Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
107/15.0GAMTL.E1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
PROCESSO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
CONDENAÇÃO
ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
SENTENÇA
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
LIMITAÇÃO DO RECURSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 03/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE O RECURSO DA COMPANHIA DE SEGUROS. ANULADO PARCIALMENTE NO RESTANTE.
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – JULGAMENTO / SENTENÇA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / DECISÕES QUE NÃO ADMITEM RECURSO / LIMITAÇÃO DO RECURSO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACOS ILÍCITOS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / FIANÇA.
Doutrina:
- Ana Prata, Código Civil Anotado, Vol. I, 2017, Almedina, p. 648;
- Cunha Rodrigues, Recursos, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ-l988, Almedina, 1995, p. 387-388;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, anotações ao artigo 205.°, Vol. II, 4.ª ed.;
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, Tomo III, 2007, anotações III e IV ao artigo 205.º;
- Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Anotado, 2016, 2.ª Edição Revista, Almedina, p. 1133;
- Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Processo, 4.ª ed., Católica Editora, p. 985/986.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 379.º, N.º 2, 400.º, N.º 2 E 403.º, N.º 3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 494.º, 496.º, N.º 2 E 629.º, N.º 1.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO PARA A PROTECÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS: - ARTIGO 6.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 22-10-2014, PROCESSO N.º 84/13.1JACBR.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-02-2016, PROCESSO N.º 118/08.1GBAND.P1.S2, IN SASTJ, SECÇÃO CRIMINAL, ANO 2016, WWW.STJ.PT;
- DE 08-11-2017, PROCESSO N.º 22/14.4PEFUN.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 05-06-2018, PROCESSO N.º 370/12.8TBOFR.C1.S2;
- DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 1289/08.2PHLRS.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-10-2018, PROCESSO N.º 166/16.8T8LSB.L1.S1.
Jurisprudência Internacional:
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS (TEDH):


- DE 09-07-2007, CASO TATISHVILI C. RÚSSIA.
Sumário :
1. O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de acórdão do tribunal da Relação que condena os demandantes civis em pedido de indemnização fundado na prática de crime depende da verificação cumulativa dos critérios da alçada do tribunal e da sucumbência, nos termos do artigo 400.º, n.º 2, do CPP e do artigo 629.º, n.º 1, do CPP.

2. Sendo o valor do pedido de 50.000 EUR e a condenação no montante de 15.000 EUR, não é admissível recurso para o STJ, por não estar preenchido o critério da sucumbência, em virtude de a decisão impugnada não ser desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada da Relação.

3. Tendo ocorrido a morte dos dois progenitores em acidente de viação de que resultou a condenação do arguido pela prática de dois crimes de homicídio por negligência, mostra-se conforme ao critério de equidade a condenação da seguradora demandada no montante de 60.000 EUR a pagar a cada um dos filhos das vítimas, por danos não patrimoniais, nos termos dos artigos 494.º e 496.º, n.º 2, do Código Civil, como tem decidido o STJ em casos semelhantes.

4. É nulo, por falta de fundamentação, nos termos do n.º 2 do artigo 379.º ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP, o acórdão do tribunal da Relação que, em recurso da decisão da 1.ª instância que havia absolvido a seguradora dos pedidos deduzidos pelos netos das vítimas com fundamento em que o artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil não lhes reconhece o direito a indemnização por danos não patrimoniais, se limita a dizer que o que unicamente está em causa é o quantum da indemnização, sem especificar os motivos por que os considera titulares do direito a indemnização.

5. A nulidade deve ser suprida pelo tribunal recorrido, não cabendo ao STJ fazê-lo, dado que a este tribunal de recurso se impõe aferir da justeza do resolvido e não suprir o não resolvido.

6. Estando a declaração da nulidade limitada à condenação da demandada relativamente à qual o recurso é admitido e não sendo aceitável que a decisão do recurso possa deixar espaços de incongruência dentro do campo específico em que esta se impõe, deve esta declaração de nulidade produzir consequências em relação à condenação do recorrente de que foi interposto recurso não admitido por não preenchimento do critério da sucumbência, por força do disposto no n.º 3 do artigo 403.º do CPP.

Decisão Texto Integral:                                          

ACÓRDÃO

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. No Juízo Local Criminal de ---, da Comarca de ---, foi a arguida AA, identificada nos autos, condenada por sentença de 10 de Outubro de 2017, pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de dois crimes de homicídio negligente, p. e p. pelos artigos 137.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, nas penas de 1 (um) ano e 5 (cinco) meses de prisão por cada um deles, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo e na inibição temporária da faculdade de conduzir pelo período de 1 (um) ano.

2. Pelos assistentes BB, por si e em representação dos seus filhos menores CC e DD, e EE, filhos da vítima, e por FF, em representação dos seus filhos menores CC e DD, foi deduzido de pedido de indemnização civil contra “GG Seguros”, pedindo a condenação desta no pagamento dos montantes de:
- €10.000,00, a título de danos patrimoniais, pela perda total do veículo automóvel conduzido pelo falecido HH no momento do acidente, a atribuir em partes iguais aos demandantes filhos;
- €150.000,00 pelos danos morais do demandante BB;
- €150.000,00 pelos danos morais do demandante EE;
- €100.000,00 pelos danos morais do demandante CC;
- €50.000,00 pelos danos morais da demandante DD, no total de € 470.000,00, acrescido dos respectivos juros de mora à taxa legal, contados desde a data da notificação desde a data de citação até integral pagamento.

Pela sentença proferida em 1.ª instância, foi, quanto a estes pedidos, decidido (transcrição):

“f)   julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por BB por si e em representação dos seus filhos menores CC e DD, FF em representação dos seus filhos menores CC e DD e EE, e condenar a demandada GG Seguros, a pagar a cada um dos demandantes BB e EE a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, acrescida de juros moratórios computados à taxa legal desde a data da presente sentença até pagamento integral e efectivo;
g)    absolver a demandada do mais peticionado”.

3. Inconformados com o decidido pelo tribunal de 1.ª instância quanto à matéria cível, recorreram os demandantes cíveis para o Tribunal da Relação de Évora, o qual, por acórdão proferido a 8 de Maio de 2018, decidiu alterar o ponto 4 da matéria de facto não provada, acrescentar o facto enumerado como ponto 28.ºB à descrição da matéria de facto provada e, quanto aos pedidos cíveis:
- Condenar a demandada “GG Seguros”, “a pagar a cada um dos demandantes BB e EE a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, acrescida de juros moratórios computados à taxa legal desde a data da sentença até pagamento integral e efectivo”;

- Condenar a demandada “GG Seguros”, “a pagar a CC e DD, filhos de BB e sua companheira, as quantias de € 30.000,00 (trinta mil euros) e € 15.000,00 (trinta mil euros), respectivamente, a título de danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, acrescida de juros moratórios computados à taxa legal desde a data da sentença até pagamento integral e efectivo”.

4. Inconformada com o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, veio a demandada civil “GG Seguros, S.A”., interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quanto à condenação no pedido de indemnização civil, apresentando motivação em que conclui nos seguintes termos (transcrição):

“1. Ao ter arbitrado a cada um dos Demandantes civis II e JJ, quantia superior a €50.000, para compensação do dano de natureza não patrimonial por cada um deles sofrido em consequência da morte de seus pais, o douto acórdão recorrido violou o disposto no art.º 496.º, n.º 4, do Código Civil devendo por isso ser substituído por outro que condene a Demandada ora Recorrente a pagar a cada um deles a quantia de €50.000;

2. Ao ter condenado a ora Demandante a pagar ao menores CC uma quantia para compensação pelos danos de natureza não patrimonial por eles eventualmente sofridos em consequência da morte de seus avós, sobrevivendo a estes os Demandantes II e JJ, seus filhos, o douto acórdão recorrido violou o disposto no n.º 2 do art.º 496.º do Código Civil, pelo que deverá ser substituído por outro que, a tal título, não condene a Demandada ora Recorrente a pagar aos referidos menores qualquer montante, e antes a absolva quanto a tal”.

5. Os demandantes civis responderam ao recurso, motivando-o, em suma, nos seguintes termos (transcrição):

“(…) Com efeito, na indemnização fixada o tribunal usou de critérios de equidade, como fatores de ponderação e de equação socialmente relevantes, fez intervir os elementos ético socialmente censuráveis e reprováveis inerentes ao desvalor da ação lesiva, atendeu ao grau de culpabilidade da lesante, ao modo como a ação lesiva foi consumada, aos efeitos e consequências que essa ação provocou e à perturbação que causou na vivência e nos estados psicológicos e emotivos dos demandantes (cfr. o acórdão do STJ de 10/5/2017, proc.º 131/14.0GBBAO.P1.S1).

De outro modo, como pretende a demandada/recorrente, apresentaria contornos de meramente simbólica, revelar-se-ia miserabilista e traduziria a banalização do dano so­frido pelos demandantes.

