao bem prometido transmitir em sede de contrato final, em caso de ter havido prestação de sinal, pode aquele reter o bem, em caso de incumprimento do promitente vendedor.

d) Seja-nos ainda permitido acrescentar, por último, que a decisão da Relação atribui um valor imerecido ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, porquanto o mesmo apenas uniformiza que o consumidor promitente-comprador goza de direito de retenção, não uniformizando, por um lado, o conceito de consumidor, e, por outro, que todas as situações em que o promitente-comprador não é consumidor não goza de direito de retenção.

e) Motivo pelo qual a decisão da Relação é falaciosa, uma vez que se limita a uma aplicação a contrario da jurisprudência fixada, negligenciado o disposto legal, que aponta para sentido diverso.

Finalmente e, como decorrência do supra aduzido, dir-se-á ainda que a douta decisão recorrida fere princípios constitucionais, nomeadamente o da igualdade, consignado no art. 13º da CRP, e ainda o princípio da confiança – art. 2º da CRP – e ainda da segurança jurídica.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

*

As questões que cumpre apreciar são.

a) A Autora, por força dos contratos-promessas identificados, goza do direito de retenção e, por conseguinte, tem direito a ser paga com preferência sobre os demais credores?

b) Ao não decidir desse modo, o acórdão recorrido violou os princípios constitucionais da igualdade, da confiança e da segurança jurídica?

*


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Vêm provados os seguintes factos:

1. No Processo nº 353/14.3T8AMT, foi decretada a insolvência de “BB - Produtos Farmacêuticos, S.A.”, por sentença proferida e publicada em 11 de Novembro de 2014.

2. A Insolvente, era credora da “Massa Insolvente de CC - Indústria de Produtos de Saúde, Lda.”, pessoa colectiva nº 000 000 015, no âmbito do Processo nº 263/12.9TYVNG, por força da resolução dos contratos-promessa de compra e venda e aditamentos a favor da Massa Insolvente CC, que incidem sobre os seguintes imóveis: Prédio urbano sito na Avenida ..., nº 005, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 0050, da dita freguesia; Prédio urbano sito na Avenida ..., nº 001, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 0051, da dita freguesia.

 3. “A Massa Insolvente de CC - Industria de Produtos de Saúde, Lda.”, pessoa colectiva nº 000 000 015, representada pela sua Administradora de Insolvência Dra. DD, por falta de liquidez, fixou o preço e cedeu a sua posição com o consentimento da Insolvente, à actual credora/reclamante, pelo meio de acordo de cessão de posição contratual celebrado entre as partes em 19 de Dezembro de 2013, passando a ora credora aqui reclamante, a ser titular exclusiva de todos os direitos e obrigações resultantes dos contratos identificados.

 

4. Assim, foi celebrado entre a ora Insolvente e a Credora, em 12 de Janeiro de 2014, um aditamento aos contratos-promessa de compra e venda referente aos imóveis identificados no ponto 2. destes factos provados, pelo que pretendiam antecipar a realização da outorga de escritura de compra e venda.

5. O preço global tinha sido fixado, conforme referenciado no ponto 2. destes factos provados, pela aquisição dos dois imóveis supra identificados pelo preço global de 1.800.000,00 €.

6. Ficou convencionado que a realização da escritura prevista em contrato-promessa, a ser outorgada até 30 de Junho de 2019 passaria a ser antecipada até a data de 31 de Dezembro de 2014, beneficiando assim de uma redução de preço pelo montante de 600.000,00 €.

7. Encontram-se quitados os seguintes montantes:

a) O valor de 662.113,04 €, a título de sinal e reforços de sinais, com início em 27 de Maio de 2009 até 13 de Junho de 2012;

b) A quantia de 270.000,00 €, como reforço de sinal quitado no acordo de cessão de posição contratual celebrado em 19 de Dezembro de 2013.

