Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3796
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: CONTESTAÇÃO
DEFESA POR IMPUGNAÇÃO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
CONTRATO DE EMPREITADA
DONO DA OBRA
DESISTÊNCIA
PREÇO
Nº do Documento: SJ200611290037961
Data do Acordão: 11/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Defendendo-se os RR por pura impugnação, não chamando à colação a excepção de não cumprimento, e não o tendo feito na sede própria, que é a contestação, não podem agora invocá-la na fase de recurso, nem o Tribunal pode conhecer oficiosamente da excepção quando ela não foi arguida nos articulados de defesa.

II - No contrato de empreitada, a desistência da obra pode resultar tacitamente de determinados comportamentos do dono da obra, implicando a consequente obrigação de pagar o preço do trabalho efectuado (art. 1229.º do CC).

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Relatório


No Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia.
Empresa-A, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra AA e esposa, BB, pedindo a condenação dos R.R. a pagar-lhe a quantia de 2.464.633$00 +juros desde 31/10/95, correspondente ao preço (e despesas bancárias) de materiais e serviços prestados aos RR.

Contestaram os RR., impugnando parcialmente a factualidade invocada pela A. e deduzindo reconvenção, pedindo a condenação da A. a pagar-lhe a quantia de 1.500.000$00, sendo 1.000.000$00 correspondente ao valor de trabalhos já pagos mas não executados pela A. e 500.000$00 de indemnização correspondente ao valor que os RR. terão de gastar para a reparação de serviços mal efectuados pela A.

Replicou a A.

Elaborou-se despacho saneador, fixaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento e, lida a decisão sobre a matéria de facto foi proferida sentença final que julgou improcedente a acção bem como a reconvenção.

Apenas recorreu a A., recurso que foi admitido como de apelação.

Conhecendo do recurso, a Relação deu-lhe integral provimento e, consequentemente, revogou a sentença na parte recorrida e condenou os RR. a pagarem à A. as seguintes quantias:
- 294.999$00 (parte do preço dos serviços e bens fornecidos pela A. e não pagos.).
- 680.000$00 (montante de um empréstimo que a A. teve de pagar ao banco).
- 87.122$00 (juros e encargos bancários até 1/9/95 referentes ao dito empréstimo).e

— 450.495$00 (juros e encargos e encargos bancários, de sucessivas reformas de letra de câmbio, até 2/11/94, entregue pelos RR. à A.).
Tudo acrescido de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

É deste acórdão, que inconformados, recorrem agora os RR, de revista e para este STJ.

Conclusão

1 – O contrato verbal constante da matéria de facto dada como provada é um típico contrato de empreitada previsto no Art.º 1207 do C.C.
2 – Como tal, os RR só estavam obrigados a pagar o preço, no acto da aceitação da obra. Ou seja: quando a mesma lhes fosse entregue concluída pela A.
- Art.º 1211 nº2 do C.C.
3 - O contrato de empreitada pressupõe a realização duma obra, mediante o pagamento dum preço.
4 - O que se encontra provado como matéria de facto, pressupõe a realização duma obra - B e C mediante o pagamento dum preço – N.
5 - Por conta desse preço, já pagaram os RR 2.705.001$00 (1.825.001$00 + (1.675.000$00-795.000$00) alíneas D e E da matéria de facto.
6 - Ao contrário do referido no Acórdão impugnado, os RR. não incumpriram a sua obrigação de pagamento do preço, pois o A. não lhes fez a entrega da obra devidamente concluída.
7 - Não se pode afirmar, como fez o acórdão que “outros trabalhos ou fornecimentos de materiais para os RR. a A. não prestou, nem fez porque dependiam da feitura da cabine eléctrica para central, pelos RR., que a não fizeram.
Ora, nada disto consta da matéria de facto dada como provada.
Aí consta que os RR. não fizeram a cabine para a central, mas nada se prova que disso dependia a realização dos restantes trabalhos a prestar pela A., nomeadamente as constantes da alínea j) da matéria de facto dada como provada.
8 - Assim, a acção teria de improceder e o recurso terá de ser julgado procedente.
Sem prescindir:
9 - Sendo improcedente, a acção e procedente este recurso, também terá de proceder a reconvenção, pois, conforme consta das alíneas L) e M) da matéria de facto dada como provada, partes dos trabalhos executados pela A. foram-no incorrectamente e com defeitos, pelo que os RR. têm direito a ser indemnizados — Art.º 1218 a 1223 do C.C.
10 - A matéria de facto dada como provada pela 1ª instância só pode ser alterada nos termos previstos no Art.º 712 do C.P.C. e não é o caso dos autos.
11 - Atenta a matéria de facto dada como provada, a acção terá de improceder, proceder a reconvenção e em consequência este recurso também tem de ser julgado procedente.
12 - Foram violados os Art.ºs 712 do C.P.C. e Art.s 1207, 1211 nº2 e 1218º e 1223º do C.C.

Nas suas contra-alegações defende a A. a confirmação do acórdão recorrido.