Recorde-se que estes perderam não um mas ambos os progenitores (e os seus filhos, os menores CC e DD, os dois avós paternos), em consequência direta e necessária de uma atuação absurdamente imprudente da arguida na prática da condução automóvel, em resultado de um acidente de viação de que ela foi a única e exclusiva responsável; que os demandantes e toda a família nuclear (os menores CC e DD incluídos), incluídas as vítimas, se aprestavam para iniciar um período de férias em família, como sempre faziam; que foram confrontados, na estrada, com os pais e os avós mortos, como se o veículo em que se faziam transportar tivesse sido atingido por uma qualquer bomba; que a morte dos pais representou para os demandantes a quebra definitiva de um projeto de vida comum que vinham percorrendo; que os pais dos demandantes eram o seu pilar, quer afetiva quer profissionalmente; e que esse projeto de vida comum se perspetivava, na normalidade das coisas e da vida, pelo menos por mais duas décadas e meia; feneceu o progenitor dos demandantes, que tinha um papel imprescindível na vida profissional de ambos; e foi ceifada a vida da mãe, esteio afetivo incontornável da vida familiar de ambos.
Em suma, tudo, na sua relação tão próxima com as vítimas, foi súbita, inesperada e brutalmente sonegado aos demandantes e aos menores CC e DD.

3. A indemnização por danos não patrimoniais cabe naturalmente às pessoas que o legislador entendeu mais ligadas aos falecidos por laços afetivos. Isto é, ao elenco enunciado no n.º 2 do artigo 496º do Código Civil, aí se incluindo, no caso, os menores CC e DD.

Na verdade, o legislador estabeleceu que a indemnização daquela natureza, reportada à lesão de bens ou interesses de ordem eminentemente pessoal, deve necessariamente reverter, em bloco, para quem, como resultou provado, está numa relação familiar ou afetiva de particular intensidade com os defuntos, como é o caso dos menores CC e DD.

A interpretação "cega" e "dura" que a demandante/recorrente faz do disposto no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil vai ao arrepio do entendimento (cfr. o acórdão do STJ de 30/4/2015, proc.º 1380/13.3T2AVR.C1.S1) de que, no caso da morte da vítima, a titularidade do direito à indemnização por danos não patrimoniais pela perda da vida é atribuída ex lege aos familiares ali referidos, afastando a lei a aplicabilidade do regime sucessório, como a demandante/recorrente pretende.

Em conclusão:

Perante a matéria de facto fixada, o acórdão recorrido, na fixação dos montantes indemnizatórios fixados aos demandantes e aos menores pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência da morte de seus pais e avós, fez correta aplicação dos comandos normativos inscritos nos artigos 494.º e 496.º, n.ºs 1, 2 e 4, do Código Civil, pelo que o recurso da demandante deverá ser julgado improcedente, confirmando-se o ali decidido.”

6. O Senhor Procurador da República junto do Tribunal da Relação, apresentou resposta, dizendo:

“O objecto do Recurso versa exclusivamente sobre matéria cível enxertada na acção penal e apenas afecta os interesses particulares dos assistentes e demandante civil, os quais se encontram devidamente representados por Mandatários Forenses.

Deste modo, o Ministério Público não se encontra especialmente legitimado para ponderar questões que não afectam os interesses cuja defesa e tutela lhe estão legalmente consagrados.

Todavia, sempre dirá, que o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora deverá ser mantido in totum, improcedendo o recurso interposto, já que, perante a matéria de facto fixada, o Acórdão ora posto em crise na fixação dos montantes indemnizatórios fixados aos demandantes e aos menores pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência da morte dos respectivos pais e avós, fez uma correcta e equitativa aplicação dos arts. 494º e 496º, n.ºs 1, 2 e 4, ambos do Código Civil.

Assim, se conclui:

1º - Não ter sido violada qualquer disposição legal.

2º - O Tribunal da Relação de Évora bem como o Tribunal a quo terem efectuado uma correcta apreciação da prova e demais elementos disponíveis, decidindo fundamentadamente em conformidade.

3º - Terem, ainda, feito uma correcta e criteriosa aplicação dos preceitos legais que disciplinam a aplicação e fixação dos quantum indemnizatórios e a respectiva titularidade.

4º - Não existir qualquer motivo para ser concedida razão à recorrente pelo que deve a douta decisão recorrida ser mantida in tottum, negando-se provimento ao recurso.”

7. Neste Tribunal, o Senhor Procurador-Geral-Adjunto, na oportunidade conferida pelo n.º 1 do artigo 416º do CPP, consignou que, não representando qualquer das partes, o Ministério Público carece de legitimidade para emitir parecer relativamente ao recurso, que se encontra limitado ao pedido de indemnização civil.

8. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo é julgado em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, al. c), do CPP.

Cumprindo apreciar e decidir.

II. Fundamentação

9. É a seguinte a matéria de facto considerada provada pelas instâncias (transcrição):

1. No dia 19 de Julho de 2015, pelas 08 horas e 30 minutos, ao Km. 62 da Estrada Nacional 122, em Mértola, a arguida AA conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-SZ (doravante designado por SZ), no sentido Mértola/Vila Real de Santo António.
2. Nas mesmas circunstâncias, HH conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-PS (doravante designado por veículo PS) no sentido Mértola/Vila Real de Santo António, onde seguia como ocupante LL.
3. No local provável do embate a via apresenta 6,50 metros de largura, configurando duas faixas de circulação, uma em cada sentido, separados ambos os sentidos de trânsito por uma linha longitudinal descontínua.
4. O pavimento da via apresenta bom estado de conservação e manutenção.
5. Naquele local a via configura uma recta e no sentido Mértola/Vila Real de Santo António apresenta inclinação ascendente.
6. Naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, o tempo estava seco.
7. HH ao aproximar-se dos veículos que circulavam à sua frente e constatando que a via à esquerda estava livre de trânsito, efectuou o sinal luminoso de mudança de direcção para a esquerda a fim de ultrapassá-los.
8. Porém, durante a realização de tal manobra e quando se encontrava a ultrapassar o veículo SZ, a arguida AA conduzindo o aludido veículo SZ iniciou a manobra de ultrapassagem da outra viatura que seguia à sua frente, invadindo para o efeito a faixa da esquerda onde circulava HH conduzindo o veículo PS.
9. Fê-lo alheando-se do trânsito que circulava nessa faixa de rodagem, não cuidando de saber e de se assegurar previamente que HH circulava naquela via realizando manobra de ultrapassagem, embatendo o veículo PS por aquele conduzido na sua parte lateral.
10. Perante a conduta inesperada da arguida e com o embate lateral na sua viatura, HH perdeu o controlo da mesma, saindo da via para o lado esquerdo, ficando imobilizado fora da faixa de rodagem após embate num eucalipto a cerca de 62 metros do local de embate.
11.Após o embate, a arguida AA concluiu a ultrapassagem ao veículo que seguia à sua frente, tendo imobilizado o seu veículo mais à frente no sentido Mértola/Vila Real de Santo António.
12.Em consequência directa do embate acima descrito, o condutor do veículo PS HH sofreu lesões traumáticas meningoencefálicas e raquimedulares, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 77 a 80, cujo teor se dá por reproduzido.
13.Tais lesões traumáticas foram causa directa e necessária da sua morte, ocorrida no dia 19 de Julho de 2015 pelas 8 horas e 30 minutos.
14.Acresce que a passageira do veículo PS LL sofreu lesões traumáticas da cabeça e tórax, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 43 a 46, cujo teor se dá por reproduzido.
15.Tais lesões traumáticas foram causa directa e necessária da sua morte, ocorrida no dia 19 de Julho de 2015 pelas 8 horas e 30 minutos.
16.Ao efectuar a referida manobra de ultrapassagem, a arguida AA actuou sem observar as cautelas e regras de cuidado que lhe eram impostas, designadamente certificar-se que podia iniciar a referida manobra sem perigo de colidir com veículos que circulassem no mesmo sentido ou em sentido contrário, nomeadamente o veículo PS conduzido por HH, que efectuava a mesma manobra, tornando inevitável o embate.
17.Com efeito, a arguida podia e devia ter tomado tais cautelas, nomeadamente verificar se a faixa de rodagem da esquerda estava livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança e que nenhum outro veículo que seguisse na mesma via tivesse iniciado a manobra para a ultrapassar, cedendo, assim, passagem ao veículo que efectuava manobra de ultrapassagem aos veículos, inclusive o conduzido por si, de modo a evitar o mencionado embate.
18.A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se apurou que:
19.À data do acidente, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pela circulação da viatura com a matrícula ...-SZ, encontrava-se transferida para a demandada GG Seguros, através da Apólice n.º ....
20.O malogrado casal HH e LL deixou como únicos herdeiros os seus dois filhos, os ora demandantes BB e EE.
21.Ambos os filhos do malogrado casal têm oficinas de reparação automóvel, ofício que lhes foi transmitido e ensinado pelo pai, sendo certo que era este quem geria as oficinas dos filhos, ocupando-se de todo o serviço de escritório, nomeadamente, das compras, contabilidade, facturação, controlo e pagamento de impostos, fichas de clientes, etc.
22.O falecido HH tinha 59 anos de idade.
23.A esposa do HH, a falecida LL, criava e cuidava dos seus dois netos, filhos do BB, CC, nascido a ....2007, e DD, nascida a ....2013, uma vez que a mãe dos menores, companheira do BB, exercia atividade profissional num lar de terceira idade, trabalhando por turnos e, muitas vezes, durante a noite.
24.Era com os avós que os menores pernoitavam com muita frequência e era a avó quem os levava ao infantário, ou aos tempos livres, onde ela também exercia funções laborais.
25.A falecida LL tinha 54 anos de idade.
26.Com o desgosto e a perda prematura dos seus entes queridos (pessoas saudáveis, no pleno gozo das suas faculdades e da vida), em face da idade que ambos tinham à data da ocorrência do acidente, os demandantes viram-se privados do convívio com eles pelo menos por mais duas décadas, vista a esperança média de vida em Portugal, e os filhos do casal entraram ambos em desnorte completo quanto à organização do seu trabalho, pois era o pai quem disso se ocupava.
27.E a companheira do ..., mãe dos menores, teve mesmo que abandonar o emprego, por não ter quem cuidasse das crianças e para ajudar o companheiro e o irmão deste nas tarefas relacionadas com o escritório das oficinas.
28.No dia em que ocorreu o acidente toda a família (os falecidos, seus filhos e netos e companheira do filho BB) se deslocava junta, dirigindo-se todos para ..., em férias, como era habitual.
28.º-B.          No dia dos factos toda a família, designadamente os filhos e netos das vítimas (filhos de BB e sua companheira) foram confrontados no percurso com os pais e avós mortos na estrada, não tendo sido possível evitar que as crianças observassem horrorizadas o veículo que era conduzido pelo avô, acidentado, e os próprios avós mortos no seu interior.
29.A arguida é vista pelos seus familiares, amigos e conhecidos como uma pessoa responsável, trabalhadora e uma condutora cumpridora das regras estradais.
30.A arguida apresenta sintomas de stress pós traumático derivadas do acidente em causa nestes autos, nomeadamente imagens intrusivas da situação, forte ansiedade em situação de condução e tristeza profunda por ter presenciado a morte de duas pessoas, inquietação recorrente por toda a mudança que esta situação introduziu na sua via pessoal e social, sendo acompanhada em consulta de psicologia desde 28.08.2015.
31.A arguida exerce a actividade profissional de ajudante de loja, ao serviço do Intermarché de Serpa, auferindo o ordenado mínimo nacional.
32.A arguida habita em casa própria dos pais, exercendo o pai as funções de chefe de loja do Intermarché de Serpa e exercendo a mãe as funções de auxiliar.
33.A arguida não tem filhos.
34.A arguida paga a quantia mensal de € 250,00 relativa a empréstimo automóvel.
35.A arguida tem como habilitações literárias a licenciatura de assistente social.
36.A arguida não tem antecedentes criminais.

10. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação dos recorrentes (artigo 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal superior quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I de 28.12.1995), os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

Coloca a recorrente à apreciação deste Tribunal as seguintes questões, relativas às indemnizações:

I - quantum indemnizatório arbitrado, a título de danos não patrimoniais, a BB e EE, filhos dos falecidos, que considera excessivos e desproporcionados;

II - absolvição de quantum indemnizatório arbitrado, a título de danos não patrimoniais, a CC e DD, netos dos falecidos, por alegada inexistência do direito a indemnização.

Questão prévia – da admissibilidade do recurso

11. Como decorre das conclusões da motivação, o recurso interposto para este Tribunal deve-se à não conformação com as indemnizações arbitradas aos demandantes BB, EE, CC e DD.

Por sentença da 1.ª instância, a demandada civil “GG Seguros, S.A.” foi condenada a pagar a cada um dos demandantes civis BB e EE, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 30.000 EUR (trinta mil euros) e absolvida do pedido de pagamento de qualquer indemnização a CC e DD.

O acórdão recorrido, do tribunal da Relação, condenou a demandada civil “GG Seguros, S.A.” a pagar aos demandantes civis BB e EE, a cada um deles, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 60.000 EUR (sessenta mil euros); e condenou a demandada civil a pagar, a título de danos não patrimoniais, ao demandante CC a quantia de 30.000 EUR (trinta mil euros), e à demandante DD a quantia de 15.000 EUR (quinze mil euros).

Assim sendo, confrontando o decidido na 1.ª instância e o acórdão da Relação, constatamos que a demandada civil GG Seguros, S.A. viu:

- A sua condenação aumentada em 30.000 EUR relativamente ao demandante civil BB e em 30.000 EUR relativamente ao demandante civil EE;

- A sua absolvição revogada relativamente aos outros dois demandantes civis, sendo condenada ao pagamento de 30.000 EUR ao demandante CC e de 15.000 EUR à demandante DD.

12. Dispõe o artigo 400.º, n.º 2, do CPP que: “Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.”.

Por sua vez, dispõe o artigo 629.º, n.º 1, do CPC: “1 - O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.”

Temos assim dois critérios de admissibilidade de um recurso da sentença relativamente a matéria cívil: “desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido” – o denominado critério da alçada – e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada” – o denominado critério da sucumbência.

13. Cumpre antes do mais referir que, no caso em apreço, intervêm quatro demandantes civis distintos, a saber BB, EE, CC e DD, com pedidos de indemnização civil autónomos e independentes entre si, embora deduzidos numa única peça processual, conforme resulta do pedido de indemnização deduzido a fls. 345 a 353, no qual são peticionados € 150.000,00 pelos danos morais do demandante BB, € 150.000,00 pelos danos morais do demandante EE, € 100.000,00 pelos danos morais do demandante CC e € 50.000,00 pelos danos morais da demandante DD.

Conforme se assumiu no AUJ 10/2015 (DR I de 26.06.2015) ”A coligação analisa-se numa cumulação, no mesmo processo, de pedidos que poderiam ser deduzidos em acções intentadas separadamente; logo, na coligação de autores – como é o caso em apreço – há uma pluralidade de partes, do lado activo, sendo autónomos os direitos invocados e os correspondentes pedidos formulados por cada um deles, uns e outros fundados na mesma causa de pedir; há, portanto, no mesmo processo, uma cumulação ou reunião de acções, em cada uma das quais são exercidos direitos autónomos e independentes entre si que poderiam ser dirimidos em processos diferenciados. Tudo se passa como se as AA intentassem acções separadas que, depois, seriam apensadas, para efeitos de julgamento conjunto. Desta autonomia e independência dos pedidos fundados na mesma causa de pedir decorre que o valor a atender é o de cada um dos pedidos formulados por cada um dos AA (como se de acções intentadas separadamente se tratassem) e não a soma desses valores, sendo pelo valor do pedido formulado por cada um dos AA que se afere a admissibilidade de recurso em função da alçada (cfr. Ac. STJ de 23-11-2010, Revista n.º 412-A/2000.C1.S1 - 6.ª Secção de que foi Relator o Cons. Azevedo Ramos e LEBRE DE FREITAS e ARMINDO RIBEIRO MENDES “Código de Processo Civil Anotado”, Tomo I, 2.ª Ed., Coimbra, pág. 13; em sentido contrário, o Ac. STJ de 11-06-2002, Revista n.º 1490/02, de que foi Relator o Cons. Neves Ribeiro). Logo, é na consideração autónoma e separada dos valores dos pedidos e dos montantes indemnizatórios arbitrados a cada uma das AA que será aferida a sucumbência e a recorribilidade das decisões proferidas nos presentes autos.

A sucumbência e a recorribilidade das decisões por banda da demandada civil aferem-se, pois, não pelo valor total resultante da soma dos vários pedidos de indemnização civil e dos montantes indemnizatórios arbitrados, mas sim pela consideração autónoma e separada dos valores peticionados e dos montantes indemnizatórios arbitrados a cada um dos demandantes civis.

14. Até 1 de Janeiro de 2008 as alçadas dos tribunais eram de 750.000$00 para a 1.ª Instância e de 3.000.000$00 para o Tribunal da Relação, de acordo com o artigo 24.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro.

O artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, alterou ao artigo 24.º da Lei n.º 3/99, que passou a ter a seguinte redacção: «1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000 e a dos tribunais de 1.ª instância é de (euro) 5000».

Por sua vez, a Lei n.º 63/2013, de 26 de Agosto, revogou a Lei n.º 3/99, pelo seu artigo 187.º, al. b), mantendo, no artigo 44.º, os mesmos valores das alçadas dos Tribunais e as mesmas regras de admissibilidade dos recursos (quanto ao momento de fixação da alçada dos tribunais) da Lei n.º 3/99. Dispõe este preceito:

“Artigo 44.º - Alçadas

1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5000.

2 - Em matéria criminal não há alçada, sem prejuízo das disposições processuais relativas à admissibilidade de recurso.

3 - A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção.”

À data da propositura acção, por dedução do pedido de indemnização civil no processo penal, pelos demandantes civis, em Setembro de 2016, a alçada do tribunal de 1.ª instância era (e é) de 5.000 EUR e a do Tribunal da Relação era (e é) de 30.000 EUR.

Encontra-se, assim, preenchido o critério da alçada, em relação a todos os demandantes civis e, consequentemente, relativamente à demandada civil, porque todos os valores peticionados no pedido de indemnização civil têm valor superior à alçada do tribunal da Relação.

15. Quanto ao critério da sucumbência, o mesmo já não sucede em relação a um demandante civil.

A sucumbência (ou decaimento) é o prejuízo ou desvantagem que a decisão implica para a parte e que, por isso, se designa por parte vencida; esta é portanto, aquela a quem a decisão prejudica, que com ela sofreu gravame ou a quem foi desfavorável, em suma, quem perdeu. Conforme se assumiu no AUJ 10/2015, acima mencionado, “A sucumbência afere-se (…) pelo contraste entre, por um lado, o conteúdo da decisão e, por outro lado, os interesses da parte, ou seja, pelo reflexo negativo daquela nestes. Ora, como é sabido, o recurso visa eliminar o dano que esse prejuízo ou gravame, causado pela decisão recorrida, importa para a parte vencida; por outras palavras, o recurso é o meio processualmente adequado para a remoção da sucumbência e por isso, é que, por via de regra, só podem ser interpostos pela parte vencida.”