8. O remanescente do preço total, ou seja, 267.886,96 €, seria pago no acto de outorga das escrituras públicas de compra e venda, tendo sido acordado entre as partes como data limite para a celebração da escritura de compra e venda até final de Dezembro de 2014.

9. Tal escritura não foi realizada, pelo facto de a Credora ter tido conhecimento da situação de insolvência da sociedade BB - Produtos Farmacêuticos S.A., decretada e publicada em 11 de Novembro de 2014, tendo a Insolvente entrado em incumprimento contratual.

10. Estes factos são do conhecimento público e estão reflectidos e comprovados na contabilidade da Insolvente, tendo o Sr. Administrador da Massa Insolvente BB - Produtos Farmacêuticos S.A., acesso à respectiva contabilidade.

11. No acto de assinatura de acordo de cessão de posição contratual de 19 de Dezembro de 2013, a credora adquiriu todos os direitos e obrigações, nomeadamente, entregue a posse dos referidos imóveis à credora, sendo entregue as chaves, como se sua proprietária fosse, por parte da Insolvente, para que o use como tal e sendo da sua responsabilidade o pagamento de água, luz e outros inerentes ao uso e fruição do identificado imóvel.

12. Desde então, a credora vem actuando como se fosse a proprietária das aludidas fracções, o que vem fazendo de forma pública e sem qualquer oposição desde aquela data.

13. A CC, Lda., foi alvo de liquidação oficiosa de IMT pela autoridade tributária, na sequência de transferência - para esta - da posse de tais imóveis em simultâneo com a celebração dos mesmos.

14. Posteriormente, foi a CC, Lda., declarada insolvente, tendo tais contratos sido apreendidos para a Massa Insolvente da mesma pela AJ, Dra. DD, no decurso do respectivo processo judicial de Insolvência.

15. Na data da cessão de posição contratual celebrada em 19 de Dezembro de 2013, foram entregues à autora as chaves dos imóveis em apreço pela Sra. AJ da Massa Insolvente da CC, Dra. DD, no estrito exercício das suas competências processuais e legais.

16. Actuando a credora, desde então, como se fosse a proprietária dos imóveis, pagando todos os custos inerentes ao uso e fruição dos mesmos, fazendo-o de uma forma pública, continuada e sem oposição de quem quer que fosse.

O DIREITO

a)
O acórdão recorrido teve como pano de fundo o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2004, de 20.03.2014, no qual se uniformizou a seguinte orientação jurisprudencial: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.

O direito de retenção ao promitente-comprador de prédio urbano ou de fracção autónoma, com tradição da coisa, foi consagrado no DL 238/80, de 18 de Julho, que o inseriu no n.º 3 do artigo 442º do CC.

O DL 379/86, de 11 de Novembro, alterou o DL 236/80, mantendo esse direito de retenção, mas deslocando-o para o lugar próprio, ou seja, para a norma do Código Civil que descreve os casos em que se reconhece o direito de retenção. Ficou, então, a constar da alínea f) do artigo 755º, preceito onde se prescreve que goza do direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442º”.
A intenção do legislador nesses dois diplomas foi a de tutelar o promitente-comprador nos contratos-promessa sinalizados em que tivesse havido tradição da coisa, por forma a evitar o prejuízo que poderia decorrer da prevalência do crédito hipotecário sobre o seu crédito.
Decorre dos preâmbulos dos referidos Decretos-Leis que essa protecção é dirigida a um particular credor: o consumidor, ou seja, o promitente-comprador, que é a mais parte mais débil, mais vulnerável, na relação contratual[3].
A necessidade da manutenção do direito de retenção a favor do promitente-comprador vem assim justificada no preâmbulo do DL 379/86:

“Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida de que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança.

O problema só levanta particulares motivos do reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos.

Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras”.

É daqui, da verdadeira razão de ser da consagração do direito de retenção a favor do promitente-comprador colocado nessa particular condição, que surge a discussão sobre o que deve entender-se por consumidor para efeitos da atribuição desse direito.

