Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MÁRIO BELO MORGADO | ||
Descritores: | RECURSO DE REVISTA ADMISSIBILIDADE DE RECURSO CONTRATO DE TRABALHO TRABALHO A BORDO NAVIO CONTRATO DE TRABALHO A TERMO INCERTO ABANDONO DO TRABALHO SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO CADUCIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO CREDITO LABORAL PRESCRIÇÃO DE CRÉDITOS FORMAÇÃO PROFISSIONAL | ||
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Data do Acordão: | 06/23/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA | ||
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Sumário : |
I- Julgada improcedente a exceção de ilegitimidade passiva, por decisão transitada em julgado proferida na primeira instância, não pode tal questão ser suscitada em sede de recurso. II- Acresce que o Tribunal da Relação não se pronunciou sobre esta questão, sendo que os recursos, enquanto meios de impugnação das decisões judiciais, apenas se destinam a reapreciar decisões tomadas pelo tribunal a quo e não a decidir questões novas que perante eles não foram equacionadas. III- Por contrato de trabalho a termo incerto, datado de 19.04.2019, o A. foi admitido para exercer as funções de praticante de piloto, tendo em vista obter a certificação de competências que lhe permitisse inscrever-se como oficial piloto. IV- Nos termos do art. 62.o, no 2, do DL 280/2001, de 23.10, “por desembarque entende-se a desvinculação temporária ou definitiva de um tripulante do rol de tripulação e do consequente serviço a bordo de uma embarcação”. V- Em 21.05.2019, o A. remeteu um e-mail ao armador, com conhecimento à R., comunicando que, “por motivos familiares, terei que desembarcar no dia 27 de maio”. VI- Esta declaração (e o subsequente desembarque) configura uma “desvinculação temporária”, que se reconduz ao conceito de suspensão do contrato de trabalho, entendido como cessação temporária das funções principais das partes: basicamente, o trabalhador não presta os seus serviços e, consequentemente, o empregador não lhe paga. VII- A suspensão contratual ocorreu por motivos indeterminados, uma vez que o A. se limitou a alegar vagos e não concretizados “motivos familiares”, que, aliás, não se mostram minimamente comprovados, pelo que não é possível subsumir a situação em apreço à hipótese de “impedimento temporário por facto respeitante ao trabalhador que não lhe seja imputável e se prolongue por mais de um mês, nomeadamente doença, acidente ou facto decorrente da aplicação da lei do serviço militar”, contemplada no art. 296o, no 1, do CT, nem, por identidade de razão, à de suspensão da prestação de trabalho por impedimento prolongado, prevista na cláusula 36.a, no 1, do ACT (“quando o inscrito marítimo esteja temporariamente impedido de comparecer ao trabalho por facto que não lhe seja imputável, nomeadamente serviço militar obrigatório ou serviço cívico substitutivo”). VIII- Apenas nestas situações especificas, prevê a lei (art. 297o, do CT) e o ACT (no 3 da sobredita cláusula) que a suspensão do contrato cessa automaticamente, ope legis, com a apresentação do trabalhador ao empregador (armador) para retomar a atividade, no dia imediato à cessação do impedimento. IX- Fora deste circunstancialismo, como acontece no caso dos autos, a cessação da suspensão do contrato exige que nesse sentido haja acordo das partes, nos termos gerais. X- Considerando que o “rol de tripulação” é válido por prazo não superior a um ano, conclui-se que o contrato de trabalho em causa caducou um ano depois do seu início, ou seja, em 19.04.2020, momento até ao qual se manteve a suspensão do contrato de trabalho (iniciada em 27.05.2019), sem direito à retribuição e demais direitos que pressupõem a efetiva prestação de trabalho. XI- Não há a considerar qualquer crédito de horas por formação, uma vez que a situação em apreço se encontra fora da esfera de proteção dos arts. 130o a 134o do CT: o vínculo laboral do A., cuja finalidade era a prática de tirocínio e obtenção de certificado de competências, destinava-se precisamente a formação, pelo que o contrato, tendo em conta as suas finalidades, já contemplava e esgotava as exigências legais consagradas nesta matéria. | ||