No caso, o acórdão recorrido implicou uma desvantagem (um prejuízo) para a demandada civil de 30.000 EUR para cada um de três demandantes, a saber BB, EE e CC e, nessa medida, está verificado o critério da sucumbência quanto a estas condenações. Embora, a demandada civil aceite a condenação numa indemnização no valor de 50.000€ a favor de cada um dos demandantes civis BB e EE, em vez de 60.000 EUR (conforme condenação pelo Tribunal da Relação), e nessa medida, o prejuízo ou desvantagem seja de 10.000€ em relação a cada demandante, deve entender-se que o valor da sucumbência é sempre calculado com referência à decisão da 1.ª instância e ao acórdão da Relação, que no caso é de 30.000 EUR para cada um dos dois demandantes civis, e não em função do pedido apresentado no recurso.

Todavia, na 1.ª instância a demandada civil não foi condenada a pagar qualquer indemnização à demandante DD. Mas o Tribunal da Relação, julgando parcialmente procedente o recurso interposto por esta, arbitrou-lhe o pagamento de uma indemnização no valor de 15.000 EUR.

Assim, a sucumbência para a recorrente relativamente a esta demandante civil é de 15.000€, ou seja, não excede metade do valor da alçada do Tribunal da Relação, que teria que ser no mínimo 15.000,01 EUR. Como se tem afirmado na jurisprudência deste Tribunal, a condenação em juros de mora, não é quantificada para efeitos de valor da causa nem para valor da sucumbência – neste sentido, entre outros, os acórdãos de 29-09-2011, na revista n.º 165/06.8TBGVA.C1.S1 - 2.ª Secção, de 24-04-2013, na revista n.º 14953/02.0TVLSB.L1.S1 - 2.ª Secção: “Os juros, como acessórios do pedido principal, não relevam para o achar do valor da causa, nem da sucumbência, com vista a apurar se o acórdão da Relação admite, ou não, recurso para o STJ.”.

Assim, conforme se decidiu, entre outros, no acórdão de 18.10.2018 (revista n.º 166/16.8T8LSB.L1.S1 - 7.ª Secção), “Só se a decisão recorrida for desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal da Relação (ou seja, em valor superior a € 15 000,01), é que o recurso de revista será admissível”.

Pelo exposto, o recurso interposto pela demandada civil para este Supremo Tribunal de Justiça quanto à indemnização civil a que foi condenada relativamente à demandante civil DD, não é admissível por falta de sucumbência mínima exigida pelo artigo 400.º, n.º 2, do CPP e pelo artigo. 629.º, n.º 1, do CPC.

Quanto ao quantum indemnizatório arbitrado, a título de danos não patrimoniais, aos demandantes civis BB e EE

16. Defende a recorrente “GG Seguros, S.A” que o acórdão recorrido, ao ter arbitrado montante superior a 50.000 EUR a cada um dos demandantes civis BB e EE, para compensação do dano moral sofrido em resultado da morte dos seus progenitores, aplicou mal o princípio da equidade. Alega que a jurisprudência dos tribunais superiores é praticamente pacífica a este respeito, que o valor arbitrado para a compensação do dano moral sofrido por um filho em consequência da morte de um pai, filho esse maior de idade, já casado e com filhos, com vida autónoma e nova família constituída, para além da que formara com os seus progenitores, não é, nem vem sendo superior a 25.000 euros.

Conforme resulta do acórdão do Tribunal da Relação foi julgado procedente o recurso interposto pelos demandantes civis BB e EE e alterado para 60.000 EUR (sessenta mil euros) o montante indemnizatório a pagar pela demandada GG Seguros, Lda., em vez dos 30.000 EUR fixados em 1.ª instância.

Verifica-se assim que o tribunal recorrido fixou a quantia de 60.000 EUR., a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos por cada um dos demandantes civis BB e EE, sendo que a recorrente considera que o valor justo é de 50.000 euros.

Não está em causa, no âmbito deste segmento de recurso, o direito à indemnização pelos danos não patrimoniais dos demandantes civis BB e EE.

17. Resulta da matéria de facto que ... e ... são filhos (descendentes) maiores das vítimas mortais do acidente de viação, HH, com 59 anos de idade à data do acidente, e LL, com 54 anos de idade na mesma data.

Dispõe o artigo 496.º do Código Civil, sob a epígrafe “Danos não patrimoniais”:

“1 - Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.

4- O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”

Conforme refere Ana Prata (Código Civil Anotado, Vol. I, 2017, Almedina, em anotação ao artigo 496.º, p. 648) “no segmento final do n.º 4, dispõe-se que, “em caso de morte”, são também indemnizáveis os danos das pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”. Está-se aqui perante a atribuição de um direito indemnizatório a terceiros pelos danos que eles sofreram em razão da morte do lesado.” Inequivocamente, o legislador atribuiu aos filhos (dos falecidos) o direito a uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela morte dos seus pais (artigo 496.º, n.ºs 2 e 4).

18. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 496.º; a indemnização pelos danos não patrimoniais deve ser fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (artigo 494.º do Código Civil).

Como tem vindo a ser reiteradamente afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, a indemnização prevista no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, é mais propriamente uma verdadeira compensação. A finalidade que lhe preside é a de atenuar, minorar e de algum modo compensar os desgostos e sofrimentos suportados e a suportar pelo lesado através de uma quantia em dinheiro que seja capaz de lhe proporcionar um acréscimo de bem estar que contrabalance os males sofridos, as dores e angústias suportadas e a suportar.

O montante da indemnização deve ser calculado segundo critérios de equidade e deve ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.

O quantum indemnizatório, a fixar de acordo com as regras da equidade, não visando o ressarcimento do dano, deve oferecer uma compensação que tenha uma natureza significativa e não meramente simbólica.

Conforme se refere no acórdão de 18.02.2016 (Proc. n.º 118/08.1GBAND.P1.S2 - 3.ª secção, em www.stj.pt, Jurisprudência, Sumários de Acórdãos, Criminal – Ano de 2016) “IX - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art. 494.º, do CC, como decorre do n.º 3 do art. 496.º do CC, sendo de atender ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica do lesado e às demais circunstâncias do caso. Para além destes factores, há que ter em conta na fixação dos montantes correspondentes a compensação por danos não patrimoniais, as soluções jurisprudenciais, distinguindo-se entre três vertentes: necessidade ou não de intervenção correctiva por parte do STJ, estabelecimento do justo grau de compensação e soluções de fixação de montantes relativamente ao dano em causa, no caso, dano desgosto. Sendo certo que o juízo equitativo é critério primordial e sempre corrector de outros critérios. X- Como é entendimento praticamente unânime, há que ter em conta que a indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de compensação, não se compadecendo com atribuição de valores meramente simbólicos. Os padrões fornecidos pela jurisprudência, nomeadamente os mais recentes constituem também circunstância a ter em conta no quadro das decisões que façam apelo à equidade”. No mesmo sentido se considerou no acórdão de 22-10-2014 (Proc. n.º 84/13.1JACBR.S1 - 3.ª Secção, em www.dgsi.pt) “Estando em causa a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais (art. 496.º, n.º 1, do CC) necessariamente com apelo a um julgamento segundo a equidade, o tribunal de recurso deve limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente «as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida»”.

19. Em causa nos presentes autos, está a morte de duas pessoas, ambos os progenitores dos demandantes civis BB e EE, os falecidos HH e LL.

Tendo em conta que o Tribunal da Relação atribuiu 60.000 euros de indemnização a título de danos não patrimoniais a cada um dos filhos, verifica-se que foi fixada uma indemnização de 30.000 euros pelos danos não patrimoniais causados pela morte de cada progenitor.

Face à factualidade dada como provada, mostra-se que as vítimas do acidente de viação, pais dos demandantes civis, tinham, à data do acidente, 59 anos e 54 anos respectivamente, ou seja, os demandantes BB e EE viram-se privados de convívio com os seus pais pelo menos por mais de duas décadas, vista a esperança média de vida em Portugal.

Os demandantes, filhos do malogrado casal, têm oficinas de reparação automóvel, ofício que lhes foi transmitido e ensinado pelo pai, sendo certo que era este quem geria as oficinas dos filhos, ocupando-se de todo o serviço de escritório, nomeadamente, das compras, contabilidade, facturação, controlo e pagamento de impostos, fichas de clientes, etc.

Por sua vez, a falecida LL, criava e cuidava dos seus dois netos, filhos do BB, CC, nascido a ....2007, e DD, nascida a ....2013, uma vez que a mãe dos menores, companheira do BB, exercia actividade profissional num lar de terceira idade, trabalhando por turnos e, muitas vezes, durante a noite. Era com os avós que os menores pernoitavam com muita frequência e era a avó quem os levava ao infantário, ou aos tempos livres, onde ela também exercia funções laborais.

Com o desgosto e a perda prematura dos seus entes queridos (pessoas saudáveis, no pleno gozo das suas faculdades e da vida), em face da idade que ambos tinham à data da ocorrência do acidente, os demandantes viram-se privados do convívio com os pais por longos anos (face à esperança média de vida em Portugal), e os filhos do casal entraram ambos em desnorte completo quanto à organização do seu trabalho, pois era o pai quem disso de ocupava.

E a companheira do BB, mãe dos menores, teve mesmo que abandonar o emprego, por não ter quem cuidasse das crianças e para ajudar o companheiro e o irmão deste nas tarefas relacionadas com o escritório das oficinas.

