Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1279/13.3TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NEGÓCIO JURÍDICO
MÉDICO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 07/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Em relação aos danos não patrimoniais, o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com a equidade (art. 496.º, n.º 4, do CC).

II. O controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça da fixação equitativa da indemnização deve dirigir-se a averiguar se estão preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade e se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria, foram aplicados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, devem ser aplicados.

III. No contrato total com escolha de médico (conhecido também como contrato médico adicional) o doente escolhe o médico atendendo às suas qualidades profissionais e acorda com ele um pagamento específico ou extraordinário.

IV. Sendo este, na prática, o tipo de contrato médico que se presume existir, cabe à clínica / entidade empregadora do médico, se quiser eximir-se de responsabilidade, o ónus da prova de que, ao invés, está em causa de um contrato dividido.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO



1. AA vem intentar a presente acção contra BB e IMO – Instituto de Microcirurgia Ocular, pedindo, a final, a condenação dos réus no pagamento de € 491.701,61 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, causados pela actuação culposa do réu BB, acrescido de juros de mora, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

Alega, para tanto, que é doente oftalmológico, desde os seis anos, com miopia corrigida com óculos e na sequência de ter consultado o 1.º réu junto do 2.º réu, que o aconselhou, a realizar uma cirurgia de introdução de lente intraocular para corrigir a miopia, o que fez, não sem antes ter explicado os riscos da operação a que se sujeitou e que disse que poderia fazer a sua vida normal quando tal não sucedeu, nunca tendo explicado, antes da cirurgia, que teria de abdicar da sua visão intermédia, que tanto precisa na sua profissão de arquitecto. Acresce que não prestou consentimento livre e informado no que concerne à intervenção cirúrgica datada de 22.09.2005. O 1.º réu não cumpriu a obrigação de prestar a melhor assistência possível ao autor a que estava vinculado, ou seja, a legis artis, das boas práticas clínicas, agindo culposamente porque um médico diligente teria esclarecido o autor das consequências e teria levado em conta que o autor era de arquitecto e das consequências duma cirurgia mal sucedida aos olhos, e nunca teria, face ao perfil do autor, recomendado a realização da cirurgia. Acresce que em causa e em face do insucesso teria procurado resolver a situação e não ocultar o seu erro. O réu BB devia e podia ter actuado de forma diversa e como consequência o autor ficou com graves lesões oculares e com a sua capacidade de visão muito diminuída, não conseguindo exercer a sua profissão de arquitecto, tendo perdido o seu emprego, entrando numa profunda depressão que lhe originou danos patrimoniais de não patrimoniais que ascendem em € 491.701,61.

2. Citado o 2.º réu, veio o mesmo contestar, suscitando a sua ilegitimidade, por o 1.º réu não ser trabalhador do 2.º réu, que apenas cede o espaço e o equipamento para os médicos exercerem a sua profissão mediante contrapartida, não existindo contrato de trabalho, nem de prestação de serviços com aquele outro. O autor é que escolheu o médico por quem queria ser consultado, em 1.º lugar, Dr. CC e depois o 1.º réu, com quem celebrou contratos de prestação de serviços ao qual o 2.º réu é completamente alheio; mais impugnou todos os factos alegados pelo autor para sustentar o pedido bem como os danos, por serem alheios aos réus e serem excessivos.

3. Citado o 1.º réu, suscita a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros Axa por ter celebrado com a mesma um seguro de responsabilidade civil profissional dos médicos, no qual esta assume a responsabilidade civil pelos danos que o 1.º réu possa causar no exercício da sua profissão e sendo, neste processo, discutido a responsabilidade civil do 1.º réu por actos acometidos naquela actividade, invoca a incompetência absoluta deste tribunal para apreciar o presente pleito, por violação do artigo 72.º do CPP, excepção de caso julgado e impugna a versão dos factos do autor, bem como os danos alegados que lhe são alheios e montantes peticionados exagerados.

5. A interveniente Axa, admitida a intervir nos autos, na qualidade de interveniente acessória, nos termos do despacho datado de 1.07.201, apresentou a sua contestação, invocando as exclusões do seguro contratado e fazendo sua a contestação apresentada pelo 1.º réu, quer quanto às excepções invocados, quer quanto à impugnação dos factos.

Entretanto, por decisão do tribunal da Relação ….., foi revogada a decisão de admissão na qualidade de interveniente acessório para o ser na qualidade de interveniente principal.


6. Após algumas vicissitudes dos autos, em 9.06.2020 foi proferida uma sentença com o seguinte teor:

Destarte, julga-se parcialmente procedente o pedido e, em consequência, condena-se:

a) O 1.º R. BB a pagar ao A. AA na quantia de € 3.500,00, relativa à franquia contratualmente estabelecida no contrato de seguro celebrado com a Interveniente AGEAS- Companhia de Seguros, acrescendo juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento;

b) A Interveniente AGEAS – Companhia de Seguros SA a pagar ao A. AA a quantia de €31.500,00, já deduzida da franquia supra referida, acrescendo juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

c) Absolve-se o 2 R. dos pedidos contra si formulados.

d) Custas por ambas as partes, na proporção do decaimento, (art.º 527º do CPC) [sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao A.).

Registe e notifique.

Dispensa da taxa de justiça remanescente

Estabelece o artigo 6º, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais que: “Nas causas de valor superior a € 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.”

A decisão judicial de dispensa do remanescente da taxa de justiça assume, por força do procedimento estabelecido na lei, características excepcionais e depende, segundo o legislador, da especificidade da concreta situação processual, designadamente, da complexidade da causa e da conduta processual das partes.

A fim de decidir acerca da maior, ou menor, complexidade da causa deverá ter-se em conta os factos índice que o legislador consagrou no artigo 530º, nº 7, do C.P.Civil (anteriormente , artº 447-A, nº7), segundo o qual:

“(…)

7. Para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, consideram-se de especial complexidade as acções e os procedimentos cautelares que:

a) Contenham articulados ou alegações prolixas;

b) Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; ou

c) Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas”.

Como refere Salvador da Costa, in Regulamento das Custas Processuais anotado e comentado, Almedina, 4ª. edição, 2012, pág. 85, as questões de elevada especialização jurídica ou especificidade técnica serão, grosso modo, as que envolvem intensa especificidade no âmbito da ciência jurídica e grande exigência de formação jurídica de quem tem que decidir. Já as questões jurídicas de âmbito muito diverso são as que suscitam a aplicação aos factos de normas jurídicas de institutos particularmente diferenciados.

Para efeito da apreciação da conduta processual das partes deve levar-se em conta o dever de boa-fé processual estatuído no actual artº 8º do C.P.Civil.

Considerando o que fica referido e pese embora os autos não contenham articulados ou alegações prolixas, assumiram complexidade em termos de tramitação, tendo terminado apenas na audiência final, com a realização de várias sessões, pelo que só se justifica a dispensa total para o 2 R, uma vez que foi absolvido do pedido, não se justificando a dispensa total do pagamento do remanescente da taxa de justiça para as demais partes, mas sim a sua dispensa parcial, na proporção de 90% para o 1R e Interveniente, sendo responsáveis pelo pagamento de 10% da mesma, atenta a procedência parcial da acção e para o A., na proporção de 40%, sendo responsável pelo pagamento de 60%, atento a percentagem do seu decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Pelo exposto, ao abrigo do disposto no nº 7 in fine do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais, dispensam-se totalmente do pagamento da taxa de justiça remanescente o 2 R e dispensa-se parcialmente o 1R e a Interveniente, na proporção de 90% e o A. na proporção de 40%, devendo pagar o 1R e Interveniente pagar 10% e o A., 60%, respectivamente do remanescente da taxa de justiça.

Notifique”.


7. Inconformado com esta sentença, o autor interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação …..


8. Em 14.01.2021 este Tribunal da Relação ….. proferiu um Acórdão em que pode ler-se, no segmento dispositivo:

Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, alterando-se a decisão da sentença recorrida para o seguinte: condena-se os réus no pagamento de indemnização no valor global de 36.673,11€, sendo o réu a pagar 10% desse valor global (isto é, 3.667,31€), a ré seguradora a pagar os remanescentes 90% (isto é, 33.005,80€) e a ré IMO a pagar 90% daquele valor global (33.005,80 €).

Aos valores em causa acrescem juros de mora, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.

Custas da acção, na proporção do decaimento (tendo em conta o valor dela e o valor final em que ela procedeu), pelos réus (35% para o réu, 35% pela seguradora; 30% para a ré); o autor está dispensado de custas por beneficiar de apoio judiciário nessa modalidade.

Custas do recurso, na vertente de custas de parte, na proporção do decaimento (proporção calculada tendo em conta o valor do recurso e a procedência dele em apenas 1673,11€) pelos réus (35% para o réu, 35% pela seguradora; 30% para a ré); o autor está dispensado de custas por beneficiar de apoio judiciário nessa modalidade.

Dispensa-se o pagamento da taxa de justiça remanescente”.


9. Inconformado, vem o autor AA interpor recurso para este Supremo Tribunal.

Alega que o Acórdão deve ser declarado nulo e substituído por outra decisão em que lhe seja concedida uma indemnização por danos não patrimoniais não inferior a € 490.000,00.

A terminar a sua alegação formula as seguintes conclusões:

A. No dia 14.01.2021 foi proferido Acórdão do Ilustre Tribunal da Relação ….. que

B. manteve a indemnização por danos não patrimoniais da decisão de primeira instância no valor de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) e,

C. de forma inovadora face ao tribunal a quo, condenou os RR. no pagamento de € 1.673,11 (mil seiscentos e setenta e três euros e onze cêntimos) a título de danos patrimoniais.

D. O A., ora Recorrente, vem, pelo presente, recorrer da matéria de direito da decisão supra mencionada.

E. Em primeiro lugar, cabe dizer que deve a recorrida sentença ser considerada nula nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil, porquanto esta contem uma contradição nos seus próprios termos que dita a impossibilidade de compreender devidamente o valor global da indemnização e a articulação da responsabilidade dos R.R., ou seja, por que quantia da indemnização é responsável cada um dos ora Recorridos.

F. Nestes termos, a decisão de que ora se recorre violou o artigo 615.º n.º 1 do CPC.

G. Estamos perante um claro caso de negligência médica, em que o Recorrente sofreu graves danos oftalmológicos, psicológicos, patrimoniais e familiares pela intervenção do R. BB, ora Recorrido, concretamente uma depressão major que ficou provada e cujos danos se repercutem até hoje na vida do Recorrente, que deixou de ter qualquer tipo de atividade profissional.

H. O Recorrente apenas concordou em fazer a cirurgia de 22 de Setembro de 2005 pela facilidade, celeridade e isenção de riscos da mesma, que o ora Recorrido sempre lhe apresentou e nunca em momento algum o ora R. BB referiu que a intervenção cirúrgica em causa implicava uma desfocagem da visão de objetos situados, pelo menos, a distâncias entre 30 a 90 cm, como veio a acontecer.

I. O Recorrido foi condenado como autor material de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, com base legal, nos artigos 156º e 157º ambos do Código Penal, o que como se sabe só ocorre nos casos mais graves, dada a prova “quase impossível” para o doente neste tipo de situações e a desigualdade de armas, conhecimentos, meios e acesso a informação que existe entre um médico e o paciente.

J. No que toca à matéria de direito, considerou o douto Acórdão que estavam apenas em causa a violação de deveres de informação no âmbito da relação contratual e a realização de um ilícito extracontratual que se consubstancia na operação arbitrária às cataratas levada a cabo pelo Recorrido BB.

K. Apesar de o ora Recorrente acompanhar a douta sentença no que diz respeito à violação dos deveres de informação e à responsabilidade extracontratual perpetrada através de uma operação arbitrária às cataratas, não pode o ora Recorrente aceitar que a indemnização se cinja a esses factos ilícitos.

L. A verdade, é que o cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços verificou-se na violação do direito à informação do Recorrente, na má prática médica do Recorrido (violação da legis artis) e no incumprimento dos deveres de cuidado e de proteção e andou mal a sentença ao não considerar estas três vertentes de ilicitude da responsabilidade contratual.

M. No que toca à má prática médica, andou mal o Acórdão recorrido ao não considerar a existência da mesma.

N. O Recorrido levou a cabo uma cirurgia inadequada para as necessidades do Recorrente, uma vez que as lentes aplicadas implicavam a perda total da visão intermédia, sem ser possível arranjar uma solução que colmatasse esta perda, ao nível de óculos ou outras lentes. Ou seja, não era a adequada para o Recorrente, uma vez que este era arquiteto e que a visão intermédia era fundamental para levar a cabo a sua profissão. Esta atuação consubstancia uma má prática médica de implantação de umas lentes às quais o Recorrente nunca se poderia adaptar.

O. Pelo que, no que toca a implantação das lentes multifocais no Recorrente, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, estamos perante um cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços celebrado entre o Recorrido BB e o Recorrente, pelo que, se verifica o facto ilícito originador de responsabilidade contratual do artigo 798.º do Código Civil, que se consubstancia na má prática médica.