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Decisão Texto Integral: | Revista n.o 1236/20.3T8BJA.E1.S1 MBM/JG/RP Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça I. 1. AA demandou PROMARINHA – Gabinete de Estudos e Projetos, S.A., pedindo a sua condenação na quantia global de € 30.729,79 (a título de diferenças salariais, vencimentos não pagos, férias, subsídios de férias e de Natal e horas de formação não ministrada), acrescida de juros de mora. Alega ter sido admitido ao serviço da R. com a categoria profissional de Praticante de Piloto, em navio que arvora a bandeira portuguesa, que a cláusula contratual de motivação do termo é nula, que R. não lhe pagou a remuneração mínima prevista no CCT e que partir de 28.05.2019 não lhe deu qualquer ocupação nem pagou qualquer retribuição, pelo que resolveu o contrato de trabalho em 04.09.2020. 2. Foi proferida sentença, a julgar a ação improcedente. 3. Interposto recurso de apelação pelo A., julgado parcialmente procedente, o Tribunal da Relação de Évora (TRE) condenou a R. a pagar-lhe a quantia de 21.409,81€, acrescida de juros moratórios. 4. A R. interpôs recurso de revista, dizendo essencialmente: – Foi o A. que, por abandono do trabalho, cessou a sua relação laboral em 27 de maio de 2019. – No sector laboral marítimo só existe contrato de trabalho enquanto o trabalhador estiver embarcado. – O contrato de trabalho marítimo tem de ser assinado entre o armador e o marítimo, sendo que a R. não é um Armador, mas agente de um Armador (Mutualista Açoreana), qualidade em que subscreveu o contrato. – O Acórdão enferma de nulidade (art. 615.o do Código de Processo Civil), porquanto não aplicou ao caso as normas de direito, decorrentes da Convenção Do Trabalho Marítimo de 2006 (CTM-2006), o que viola o disposto no art.o 8 da Constituição da República Portuguesa – Conforme configura a Convenção do Trabalho Marítimo (CTM) de 2006, a existência de contrato de trabalho está relacionada com o facto do marítimo estar embarcado, pois é estabelecido que é obrigatório ser fixado a bordo dos navios o horário de trabalho a navegar e em porto. – Ou seja, só existe contrato de trabalho marítimo enquanto o trabalhador estive embarcado. – Existe uma prática do sector marítimo, segundo a qual o pedido para desembarcar de um trabalhador equivale ao pedido de cessar o vínculo laboral. – Quando o A. intentou a ação já havia corrido o prazo da prescrição do seu direito aos créditos, que prescreveram em 22 de agosto de 2020, conforme decidiu a 1.a Instância. – Quando o A. pediu para sair ainda não tinha decorrido o prazo de 90 dias do período experimental, pelo que tem lugar a aplicação do disposto na alínea a) do n.o 1 do art.o 112.o do Código de Trabalho, porquanto entre a data de outorga do contrato em 18 de maio de 2019 e a data em que o A. fez o pedido de cessação do contrato decorreram 39 dias. 5. O recorrido respondeu, pugnando pela improcedência da revista. 6. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, em parecer a que as partes não responderam. II. (Delimitação do objeto do recurso) 7. Na Revista, invoca a R. a sua ilegitimidade, em virtude de ser uma Agência de Recrutamento e Colocação de Marítimos e não um Armador, e, alegadamente, só esse poder celebrar contratos de trabalho com marítimos. No despacho saneador, foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade passiva, decisão transitada em julgado. Mostrando-se já definitivamente decidido este ponto, não pode, naturalmente, ser o mesmo conhecido (retomado) neste momento processual (cfr. ainda art. 635o, no 5, CPC1). Como refere Abrantes Geraldes2, “o caso julgado que se tenha estabelecido em relação a alguma decisão ou segmento decisório não pode ser perturbado por uma atuação posterior, ainda que de um tribunal hierarquia superior”. Acresce que o TRE não se pronunciou sobre esta questão, sendo certo que os recursos, enquanto meios de impugnação das decisões judiciais (cfr. art. 627.o, n.o 1), apenas se destinam a reapreciar as decisões tomadas pelos tribunais de inferior hierarquia e não a decidir questões novas que perante eles não foram equacionadas.3 Não se conhecerá, pois, desta questão (sendo certo que dos autos não resultam quaisquer razões que minimamente imponham conhecer da mesma oficiosamente, tendo desde logo em conta que “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”, nos termos do art. 30o, no 1). 