Inclusive no dia em que o ocorreu o acidente toda a família (os falecidos, seus filhos e netos e companheira do filho BB) se deslocava junta, dirigindo-se todos para ..., em férias, como era habitual. No dia dos factos, toda a família, designadamente os filhos e netos das vítimas (filhos de BB e sua companheira), foi confrontada no percurso com os pais e avós mortos na estrada, não tendo sido possível evitar que as crianças observassem horrorizadas o veículo que era conduzido pelo avô, acidentado, e os próprios avós mortos no seu interior.

Resulta assim da factualidade provada que se tratava de uma família unida, com relações de grande proximidade, seja na vida profissional seja na vida pessoal e familiar. O malogrado casal tinha uma presença muito forte e próxima na vida dos filhos, pois não só os ajudavam na vida profissional (o pai na oficina) como na vida familiar (a mãe tomava conta dos netos do Demandante BB), como em momentos de férias iam todos juntos.

É de realçar que num só momento – no fatídico dia de 19.07.2015 - os filhos vêem-se privados da vida e convívio de ambos os pais. Isto é, por culpa única e exclusiva da arguida AA, os filhos (demandantes civis BB e EE), num só e único momento assistem à perda conjunta de ambos os progenitores. Tal circunstancialismo suscita uma dor e angústia profundas, potenciadora de uma sensação de desamparo da família nuclear no que à ascendência diz respeito.

Tem-se presente que se trata de dois filhos maiores, autónomos e independentes, mas na indemnização a arbitrar, para além de se ponderar a relação afectiva próxima que aqueles pais tinham com os filhos e a idade dos falecidos (que pelo menos por mais de duas décadas poderiam conviver com os mesmos), pesam de forma muito intensa a tristeza, a dor e a angústia da perda de ambos os pais, de uma só vez. De repente e de uma só vez, os demandantes civis são confrontados, de forma súbita e inesperada, com a perda total do amparo e afecto de ambos os pais, os quais tinham uma presença muito próxima e activa na vida dos filhos e que em nada contribuíram para o acidente de viação.

A perda de um progenitor é marcadamente um momento difícil, mas a perda, em simultâneo e de forma súbita e inesperada, de ambos os progenitores é particularmente dolorosa e certamente perdurará para sempre na memória dos filhos.

Pelo exposto, recorrendo a critérios que são fundamentalmente de equidade, não se surpreende qualquer motivo que possa constituir base de divergência quanto ao quantum indemnizatório de 60.000 euros atribuído, pelo Tribunal da Relação, a cada um dos demandantes BB e EE, pela morte de ambos os progenitores.

20. A fixação destes valores da indemnização não diverge, acrescente-se, dos critérios afirmados em jurisprudência deste Tribunal relativamente a situações com alguma similitude, em que foram fixados valores semelhantes, como se pode exemplificar nos casos que seguidamente se indicam. Disse-se nesses acórdãos:

No acórdão de 05-06-2018 (revista n.º 370/12.8TBOFR.C1.S2 - 6.ª Secção, loc. cit., 2018), num caso de presunção de culpa exclusiva do condutor do veículo, considerou-se: “Os valores de € 65 000 e de € 30 000 fixados a título de indemnização pelo dano morte e pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos filhos da vítima, estão em consonância com os critérios praticados pelo STJ. “

No acórdão de 29.01.2014 (revista n.º 49/05.7TBPRL.E1.S1 - 1.ª Secção, loc. cit., 2014: “I - Para a fixação de indemnização devida às autoras pelos danos não patrimoniais decorrentes da morte do seu cônjuge e pai – incluindo dano morte e ante mortem da vítima –, impõe-se o recurso à equidade, atendendo ao grau de culpa do responsável, situação económica do lesante e do lesado e, entre as circunstâncias do caso, à gravidade do dano a que a compensação deve ser proporcionada, lançando mão, tanto quanto possível, de um critério objectivo (cf. arts. 496.º e 494.º do CC). II - No recurso à equidade deve atender-se, em qualquer caso, ao critério de valoração e montantes que as decisões judiciais vêm encontrando para casos análogos, paralelos ou equiparáveis, como postulado pela segurança jurídica e igualdade de tratamento. III - Quando o cálculo da indemnização haja assentado em juízos de equidade, numa ponderação prudencial e casuística das circunstâncias do caso – e não na aplicação dos critérios normativos –, tal juízo deve ser mantido sempre que se não revele colidente com critérios jurisprudenciais generalizadamente adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade. IV - Tendo-se provado que (i) na execução de obra de construção de barragem, LF caiu de uma plataforma de trabalho, que se encontrava a quinze metros de altura, por o respectivo apoio ter cedido; (ii) aquando da queda e em razão da altura da mesma, LF apercebeu-se que ia morrer e, por isso, entrou em pânico; (iii) foi socorrido no local do acidente e depois transportado para unidade de saúde, onde já chegou cadáver; (iv) era cônjuge e pai das autoras; (v) a sua morte trouxe-lhes grande sofrimento; (vi) tinha 39 anos de idade, era saudável, trabalhador e um futuro promissor à frente; (vii) era o único suporte económico das autoras; (viii) a família e a vida do casal eram harmoniosas; (ix) a autora, cônjuge do falecido, entrou num processo de depressão pelo luto e teve de recorrer a tratamento médico especializado, deparando-se com dificuldades económicas para si e para as filhas; (x) era um bom pai, amigo das filhas, carinhoso, dedicado e preocupado com a educação e desenvolvimento; afigura-se que as quantias – fixadas no acórdão recorrido – de € 75 000, atribuída às autoras, em conjunto, para indemnizar o dano morte, e de € 30 000, fixada a cada uma das autoras, para indemnizar os danos não patrimoniais próprios sofridos, se encontram próximas dos padrões utilizados noutras decisões deste STJ, e, consequentemente, da vinculação devida aos princípios de igualdade e proporcionalidade.“

No acórdão de 19.04.2012 (revista n.º 569/10.1TBVNG.P1.S1 - 2.ª Secção, loc. cit., 2012), num caso de acidente de viação, sem culpa da vítima na produção do acidente, a qual sofreu lesões traumáticas crânio-encefálicas que levaram a várias intervenções cirúrgicas e permanência em estado de coma durante seis meses, após o que veio a falecer: “III - Se mulher do falecido (i) vivia com este numa família feliz, respeitando-se e amando-se reciprocamente, (ii) visitou-o, passando horas a fio no hospital, ao longo dos seis meses, e assistindo à sua agonia, mas encarando com esperança a sua recuperação e (iii) sofreu um profundo e grave desgosto com a morte do marido, é equitativa a quantia, fixada pelas instâncias, de € 60 000 pelo dano não patrimonial pelo seu sofrimento com aquela morte. IV - Também é equitativa a indemnização de € 50 000, a cada filho, fixada pelas instâncias, pelo danos não patrimoniais por estes sofrido com a morte do pai se estes (i) respeitavam, admiravam e estimavam o pai e (ii) no período de seis meses entre o acidente e a morte, passaram horas a fio, no hospital, em sofrimento, sempre à espera e na esperança que este recuperasse.”

No acórdão de 10.01.2012 (revista n.º 4524/06.8TBBCL.L1.S1 - 6.ª Secção, loc. cit, 2012): “IV - Estando provado que o falecido vivia estavelmente com a sua família e amava profundamente a sua mulher e filha; que a filha teve de receber apoio psicológico para a ajudar a superar a morte do pai; que a viúva perdeu o carinho, o apoio e a companhia do marido, vendo ruir o seu casamento e o feliz projecto de vida em comum que o mesmo representava, ficando sozinha, com o encargo de providenciar pela educação, formação e assistência da filha, julga-se equitativo fixar a compensação pelo dano não patrimonial da viúva no valor de € 40 000 e o da filha em € 35 000.”

No acórdão de 12.07.2011 (revista n.º 322/07.0TBARC.P1.S1 - 2.ª Secção, loc. cit., 2012): “VI - Considerando que: (i) a culpa na produção do acidente foi imputada ao condutor do veículo desconhecido; (ii) os filhos do falecido – aqui autores – tratavam o seu pai com carinho e afeição; (iii) o filho F tinha uma forte ligação ao pai, por quem nutria um forte apego e carinho, tendo em consequência da morte deste de receber apoio psicológico durante 1 ano, ainda chorando e sofrendo com a sua ausência; (iv) a autora C frequentemente interroga a sua mãe pela razão pela qual os pais das suas amigas as vão buscar ao infantário, e o seu não; (v) sendo certo que o falecido era um pai dedicado que acompanhava os seus filhos e mulher sempre que podia, vivendo com eles em plena harmonia, entende-se correcto fixar em € 30 000 (ao invés dos € 25 000 fixados pela Relação) o montante indemnizatório pelos danos morais sofridos pelos autores J e C, filhos da vítima. “.

No acórdão de 21.04.2015 (revista n.º 184/2000.C3.S1 - 6.ª Secção, sumário em www.stj.pt/Jurisprudência/Sumários, 2012), decidiu-se pela atribuição de indemnização a cada filha na quantia de 30.000€ a título de danos não patrimoniais pela morte da progenitora.