P. Pelo que, em rigor, consideramos que esta norma foi violada na interpretação feita pela sentença recorrida.

Q. Andou também mal a douta sentença no que toca ao não considerar a violação de deveres de cuidado e proteção em fase de pós-operatório.

R. Resulta da matéria de facto provada que o ora Recorrido BB manteve uma postura despreocupada e negligente em face das queixas do Recorrente.

S. Um médico diligente, colocado na posição do ora Recorrido BB, teria esclarecido o Recorrente das possíveis consequências da operação e, em face, do insucesso da cirurgia teria procurado resolver a situação e não ocultar o seu erro.

T. Pelo que, o cumprimento defeituoso verifica-se também pela violação dos deveres de cuidado, assistência e proteção, acessórios à prestação principal de prestação do serviço médico, verificando-se uma indiferença absoluta perante o desespero do Recorrente e a falta de iniciativa para encontrar uma nova solução, pelo que se verifica também aqui um facto ilícito originador de responsabilidade contratual do artigo 798. º CC, a que a sentença recorrida não atendeu.

U. Assim sendo, também aqui o Tribunal a quo violou o artigo 798.º CC ao considerar que não se verificou o cumprimento defeituoso do contrato pela violação dos deveres de cuidado, assistência e proteção.

V. Em suma, houve uma clara violação do artigo 762.º n.º 2 CC referente aos deveres acessórios de cuidado, proteção e informação que são conexos à obrigação principal, decorrentes do dever geral de boa fé,.

W. No entanto, ainda que se atendesse estritamente aos fundamentos de ilicitude considerados pela sentença de que ora se recorre – violação de deveres de informação e responsabilidade extracontratual devido à operação arbitrária às cataratas levada a cabo pelo Recorrido – e à sua gravidade, sempre se teria de dizer que não seria justo para o ora Recorrente aceitar que a indemnização por danos não patrimoniais se cinja àquele valor de € 35.000,00.

X. O valor indemnizatório, em face dos danos sofridos (e provados) pelo Recorrente, ficou muito aquém do devido e mostra-se francamente diminuto em face de todas as consequências que esta intervenção cirurgia teve para o Recorrente.

Y. Em face da prova produzida, o quantum indemnizatório atribuído na douta sentença consubstancia uma violação do princípio constante no artigo 562. º do Código Civil - Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

Z. Neste sentido, o quantum indemnizatório fixado pelo tribunal a quo viola o artigo 562.º CC, porquanto não aproxima sequer o ora Recorrente da situação que existiria se não se tivesse verificado o facto danoso que implicou a perda de anos de vida do ora Recorrente.

AA. No caso do Recorrente, que era uma pessoa absolutamente saudável à data da cirurgia, foram brutalmente atingidos bens como a vida, a integridade física, psíquica e sexual, a saúde, a liberdade, o bem-estar físico e psíquico, a alegria de viver, a beleza –, tendo as consequências dessa violação perdurado no tempo, algumas verificando-se ainda hoje.

BB. Nos termos do artigo 563.º do Código Civil e seguindo a orientação da jurisprudência e doutrina, o dever indemnizar existe relativamente aos danos que não ocorreriam não fosse aquela lesão.

CC. Neste caso, a conduta ilícita do Recorrido despoletou uma série de danos no Recorrente que, inicialmente, se manifestaram apenas fisicamente e ao nível da visão, mas pouco depois resultaram em consequências catastróficas para a vida no Recorrente.

DD. Assim sendo, a decisão Tribunal da Relação quanto ao montante fixado a título de danos não patrimoniais viola o artigo 563.º CC, porquanto tal nunca possibilitaria cobrir todos os danos que o Recorrente sofreu em função da lesão que lhe foi causada pelo ora Recorrido BB e que foram dados como factos provados.

EE. No que toca aos danos morais, constantes do artigo 496.º do Código Civil, estes nunca poderão ser repostos por inteiro, mas a compensação atribuída visa aligeirar e trazer algum conforto económico para a situação em que o lesado se encontra.

FF. Quanto a estes, resultam de forma clara e inequívoca da matéria de facto disponível que os seguintes danos (entre outros):

GG. O ora Recorrente ficou impedido de ver o computador e desenhar no mesmo em simultâneo e deixou de conseguir ver as maquetes pois têm de ser apreciadas globalmente, o que fez com que este deixasse de poder desempenhar a função de coordenador de projetos na E....... e acabou por perder o seu trabalho e fonte de sustento.

HH. O ora Recorrente deixou de ver e interagir com a filha, ficou incapaz de fazer a barba e cortar as unhas dos pés e sofreu um depressão major clinicamente comprovada por diversos especialistas na área.

II. O ora Recorrente passou anos da sua vida deitado na cama às escuras para não ter de lidar com a sua nova visão e em sequência da medicação prescrita para combater a depressão major de que foi alvo em sequência da intervenção cirúrgica levada a cabo pelo ora Recorrido BB.

JJ. O ora Recorrente tornou-se incapaz de ter mais filhos devido à ausência total de líbido e de ejaculação que se deu na consequência dos medicamentos que teve de tomar para enfrentar a sua depressão, pelo que os planos familiares ficaram completamente destruídos.

KK. O ora Recorrente, que era uma pessoa sociável e que gostava de estar com os amigos e família, tornou-se numa pessoas introvertida, ansiosa e deprimida, não consigo estabelecer relações interpessoais como anteriormente.

LL. O ora Recorrente perdeu o seu trabalho e continua até hoje desempregado.

MM. O ora Recorrente experienciou medo, angústia, ansiedade, depressão, incerteza e falta de autoestima.

NN. Tudo isto terá de ser tido em conta no quantum indemnizatório a título de danos não patrimoniais pois só assim se fará a costumada justiça.

OO. Assim sendo, atendendo à gravidade dos danos supra mencionados e aos seus efeitos na vida do Recorrente, – alguns dos quais ainda hoje se fazem sentir – o valor indemnizatório não poderá ser inferior a 490.000,00 € (quatrocentos e noventa mil euros)”.


10. Também a ré seguradora Ageas vem recorrer do Acórdão, afirmando que não pode ser condenada para lá da responsabilidade do segurado.

Conclui assim as suas alegações de revista:

1ª - O douto acórdão deu razão ao apelante quanto à condenação da R. IMO e decidiu: o dano global são € 36.36.673,11: por este dano o 1º réu é responsável em 10% (€ 3.667,31) e o réu IMO em 90% (€ 33.005,80). Não há solidariedade entre estas duas obrigações.

2ª - A procedência da pretensão do A. da condenação da ré IMO, que se verificou, de o réu não ser responsável pelo dano, determina a falta de causa e de fundamento da pretensão do A. contra a recorrente. É o efeito jurídico pedido pelo A. e procedente que impede ou determina a extinção do efeito decidido no acórdão contra a recorrente.

3ª - Quanto aos € 33.005,80 há uma nulidade do objecto do processo contra a recorrente por ausência de causa dessa pretensão.

4ª - Se o dano global é 36.673,11 sendo 10% (€ 3.667,31) a cargo do 1º réu e 90% (€ 33.005,80) do réu IMO, considera a recorrente que o douto acórdão não pode condenar a recorrente a pagar 90% (€ 33.005,80) do dano global de € 36.673,11 Nos termos do seguro, a recorrente paga a responsabilidade do réu médico. Se a responsabilidade do médico são € 3.667,31 o acórdão não pode condenar a seguradora recorrente a pagar € 33.005,80.

5ª - Torna-se necessário determinar e esclarecer o regime jurídico aplicável e o sentido da sua aplicação, devendo ser decidido que a seguradora não pode no douto acórdão ser condenada a pagar um montante superior ao valor de € 3.667,31 da indemnização que pelo seu segurado é devida.

6ª - A impugnação da sentença deduzida pelo A. não representa que o A. pretenda uma condenação pelo dano em dobro, não sendo isso que resulta da pretensão da apelação, como a entenderam os apelados e que procedeu.

7ª - Em lugar de condenar como a sentença apenas o 1º réu pelo dano o douto acórdão passou a condenar dois o que se comporta no objecto postulativo recursivo do A.

8ª - Se o A. pede na apelação que pelo dano, de € 36.673,11, responda não apenas um dos réus mas ambos e a Relação julga procedente esta pretensão a decisão da Relação passa a substituir na íntegra em litisconsórcio necessário natural unitário, evitando decisões incompatíveis, a da 1ª instância, vinculando os 1º e 2º réus e sendo esse dano repartido 10% para o 1º réu e 90% para o 2º.

9ª - O apelante pediu o ressarcimento do dano pelos 1º e 2º réus e não um ressarcimento em dobro do dano. “O tribunal ad quem não pode melhorar a situação do recorrente fora do que este pediu”.

10ª - O douto acórdão condenou, sem fundamento, a recorrente a pagar € 33.005,80, ou seja, montante superior ao da responsabilidade do seu segurado que fixou em € 3.667,31, e isto não corresponde à boa aplicação do direito.

11ª - Quando o dano global produzido são € 36.673,11 e o segurado é responsável por 10% ou € 3.667,31 desse dano a seguradora não pode ser condenada a pagar € 33.005,80. Não pode a seguradora no âmbito do contrato de seguro ser condenada a pagar 90% desse dano global.

12ª - Existe erro do acórdão ao condenar os réus médico e Clínica na proporção de 10% e 90% do dano global de € 36.673,11 e condenar a ré seguradora a pagar 90% desse dano global quando afirma que esta não é seguradora da Clínica.

13ª - O douto acórdão que condenou a recorrente a pagar € 33.005,80, quando o valor da indemnização devida pelo seu segurado é de apenas € 3.667,31 fez aplicação errada dos arts. 33º do CPC e 19º, nº 1 d) do Dec.-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (Lei do Contrato de Seguro) “Pagar a indemnização, determinadas que sejam as causas, circunstâncias e consequências do sinistro bem como o valor da indemnização a liquidar”

14ª - Deverá o douto acórdão ser revogado quanto à condenação da recorrente no excedente a € 3.667,31, pois a prejudica em € 29.338,49 e respectivos juros na decisão unitária, pedida pelo A..

15ª - O douto acórdão cometeu a nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, alíneas b) e c) e interpretou e aplicou erradamente o disposto nos arts. 33º do CPC e 19º, nº 1 d) do Dec.-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (Lei do Contrato de Seguro)”.


11. Recorre, por fim, ainda a ré clínica IMO.

Pede a revogação do Acórdão e a manutenção do decidido pelo Tribunal de 1.ª instância.

Termina as suas alegações concluindo:

A. A decisão recorrida, ao ter condenado os Réus no pagamento de indemnizações que excedem o valor global da indemnização fixada, isto é, no valor global de € 36.673,11 €, padece da nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, nº c) do CPC, por padecer de ambiguidade ou obscuridade que a torna ininteligível.

B. A decisão recorrida ao declarar que o 1º Réu, BB, é, para os efeitos do artigo 800º, nº 1, do Código Civil, um auxiliar da Autora – ora Recorrente – faz uma errada interpretação desta norma legal.

Porque, como é óbvio e resulta do exposto não é a Ré – ora Recorrente – que utiliza o 1º Réu e os demais médicos para o cumprimento das suas obrigações, mas são os médicos que, com base na contratualização enunciada no facto 191, utilizam, mediante o pagamento de um preço, as instalações da Ré – ora Recorrente – para o cumprimento das obrigações que assumem perante os seus clientes/doentes, mediante a utilização das suas instalações e equipamentos, não se podendo considerar, por esta razão, que o 1º Réu, e os demais médicos que exercem a sua atividade na Ré – ora Recorrente – são seus auxiliares por não preencherem os requisitos que, para o efeito, são fixados no artigo 800º, nº 1, do Código Civil.

C. O facto de ter sido o Autor quem escolheu o 1º Réu, BB, como seu médico oftalmologista, que o acompanhou durante um ano, conforme decorre dos factos 10, 11, 12, 56, 64, 67 e 212, o facto de a Ré, ora Recorrente, não ter tido qualquer intervenção nas consultas, exames e tratamentos que os médicos terão efetuado ao Autor, pois eles são autónomos e independentes para o fazer, conforme decorre do facto 213, implica que a decisão recorrida ao considerar que o Autor contratou os serviços médicos da Ré, ora Recorrente e que o 1º Réu, BB, interveio como auxiliar da Ré, ora Recorrente, apreciou mal os factos e aplicou indevidamente o artigo 800º do Código Civil, porque a Ré, ora Recorrente, ao abrigo de contrato que celebrou com o 1º Réu, BB, se limitou a fornecer as suas instalações, o apoio logístico, emissão de recibos, etc.., a este clínico, mediante um preço que por ele é pago, não superintendendo nem dirigindo a atividade dos seus médicos, sendo, por isso manifestamente, estranha à relação estabelecida entre o Autor e o 1º Réu, BB, que se traduziu na prestação de serviços médicos por este ao Autor, tendo, também, por esta razão, a decisão recorrida aplicado indevidamente ao caso dos autos o artigo 800º do Código Civil”.