Como tem sido profusamente afirmado em várias decisões deste Tribunal, o segmento uniformizador do AUJ 4/2014[4] não incluiu o conceito de consumidor. Cabe, por isso, aos tribunais trabalhar esse conceito casuisticamente, a partir da indispensável componente factual, uma vez que não se trata de uma questão estritamente jurídica.
O artigo 2º, n.º 1, considera consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios. Por sua vez, o DL 24/2014, de 14 de Fevereiro, que transpôs para o nosso ordenamento jurídico a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho[5], define como consumidor a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional – artigo 3º, alínea c).

Na fundamentação do acórdão uniformizador, tirado no domínio do direito insolvencial (como é, também, o caso dos autos) o conceito de consumidor corresponde à visão mais restrita, constante da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que é, também, a do DL 24/2014.

No entanto, há vários acórdãos do STJ que têm perfilhado visões mais amplas do conceito de consumidor, como nos dá conta, em importante e útil resenha, o acórdão de 16.02.2016[6]. Deles se destaca, o acórdão de 29.05.2014[7], no qual se adoptou uma concepção mais ampla de consumidor. Aí se decidiu que deve ser considerado consumidor o promitente-comprador que, na fracção prometida comprar, tem um estabelecimento de venda ao público de artigos para o lar, que explora através duma sua sociedade com sede na mesma fracção.

Posteriormente, foram proferidos outros acórdãos no STJ em que a amplitude do conceito de consumidor tem variado, consoante as cambiantes factuais de cada caso, nomeadamente no que concerne à finalidade de uso do imóvel, que funciona como elemento teleológico do conceito[8].

Tem sido ponderada a possibilidade de estender o conceito de consumidor ao profissional que adquire um bem para uso profissional, sendo o bem é alheio à sua área de actuação, à sua especialidade, mas mostrando-se necessário para satisfazer as necessidades da sua actividade profissional, apresentando-se, portanto, como um consumidor normal.

Qualquer que seja a amplitude com que se aprecie a figura do consumidor, ela nunca poderá abarcar as situações em que uma entidade compra ou promete comprar imóveis para o mercado imobiliário de arrendamento ou de revenda, porque isso equivaleria, na prática, a colocar o legislador no ponto de partida, em 1980.

Ora, como a própria denominação social indica, a credora, aqui recorrente, AA, S.A. – dedica-se a negócios no ramo imobiliário. Conforme se refere no acórdão recorrido, a credora celebrou, em 28.02.2014, um contrato de arrendamento, para fins não habitacionais, com opção de compra, com a sociedade GG – Produtos Médicos e Farmacêuticos, S.A., tendo por objecto os prédios urbanos referidos em 2., sitos na Avenida da ..., nº 005, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 00050, e o sito na mesma Rua com o nº de polícia 001, descrito Conservatória do Registo Predial sob o nº 00051 – cfr. ponto 10. da motivação de facto e documento de fls. 172 a 175.

Por isso, nunca poderia a credora ser considerada consumidora para efeitos de beneficiar do direito de retenção previsto na alínea f) do artigo 755º do CC.

b)

Quanto à suposta violação de princípios constitucionais, cabe dizer o seguinte:

           

O princípio da igualdade, ínsito no artigo 13º da CRP, “não funciona por forma geral e abstracta, mas perante situações ou termos de comparação que devem reputar-se concretamente iguais”[9].

Não se viola esse princípio quando o legislador procede a diferenciações de tratamento, desde que trate de forma igual o que é igual, e de forma desigual o que é desigual, sem diferenciações subjectivas e com absoluta igualdade formal.

As normas de direito atacadas de inconstitucionalidade material não tratam de forma desigual situações formalmente iguais e, por conseguinte, não procede a argumentação da recorrente nesta parte.