21. Assim, tendo em conta o que vem de se expor, numa perspectiva jurisprudencial de que a compensação não se compadece com valores simbólicos, conclui-se que o Tribunal da Relação, na fixação da indemnização arbitrada, não afrontou as regras de boa prudência e da criteriosa ponderação das realidades da vida, decidindo em consonância com critérios recolhidos da jurisprudência para vários casos semelhantes, pelo que não se impõe qualquer intervenção correctiva na indemnização fixada pelo Tribunal da Relação a favor de cada um dos demandantes BB e EE pelos danos não patrimoniais sofridos pela morte de ambos os progenitores, no valor de 60.000,00 (sessenta mil) euros, a suportar pelo demandada civil “GG Seguros, S.A”.

Improcede assim, nesta parte, o recurso interposto pela demandada civil “GG Seguros, S.A.” quanto a este segmento.

Quanto à indemnização arbitrada, a título de danos não patrimoniais, a CC e DD

22. Defende a recorrente que o acórdão recorrido violou o artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, na medida em que sempre tem sido interpretado pela jurisprudência dos tribunais superiores no seu sentido literal, ou seja, no de que nem todos os herdeiros ou outras pessoas (ainda que não familiares ou herdeiras) que sofram em resultado da morte da vítima têm direito a uma compensação do dano não patrimonial resultante da perda do ente querido, mas somente os filhos do lesado falecido (juntamente com o cônjuge do falecido), a não ser que àquele não tenham sobrevivido filhos, caso em que, então e só então, outros descendentes poderão reclamar tal tipo de compensação.

Conclui assim a recorrente que os menores CC e DD, sendo netos dos falecidos (outros descendentes) e filhos do demandante civil BB, não são titulares do direito a qualquer indemnização/compensação por danos de natureza não patrimonial (ainda que eventualmente os tivessem sofrido), nos termos do artigo 496.º, n.ºs 2 e 4, do Código Civil, conforme decidiu a sentença da 1.ª instância, que absolveu a recorrente do pagamento de qualquer indemnização aos demandantes civis CC e DD.

23. Nesta parte, a 1.ª instância fundamenta a absolvição da demandada civil quanto ao pedido de indemnização deduzido pelos demandantes CC e DD nos seguintes termos:

“Danos não patrimoniais dos assistentes e dos netos dos ofendidos por morte de HH e LL

O assistente BB por si e em representação dos seus filhos menores CC e DD, FF em representação dos seus filhos menores CC e DD e o assistente EE peticionam no pagamento do montante de:

- € 150.000,00 pelos danos morais do demandante BB;

- € 150.000_00 pelos danos morais do demandante EE;

- € 100.000,00 pelos danos morais do demandante CC;

- € 50.000,00 pelos danos morais da demandante DD;

sofridos com a morte de HH e LL.

Estatui o artigo 496.º que [transcrição] (…):

Conforme decorre de tal disposição legal, estabelecem-se claramente nela três grupos com o direito à indemnização por morte da vítima:

1- O cônjuge e os descendentes;

2- Na falta destes, os pais e outros ascendentes;

3- Os irmãos ou sobrinhos com direito de representação.

É já velha a questão agora suscitada, em sede de contestação ao pedido de indemnização cível, e que ao fim e ao cabo se traduz em saber se os direitos não patrimoniais derivados da perda do direito à vida por parte da vítima, nascem na esfera jurídica deste e depois se transmitem, por via sucessória, para os seus herdeiros, de acordo com as regras de sucessão ou se, pelo contrário, esses direitos nascem de iure proprio por direito originário, no património das pessoas a que se refere o na 2 do art.º. 496°.

E aqui o elemento histórico é a nosso ver esmagador. Sobre ele se pronunciou Antunes Varela, por forma clara e cristalina, pelo que nos limitaremos a transcrevê-lo (RLJ, Ano 123, págs. 191 e 192):

"Quem acompanhar atentamente os trabalhos preparatórios do Código Civil sem nenhuma ideia preconcebida afivelada à cabeça, não poderá deixar de reconhecer que entre a tese da indemnização nascida no património da vítima e transmitida por via sucessória a alguns dos seus herdeiros e a concepção da indemnização como direito próprio, originário, directamente atribuído ao cônjuge e aos parentes mais próximos, à margem do fenómeno sucessório da herança da vítima, a lei adoptou deliberadamente a segunda posição ".

No artigo 759° do Anteprojecto geral de Vaz Serra sobre o " Direito das Obrigações" ao regular-se a questão da " satisfação do dano não patrimonial", e depois de no n.º 2 dessa disposição se atribuir aos parentes, afins ou cônjuge da pessoa morta por culpa de outrem uma satisfação (pecuniária, é evidente) pelo dano não patrimonial que o facto lhes tivesse causado, prescrevia-se no n.º 4 relativamente aos danos não patrimoniais causados ao próprio lesado, o seguinte:

"O direito de satisfação por danos não patrimoniais causados à vítima transmite-se aos herdeiros desta, mesmo que o facto lesivo tenha causado a sua morte e esta tenha sido instantânea”.

Era a consagração inequívoca, na hora de ponta (ou seja, no caso extremo da morte instantânea) da aquisição derivada do direito à indemnização pelo dano da morte, através do puro canal da devolução sucessória.

Na 1.ª revisão ministerial dos diversos anteprojectos, que foi, como todos sabem, mais uma tarefa de redução, expurgação e reordenação sistemática de textos do que um reexame substancial de afinação e uniformização de soluções, o artigo 476.º (do Livro das Obrigações) continuava ainda a distinguir nos nºs 2 e 3 entre os danos não patrimoniais causados à vítima da lesão e os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares da vítima. E, quanto aos primeiros, o texto da disposição mantinha de igual modo, com suficiente clareza, a tese transmitida pelo Anteprojecto de VAZ SERRA.

“O direito de satisfação por danos não patrimoniais causados à vítima, dizia efectivamente o n.º 2 desse artigo (476.º) transmite-se aos herdeiros desta, ainda que o facto lesivo tenha causado a sua morte imediata", numa clara aceitação da tese da aquisição derivada do direito à indemnização, por via hereditária, mesmo no caso de morte instantânea.

Porém, na 2.ª revisão ministerial, na qual todas as normas seleccionadas pela 1.ª revisão foram como que passadas a pente fino, com vista ao aperfeiçoamento substancial das soluções e à uniformização de critérios própria de toda a legislação codificada, a posição da lei perante a indemnização da morte da vítima sofreu uma alteração radical.

No artigo 498.º saído dessa revisão (correspondente ao art. 496.º da versão definitiva do Código) deixa de falar-se na transmissão do direito à indemnização (pelo dano da morte), não se alude mais à hipótese da morte instantânea e não se chamam sequer os herdeiros a recolher a indemnização colada à herança da vítima.

Tal como na versão final do n.º 2 do artigo 496.º do Código, passou antes a dizer-se que, por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes, e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

Com esta eliminação da referência à transmissão do direito à indemnização, com a substituição dos herdeiros, na titularidade da indemnização, pelo cônjuge e familiares mais próximos da vitima, à margem da sucessão legítima, em termos diferentes da ordem normal da vocação sucessória, o legislador quis manifestamente chamar estas pessoas por direito próprio, a receberem, como titulares originários do direito, a indemnização dos danos não patrimoniais causados à vitima da lesão mortal - e que a esta competiria, se viva fosse.

Também no Acórdão do STJ 96.05.09 BMJ 457, 275, se tomou posição no sentido propugnado pelo Prof. Antunes Varela, isto é de que os direitos em causa nascem de iure próprio.

Aí se escreve: "propendemos para a orientação que os danos não patrimoniais sofridos pelo morto nascem, por direito próprio, na titularidade da pessoas designadas no n.º 2 do artigo 496.º segundo a ordem e nos termos em que nesta disposição legal são chamadas, argumentação esta sólida no que se refere aos trabalhos preparatórios do Código, os quais revelam, em termos inequívocos, que o artigo 496.º, na sua redacção definitiva, tem a intenção de afastar a natureza hereditária do direito a indemnização pelos danos morais sofridos pela própria vítima".

Considerando que as vítimas tinham descendentes à data da sua morte, os danos não patrimoniais a considerar para efeitos de indemnização são apenas os sofridos pelas vítimas e os sofridos pelos descendentes, que cabem apenas a estes, porque integrante do 1° grupo mencionado no artigo 496°, n.º 2 do Código Civil.

É verdade que o aludido inciso normativo – n.º 2 do art.º 496.º - junta no primeiro grupo de beneficiários, a título conjunto e simultâneo, "o cônjuge" e "os filhos ou outros descendentes". Mas, quanto aos "outros descendentes" que não os filhos, isto é quanto aos descendentes de 2° grau (netos) ou de 3° grau (bisnetos), a precedência da respectiva enunciação pela disjuntiva "ou" mais não pode deixar de significar que o "chamamento" desses parentes de graus subsequentes dentro da mesma estirpe só pode operar-se a título sucessivo ou subsidiário, isto é por direito de representação de seus falecidos progenitores.

O direito à indemnização caberá pois em conjunto, não ao cônjuge, aos filhos "e" outros descendentes, mas sim ao cônjuge e aos filhos e também (ou) a outros descendentes que eventualmente hajam sucedido a algum desses filhos pré-falecidos por direito de representação.

Interpretação esta que, não só é claramente sugerida pelo texto da norma ao apor a sobredita disjuntiva "ou" em vez da copulativa "e", como vai de encontro à regra estabelecida para a sucessão legal no artigo 2135° do Código Civil segundo a qual, dentro de cada classe de sucessíveis os parentes de grau mais próximo, preferem aos de grau mais afastado.