12. Atendendo a que as rés IMO e Ageas haviam apresentado requerimentos, o Tribunal da Relação ….. proferiu, em 25.02.2021, um Acórdão que conclui assim:

- indefere-se o pedido de rectificação de erro material feito pelo réu IMO.

Custas pelo IMO, fixando-se em 1 UC a taxa de justiça pelo pedido (na qual se imputará a taxa de justiça paga pelo impulso).

- indefere-se o pedido de rectificação de erro material feito pela AGEAS.

Custa pela AGEAS, fixando-se em 1 UC a taxa de justiça pelo pedido (na qual se imputará a taxa de justiça paga pelo impulso)”.


13. Volta a apresentar requerimento a ré clínica IMO, com o seguinte teor:

IMO – Instituto de Microcirurgia Ocular, Lda., ré e recorrida nos autos à margem referenciados, tendo sido notificada, em 1 de março de 2021, da decisão, proferida em 25 de fevereiro de 2021, através da qual o Tribunal da Relação …., indeferiu o pedido de correção do acórdão condenatório proferido por este Tribunal, em 14 de janeiro de 2021, apresentado nos autos pela ora requerente, em 28 de janeiro de 2021, vem nos termos do artigo 614º, nº 2, ex-vi do artigo 666º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), apresentar, junto de V. Exas., requerimento dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça, no qual se pede a retificação do erro material de cálculo de que, no seu entender, padece o citado acórdão condenatório”.


14. Contra-alegou o autor AA, dizendo, em conclusão:

A. O Recorrido AA padecia desde os 6/7 anos de idade, de miopia elevada, associada a estigmatismo, no olho direito 7 dioptrias de miopia mais 1,25 de estigmatismo e para olho esquerdo com 7,25 dioptrias mais de 1 de estigmatismo.

B. O Recorrente IMO é uma instituição dedicada exclusivamente à prestação de cuidados médicos e cirúrgicos de oftalmologia.

C. Em 2004, o Recorrido AA passou a ser seguido no Recorrente IMO pelo Recorrido BB.

D. A 22.09.2005 foi realizada, pelo Recorrido BB, a intervenção cirúrgica que teve como objetivo a implantação de lentes multifocais.

E. O Recorrido AA, após liquidar as quantias referentes às consultas e à própria intervenção cirúrgica, recebeu sempre um recibo emitido pelo Recorrente IMO e não pelo Recorrido BB.

F. Após a operação, o Recorrido AA teve diversas consultas com o Recorrido BB nas instalações do Recorrente IMO.

G. Nessas consultas, o Recorrido AA demonstrou-se sempre bastante insatisfeito com os resultados, especialmente com as dificuldades com a visão intermédia.

H. Tendo em conta a insistência por parte do Recorrido BB de que a operação teria sido bem sucedida, o Recorrido AA contactou diretamente o diretor clínico do Recorrente IMO, o Dr. CC.

I. A 18.11.2005 o Recorrido AA foi observado pelo Dr. CC, diretor clínico do Recorrente IMO, que se predispôs a efetuar a substituição das lentes por umas que garantiriam uma acuidade visual melhor a meia distância sem qualquer ónus.

J. A 21.11.2005, o Dr. CC considerou que seria melhor aguardar algum tempo, mas manteve o compromisso de efetuar a substituição das lentes findo esse período.

K. Em suma, não faria sentido que o diretor clínico do Recorrente IMO se predispusesse a corrigir a operação feita pelo Recorrido BB à sua custa se este não fosse seu auxiliar.

L. Tal como não faria sentido que os recibos referentes às consultas, já juntos com a petição inicial, fossem emitidos pelo Recorrente IMO e não pelo Recorrido BB se este último não fosse auxiliar da primeira.

M. De referir que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça relativa a intervenções cirúrgicas realizadas no âmbito da medicina privada é clara no sentido de a responsabilidade abranger também a própria instituição, ao serviço da qual o médico presta os seus serviço, nos termos do n.º 1 do artigo 800.º do Código Civil.

N. Assim, o Recorrido AA contratou com o Recorrente IMO que fornece os seus serviços por intermédio de profissionais de saúde, como é o caso do Recorrido BB.

O. Posto isto, deve o Recorrente IMO responder nos termos do artigo 800.º n.º 1 do Código Civil,

P. não colhendo, portanto, o argumento de que o Recorrente IMO não deverá ser responsabilizado pela atuação do Recorrido BB.

Q. Em conclusão, andou bem a sentença recorrida quanto à matéria da responsabilidade do Recorrente IMO, ao considerá-lo responsável nos termos do artigo 800.º n.º 1 do Código Civil,

R. sendo que qualquer interpretação em sentido contrário será violadora do conteúdo material da norma citada”.


15. Contra-alegou, por sua vez, o réu BB, que conclui:

1. Considerando que o Autor na petição inicial formulou o pedido de indemnização no valor de € 290,000,00 a título de danos não patrimoniais e que no presente recurso, aumenta o pedido de indemnização por danos não patrimoniais, para € 490.000,00, é manifesto que o pedido agora formulado não pode ser atendido no presente recurso por se tratar de uma questão nova em relação ao pedido apreciado em primeira instância e que esta não conheceu.

2. Em cumprimento do disposto no artigo 671º, nº 3 do CPC, o Recurso a que agora se responde não deve ser aceite pela razão de o Acórdão do Tribunal da Relação, ora recorrido, confirmar, sem voto de vencido, e sem fundamentação essencialmente diferente a decisão proferida em 1ª instância.

3. Contrariam a matéria de facto provada e fixada nos autos, as afirmações contidas nas conclusões G), L), M), N), Q), R), S), T), AA), CC), GG), HH), II), JJ), KK), LL) e MM) que, por versarem apenas matéria de facto, não podem ser atendidas no presente recurso por não se enquadrarem nas situações que são objeto deste recurso, conforme resulta expressamente do disposto no artigo 674º e do artigo 682º, nº 2 do CPC.

4. O Acórdão recorrido, ao contrário do que pretende o Recorrente, não viola, nem o artigo 798º do Código Civil, nem o artigo 562º, nem o artigo 563º nem o artigo 496º, todos do mesmo diploma legal”.


16. Em 30.03.2021 proferiu o Exmo. Desembargador do Tribunal da Relação um despacho em que pode ler-se:

Por para tal estarem em tempo e terem legitimidade, admitem-se os três recursos interpostos contra o acórdão deste TR….. de 14/01/2021, recursos de 16/02/2021 (autor – que tem apoio judiciário e que por isso não paga taxa de justiça), 17/02/2021 (seguradora – que pagou taxa) e 18/02/2021 (IMO – que pagou taxa e multa), que são de revista, sobem de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Este TR…., no acórdão de 25/02/2021, já se pronunciou, substancialmente, embora a título de pedido de rectificação, sobre as nulidades arguidas nos recursos.

O requerimento de 11/03/2021 (IMO) está dirigido ao STJ e, aliás, versa a mesma questão.

Remeta o processo ao STJ”.


17. Já no Supremo Tribunal, atendendo que o recurso interposto pelo autor se deparava com o obstáculo da dupla conforme e se formulava o pedido subsidiário de revista excepcional, proferiu a presente Relatora um despacho remetendo à Formação prevista do no artigo 672.º, n.º 3, do CPC.


18. Por Acórdão de 17.05.2021, a Formação admitiu a revista por via excepcional, entendendo que “a par do interesse subjectivo do recorrente, existe um interesse público na admissão da revista, porquanto o desenvolvimento e aprofundamento que daí advenha, pelo confronto entre as concretas circunstâncias que rodeiam a solução do caso e a diversidade de outros, pode trazer novos contributos para uma melhor aplicação do direito, com vista a obter uma solução orientadora e clarificadora do entendimento sobre a matéria, com uma projecção em situações futuras”.


*



Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber:


A) No recurso do autor

1.ª) se o Acórdão recorrido é nulo nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC; e

2.ª) se a indemnização por danos não patrimoniais deve ser aumentada.


B) No recurso da ré Ageas

1.ª) se o Acórdão recorrido é nulo nos termos do artigo 615.º, n.º 1, als. b) e c), do CPC; e

2.ª) se, ao condenar a ré seguradora a pagar € 33.005,80, quando o valor da indemnização devida pelo seu segurado é de apenas € 3.667,31, o Tribunal recorrido fez aplicação errada da lei.


C) No recurso da ré IMO

1.ª) se o Acórdão recorrido é nulo nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC; e

2.ª) se a ré clínica é responsável pelos danos do autor.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. O autor nasceu a …/11/1959.

2. A sua profissão era, em 2004, a de ….

3. Em 11/04/2002, o autor recorreu aos serviços oftalmológicos prestados pela ré IMO.

4. O IMO é uma instituição particular [ou mais precisamente, como já se viu: uma sociedade por quotas parenteses do TR….., facto que está provado pela certidão registal de fls. 592v a 601] dedicada exclusivamente à prestação de cuidados médicos e cirúrgicos de oftalmologia cuja actividade se desenvolve no âmbito da medicina privada e dos seguros de saúde.

5. O autor padecia desde os 6/7 anos de idade, de miopia elevada, associada a estigmatismo, no olho direito 7 dioptrias de miopia mais 1,25 de estigmatismo e para olho esquerdo com 7,25 dioptrias mais de 1 de estigmatismo.

6. Situação que se mantinha em 2002, quando foi, pela primeira vez, observado no IMO, em 11/04/2002, pelo Dr. CC, director clínico do IMO, primeiro médico que o assistiu.

7. Para poder ter uma visão correspondente a 100%, em cada olho, 10/10, o autor carecia de correcção, de utilizar óculos com as seguintes dioptrias: para o olho direito, 7 dioptrias de miopia mais 1,25 de estigmatismo, e, para o olho esquerdo, com 7,25 dioptrias mais 1 de estigmatismo.

8. O Dr. CC, face à insatisfação do autor com as limitações do uso de óculos, informou o autor da possibilidade da redução da miopia através de correcção cirúrgica por laser, ao que este anuiu.

9. No entanto, da realização do exame designado por topografia corneana, paquimetria e fundoscopia, resultou que o autor não tinha espessura de córnea suficiente para realizar redução de miopia através de correcção cirúrgica utilizando laser de excimer.

10. Em 2004, o autor regressou ao IMO e marcou consulta para o réu e passou a ser por este seguido.

11. A 06/09/2004, o réu informou o autor, em consulta, que o seu quadro clínico se mantinha inalterado, desde 2002, e só poderia reduzir a miopia através da inclusão de uma lente ocular fáquica, por não ter espessura de córnea para reduzir a miopia através da cirurgia a laser, libertando-se dos óculos que o acompanhavam desde os 6 anos, tal como era a sua intenção.

12. Após ter realizado esta consulta, o autor voltou a marcar consulta com o réu, em 19/07/2005 e, nesta data, o quadro clínico era diferente daquele que tinha apresentado, em 06/09/2004.

13. O quadro clínico que o réu apresentou, na consulta de 19/07/2005, foi o seguinte, citando-se nesta parte o que consta da ficha clínica do auto:

a) “19/07/2005: Sente algumas perturbações e cefaleias.

b) VOD 0.7 e VOE 0.7 com correcção. Bio nota-se o aparecimento de opacidades sub caps posteriores incipientes. c) AR – 7.75-0.50(5) e – 7.50-1.00(175) tode 11 e 11 r/m e lio multifocais”.

14. Antes de 19/07/2005, a visão do autor, com correcção, com a utilização de óculos era de 10/10, ou seja de 100%, tendo observado, nesta consulta, com a mesma correcção e em ambos os olhos, passado a ser de 0.7, ou seja, de 7/10, ou seja, de 70%.

15. Nessa consulta de 19/07/2005, foi diagnosticado pelo réu ao autor o aparecimento de uma facosclerose dos cristalinos, vulgo cataratas, que é situação comum em doentes com o quadro de miopia e com a idade do assistente.

16. Um paciente com o quadro clínico descrito, sem óculos, só vê ao perto até cerca de 20 cm de distância; na visão intermédia (a partir dos 20/30 cm de distância até cerca de 1 metro) vê tudo desfocado; e no que concerne à visão ao longe, a partir de 1 metro de distância, nada vê.

17. Nos doentes com miopia, a tendência é para a estabilização da miopia, embora, com a força da idade se verifique a diminuição da visão média e ao perto – salvo se não emergirem outros quadros patológicos, como as cataratas, que implicam uma redução progressiva e acentuada da visão ao perto, intermédia e ao longe, até à cegueira do paciente, se não adequadamente tratada.

18. É muito frequente, em doentes, com o quadro clínico do autor, o aparecimento de cataratas a partir dos 40 anos. (…)

19. Cataratas são uma membrana, de natureza progressiva, que acaba por tapar, por completo, o cristalino, levando os pacientes à cegueira se não for tratada e que o respectivo tratamento, implica, obrigatoriamente, a intervenção cirúrgica que se traduz na remoção do cristalino e a implantação de lentes intra-oculares e que é a única terapia adequada indicada para o efeito.