No que tange aos princípios da confiança e da segurança jurídica, o Tribunal Constitucional tem afirmado a não inconstitucionalidade da opção legislativa que conferiu o direito de retenção ao promitente-comprador consumidor, como resulta, designadamente, dos Acórdãos nº 356/04, de 19.05.2004, e nº 466/04, de 23.06.2004, uma vez que a prevalência de uma garantia oculta, como o direito de retenção, sobre uma garantia real registada, como a hipoteca voluntária, encontra justificação na tutela dos direitos dos particulares. Tem-se entendido que as entidades cujo crédito está garantido por hipoteca voluntária têm outros instrumentos de tutela da sua posição, o que não ocorre com o promitente-comprador, a parte mais fraca do contrato e com menos acesso à informação. Conforme se refere no AUJ n.º 4/2014, a opção legislativa – à semelhança de outras – evidencia claramente uma ponderação de interesses em atenção à parte mais fraca no âmbito da relação contratual, o que implica necessariamente compressão de alguns direitos com vista à busca de uma solução mais equitativa.

Deste modo, como se assinala no acórdão do Tribunal Constitucional no processo n.º 606/2003, de 19.05.2004, a contenção dos princípios da confiança e da segurança jurídica associados ao registo predial, que resulta da atribuição de preferência ao direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente, tem a sua justificação na prevalência para o legislador do direito dos consumidores à protecção dos seus específicos interesses económicos.

De resto, afirmando-se os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica em nome de um mínimo de previsibilidade em relação aos actos de poder, de modo a que cada pessoa possa ver garantida a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos actos que pratica, será difícil, ou mesmo impossível, divisar a violação desses princípios quando se sabe que as normas dos artigos 442º, n.º 2, do CC e 755º, alínea f), já vigoram desde 1986.

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III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.

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Custas pela recorrente.

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LISBOA, 31 de Outubro de 2017


Henrique Araújo – Relator

Salreta Pereira

João Camilo

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[1] Relator:      Henrique Araújo
  Adjuntos:   Salreta Pereira
João Camilo
[2] Como existe repetição da numeração quanto à conclusão XVI, optou-se por acrescentar a letra A à segunda.
[3] Pestana de Vasconcelos, “Cadernos de Direito Privado”, n.º 33, página 8.
[4] Apesar de não serem vinculativos, de não terem força obrigatória geral, os acórdãos uniformizadores de jurisprudência criam um precedente qualificado de carácter persuasivo, a desconsiderar apenas quando existam em fortes razões ou circunstâncias que justifiquem desvios de interpretação das normas jurídicas em causa.
[5] Salvo o devido respeito, o recorrente, nas conclusão X e XI, labora em erro, uma vez que a Directiva, no artigo 3º, n.º 3, alínea e) apenas diz que a mesma não se aplica aos contratos relativos à criação, à aquisição ou à transferência  de bens imóveis ou de direitos sobre imóveis, sendo certo que o ordenamento jurídico português acolheu no artigo 3º, alínea c), da Lei 24/2014, como lhe competia, a noção de consumidor expressa no artigo 2º dessa mesma Directiva.
[6] No processo n.º 135/12.7TBMSF.G1.S1 (Maria Clara Sottomayor), em www.dgsi.pt
[7] No processo n.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1 (João Bernardo), em www.dgsi.pt.
[8] Cfr., por exemplo, os acórdãos de 05.07.2016, no processo n.º 1129/11.5TBCVL-C.C1.S1 (Ana Paula Boularot), de 29.07.2016, no processo n.º 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1 (Júlio Gomes), de 14.02.2017, no processo n.º 427/12.5TBFAF-F.G1.S1 (João Camilo), e de 13.07.2017, no processo n.º 1594/14.9TJVNF.2.G1.S2 (Pinto de Almeida), todos em www.dgsi.pt.
[9] Jorge Miranda e Rui Medeiro, “Constituição Portuguesa Anotada”, página 125.