Os Factos

Foi o seguinte a matéria de facto tida por provada pelas instâncias:

A) AA. é uma sociedade comercial que se dedica à reparação de material eléctrico, de bobinagens e pichelaria.
B) RR e A. celebraram um acordo verbal, mediante o qual a A. se propunha executar a partir do momento em que os estudos estivessem construídos, todos os trabalhos de electricista e picheleiro nos mesmos, que consistiam na instalação de iluminação, tomadas, holofotos, no interior e exterior, quadros, canalização para água de rega e consumo em todas as estufas, fornecendo mão-de-obra e material.
C) No exercício das respectivas actividades comerciais, e em consequência do acordo mencionado em B), a A. forneceu aos RR, diversas mercadorias e serviços em montante não concretamente apurada (a que se refere parte da lista manuscrita junta como docs., nº1,2,3,4 e 5), mas nunca inferior a 3.000.000$00 (valor calculado com referência a 1991/92, data do início das obras em discussão), tendo a A. emitido as facturas nºs 78, 349 e 743, de 8/6/92, 30/6/93 e 7/9/95, no valor respectivamente de 2.000.000$00, 1.500.000$00 e 911.660$00.
D) No que diz respeito às duas primeiras facturas atrás mencionadas os RR. pagarem pelo menos - 1.825.001$00 e aceitaram uma letra de câmbio de 1.675.000$00, com vencimento para 21/10/93, a qual foi sendo sucessivamente reformada em função das entregas pontuais de dinheiro parciais efectuadas pelos RR.
E) No entanto, a letra resultante da última reforma efectuada, no valor de 795.000$00, com vencimento para 28/8/94, apesar das instâncias da A., não foi paga nem reformada.
F) Assim, como a 3ª e última factura referida em C).
G) Em consequência, viu-se a A. obrigada a pedir um empréstimo ao seu banco - H.B.P., empréstimo esse titulado por 10 livranças no valor de 68.000$00 cada uma, para financiar, o julgamento ao mesmo banco, da letra em débito por parte dos RR, descontada pela A.
H) Não tendo os RR efectuado o pagamento da factura no prazo de 30 dias.
I) Os trabalhos mencionados em B) não foram na sua totalidade realizados.
J) Falta iluminar o resto de propriedade no exterior das estufas, acabar ligações eléctricas, fixar condutas eléctricas, colocar lâmpadas, alterar o posicionamento dos quadros eléctricos em algumas estufas e colocar a central de bombagem de água, tendo que .............. e experimentá-la.
K) Estes trabalhos, em mão de obra e materiais, estão orçados em 1.000.000$00.
L) Nos trabalhos efectuados pela A., há vários tubos à vista desarmada.
M) Se houver excesso de carga eléctrica a luz vai abaixo, podendo também ir abaixo mesmo sem excesso de carga.
N) Antes do início da obra o gerente da A. indicou como custo-estimativa aproximado da obra, cerca de 3.500.000$00, sem que, no entanto, tenha ficado acordado entre este e os RR que tal seria o valor dos trabalhos referidos em B).
O) Foram debitados à A. as quantias de 87.122$60 e 450.495$50, relativas, respectivamente, a juros e encargos bancários (debitados à A. até 1/9/95) decorrentes do empréstimo titulado pelas livranças referidas em G) e de juros de mora e encargos bancários (debitados à A., até 2/11/94) decorrentes da sucessiva reforma da letra mencionada em D).
P) Os RR não fizeram a cabine para a central.
Q) As partes não estabeleceram prazo até finais de 1992 para a conclusão das obras, devendo aquelas ser realizadas o mais brevemente possível.

Fundamentação

O acórdão recorrido decidiu, aliás de acordo com a factualidade provada, que a A. prestou serviços e forneceu mercadorias aos RR. pelo menos no valor de 3.000.000$00.
Desse valor os RR. tinham já pago à A. a quantia de 2.705.001$00, pelo que restou a dívida de 294.999$00.
A restante parte da condenação não tem a ver com o preço dos serviços prestados e do material fornecido, correspondendo antes aos prejuízos decorrentes para a A. do não pagamento, por parte dos RR., de uma reforma de uma letra de câmbio na data do vencimento, bem como com as despesas bancárias inerentes à reforma de letras e juros conexos.

É pelo conteúdo das conclusões que se define o objecto do recurso, não podendo o tribunal de recurso conhecer de questões(a menos que sejam do conhecimento oficioso) que não sejam suscitadas nas conclusões.
Ora, se bem se entende as ........ confusas conclusões, os recorrentes, perante os factos provados, que não impugnam, não põem em causa que a A. lhes tenha prestado os serviços e fornecido materiais no aludido valor de (pelo menos) 3.000.000$00, bem como a circunstância de só lhe terem pago 2.705.001$00, como também não põem em causa a falta de pagamento da letra reformada acima referida na data do seu vencimento.
O que os RR. alegam é que o contrato que celebraram com a A. é um contrato da empreitada, daí que só estivessem obrigados a pagar o preço no acto da aceitação da obra, isto é, quando ela estivesse concluída.
Apesar disso, por conta do preço final pagaram já os referidos 2.705.001$00.
Mas, não obstante aceitarem implicitamente estar em dívida o resto do preço, defendem que, ao contrário do decidido, não incumpriram a sua obrigação de pagamento uma vez que a A. não lhes fez a entrega da obra devidamente concluída.
Quer dizer, ao que resulta da argumentação dos recorrentes, tal como a articulam nas conclusões, só tendo de pagar o preço após a entrega da obra, isto é, após o cumprimento da prestação devida pela A., podiam os RR legitimamente recusar o pagamento do resto do preço em dívida, daí que não ocorreu, da sua parte, incumprimento contratual pelo facto de não terem pago a letra reformada na data do seu vencimento.