20. Nessa mesma consulta, o réu informou novamente o autor da possibilidade de realização de intervenção cirúrgica consistente na colocação de lentes intra-oculares multifocais, tecnis-multifocal, e que tais lentes lhe permitiriam aumentar a sua acuidade visual.

21. A emergência de cataratas é frequente em doentes míopes com a idade que, à época, o autor tinha, 46 anos, e que, como é do conhecimento médico comum, era a única causa possível para a diminuição da acuidade visual que, nessa consulta, apresentava o autor em relação à consulta efectuada no ano anterior.

22. E foi após nova consulta, efectuada em 12/09/2005 – na qual o réu informou novamente o autor da possibilidade de realização de intervenção cirúrgica consistente na colocação de lentes intra-oculares multifocais, tecnis-multifocal - que o autor deu a sua anuência para a realização da operação, tendo, inclusive sido aconselhado pelo réu a colocar lentes tecnis-multifocal, tendo sido informado que deveria pagar 800€ pelas lentes, o que o autor veio a liquidar.

23. O réu informou o autor que a utilização de lentes multifocais seria preferível à aplicação de lentes monofocais, lentes estas que implicariam que deixasse de ver ao perto e que a cirurgia não demoraria mais de meia hora e que na semana seguinte já ia regressar ao trabalho.

24.[1] Também informou que as lentes intra-oculares multifocais, tecnis-multifocal, permitem aumentar a acuidade visual ao longe e ao perto.

25. Foi a 12/09/2005 que foram efectuados ao autor todos os testes necessários ao cálculo das lentes intra-oculares a implantar, testes que nunca poderiam ter sido efectuados no dia em que se efectuou a operação, na medida em que, nesse dia as lentes tinham, obrigatoriamente, que estar disponíveis para serem colocadas ao paciente.

26. Tendo o autor dado a sua anuência, nas circunstâncias referidas em 22, 23 e 24, para a realização da operação, e para a colocação das lentes multifocais, foi a mesma realizada, no dia 22/09/2005, pelo réu, nas instalações da IMO, tendo, após a cirurgia efectuada, o autor passado para uma acuidade visual de 10/10, 100% ao longe, e uma capacidade de visão ao perto, também de 10/10, 100%, carecendo de correcção para a visão intermédia (entre pelo menos os 30/40 cm e os 90/100 cm).

27. O réu, após cirurgia, entregou ao autor uma declaração em que se menciona que este “acaba de ser submetido a operação de catarata. A cirurgia correu bem e pode fazer uma vida normal. (…) É de esperar que nas primeiras horas/dia a visão esteja turva, podendo também haver alteração nas cores, não sendo de estranhar ver tudo avermelhado. Caso tenha dores, olho vermelho ou pálpebra inchada deve contactar-me sem demora para os telefones abaixo indicados (…). E um recibo respeitante a um implante intra-ocular, no valor de 800€.

28. Ainda no dia 22/09/2005, por documento particular com o timbre do IMO, assinado por DD, consta que “para os devidos efeitos se declara que o autor esteve presente, neste instituto, (…) a fim de realizar uma cirurgia intra-ocular e no dia 26/09/2005 estará apto a efectuar a sua vida normal e profissional.”

29. A intervenção cirúrgica efectuada a que o autor foi sujeito, e levada a cabo pelo réu, em 22/09/2005, não teve como objectivo único e exclusivo redução ou eliminação da miopia, antes tendo também o objectivo da remoção das cataratas de que o autor à data padecia.

30.[2] O autor deu o consentimento verbal para a cirurgia de colocação das lentes para perto e para longe, mas não para a remoção das cataratas, e não assinou qualquer documento a declarar o seu consentimento livre, esclarecido e informado, referente à operação realizada no dia 22/09/2005.

31. O autor quando recebeu a declaração referida em 27 ficou apreensivo, pois nunca lhe tinha sido referido que a operação era para as cataratas.

32. Logo após a cirurgia, o autor passou a ver círculos em volta das luzes (halos), deixou de ver as pessoas e os objectos com contornos nítidos e deixou de ter uma visão focada na média distância (entre aproximadamente os 30 e 100 cm) e na visão nocturna os objectos luminosos apareciam rodeados de anéis de luz e sem contornos definidos.

33. O autor deixou de conseguir sair de casa à noite, porque os candeeiros e os faróis dos carros se juntavam em grandes bolas de luz, sem contornos definidos; pelo menos, à distância entre cerca de 40 a 100 cm via tudo desfocado.

34. Em 23/09/2005 e em 29/09/2005, o autor foi observado, pelo réu, nas instalações do IMO, tendo-se constatado que efectuou um pós-operatório sem complicações fisiológicas, tendo sido referido na ficha clínica que “necessita de algum tempo para adaptação à sua situação”, isto é, às lentes que lhe foram colocadas e que o que sentia era normal e ia desaparecer com o tempo.

35. Em 29/09/2005, o réu assinalou na sua ficha clínica que o autor apresentava uma visão binocular 10/10 e conseguia ler ao perto sem óculos.

36. Por atestado médico emitido pelo réu, a 29/09/2005, nessa mesma consulta, atesta que autor não pode cumprir as suas obrigações profissionais por um período previsível de 18 dias, em virtude de se encontrar doente.

37. Ainda, nessa consulta, o réu prescreveu óculos ao autor, conforme resulta da análise do doc.12 que se dá por reproduzido.

38. O autor adquiriu os óculos prescritos pelo réu.

39. Mas em 03/10/2005 o autor telefonou para o réu a informar que, já tinha os óculos, mas não via nada a meia distância.

40. Na sequência desse telefonema, o réu pediu ao autor para que se fosse falar com ele no dia seguinte.

41. No dia 04/10/2005, o autor teve nova consulta com o réu, nas instalações do IMO, na qual foi acompanhado pela sua mulher e na qual o réu disse ao autor que as lentes estavam correctas para ver ao longe.

42. Disse, também, que para a visão ao perto teria de retirar os óculos.

43. Nessa consulta, o autor voltou a ser observado pelo réu, referindo grande dificuldade na visão intermédia, apresentando grande ansiedade por este facto, escrevendo o réu na sua ficha clínica “Aconselho calma e mais tempo de adaptação”.

44. O réu disse ao autor que este teria de abdicar da visão de meia distância.

45. O autor sentiu angústia e medo.

46. O autor é arquitecto e toda a sua actividade profissional depende da visão, nomeadamente, da visão a meia distância.

47. Nesta sequência, o autor questionou o réu sobre como é que conseguiria trabalhar, nomeadamente ao computador.

48. O réu respondeu que o autor teria de adaptar o seu trabalho e a posição do computador à sua nova visão.

49. Esta resposta provocou uma enorme perturbação no autor.

50. Entre os dias 06/10/2005 e 13/10/2005, o autor tentou contactar, por várias vezes, telefonicamente o réu.

51. No dia 12/10/2005, o autor conseguiu falar com o réu, o qual lhe disse que estava a tentar encontrar umas lentes para a visão intermédia junto de uma marca conceituada de lentes.

52. O autor começou a sofrer de grande angústia e ataques de pânico.

53. No dia 13/10/2005, o autor recorreu aos serviços da Drª EE, médica psiquiatra, conforme resulta do recibo doc.15 dado por reproduzido.

54. A Drª EE prescreveu ao autor medicamentos, conforme se comprova da análise do doc.16 dado por reproduzido.

55. Estes medicamentos tinham como objectivo minorar o estado de ansiedade e angústia em que o autor se encontrava, e que tinha surgido na sequência da intervenção médica realizada pelo réu.

56. No dia 14/10/2005, o autor teve nova consulta com o réu, nas instalações do IMO.

57. Nessa consulta, o autor questionou o réu sobre quanto tempo ainda iria durar o pós-operatório.

58. E informou-o que ainda mantinha problemas com a visão, nomeadamente ainda tinha névoas nos olhos e sensações de corpos estanhos nos mesmos.

59. Nessa consulta, o autor voltou a ser observado pelo réu e, considerando que continuava a apresentar queixas quanto à sua visão intermédia, foram-lhe prescritos óculos com a utilização de lentes interview, assinalando o réu na ficha clínica de fl.163 o seguinte: “Fiz pedido a ….. de lentes interview para melhoria da visão intermédia e peço montagem com a seguinte carta “O Sr. ….. […], apresentava -7.00.1.25(5) e -7.25.1.00(180) e foi submetido a intervenção cirúrgica com introdução de LIO multifocais od. e oe. Apesar da visão tanto ao longe como ao perto se poder considerar bastante satisfatória, o doente não está satisfeito pois a visão intermédia não se adequa às suas necessidades profissionais. Foi pedida a colaboração da ….. e foi proposta a utilização de lentes interview, cuja montagem terá de ser anómala e adequada a esta situação muito particular. Agradecia a Vª melhor atenção para este caso e envio lentes em mão, pois trata-se de uma oferta da …...”

60. O optometrista FF, a quem o autor recorreu para a montagem das lentes, não logrou entender o que era montagem anómala.

61. As lentes referidas em 59 não produziram quaisquer melhorias na visão intermédia do autor.

62. O optometrista FF sugeriu ao autor que solicitasse ao réu a prescrição de lentes progressivas.

63. O facto de voltar a não ter visão intermédia agudizou o estado de ansiedade do autor.

64. Em nova consulta, a 25/10/2005, o autor informou o réu da sugestão dada pelo optometrista FF.

65. E mais uma vez o autor referiu que mantinha as dificuldades de visão, que não conseguia sequer cortar as unhas dos pés, nem fazer a barba, porque via tudo desfocado.

66. Em 25/10/2005, o autor foi objecto de consulta pelo réu, tendo sido referido que sentia um ardor no olho esquerdo, e porque continuava a apresentar queixas relativamente à visão intermédia – assinalou o réu na ficha clínica de fl.163 que “as lentes montadas não resultaram bem”, foram-lhe prescritos óculos para meia distância com + 0.75 – 1.25 (180) no olho direito e + 1,00 – 1.25 (180) no olho esquerdo.

67. Em 02/11/2005, o autor, acompanhado pela mulher, foi objecto de nova consulta pelo réu, escrevendo este último na ficha clínica: “refere melhoria da visão intermédia com os óculos e já faz a sua vida normal. Queixa-se de sensação de corpo estranho oe [olho esquerdo]. Dilata oe, observação normal”.

68. Nesta consulta, foi efectuada dilatação ao paciente, dela resultando uma observação normal e a inexistência de quaisquer outras patologias.

69. O réu reiterou, nessa consulta, que a operação tinha corrido bem.

70. Afirmou que o problema do autor não era oftalmológico, mas de ansiedade.

71. Além disso o réu disse ainda ao autor que este tinha de adaptar a vida à sua nova visão.

72. O autor informou o réu que as lentes prescritas na consulta de 25/10/2005 não produziram nenhumas melhorias.

73. O réu sugeriu ao autor colocar o computador mais perto de si e ir buscar os desenhos para o raio de visão do foco de perto.

74. O autor informou o réu que era impossível trabalhar assim, que era impossível colocar o computador e desenhar no mesmo a 30 cm de distância.

75. Além disso era impossível analisar desenhos com 1,50 m x 1 m ou mais a 30 cm, pois estes têm de ser vistos na globalidade.

76. E estas situações são diárias no seu trabalho.

77. O autor perguntou, ainda, ao réu se as lentes que lhe tinha colocado tinham dois focos, um de visão de perto a 30 cm e outro de longe a partir dos 1,50/2 metros até ao infinito.

78. O réu confirmou.

79. O autor questionou, então, como é que poderia ver entre os 30 cm e os 1,50 m.

80. O réu respondeu que tinham de ir tentando encontrar as lentes adequadas para a visão intermédia.

81. Esta resposta perturbou profundamente o autor.

82. O autor ficou muito perturbado com toda esta situação e a sua depressão agravou-se.

83. Nessa consulta, o autor também questionou sobre a possibilidade de realizar nova intervenção cirúrgica para substituir as lentes multifocais por monofocais.

84. O réu disse que era completamente contra qualquer alteração das lentes, naquele momento, sem aguardar o período temporal de adaptação e afirmou que tudo o que tinha feito estava bem feito.

85. Face a esta atitude, o autor perdeu a confiança que ainda restava no réu.

86. Esta situação fez com que o autor se sentisse desorientado e profundamente infeliz.

87. A resposta do réu referida em 83 agravou o processo depressivo em que o autor se encontrava.

88. Após a cirurgia realizada pelo réu, o autor passou a ter dificuldade em ver e em interagir com a sua filha de 2 anos.