Assim, não há pois lugar a indemnização aos filhos dos descendentes dos falecidos, nesta parte improcedendo o pedido de indemnização cível”.

24. Ao invés da 1.ª Instância, o Tribunal da Relação decidiu condenar a demandada civil nos pedidos de indemnização deduzidos pelos demandantes civis CC e DD, netos do falecido, arbitrando uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, no valor de 30.000€ para o demandante CC e no valor de 15.000€ para a demandante DD.

Diz o acórdão da Relação:

“B.6 – O último ponto de desacordo do recorrente diz respeito ao quantum indemnizatório dos danos não patrimoniais sofridos, que o tribunal recorrido cifrou em 30.000 € para cada um dos dois assistentes.

O fundamentado até aqui demonstra que termos que considerar o acrescento de dois lesados, os filhos e netos das vítimas.

O pedido cível formulado peticionava os seguintes montantes, em sede não patrimonial:

- € 150.000,00 pelos danos morais do demandante BB;

- € 150.000,00 pelos danos morais do demandante EE;

- € 100.000,00 pelos danos morais do demandante CC;

- € 50.000,00 pelos danos morais da demandante DD;

tudo num total de € 450.000,00 acrescido dos respectivos juros de mora, à taxa legal contados desde a data da notificação desde a data de citação até integral pagamento.

O tribunal recorrido decidiu condenar a demandada GG Seguros, a pagar a cada um dos demandantes BB e EE a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, acrescida de juros moratórios computados à taxa legal desde a data da presente sentença até pagamento integral e efectivo.

Como sabido os danos patrimoniais visam ressarcir valores imateriais como a vida como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, o sofrimento resultante de factos vários, como a perda de familiares, a dor, a angústia. Essencialmente visa-se a compensação através do arbitramento de uma sanção pecuniária (há que assumir a natureza parcial da pena privada deste arbitramento). E esse dano é aqui peticionado na vertente do pretium doloris, habitualmente designado também por quantum doloris, por quatro lesados com diversa sensibilidade, porquanto com vária idade e, como tal, com diferentes percepções dos factos e, por isso, com diversos graus de sofrimento.

Por aqui que se concorde com os peticionantes na gradação de montantes indemnizatórios diversos em função dos lesados. Discordamos apenas dos montantes.

Por isso que se siga a jurisprudência – expressa, entre outros, no acórdão do STJ de 18-06-2009 (Proc. n.º 1632/01.5SILSB.S1, rel. Cons. Raul Borges) – que assevera que “a indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação”, não se compadecendo com atribuição de valores meramente simbólicos, nem com miserabilismos indemnizatórios”.

E, por isso, o montante arbitrado aos menores CC e DD tem que ser fixado em 30.000 € e 15.000 € respectivamente, atendendo à diversa percepção dos factos e suas consequências, determinadas pela sua diferente idade. Já quanto aos filhos das vítimas o quantum indemnizatório não deve ser inferior a 60.000 € para cada um.”

25. O objecto do recurso interposto pelos demandantes civis para o Tribunal da Relação, tinha como questões, por um lado, o montante da indemnização (30.000,00 euros a cada um deles) fixado pela 1.ª instância, que os demandantes BB e EE consideravam insuficiente e, por outro lado, a decisão de absolvição no pagamento de indemnização a que os demandantes civis CC e DD se achavam com direito.

Da análise do conteúdo do acórdão recorrido, não é possível, todavia, identificar as razões que levaram o tribunal recorrido a considerar os demandantes civis CC e DD, filhos do demandante BB, titulares do direito a indemnização por danos não patrimoniais, sofridos pela morte dos avós, que foram vítimas mortais no acidente de viação.

Enquanto a sentença da 1.ª instância fundamenta o motivo devido ao qual entende que os netos não são titulares do direito a indemnização e, por esse motivo, absolve a demandada civil, o acórdão recorrido condena a demandada civil (revogando a absolvição) numa indemnização, mas não indica qualquer motivo pelo qual entende que os netos dos falecidos são titulares do direito a indemnização a título de danos não patrimoniais.

O Tribunal da Relação limita-se, em síntese, a considerar que “o último ponto de desacordo do recorrente diz respeito ao quantum indemnizatório dos danos não patrimoniais sofridos, que o tribunal recorrido cifrou em 30.000 € para cada um dos dois assistentes”, que “o fundamentado até aqui demonstra que teremos que considerar o acrescento de dois lesados, os filhos e netos das vítimas”, que “por aqui se concorde com os peticionantes na gradação de montantes indemnizatórios em função dos lesados” e que “discordamos apenas dos montantes” (parte B.6 do acórdão recorrido) e, assim, dentro desta discordância, fixa uma indemnização a favor dos demandantes CC , a título de danos não patrimoniais, estabelecendo diferentes valores que justifica “atendendo à diversa percepção dos factos e suas consequências, determinadas pela sua diferença de idade.”

Porém, por um lado, “o fundamentado até aqui” limita-se à alteração do ponto 4 da matéria de facto não provada e ao aditamento do ponto 28.º-B à matéria de facto provada (parte B.4 do acórdão recorrido), o que, por si, não determina uma modificação do decidido, e, por outro, em momento algum convoca um único dispositivo legal ou instituto jurídico para fundamentar as razões da discordância quanto ao decidido em 1.ª instância e para, diversamente, justificar que os demandantes CC e DD são titulares de direito a indemnização civil.

Ou seja, o Tribunal da Relação revogou a sentença de absolvição proferida pela 1.ª instância relativamente aos demandantes civis CC e DD, condenando a demandada, mas omite por completo os motivo que levam a condenar e, consequentemente, a tomar posição oposta à sentença da 1.ª instância.

26. Sob a epígrafe “Nulidade da sentença” dispõe o artigo 379.º do CPP, que:

“1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.° 2 e na alínea b) do n.° 3 do artigo 374.° [...]”

Por sua vez, dispõe o art. 374.º do CPP que

“1 - A sentença começa por um relatório, que contém:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;

c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;

d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.

2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”

Estabelece o artigo 425.º, n.º 4, do CPP que é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto no artigo 379.º do mesmo diploma.

Nos termos do n.º 2 do artigo 379.º do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, as nulidades de sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”. Isto é, as nulidades da sentença, elencadas no n.º 1 deste precito podem ser objecto de arguição e de conhecimento oficioso.

Conforme salienta Oliveira Mendes (in Código de Processo Penal Anotado, 2016, 2.ª Edição Revista, Almedina, em anotação ao artigo 379.º do CPP, p. 1133): “Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do n.º 2, estabelece que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso”, o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença…devem ser conhecidas em recurso». Como se refere no Acórdão do STJ de 27-10-2010, proferidas no Proc. n.º 70/07.0JBLSB.L1.S1 as nulidades da sentença, conquanto não sejam insanáveis, uma vez que não incluídas nas nulidades previstas no art. 119.º, do CPP, são cognoscíveis em recurso, mesmo que não arguidas, visto que as nulidades da sentença enumeradas no art. 379.º, n.º 1, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais. Aliás nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras de princípios do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença susceptíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior (…). Por efeito da alteração introduzida ao texto do n.º 2 pela Lei n.º 20/2013 (…), passou a constituir um dever do tribunal de recurso o suprimento das nulidades da sentença recorrida (é o que decorre da actual letra da lei «as nulidades da sentença devem, ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las), razão pela qual sobre o tribunal de recurso impende a obrigação de suprir as nulidades de que padeça a sentença recorrida, a menos, obviamente, que a nulidade só seja susceptível de suprimento pelo tribunal recorrido, situação que será a comum, visto que na grande maioria dos casos o suprimento pelo tribunal de recurso redundaria na supressão de um grau de jurisdição”.

No mesmo sentido afirma Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Processo, 4.ª ed., Católica Editora, pp. 985/986): “O tribunal de recurso tem o poder de “suprir” as nulidades da sentença. Mas este poder é muito reduzido na prática, porque ele só poderá ser exercido negativamente. Isto é, o tribunal de recurso só pode exercer o poder de suprir a nulidade nos casos em que o tribunal recorrido se tenha pronunciado sobre questões de que não podia conhecer (nulidade da 2.ª parte da al. c) do n.º 1). Neste caso, o tribunal superior exerce o seu poder de suprimento da nulidade simplesmente declarando suprimida na sentença recorrida a parte atinente à questão que não deveria ter sido conhecida. Em todos os outros casos, o tribunal de recurso não pode exercer o seu poder de suprimento, pois esse exercício corresponderia à supressão de um grau de jurisdição. A sentença deve ser anulada e os autos devem baixar ao tribunal a quo para que nele se proceda à elaboração de nova sentença, completando-se a sentença com as “menções” em falta (nulidade da al. a) do n.º 1) ou conhecendo-se nela “as questões” que o tribunal deveria ter apreciado (nulidade da 1.ª parte da al. c) do n.º 1)”.

Em sentido convergente pode ver--se, por exemplo, o acórdão de 22.6.2017 (no processo n.º 119/12.5TALSA.C1.S1, apud acórdão de 12.7.2018, no processo n.º 1289/08.2PHLRS.L1.S1, em www.dgsi.pt, onde se lê:) “IX - As sentenças e os acórdãos que conheçam do objeto da causa estão feridos de nulidade, caso não explicitem os motivos de facto e de direito da decisão, como decorre dos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n,º 1, al. a), do CPP. Sobretudo, será sempre de exigir que a diferente decisão do tribunal de recurso esteja suficientemente explicada, para que todos os sujeitos processuais possam entender as razões da discordância com a sentença da 1.ª instância que conduziram a solução distinta. X - O acórdão recorrido carece manifestamente de fundamentação de direito quanto à condenação dos demandados a indemnizar o demandante, pelo que deve ser declarado nulo nos termos dos arts. 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a) e art. 425.º, n.º 4, todos do CPP, devendo ser reformulado suprindo-se a nulidade em causa.”