Qualificando juridicamente tal argumentação, não será difícil concluir que os RR. pretendem fazer valer a excepção do não cumprimento do contrato previsto no Art.º 428º do C.C. (foi, de resto essa a argumentação utilizada na 1ª instância para fundamentar a improcedência da acção).
Acontece que não foi essa a defesa utilizada na contestação.
Aí, o que dizem os RR. é que contrataram a obra pelo preço global de 3.500.000$00 e que nada devem à A. pois, não tendo ela concluído a obra (falta realizar trabalhos no valor de 1.000.000$00) o preço que já pagaram é superior ao valor da mão de obra e materiais instalados nas suas estufas. Por isso mesmo deixaram de pagar a letra reformada com vencimento em 28/8/94.
Defendem-se, assim, por pura impugnação, não chamando à colação a referida excepção do não cumprimento, e, não o tendo feito na sede própria que é a contestação, não podem agora invocá-la, mesmo camufladamente, na fase do recurso.
Nem o Tribunal pode conhecer oficiosamente da excepção, quando ela não foi arguida nos articulados de defesa.
Aliás, diga-se de passagem, os RR. não provaram que tenham contratado a obra pelo preço de 3.500.000$00, nem tão pouco que os “adiantamentos” efectuados fossem superiores ao valor dos serviços prestados pela A. e aos materiais por ele fornecidos, como facilmente resulta das respostas aos quesitos 1º, 7º e 13º. Na perspectiva que apresentam na contestação a ideia que fica é a de que os RR. consideram findos os serviços prestados, o que é corroborado até pelo pedido reconvencional, de modo que, a estar-se perante um contrato de empreitada, está subjacente à contestação/reconvenção, a desistência da obra com a consequente obrigação de pagar o preço do trabalho efectuado (Art.º 1229 do C.C.). E, como é sabido, nada impede que a desistência resulte tacitamente de determinados comportamentos do dono da obra.

Por outro lado, e noutra perspectiva deve acrescentar-se que a Relação considerou que “Outros trabalhos ou fornecimentos de materiais para os RR. a A. não prestou nem fez porque dependiam da feitura da cabine eléctrica para central pelos RR., que a não fizeram”.

Nesta parte entendem os recorrentes que a Relação não podia ter considerado tal factualidade porque ela não resulta da matéria de facto provada.
O que se provou foi apenas que os RR. não fizeram a cabine para a central (q.15), mas não se provou que dessa construção dependia a realização dos restantes trabalhos a prestar pela A. e que ela omitiu.

A verdade, porém, é que a Relação pode retirar da factualidade provada, relações de facto, desde que apoiadas em factos provados de que são o desenvolvimento lógico. (É a doutrina corrente).
E, se assim for, não pode o S.T.J. sindicar tais ilações por se tratar de pura matéria de facto subtraída ao seu conhecimento.
O S.T.J. só poderá intrometer-se nessa matéria se a ilação retirada pela Relação contrariar factos provados ou o seu sentido lógico.
Ora, face ao que resulta da resposta ao quesito 8º (conf.alínea j) da matéria de facto) e da resposta ao quesito 15º cf. alínea P) da matéria de facto), parece inteiramente lógico que a construção da cabine para central, que pertencia aos RR., era essencial para que a A. pudesse terminar o seu trabalho.
Assim a não construção da dita cabine impossibilitou, senão todos, pelo menos alguns dos trabalhos deixados por executar pela A. e que são apenas os referidos na alínea j) da matéria de facto. Desde logo impossibilitou, naturalmente, a colocação da central de bombagem e com toda a probabilidade o acabamento das ligações eléctricas e a fixação das respectivas condutas....
Portanto, nunca a A. podia ter terminado todos os trabalhos que se propôs executar para os RR., por culpa destes, daí que nunca se pudesse negar o pagamento do preço dos trabalhos efectuados com os argumentos que os RR. invocam.

Improcedem, assim, as conclusões 1ª e 7ª.

E não têm melhor sorte as restantes.

De facto o que os RR. alegam a respeito da reconvenção, que querem ver procedente, é inteiramente irrelevante, nem valendo a pena perder tempo a analisar tal argumentação.
é que, tendo a sentença de 1ª instância julgado improcedente o pedido reconvencional e não tendo os RR. recorrido dessa decisão, é claro que ela transitou nessa parte, não podendo os RR., na revista, suscitar tal questão.

Decisão.
Termos em que acordam neste S.T.J. em negar revista, confirmando acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 29 de Novembro de 2006

Moreira Alves (Relator)

Alves Velho

Moreira Camilo