89. O que lhe causava muita angústia e stress.

90. O autor passou a sentir-se angustiado quanto ao seu futuro pessoal e profissional.

91. Em consequência o autor passou a isolar-se.

92. E perdeu o gosto pela vida social.

93. Nesta sequência, o autor procurou novo aconselhamento médico.

94. O autor consultou o Dr. GG, médico de clínica geral.

95. O Dr. GG elaborou relatório médico e prescreveu medicamentos, conforme documentos de fls. 182 e 183 cujo teor se dá por reproduzido.

96. O autor não foi trabalhar nos dias 2, 3 e 4/11/2005, por doença.

97. O autor voltou a entrar em contacto com o Dr. GG e informou-o de que se encontrava profundamente abalado, que não conseguia falar com ninguém, que chorava compulsivamente dia e noite.

98. Nesta sequência, o Dr. GG aconselhou o autor a ser visto pela Drª HH.

99. Em 28/10/2005, o autor teve a primeira consulta de psicologia clínica com a Drª HH conforme se comprova pelo recibo médico doc.19 dado por reproduzido.

100. No dia 09/11/2005, o autor teve nova consulta de psicologia clínica com a Drª HH, conforme se comprova pelo recibo médico doc.22 dado por reproduzido.

101. Entretanto, no dia 22/11/2005, teve nova consulta de psicologia clínica com a Drª HH, para acompanhamento da situação de depressão, conforme se comprova pelo recibo médico doc.27 dado por reproduzido.

102. Também a conselho do Dr. GG, o autor recorreu ao Dr. II.

103. O Dr. II explicou ao autor o processo cirúrgico a que tinha sido submetido.

104. Mais explicou que a extracção do cristalino é irreversível já não sendo possível a sua recolocação.

105. E que a operação de substituição das lentes (lentes multifocais por lentes monofocais[3]), é uma cirurgia que acarreta riscos, como qualquer outra cirurgia, sendo que especificamente, com o decurso do tempo poderá ocorrer a possibilidade do saco onde as lentes foram implantadas se rasgar, pois as lentes poderão estar já de tal maneira agarradas, fibrosadas ao saco do cristalino, que poderá inviabilizar a sua substituição.

106. O Dr. II no relatório médico de fl. 192 atestou: “Por ser verdade e me ter sido pedido declaro que o Exm. ….. […] recorreu à minha consulta no Hospital …. dia 15/11/2005 referindo dificuldades visuais na média distancia (entre 40 cm e 100 cm) que eu confirmei no exame oftalmológico geral e dificuldade visual na visão nocturna na presença de luzes (...)”

107. Nesta sequência o Dr. II aconselhou o autor a ir falar com o Dr. CC, director clínico do IMO, para este ficar a par do que se tinha passado na cirurgia.

108. O autor tentou, em 17/11/2005, marcar consulta de urgência com o Dr. CC.

109. O autor foi informado que o Dr. CC apenas tinha disponibilidade para Janeiro.

110. O autor explicou a sua urgência e deixou o seu contacto telefónico para que o médico o contactasse com a maior brevidade possível.

111. Em 18/11/2005, o autor foi consultado pelo Dr. CC, na companhia da sua mulher, tendo-se mostrado bastante insatisfeito, e ansioso, pelas dificuldades sentidas na visão intermédia, tendo este clínico, após o ter observado, referido que apresentava uma boa acuidade visual, tanto ao longe como ao perto, e que a intervenção efectuada pelo réu tinha sido correctamente executada em termos técnicos, que as lentes colocadas careciam de um período de adaptação, e mais referindo ainda, dada a insistência do autor, que caso este quisesse poderia substituir-lhe as lentes multifocais por lentes monofocais, se tal se justificasse, e sem qualquer ónus para si, tendo o autor ido para casa pensar.

112. Com a implantação das lentes monofocais, ir-se-ia manter a acuidade visual ao longe, enquanto passaria a ser necessária correcção através de óculos para a visão ao perto e intermédia.

113. A mulher do autor questionou o Dr. CC sobre os riscos da operação e se o autor seria operado aos dois olhos em simultâneo.

114. O Dr. CC respondeu que a operação tinha os riscos inerentes a uma cirurgia comum.

115. Porém, o Dr. CC, após nova observação do autor, no dia 21/11/2005, reiterou-lhe que as lentes colocadas careciam de um período de adaptação e que, por isso, não julgava justificado efectuar, naquele momento, qualquer cirurgia de substituição das lentes intra-oculares, mas que findo aquele período, caso o autor não se adaptasse, faria a substituição.

116. Mediante esta afirmação, o autor ficou chocado, pasmado, revoltado e ansioso.

117. O autor informou o Dr. CC que sentia corpos estranhos nos olhos, “tipo grãos de areia”.

118. O Dr. CC prescreveu ao autor os medicamentos indicados na receita médica n.º …… doc.25 dado por reproduzido.

119. Na sequência de ter perdido a confiança no réu, o autor decidiu consultar outro médico oftalmologista.

120. E no dia 23/11/2005, foi observado pelo Doutor JJ, médico oftalmologista, conforme recibo médico doc.28 dado por reproduzido

121. Nessa consulta, o autor foi acompanhado pela sua mulher.

122. Este médico, após o autor lhe ter relatado a sua situação e depois de exame oftalmológico, informou que a solução para o problema do autor era a substituição de lentes multifocais, por lentes monofocais.

123. O autor fez uma pré-marcação de cirurgia na Clínica ….. na …… para o dia 05/01/2006 que não se chegou a realizar.

124. No relatório da Drª HH, junto a fls. 200 e 201 e se dá por reproduzido pode ler-se:

“O [autor], de 46 anos de idade, começou a ser acompanhado na consulta de Psicologia do Hospital ……, na data de 28/10/2005. Apresentava sintomas claros de depressão com componente ansioso, cujo início se situou após a inadequação a umas lentes multifocais colocadas nos olhos numa intervenção cirúrgica oftalmológica realizada dias antes da consulta.

Segundo a descrição do paciente decidiu realizar a cirurgia por lhe terem sido dadas garantias de que ficaria com uma visão mais precisa e com muito maior autonomia, que na situação de miopia elevada que possuía. O paciente, arquitecto de profissão, depende da sua acuidade visual para o desempenho adequado do seu trabalho. Depois do pós-operatório, apercebeu-se, segundo relatou, que a cirurgia não correspondia em nada às expectativas criadas. Com esta constatação descreveu ter-se sentido incapaz de fazer as coisas mais básicas, dependente da ajuda dos outros para se orientar à noite, não conseguindo realizar o seu trabalho adequadamente por não ver as maquetas e planos como um todo, impossibilitado de trabalhar no computador, etc.

O paciente apresentava humor depressivo, choro fácil e desespero, muita revolta pela situação e preocupação face ao seu estado presente ao futuro da sua vida laborar e familiar, etc..

Estes sintomas correspondem a um diagnóstico de perturbação de adaptação mista com humor depressivo e ansiedade (F43.22- DSM-IV).

A partir desta data começou a ter acompanhamento psicológico e paralelamente iniciou o processo de consultar outros médicos oftalmologistas apresentando-lhes o seu caso. Embora tenha surgido a esperança de haver algo a fazer para corrigir a situação médica presente, o receio de uma nova intervenção cirúrgica, a possibilidade de as expectativas serem novamente defraudadas e a revolta por todo este episódio da sua vida agravaram os sintomas emocionais (...).

125. Numa declaração escrita de Dr. LL junta a fl. 202 e cujo teor se dá por consta: “Para os devidos efeitos declaro que o Sr. ….., (...), existe um quadro depressivo diagnosticado grave, que compreende o diagnóstico formal de “episódio depressivo major” (…).

126. No dia 26/11/2005, o autor consultou o Dr. MM, médico psiquiatra – cfr. doc. de fl. 203 cujo teor se dá por reproduzido.

127. O Dr. MM receitou ao autor vários medicamentos para a depressão – cfr. doc. fl. 204 cujo teor se dá por reproduzido.

128. E elaborou relatório médico de fl. 205 cujo teor se dá por reproduzido, no qual se pode ler: “Trata-se de um doente de 46 anos de idade que iniciou quadro greve de ansiedade, queixas depressivas e ideação suicida num contexto reactivo a intervenção cirúrgica a ambos os globos oculares, cirurgia que, no seu parecer, não foi bem sucedida por não ter tido resultados compatíveis com as expectativas, as quais segundo diz, terão sido fundadas com base em informação insuficiente (...). O presente quadro clínico condiciona grave compromisso funcional, pessoal e interpessoal, estando neste momento incapaz de cumprir com a sua actividade profissional por um período de tempo não determinado, pelo que sugiro que lhe seja concedida licença por doença por trinta dias, após o que será novamente avaliado”

129. Tendo em conta as características degenerativas que implica o aparecimento de cataratas, não se deve pretender curar a miopia sem, desde logo, efectuar o tratamento das cataratas, pois a evolução destas implicaria sempre a perda acentuada da acuidade visual do paciente, tornando ineficaz a eventual correcção da miopia que se tivesse feito porque, aí, o doente deixaria de ver a qualquer distância.

130. A facoemulsificação é a operação típica de correcção das cataratas, as quais são então removidas por meio da dita facoemulsificação ou cirurgia com pequena incisão, procedimento através do qual, usando apenas anestesia tópica (colírios) se faz uma incisão na parte branca do olho ou na córnea clara (logo acima da área onde a córnea encontra a esclera, sendo depois, com o ultra-som, a catarata fraccionada em partículas microscópicas e aspirada; em seguida, para compensar a remoção do cristalino, é implantada uma lente intra-ocular.

131. A cirurgia efectuada pelo réu foi adequada ao tratamento do seu problema de saúde, que era desde logo a existência de cataratas, e isto à luz dos ensinamentos da ciência médica contemporânea.

132. As alterações da capacidade de visão referenciadas em 32 e 33 determinadas pela intervenção cirúrgica efectuada pelo réu e a inadaptação do autor às mesmas determinaram que o autor se visse limitado no exercício da sua profissão de ......, vindo mesmo a abandonar a tarefa que desempenhava na E....... de coordenação de projectos na sequência de várias baixas médicas.

133. Por acórdão proferido na …. Vara Criminal ….., no proc. 2686/06……, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação ….. de 13/12/2012, o réu foi absolvido da prática do crime de ofensa à integridade física por violação das leges artis, p. e p. nos termos dos artigos 150, nºs 1 e 2, e 143 do Código de Penal, nos termos constantes da sentença, nas páginas 101 e 102 do aresto, referindo-se ao referido tipo de ilícito criminal:

“Pois bem, o primeiro dos elementos exigidos não oferece qualquer dúvida quanto à sua verificação, pois que dúvidas também não existem que o arguido é um médico – mais designadamente, médico oftalmologista, tendo-se licenciado em medicina em 1978, entrado para a Ordem da Especialidade de Oftalmologia em 1987. Ou seja, é médico, e especialmente habilitado em termos científicos e profissionais a realizar uma intervenção médico-cirúrgica como aquela que aqui levou a cabo. No que respeita aos restantes elementos necessários – intenção terapêutica, indicação médica e respeito pelas legis artis - pode globalmente dizer-se que a pronúncia assentava a imputação de ofensas à integridade física ao arguido na circunstância de a intervenção levada a cabo (remoção dos cristalinos dos olhos do assistente, e colocação na câmara posterior de cada um deles, em substituição do cristalino removido, de uma lente intra-ocular multifocal de marca ….) não era o adequado ao tratamento do seu problema de saúde, que, na pronúncia, vinha configurado como sendo apenas e só o de miopia. Ou seja, o arguido, com vista apenas a corrigir a miopia do assistente, teria efectuado sobre o mesmo uma intervenção cirúrgica totalmente desaconselhada terapeuticamente, por excessiva, designadamente no respeitante à remoção dos cristalinos do assistente, procedimento que, em tais circunstâncias, seria totalmente desnecessário. Sucede, porém, que ficou assente nos autos que a intervenção cirúrgica efectuada pelo arguido em 22/09/2005 não teve como objectivo único e exclusivo a redução ou eliminação da miopia do mesmo assistente, antes tendo também o objectivo da remoção das cataratas de que o assistente à data padecia. Na verdade, deu-se por assente que em consulta efectuada pelo arguido ao assistente em 19/07/2005, foi diagnosticada pelo primeiro o aparecimento de uma facosclerose dos cristalinos do segundo, vulgo cataratas, que é situação comum em doentes com o quadro de miopia e com a idade do assistente; assim, o assistente, quando foi sujeito a intervenção cirúrgica de 22/09/2005, padecia de cataratas, cuja evolução, caso não tivesse sido realizada uma intervenção médico-cirúrgica como a efectuada pelo arguido, iria implicar a diminuição acentuada dos seus níveis de visão. Também se deve considerar haver ficado demonstrado que a operação levada a cabo pelo arguido era indicada para debelar a patologia diagnosticada, e, assim, para o seu tratamento perante o quadro clínico diagnosticado, do aparecimento de cataratas na pessoa do assistente, a remoção do cristalino dos seus olhos e a implantação de lentes intra-oculares era a única conduta e tratamento clínico possível e adequado, uma vez que as cataratas são uma membrana, de natureza progressiva, que acaba por tapar, por completo, o cristalino, levando os pacientes à cegueira se não for tratada, implicando o respectivo tratamento obrigatoriamente, a intervenção cirúrgica que se traduz na remoção do cristalino e que é a única terapia indicada para o efeito. Finalmente, não ficou também positivamente demonstrado nos autos que a conduta do arguido foi contrária ou divergente daquela que se impunha na ocasião e perante as circunstâncias concretas do caso, designadamente no que respeita ao diagnóstico e forma de execução do acto clínico-cirúrgico por si levado a cabo sobre a pessoa do assistente – aliás, em termos de técnica-cirúrgica nenhum facto concreto vinha imputado ao arguido no sentido de se poder concluir por uma errada execução da operação que levou a cabo em si mesma.”