Face aos normativos atrás enunciados, e para o que agora interessa, é nulo o acórdão em que lhe falte a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.

Como tem sido reiteradamente sublinhado na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, não estando em causa o objecto do processo, mas a decisão recorrida, impõe-se que, por dupla via de remissão dos artigos 425.º, n.º 4, e 379.º do CPP, as exigências de pronúncia e fundamentação dos acórdãos dos tribunais da Relação, proferidos em recurso, decorrentes da aplicação do n.º 2 do artigo 374.º do CPP, devam sofrer as adaptações devidas, em função do objecto e do âmbito do recurso.

O artigo 379.º, conjugado com o artigo 374.º do CPP, concretiza o dispositivo do art.º 205.º, º 1, da Constituição, que impõe a fundamentação “na forma prevista na lei”, em sintonia e como parte integrante do conceito de Estado de Direito democrático e da legitimação da decisão judicial e da garantia do direito ao recurso, por respeito às garantias de defesa do condenado (art.º 32.º, n.º 1, da CRP) e de acesso à tutela jurisdicional efectiva (art.º 20.º, n.º 4, da CRP), no sentido de que se assegure um julgamento equitativo, como vem sendo reconhecido pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e se apresenta consagrado, em termos amplos, no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Do mesmo modo, na materialização do referido preceito constitucional, também o art.º 97.º, n.º 5, do C.P.P. dispõe que "Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão."

27. O dever de fundamentação, na dimensão que lhe é constitucional e legalmente conferida, como manifestação do direito a um processo equitativo, implica, pois, que o tribunal da Relação, conhecendo das questões que lhe são colocadas, explicite os motivos pelos quais modifica ou não modifica a decisão recorrida e julga procedente ou improcedente o recurso.

Como se refere no acórdão de 8.11.2017, no processo n.º 22/14.4PEFUN.L1.S1 (em www.dgsi.pt), «o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais resulta, como é conhecido, de razões que se extraem do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais, que implicam, para além do mais, a necessidade de justificação do exercício do poder estadual, de modo a possibilitar o seu controlo por parte dos destinatários e dos tribunais superiores, assim se conferindo garantia efectiva ao direito de defesa, incluindo o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição (cfr. Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, anotações ao artigo 205.°, Vol. II, 4.ª ed.). “A fundamentação cumpre, simultaneamente, uma função de carácter objectivo — pacificação social, legitimidade e autocontrolo das decisões — e uma função de carácter subjectivo — garantia do direito ao recurso, controlo da correcção material e formal das decisões pelo seu destinatário” (Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, Tomo III, 2007, anotações III e IV ao artigo 205.º). Perspectivando o tema na óptica dos direitos processuais, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem interpretando o artigo 6.º da “Convenção para a protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais” no sentido de que a fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspectos do direito a um processo equitativo protegido por esta disposição, o qual impõe, assim, o dever de os tribunais motivarem adequadamente as suas decisões, de acordo com a sua natureza (cfr. acórdão de 09.07.2007, caso Tatishvili c. Rússia, e outros aí mencionados)»

Exigindo-se que o tribunal da Relação explicite os motivos pelos quais julga procedente ou improcedente o recurso, isso implica que, no caso em apreciação, ao alterar uma sentença de absolvição (do pedido de indemnização civil) em sentença de condenação (em indemnização), a Relação explicite, tanto quanto possível de forma completa, ainda que concisa, dos motivos de direito que fundamentam a decisão (oposta à 1.ª instância).

28. Assim sendo, forçoso se impõe concluir que, nesta parte, o acórdão recorrido se mostra ferido de nulidade por falta de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP correspondentemente aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP, a qual, deve ser declarada, na medida em que não é tomada qualquer posição do motivo devido ao qual o acórdão recorrido entende, em oposição ao Tribunal da 1.ª instância, que os demandantes civis CC são titulares do direito a indemnização a título de danos não patrimoniais pela morte dos falecidos HH e LL.

Dada a nulidade em causa, por falta de fundamentação, esta tem que ser suprida pelo tribunal recorrido, não cabendo ao STJ fazê-lo, dado que a este tribunal de recurso se impõe aferir da justeza do resolvido e não suprir o não resolvido.

29. A declaração da nulidade por falta de fundamentação verifica-se relativamente à condenação da demandada civil “GG Seguros, S.A” no pagamento de indemnização, a título de danos não patrimoniais, aos demandantes CC e DD. Porém, o presente recurso cinge-se apenas ao conhecimento da condenação da demandada a pagar a indemnização ao demandante CC, dado que o recurso quanto à condenação da no pagamento da indemnização a DD não foi admitido por falta de sucumbência.

Impõe-se, assim, decidir se esta nulidade deste segmento do acórdão afecta toda a decisão de condenação quanto à indemnização arbitrada a estes dois demandantes ou se limita apenas à parte relativa à condenação ao pagamento ao demandante CC.

30. Dispõe o artigo 403.º do CPP que:

“1 - É admissível a limitação do recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas.

2 - Para efeito do disposto no número anterior, é autónoma, nomeadamente, a parte da decisão que se referir:

a) A matéria penal;

b) A matéria civil;

c) Em caso de concurso de crimes, a cada um dos crimes;

d) Em caso de unidade criminosa, à questão da culpabilidade, relativamente àquela que se referir à questão da determinação da sanção;

e) Em caso de comparticipação criminosa, a cada um dos arguidos, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 402.º;

f) Dentro da questão da determinação da sanção, a cada uma das penas ou medidas de segurança.

3 - A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.”

Impõe assim o n.º 3 deste preceito que a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida. Extrai a doutrina a ilação de que «este preceito estabelece uma verdadeira condição resolutiva do caso julgado parcial», sem prejuízo, porém, da sua «formação desde o trânsito da decisão» (Cunha Rodrigues, Recursos, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ-l988, Almedina, 1995, pp. 387-388).

Este preceito não é de fácil delimitação dado que, a ele subjacente, não pode ser ignorado o caso julgado relativamente aos não recorrentes. Porém, conforme foi salientado no acórdão de 09.05.2007 (no processo n.º 1129/07, sumário em www.stj.pt/Jurisprudência/Sumários, 2007), “O disposto no art. 403.º, n.º 3, do CPP significa que a decisão do recurso não pode deixar espaços de não congruência dentro do campo específico em que a congruência se imponha, mas não pode ser interpretado no sentido de intervenção oficiosa e supletiva do não exercício de direitos processuais relativamente a matéria que depende da disponibilidade do interessado”.

Assim, sendo a decisão de condenação numa indemnização aos demandantes civis CC e DD nula por falta de fundamentação, deve considerar-se que esta nulidade afecta toda a decisão no que ao segmento de condenação em indemnização civil a estes dois demandantes diz respeito. Desta perspectiva, não pode ser ignorado que a recorrente não se conformou com a decisão condenatória (que revogou a decisão de absolvição da 1.ª instância), e recorreu daquele segmento decisório relativamente à condenação em ambas as indemnizações (de CC e DD), sendo apenas por constrangimentos processuais que não viu o seu recurso admitido quanto à condenação relativamente à demandante DD.

Conclui-se assim que a nulidade por falta de fundamentação do acórdão recorrido não se limita à parte do recurso que foi admitido e conhecido, mas que, por força do artigo 403.º, n.º 3, do CPP, esta nulidade tem consequências em relação a toda a decisão referente à condenação daquelas duas indemnizações (ou seja, relativamente ao segmento do acórdão recorrido que revogou a absolvição da 1.ª instância), estendendo-se à parte do recurso que apenas não foi admitido por falta de sucumbência (relativamente à condenação em indemnização a favor da demandante DD), sob pena de a presente decisão deixar “espaços de não congruência, dentro do campo específico em que a congruência se impõe”..

Em consequência, deverá ser proferido novo acórdão pelo tribunal recorrido tendo em vista o suprimento da nulidade, por falta de fundamentação, quanto à decisão de condenação da demandada civil em indemnização a título de danos não patrimoniais, aos demandantes civis CC e DD.

III. Decisão

31. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Julgar improcedente o recurso interposto pela demandada civil “GG Seguros, S.A.” quanto à indemnização fixada a favor dos demandantes BB e EE, e, em consequência, em manter a condenação da demandada civil no pagamento do montante indemnizatório fixado, de 60.000 (sessenta mil) euros, por danos não patrimoniais, a cada um deles;

b) Declarar a nulidade por falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto à condenação da demandada civil “GG Seguros, S.A.” na indemnização aos demandantes CC e DD, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, correspondentemente aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP, e no artigo 403.º, n.º 3, do mesmo diploma, devendo, em consequência, ser proferido, quanto a este segmento, novo acórdão pelo Tribunal da Relação para suprimento dessa nulidade.

Porque o recurso obteve provimento parcial, são devidas custas na proporção do respectivo decaimento, que se fixam em 1/2 a cargo dos demandantes civis e 1/2 a cargo da demandada civil, de harmonia com o disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 523.º do CPP.

Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Março de 2019.

Lopes da Mota (Relator)

Vinício Ribeiro