134. A decisão referida, confirmada como referido, condenou o réu pela prática do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto e punível nos termos dos artigos 156/1 e 157 do Código Penal.

135. O autor, na sua vida diária, antes da cirurgia, tinha um comportamento cauteloso, prudente e perfeccionista.

136. No dia 02/12/2005, o autor teve uma consulta com o Professor Doutor NN, no Centro Cirúrgico  …., e onde se queixou de diminuição acentuada da visão nocturna causando limitação enorme, bem como perca da visão intermédia, conforme recibo médico doc.35 dado por reproduzido.

137. O Dr. NN efectuou análise oftalmológica e observou presença de pseudofaquia bilateral com lentes tecnis multifocais, bem como limitação na visão intermédia.

138. Foi proposta, ao autor, extracção das referidas lentes e implantação de lentes monofocais para obviar as queixas subjectivas, o que o autor aceitou.

139. Foi remetido à seguradora MEDIS, com o grau de urgência o impresso de informação clínica, cujo teor se dá por reproduzido a fl.207.

140. Em 14/12/2005, o autor teve nova consulta de psicologia, conforme doc. de fls.209, cujo teor se dá de reproduzido.

141. Em 21 e 26/12/2005, o autor submeteu-se a cirurgia ao olho esquerdo e direito, respectivamente, realizada pelo Professor Dr. NN, no Centro Cirúrgico  …., conforme resulta do teor do documento de fls. 210 e 211, cujo teor se dá por reproduzido.

142. O objectivo, destas cirurgias, foi remover as lentes multifocais e implantar lentes monofocais, para obviar às queixas de diminuição acentuada de visão nocturna, designadamente dos halos e da desfocagem de imagem e perca de visão intermédia – cfr doc de fls. 210 a 212 cujo teor se dá por reproduzido.

143. O autor esteve de baixa de 21/12/2005 a 31/01/2006, conforme resulta de certificados de incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença – cfr doc de fls. 213 e 214 cujo teor se dá por reproduzido.

144. O autor compareceu a duas consultas de rotina para aferição dos resultados pós-operatório, nos dias 5 e 23/01/2006.

145. Na consulta de 05/01/2006 foram prescritas, ao autor, lentes provisórias para visão de perto (cfr doc fls. 215 cujo teor se da por reproduzido).

146. Na consulta de 23/01/2006, foram prescritas lentes progressivas, cfr doc fls 216 cujo teor se dá por reproduzido.

147. Durante todo este processo, desde a cirurgia realizada em 22/09/2005, o autor sofreu um profundo desgaste físico e psicológico.

148. Passando dias inteiros deitado na cama às escuras para não ter de enfrentar a vida e as limitações de visão.

149. O autor recorreu, ainda a consultas de medicina natural, conforme recibo médico que se junta a fl. 217 cujo teor se dá por integralmente reproduzido

150. Estas consultas tinham como objectivo tentar controlar o desgaste que as consequências da inadaptação às lentes multifocais provocaram.

151. O réu não esclareceu todos os riscos da operação a que este se sujeitou.

152. O réu declarou que o autor estava em condições de fazer a sua vida normal, depois da cirurgia e tal não sucedeu.

153. O réu não disse ao autor, previamente à cirurgia, que este teria de abdicar da sua visão a meia distância.

154. O autor suportou um total de 158,50€ com o pagamento de consultas de oftalmologia, conforme resulta das cópias dos recibos juntos como docs. 4 [12,50€], 6, 20 [16€], 24, 28, 35 e 46 que se dá por reproduzido.

155. O autor suportou, também, um total de 462€ com o pagamento de consultas de psicologia e psiquiatria, bem como com consultas de medicina natural, conforme resulta das cópias dos recibos juntos como doc. 15, 19, 22, 27, 32, 37 e 45.

156. O autor suportou, ainda, um total de 1081,11€ com o pagamento de medicamentos e lentes, conforme resulta dos docs. 9, 14, 33 e 47 a 50 que se dão por reproduzidos.

157. Na sequência quer da primeira quer da segunda cirurgia oftalmológica, o autor não consegue focar a meia distância de forma irreversível.

158. E ficou a ver os objectos sem contornos nítidos.

159. O autor sofre de dores de cabeça.

160. O autor precisa de utilizar sempre óculos.

161. Na sequência das duas cirurgias, para poder realizar as tarefas diária o autor tem de utilizar 4 óculos diferentes: de dia (progressivos), para perto, para ver televisão e para pormenores.

162. Sem óculos, o autor deixou de conseguir ver a filha com nitidez.

163. Sem óculos, o autor deixou de conseguir realizar actividades básicas diárias, como fazer a barba ou cortar as unhas dos pés.

164. O autor deixou de conseguir realizar todas as funções que antes desempenhava no seu trabalho.

165. Toda esta situação causou muita ansiedade e desgaste físico e psicológico ao autor.

166. O autor, vivenciou ansiedade, sofrimento, angústia, medo e pânico.

167. O autor costumava ser uma pessoa divertida, alegre, que apreciava a vida, que gostava de estar com os amigos e com a família.

168. Em consequência da cirurgia oftalmológica levada a cabo pelo réu, e da mesma não corresponder às suas expectativas, sofreu um quadro clínico de perturbação da adaptação mista de ansiedade e humor depressivo.

169. O autor deixou de ter vontade de estar com os amigos.

170. O autor passou a isolar-se.

171. O autor deixou de conseguir brincar e interagir com a filha.

172. O autor perdeu o gosto de viver.

173. O autor passou a tomar medicação muito forte, por causa da depressão.

174. Os psicofármacos tomados pelo autor faziam com que este dormisse o dia inteiro e impediam-no de participar na dinâmica familiar de estar com os amigos.

175. Os psicofármacos tomados pelo autor, provocou-lhe a perca total de libido e ausência de ejaculação.

176. Esta situação faz com que o autor se sinta triste.

177. O projecto de família, que consistia em ter mais filhos, ficou destruído pelas consequências da medicação tomada.

178. Para tentar obviar esta situação, a mulher do autor, realizou na IVI Portugal, duas tentativas de reprodução médica assistida (in vitro), em 2009 e 2010, sem resultados positivos.

179. O autor sentiu-se ansioso pela incerteza sobre as suas capacidades para continuar a desenvolver a sua actividade profissional, o que diminuiu a sua auto-estima.

180. O autor intentou contra a E....... um processo, que correu no ….. juízo, …..ª secção do Tribunal de Trabalho ….., 1552/07……, no qual se discutiu a ilicitude do seu despedimento, acção esta que foi julgada improcedente.

181. Consta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nesse processo, na factualidade dada como assente a páginas 29 e seguintes do referido acórdão:

“(…)

23. Em 2004, o autor inscreveu-se no Mestrado em ….. na Faculdade de de Arquitectura

24. A 23/11/2004, o autor recebeu uma carta da Faculdade de de Arquitectura informando-o de que não existia número de alunos suficiente para o Mestrado, sendo que o mesmo fora adiado para o ano lectivo de 2005/2006.

25. No dia 19/09/2005, o autor foi informado pela Faculdade de de Arquitectura que tinha sido seleccionado para o mestrado em …… e que o prazo para inscrição no mesmo era até 30/09/2005 e inscreveu-se no mestrado em ……. no dia 28/09/2005.

26.O referido mestrado iniciou-se no dia 07/10/2005. (…)

28. O A solicitou verbalmente ao Administrador OO autorização para frequentar o Mestrado em ……. durante o período laboral.

29. Nesse sentido OO foi contactado pela …. PP, Directora da Direcção Técnica …. que se encontrava de baixa médica, e decidiram não autorizar o autor a frequentar o Mestrado em …. (…)

32. Concretamente na carta de 25/05/2006, subscrita pelo Dr. QQ. Director de Recursos Humanos da E......., este afirma que na semana anterior, ou seja, na semana de 15 a 19/05/2006, este mesmo Director da E....... tomou conhecimento de que o colaborador [autor] estaria a frequentar um curso de mestrado na Faculdade …. da U…….

45. O autor frequentou o mestrado durante o período de baixa médica mas fê-lo mediante recomendação expressa do seu medico o Prof Doutor LL.

53. O processo disciplinar foi instaurado em 28/07/2006.

54. O autor esteve presente às aulas do curso de Mestrado em ….. nos seguintes meses e dias (sendo sextas a negrito e sábados os demais dias): Outubro/0: 7, 14, 15, 21, 28 Novembro/05: 4, 5, 11, 18, 19, 25 Janeiro/06: 13, 20, 21, 27, 28 Fevereiro/06: 3, 4, 10, 11, 17, 18, 24 Abril/06: 21, 22, 28 Maio/06: 6, 19, 26 Junho/06: 2, 3, 23”.

182. A acuidade visual do autor reduziu na sequência da cirurgia efectuada pelo réu e limitou a sua actividade profissional.

183. O autor esteve de baixa médica, pelo menos, entre o dia 26/09/2005 até 14/10/2005, 2, 3 e 04/11/2005 também devido à operação a que foi sujeito.

184. O autor teve de deixar de fazer as tarefas que desempenhava na E......., de coordenação de projectos.

185. A falta de autorização para a frequência do mestrado por parte da E......., entidade patronal do autor, originou os factos nos quais se sustentaram o processo disciplinar que a E....... instaurou ao autor.

186. E foi na sequência desse processo disciplinar que o autor foi despedido.

187. O autor deixou de auferir um ordenado mensal de 2652,65€.

188. Até à presente data, o autor continua numa situação de desemprego.

189. A decisão de despedimento foi proferida em 24/10/2006.

190. O autor não só teve de gerir a depressão que sofreu na sequência da cirurgia levada a cabo pelo réu como teve de lidar com um processo judicial no âmbito laboral, o que lhe causou imenso sofrimento e desgaste a si e à sua família.

191. O réu acordou com o IMO, a troco de um preço previamente fixado por aquele pago, a utilização das suas instalações e dos seus equipamentos para que ele possa aí exercer a sua actividade médica, tal como acontece com outros médicos.

192. Após a cirurgia efectuada pelo réu, o autor passou a ver círculos à volta das luzes (halos), o que constitui uma consequência frequente desta operação, que, por regra, tem natureza temporária pois só se mantém durante o período de neuroadaptação sensorial às lentes e vão desaparecendo progressivamente.

193. A limitação que passou a ter na visão intermédia, é uma limitação decorrente da aplicação de qualquer das lentes que lhe podem ser aplicadas – monofocais ou multifocais – por força de uma operação às cataratas.

194. O réu nunca se recusou a atender os telefonemas do autor.

195. O optometrista FF não contactou o réu para obter esclarecimentos sobre a colocação destas lentes

196. A visão que pode ser afectada através da aplicação das lentes multifocais, embora, em regra, essa afectação possa ser corrigida com a utilização de óculos adequados, que depende de doente para doente, é a visão intermédia, que corresponde à visão entre os 30 e os 90 cm/1 m.

197. [4] A impossibilidade do exercício de funções de ...... pela perda da visão intermédia, poderia ter sido ultrapassada, se o autor se adaptasse às lentes intraoculares multifocais, no final do período de adaptação neurosensorial às lentes.

198. [5]

199. [6]

200.[7] A aplicação de lentes multifocais depende de um período de neuro adaptação sensorial que, dependendo de doente para doente, pode ir até ao prazo de seis meses ou mais, considerando-se em 2005 que não seria superior a 3 meses.

201. Período de neuro adaptação sensorial findo o qual o paciente, na maioria dos casos, faz a sua vida normal, por regra (cerca de 3% não se adaptam), sem quaisquer problemas, porque desaparecem as dificuldades de visão, nomeadamente os halos.

202. [8] Esta comunicação foi feita ao autor pelo réu nas consultas que com ele teve em 25/10/2005 e em 02/11/2005.

203. Esta comunicação foi feita ao autor pelo Dr. CC, quando, em 18 e 21/11/2005, o consultou.

204. As lentes monofocais só permitem ver ao longe sem correcção, sem óculos, carecendo o doente de óculos para ver ao perto e a média distância.

205. As lentes multifocais, permitem-lhe ver ao perto e ao longe sem qualquer correcção, carecendo, apenas, em certos casos, de óculos para ver à média distância.

206. Com as lentes monofocais, o autor, a partir dessa data, passou a ter necessidade de utilizar óculos para ver ao perto e a meia distância, enquanto, com as lentes multifocais que lhe foram aplicadas pelo réu, e passado o período de neuro adaptação sensorial, poderia só carecer de óculos para ver à média distância.

207. Se essa adaptação se tivesse verificado com sucesso, como aconteceu com doentes a quem o réu as implantou, não iria carecer de óculos para ver ao perto.

208. Se o réu e o autor tivessem optado, em 22/09/2005, por terem implementado as lentes monofocais, a acuidade visual do autor hoje seria a mesma que tem actualmente, pelo facto de serem estas lentes que lhe foram aplicadas pelo Dr. NN, nas intervenções cirúrgicas que lhe efectuou em 21 e 26/12/2005.

209. Se, findo o período de neuro adaptação sensorial que é aconselhado para o uso destas lentes, o autor não tivesse concretizado essa adaptação, então ser-lhe-iam substituídas as lentes multifocais por lentes monofocais, com as limitações da acuidade de visão de que o autor hoje padece.

210. O autor padecia de neuropatia, desde os 18 anos, que não comunicou atempadamente ao réu, antes da cirurgia ocular a que foi submetido.

211. Quando o autor foi despedido, em 24/10/2006, desde Dezembro de 2005, o autor já não tinha as lentes multifocais que lhe foram implantadas pelo réu.

212. O autor é que escolheu o médico por quem queria ser consultado e operado.

213. O IMO não teve qualquer intervenção nas consultas, exames e tratamentos que os médicos lhe terão efectuado, pois eles são autónomos e independentes para o fazer.

214. Por contrato de seguro do ramo de responsabilidade civil o réu transferiu para a AGEAS a responsabilidade civil profissional decorrente da sua actividade médica especialidade de oftalmologia titulado pela apólice …..

215. O referido contrato é regulado pelas condições gerais e pela condição especial 21 e pelas condições especiais particulares.

216. O contrato de seguro garantia a responsabilidade civil profissional do réu até ao montante de 600.000€, ficando limitado em cada sinistro a 50% desse valor, sendo aplicada, a cada sinistro, relativamente a danos patrimoniais, uma franquia de 10% do valor reclamado com o mínimo de 125€.

217. Nos termos das condições gerais do referido contrato de seguro: no seu artigo 4, com a epígrafe exclusões absolutas consta: “ficam sempre excluídos da garantia de cobertura desta apólice os seguintes danos: “a) decorrentes de actos ou omissões dolosas do tomador do Seguro”.

218. No artigo 5 das Condições Gerais com a epígrafe “Exclusões relativas” consta que o presente contrato não garante também a responsabilidade civil emergente de: “i) perdas indirectas de qualquer natureza, lucros cessantes e paralisações.”

219. Nos termos da condição especial 21 do contrato de seguro referido em 217, em vigor no ano de 2013, no seu artigo preliminar consta: “A presente condição especial Responsabilidade Civil Profissionais de Saúde complementa, derroga as condições gerais do seguro de responsabilidade civil geral, nos termos abaixo expressos e nos constantes das condições particulares, onde esta condição especial, para vigorar, deverá ser expressamente mencionada na sua cláusula 1, e no seu artigo 1º consta: “nos termos desta condição especial, o segurador garante a responsabilidade civil do segurado inerente ao exercício da profissão especificada na proposta do contrato nos seguintes termos: (…) b) por danos causados a clientes ou terceiros em consequência de actos ou omissões negligentes cometidos pelo segurado no exercício da sua profissão. (…)

220. A remoção definitiva do cristalino é uma cirurgia que também se faz em pessoas, com mais de 60 anos e com cataratas.

221. A remoção definitiva do cristalino não é adequada para o tratamento da miopia.

222. O réu não informou o autor de que a intervenção cirúrgica em causa implicava a desfocagem da visão de objectos situados, pelo menos, a distância entre 30 a 90 cm, nem que poderiam surgir halos em redor dos objectos luminosos, que desapareceriam no final do período de adaptação às lentes, nem de que a eventual adaptação dos pacientes em situações similares depende da concreta capacidade de adaptação neurofisiológica de cada um às mesmas que poderá ir até uns seis meses.


O DIREITO


I) Das nulidades do Acórdão recorrido

Dado que as arguições de nulidade do Acórdão recorrido têm o mesmo fundamento e o mesmo enquadramento normativo, opta-se pelo seu tratamento conjunto, não obstante sucessivo.

Alega, desde logo, o autor que:

E. Em primeiro lugar, cabe dizer que deve a recorrida sentença ser considerada nula nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil, porquanto esta contem uma contradição nos seus próprios termos que dita a impossibilidade de compreender devidamente o valor global da indemnização e a articulação da responsabilidade dos R.R., ou seja, por que quantia da indemnização é responsável cada um dos ora Recorridos.

F. Nestes termos, a decisão de que ora se recorre violou o artigo 615.º n.º 1 do CPC”.

Alega, depois, a ré seguradora Ageas que:

3ª - Quanto aos € 33.005,80 há uma nulidade do objecto do processo contra a recorrente por ausência de causa dessa pretensão.

(…)

15ª - O douto acórdão cometeu a nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, alíneas b) e c) (…)”.

Alega, por último, a ré clínica IMO que:

A. A decisão recorrida, ao ter condenado os Réus no pagamento de indemnizações que excedem o valor global da indemnização fixada, isto é, no valor global de € 36.673,11 €, padece da nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, nº c) do CPC, por padecer de ambiguidade ou obscuridade que a torna ininteligível”.

Na parte relevante, o artigo 615.º, n.º 1, do CPC é do seguinte teor:

É nula a sentença quando:

(…)

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Como resulta do Relatório do presente Acórdão, sobre a nulidade da decisão já se pronunciou substancialmente o Tribunal a quo no Acórdão de 25.02.2021 (em que foram formalmente apreciados os requerimentos de rectificação de erro material apresentados pela ré clínica e pela ré seguradora), recusando que se verificasse tal nulidade.

Explicou o Tribunal recorrido:

- a propósito da responsabilidade da ré clínica, que “o que consta da decisão é a condenação dos 3 réus no valor global de 36.637,11€, só e apenas [ou seja, o autor só tem direito àquele valor e mais nada… para além dos juros…], a pagar pelo réu BB (10%), pela ré seguradora AGEAS (90%) e pela ré IMO (90% daquele valor) [cada um dos réus tem de pagar o que resulta destas condenações]”.

- a propósito da responsabilidade da ré seguradora, que “quer o réu BB quer a ré AGEAS estavam condenados, por uma sentença de 1.ª instância nessa parte transitada em julgado, a pagar ao autor 35.000€ repartidos assim:

O réu BB 3.500€

A ré AGEAS 31.500€ (= 35.000€ - 3.500€/franquia a pagar pelo réu BB).

No acórdão acrescentou-se a condenação de mais 1667,31€, pelo que o valor global ficou a ser de 36.667,31€ (= 35000€ + 1667.31€).

No acórdão demonstrou-se que o valor da condenação acrescentada corresponde aos danos decorrentes da remoção das cataratas, em que a responsabilidade é do réu BB e não da ré IMO, sendo que a seguradora AGEAS responde pelos valores em que o réu for condenado.

Pelo que, já estando ambos condenados pelo valor de 35.000€, sendo acrescentados 1667,31€, da responsabilidade de ambos, o valor pelo qual passaram a estar condenados passou a ser de 36.667,31€, sendo que 10% eram da responsabilidade do réu BB e 90% eram da responsabilidade da AGEAS.

Repete-se: o acrescento de 1667,31€ dizia respeito a danos reportados à remoção das cataratas, da responsabilidade do réu BB, pelo que por eles também respondia a seguradora. Pelo que a parte acrescentada por este acórdão é da responsabilidade da AGEAS também. A outra parte vem da sentença transitada e não se pode mexer.

A forma como o réu BB e a ré AGEAS respondem por aqueles valores é determinada pela sentença da 1.ª instância até ao montante de 35.000€. A forma como eles respondem pelo valor acrescido de 1637,11€ é a mesma da determinada na 1.ª instância, porque o acórdão não mexeu na lógica dessa condenação, transitada em julgado, sendo que o réu BB responde por 10% como franquia”.

O que se passou, resumidamente, é que a Relação alterou a decisão do Tribunal de 1.ª instância em dois pontos: aumentou o valor total da indemnização (em € 1.673,11) e decidiu que a ré clínica devia também ser responsabilizada.

Nesta conformidade, a responsabilidade desta última é – não pode deixar de ser – uma responsabilidade solidária e não uma responsabilidade que acresce à responsabilidade dos outros dois sujeitos. Se assim fosse, o autor teria direito a receber, de responsáveis distintos, duas vezes o valor total da indemnização (2 x € 36.673.11), o que seria absolutamente injustificado.

Quanto aos valores da indemnização que devem ser suportados por cada um dos responsáveis há igualmente algumas precisões. Dado que o réu médico havia celebrado um contrato de seguro para transferência, em certos termos, da sua responsabilidade civil (cfr. factos provados 214 a 219), é compreensível que a ré seguradora assuma, pelo menos parcialmente, a obrigação de indemnizar que recai sobre o réu médico. Existindo uma franquia de 10%, o valor correspondente, ou seja, € 3.667.31, é suportado em exclusivo pelo réu médico. Por sua vez, por força daquele contrato de seguro, é à ré seguradora que compete assumir o grosso (90%) da indemnização, ou seja, € 33.005,80.

Quanto à ré clínica, ela é, como se disse, solidariamente responsável por parte da indemnização – pela parte da indemnização correspondente aos danos resultantes do ilícito pelo qual o Tribunal recorrido a considerou também responsável (a colocação de lentes intraoculares), já que, segundo ele, os danos restantes resultam de ilícito pelo qual ela não é responsável (a remoção das cataratas). A ré clínica é, assim, solidariamente responsável por € 33.005,80 (90% da indemnização).

Bem interpretado (interpretado de forma contextualizada), como deve ser, o Acórdão recorrido, verifica-se que foi isto o que o que decidiu o Tribunal da Relação …., pelo que não há falta de fundamentos nem ininteligibilidade ou contradição a apontar-lhe. Numa palavra: não se verifica a alegada nulidade do Acórdão recorrido.

As considerações acabadas de tecer são válidas para a alegação de erro material de cálculo do Acórdão recorrido, pelo que deve considerar-se igualmente decidido (indeferido) o requerimento de 11.03.2021, apresentado pela ré clínica a este Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 614.º, n.º 2, do CPC, onde se reitera o pedido de rectificação com fundamento naquele erro material.


*


As questões seguintes entram já no mérito do recurso e podem sintetizar-se em três: a questão, suscitada no recurso do autor, de saber se o montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser aumentado, a questão, suscitada no recurso da ré seguradora, de saber se deve ser alterada a quota parte da responsabilidade que lhe atribuída, e, por fim, a questão, suscitada no recurso da ré clínica, de saber se ela também deve ser responsabilizada


II) Do quantum indemnizatório a título de danos não patrimoniais

Como decorre da leitura do Acórdão em crise, o Tribunal recorrido entendeu que, além do ilícito contratual (violação dos deveres de informação no âmbito da intervenção contratada respeitante à colocação de lentes intraoculares), o réu médico havia cometido ainda um ilícito extracontratual ao ter realizado a intervenção de remoção das cataratas, considerando-o um “tratamento arbitrário feito no corpo do autor”. Segundo o Tribunal da Relação, foi perpetrada uma ofensa grave ao direito à livre autodeterminação do autor, não só pelo facto de ele não lhe ter sido facultada informação sobre a intervenção como, sobretudo, por não lhe ter sido dada a oportunidade de escolher entre as lentes monofocais e bifocais.

Ainda assim, concluiu o Tribunal recorrido que inexistiam razões para aumentar o valor da indemnização por danos patrimoniais para além do fixado na sentença recorrida.

Pode ler-se na fundamentação do Acórdão, no que toca a esta questão:

(…) os danos não têm, manifestamente, a gravidade que o autor lhe dá: primeiro, ninguém, razoavelmente, optaria pela rápida perda gradual da visão devido à existência das cataratas; segundo, não é unívoca qual a solução que uma pessoa razoável escolheria: se as lentes bifocais (às quais, se se adaptasse, deixaria de ter de usar óculos), se as lentes monofocais (teria sempre de usar óculos para as outras formas de visões não escolhidas), para mais sabendo-se que era intenção do autor deixar de usar óculos (factos 8 e 11, parte final); terceiro, a situação não era irreversível e as lentes poderiam, como aconteceu, ser substituídas: era e foi pois uma situação temporária; em 3 meses foi ultrapassada e o autor passou a estar na situação em que estaria se desde o início tivesse optado pela colocação das lentes monofocais. Ou seja, e principalmente, não se verificam os danos irreversíveis que o autor vai constantemente sugerindo que tem.

Por outro lado, há uma série de danos, em relação aos quais não se pode dizer que estão numa relação de causa e efeito adequada (art. 563 do CC) com os ilícitos praticados pelo réu, pois que no juízo de adequação apenas se devem tomar em consideração, para além das circunstâncias efectivamente conhecidas do agente, as circunstâncias reconhecíveis à data do facto para um observador experiente (Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 9.ª edição, Almedina, 1998, páginas 920-921). Ora, no caso só as particulares características do autor, entre elas pelo menos a neuropatia de que sofre desde os 18 anos (facto 210), podem ter levado a que o autor tivesse deixado de interagir com a filha de dois anos por não a conseguir focar entre os 40 e 100 cm, ou que viesse a perder a capacidade de ejaculação na sequência dos medicamentos tomadas para minorar os efeitos do “diagnóstico de perturbação de adaptação mista com humor depressivo e ansiedade”, o que conduziu a não lograr ter mais filhos.

Ponderado tudo isto, não há manifestamente razões para aumentar a indemnização para além do valor que lhe foi atribuído pela sentença recorrida, tendo em conta os casos jurisprudenciais invocados por ela e pelo próprio autor, directa ou indirectamente (por estarem referidos nos acórdãos citados), pois que, perante eles e as considerações tecidas, o que se poderia discutir com mais razão - se o objecto do recurso abrangesse essa possibilidade -, era se ela devia ser reduzida”.

A isto contrapõe o autor que, em qualquer caso, “[o] valor indemnizatório, em face dos danos sofridos (e provados) pelo Recorrente, ficou muito aquém do devido e mostra-se francamente diminuto em face de todas as consequências que esta intervenção cirurgia teve para o Recorrente” (cfr. conclusão X.). Segundo ele, “[e]m face da prova produzida, o quantum indemnizatório atribuído na douta sentença consubstancia uma violação do princípio constante no artigo 562. º do Código Civil (…) porquanto não aproxima sequer o ora Recorrente da situação que existiria se não se tivesse verificado o facto danoso que implicou a perda de anos de vida do ora Recorrente” (cfr. conclusões Y. e Z.). Ora, “nos termos do artigo 563.º do Código Civil e seguindo a orientação da jurisprudência e doutrina, o dever de indemnizar existe relativamente aos danos que não ocorreriam não fosse aquela lesão” (cfr. conclusão BB.). Na opinião do autor, em suma, tendo em conta os factos provados, “o valor indemnizatório não poderá ser inferior a 490.000,00 € (quatrocentos e noventa mil euros)”.

É sabido que a única condição de compensabilidade dos danos não patrimoniais é a sua gravidade, o que lhes confere um carácter algo indeterminado e de difícil quantificação. Seria, por isso, em vão que se tentaria apurar o respectivo quantum compensatório com base em factores aparentemente objectivos, devendo reconhecer-se ao julgador margem para valorar segundo critérios subjectivos (na perspectiva do lesado), isto é, “à luz de factores atinentes à especial sensibilidade do lesado [como] a doença, a idade, a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais[9]. A equidade é aqui, em rigor, o único recurso do julgador[10], ainda que não descurando as circunstâncias que a lei manda considerar (cfr. artigo 496.º, n.º 4, do CC).

Ora, é visível o Tribunal recorrido não procedeu em nenhum momento discricionária ou acriteriosamente. Ponderou cuidadosamente a factualidade provada, observou as regras de Direito aplicáveis e, tornando-se necessário o recurso à equidade, alicerçou a sua decisão em critérios razoáveis, tendo ainda em consideração elementos de referência coligidos na jurisprudência. Esta última é, aliás, uma preocupação que deve ser partilhada por todos os tribunais, que serve o propósito plasmado no artigo 8.º, n.º 3, do CC, da uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito.

Verificada a ponderação que o Tribunal fez de todos os elementos disponíveis (as circunstâncias relevantes do caso, perspectivado na sua globalidade, o disposto na lei e as orientações da jurisprudência), conclui-se que o valor encontrado para a indemnização a ambos os títulos não é desadequado e, por conseguinte, não existem razões para o alterar.


III) Da responsabilidade da ré seguradora

Alega a ré seguradora que, ao atribuir-lhe certa quota-parte da responsabilidade, o Tribunal da Relação ….. incorreu em errada interpretação da lei, em particular dos artigos 33.º do CPC e 19.º, n.º 1, al. d), do DL n.º 72/2008, de 16.04 (Lei do Contrato de Seguro) (cfr. conclusões 13.ª e 15.ª)

Insurge-se ela, mais precisamente, contra o facto de o réu médico ser condenado no pagamento de apenas € 3.667.31, correspondente a 10% da indemnização, e de ela ser condenada no pagamento de € 33.005,80, correspondente a 90% da indemnização. Alega que, de acordo com as normas referidas, não é admissível que a responsabilidade de uma seguradora extravase da responsabilidade do segurado. Ora, sendo o segurado condenado no pagamento de € 3.667.31, seria este o montante em cujo pagamento ela deveria também ser condenada, depois de deduzida a franquia.

Como é visível, a questão está de alguma forma relacionada com a arguição de nulidade do Acórdão, atrás apreciada e rejeitada. Numa palavra: ambas as questões têm a mesma origem.

Independentemente do valor da indemnização arbitrado a final (que foi aumentado na sequência do recurso de apelação), o critério de repartição das responsabilidades foi fixado pelo Tribunal de 1.ª instância, a saber: 10% da indemnização seria a cargo do réu médico e 90% seria a cargo da ré seguradora.

Por mais que uma clarificação fosse útil para se compreender o critério aplicado para a repartição da responsabilidade dos sujeitos e como devem ser interpretados aqueles resultados (podem ver-se, contudo, os esclarecimentos a propósito da nulidade do Acórdão), a verdade é que, desde que a sentença transitou em julgado nessa parte, está assente que a fórmula é aquela. Com efeito, não foi interposto recurso que levantasse a questão; o único recurso de apelação foi interposto pelo autor e tinha por objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o montante total da indemnização e a absolvição da ré clínica.

Assim, não restava ao Tribunal recorrido – e, por maioria de razão, não resta a este Supremo Tribunal – senão respeitar o caso julgado formado pela decisão, nos precisos termos em foi enunciada.


IV) Da responsabilidade da ré clínica

Como é por demais evidente, os danos de que se fala ocorreram no âmbito da relação jurídica criada por via da celebração de um contrato médico.

Nas tipologias do contrato médico encontra-se o contrato médico com internamento e, dentro deste, o contrato total com escolha de médico, também conhecido como contrato médico adicional, em que o doente escolhe o médico atendendo às suas qualidades profissionais e acorda com ele um pagamento específico ou extraordinário.

Como explica Nuno Manuel Pinto Oliveira, neste tipo de contratos, “a clínica assume 'directa e globalmente' as obrigações correspondentes ao contrato de internamento e ao contrato de prestação de serviços médicos ('contrato total')”, por contraposição ao que acontece no outro tipo, em que “a clínica só assume as obrigações correspondentes ao contrato de internamento ('contrato dividido')[11].

Compulsando a factualidade provada, pode concluir-se que o contrato dos autos se reconduz a esta categoria (cfr., em particular, facto provado 212).

Como se verá, desta qualificação decorrem certas consequências – consequências importantes, sobretudo no plano da responsabilidade da clínica.

Sobre o contrato total com escolha de médico afirma André Dias Pereira o seguinte:

Por vezes, nas clínicas privadas, o paciente deseja que uma determinada prestação, por exemplo uma cirurgia, seja levada a cabo por um determinado cirurgião, tendo acordado com ele um pagamento adicional de honorários (totaler Krankenhausaufnahmevertrag mit Arztzusatzvertrag) (…).

Daqui decorre que a clínica se encontra contratualmente obrigada à realização de prestações adequadas às escolhas terapêuticas do paciente e da assistência médica solicitada. Por seu turno, o médico contratado tem o dever de prestar a assistência médica acordada e tem o direito a uma conta de honorários autónoma. Esta conta pode constar do mesmo recibo, embora em parcelas separadas.

Assim, no contrato de internamento com escolha de médico (contrato médico adicional), a clínica também assume a responsabilidade por todos os danos ocorridos, incluindo a assistência médica e dos danos causados pelo médico escolhido[12].

Os índices mais comuns dos contratos deste tipo são: a existência de dois recibos separados ou, pelo menos, um recibo com os pagamentos do internamento e do tratamento médico discriminados; a vigência de um contrato de trabalho ou de prestação de serviços entre o médico e a clínica[13].

Seja como for, a regra é a do contrato total. Nos casos concretos, é este o contrato que se presume existir, impendendo sobre a clínica o ónus da prova de que, ao invés, está em causa de um contrato dividido[14].

Quer isto dizer que, no caso em apreço, para se eximir de responsabilidade perante o autor, era preciso que a IMO tivesse provado estar em causa um contrato dividido e não um contrato total.

Ora, não só isto aconteceu como, pelo contrário, a decisão sobre a matéria de facto aponta, como se viu, para a conclusão oposta.

Em face disto, não pode acolher-se a pretensão da ré / recorrente IMO, devendo manter-se a decisão do Tribunal recorrido quanto à responsabilidade desta e à medida da responsabilidade desta entidade, ou seja, circunscrita aos danos ocorridos no âmbito da intervenção contratada (para colocação das lentes intraoculares) e não contemplando, portanto, dela os danos ocorridos no contexto da intervenção não contratada (para remoção das cataratas). Explica-se no Acórdão ora impugnado “a remoção das cataratas foi algo que o réu fez, arbitrariamente, sem que ela estivesse incluída na relação contratual existente com a ré. Assim, pelas consequências derivadas dela não é possível responsabilizar a ré”.

A ré clínica é, pois, responsável pelo valor da indemnização deduzido de 10%, já que Tribunal a quo entendeu, nas suas próprias palavras, que “havendo então que repartir o valor da indemnização pelos dois ilícitos praticados pelo réu, considera-se que o valor dos danos apenas ligados à remoção das cataratas (liberdade de decisão) corresponde apenas a 10% do total, pois que, como referido, a opção pela remoção era uma opção razoável e expectável que fosse tomada pelo autor se tivesse tido a oportunidade para o fazer”.



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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pelo autor bem como aos recursos interpostos pela ré Ageas e pela ré IMO e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas de cada um dos recursos pelos respectivos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que possam beneficiar.

Dispensa-se o pagamento da taxa de justiça remanescente.



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Catarina Serra (relatora)

Cura Mariano

Fernando Baptista


Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo.

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[1] Alterado pelo Tribunal da Relação (supressão de parte).
[2] Alterado pelo Tribunal da Relação (aditamento da parte sublinhada).
[3] Nota do Tribunal recorrido: “corrigiu-se, em itálico, o erro de escrita que já vinha do art. 138 da PI, pois não tem sentido falar-se na substituição de lentes multifocais por lentes multifocais…- parenteses deste TR…..”.
[4] Alterado pelo Tribunal da Relação (supressão de parte).
[5] Eliminado pelo Tribunal da Relação.
[6] Eliminado pelo Tribunal da Relação.
[7] Alterado pelo Tribunal da Relação (aditamento da parte sublinhada).
[8] Alterado pelo Tribunal da Relação (supressão de parte).
[9] Cfr. Maria Manuel Veloso, “Danos não patrimoniais”, in: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, volume III – Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 506.
[10] Para a pergunta sobre em que consiste a equidade “não há resposta fácil nem unívoca”, mas parece possível dizer que a decisão segundo a equidade (…) pode conferir peso a quaisquer argumentos sem se preocupar com a sua autoridade e relevância face às aludidas fontes (do sistema). É campo ilimitado do 'material', do 'razoável', do 'justo', do 'natural'”. Cfr. Manuel A. Carneiro da Frada, “A equidade ou a 'justiça com coração' – A propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 656 e pp. 675-676 (interpolação nossa).
[11] Cfr., fazendo referência a Ferreira de Almeida, Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde: problemas de ilicitude e de culpa”, in: Guilherme de Oliveira (coord.). Responsabilidade civil dos médicos, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 132. Cfr. ainda André Dias Pereira, Direito dos pacientes e responsabilidade médica, Centro de Direito Biomédico, 22, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, pp. 687 e s. Do contrato total com escolha de médico – continua este último autor – distingue-se “o contrato dividido (Gespaltener Artz-Krankenhausvertrag) [em que] a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.) enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (atos médicos). A clínica não é, pois, responsável pelos atos médicos mas apenas pelos atos relativos ao internamento. Neste caso há dois contratos separados” (sublinhados do autor).
[12] Cfr. André Dias Pereira, Direito dos pacientes e responsabilidade médica, cit., pp. 687-688 (sublinhados do autor).
[13] Cfr. André Dias Pereira, Direito dos pacientes e responsabilidade médica, cit., p. 691.
[14] Cfr. André Dias Pereira, Direito dos pacientes e responsabilidade médica, cit., p. 690.