8. Pela mesma razão, tendo em conta que a questão atinente à alegação de que o A. se encontrava no decurso do período experimental (à data do pedido de desembarque) não foi apreciada pela decisão recorrida (nem, sequer, pela 1a instância), não se conhece da mesma. Sem deixar, todavia, de se notar que, estando em causa um contrato de trabalho a termo, é no máximo de 30 dias o prazo conferido às partes para denunciarem o contrato sem aviso prévio e invocação de justa causa, nem direito a indemnização (cfr. arts. 112o, no 2, e 114o, no 1, do CT). 9. Posto isto, em face das conclusões da alegação de recurso, as questões a decidir4 são as seguintes: – Se o acórdão da Relação enferma de nulidade. – Da invocada “violação da lei substantiva”. – Se (nomeadamente por desembarque ou por abandono do trabalho por parte do A.) o contrato de trabalho cessou ou, pelo menos, se suspendeu. – Em caso afirmativo, quais as suas consequências. – Se prescreveram os créditos invocados pelo A. Decidindo. II. 10. Foi fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto: 1. A Ré é uma empresa que exerce a atividade de Agência de Recrutamento e Colocação de marítimos. 2. O A. (...) tem o curso de pilotagem pela ..., mas não está habilitado a exercer a função de piloto enquanto não tiver tempo de embarque e ser considerado habilitado e certificado; 3. A pedido do autor e do ..., de quem é agente, a Ré acordou com o autor, recém-formado piloto na ..., a colocação como praticante no navio ... da ... para aí obter formação e tempo de embarque, mediante a contrapartida 600,00 € (seiscentos euros), incluindo o montante respeitante a subsídios de férias e de Natal; 4. Na sequência do referido acordo a ré e o autor subscreveram documento escrito em ... de ... de 2019, denominado “contrato de trabalho a termo incerto”; 5. Do ponto 1.5 do referido documento consta que o mesmo se encontra «inserido no Art. 140 do CT, no 3, alínea g) do Código do Trabalho (Execução de tarefa ocasional ou serviço determinado precisamente definido e não duradouro), com o objetivo da prática adquirida a bordo (tirocínio) para a obtenção do certificado de competências» e no ponto 1.6 que o contrato caduca «quando o marítimo adquirir a prática necessária a bordo, que lhe permitirá a obtenção do certificado de competências». 6. Do ponto 20 do aludido documento consta que o mesmo se rege “de acordo com as normas contempladas no Acordo Coletivo de Trabalho celebrado entre a ... e Outras e a FESMAR – Federação de Sindicatos dos Trabalhadores do Mar”. 7. O referido documento foi elaborado tendo por base as cláusulas constantes do acordo que havia sido celebrado entre o armador ... e o autor, em 19.07.2018 e que havia cessado, entretanto, a pedido do referido armador. 8. O autor sabia que a ré se dedica ao recrutamento e colocação de marítimos a bordo e que foi enquanto tal que subscreveu o aludido acordo. 9. O autor embarcou no navio “...” em 19.04.2019. 10. Com data de 21 de Maio de 2019 o autor remeteu e-mail dirigido ao armador e com conhecimento à ora ré, com o seguinte teor: “Venho por este meio dar conhecimento a V. Exas. que, por motivos familiares, terei que desembarcar no dia 27 de Maio. Informo ainda que dei conhecimento ao Comandante do navio, Sr. BB. Sem outro assunto, apresento os meus melhores cumprimentos. AA” 11. Em 27 de Maio o autor deixou o navio “...”; 12. No período que decorreu entre o embarque e o desembarque o autor obedecia às ordens e indicações do Comandante do Navio e ao horário fixado por este e comunicado pelo imediato do navio, tendo sido avaliado pelo comandante no referido período e tendo discordado da referida avaliação em três itens. 13. Com data de 23 de Junho de 2019 o autor remeteu um e-mail dirigido ao armador, à ora ré e ao comandante do navio, com o seguinte teor: “Sou a informar que estou disponível para embarcar no navio N/M Furnas, como praticante de Piloto, desde a presente data, 24 de Junho de 2019. Com os melhores cumprimentos, CC” 14. Ao referido e-mail respondeu o armador, com data de 24 de Junho de 2019, com o seguinte teor: “Agradecemos o seu interesse, de momento não temos disponibilidade. Favor contactar connosco e insistir na sua disponibilidade. Cumprimentos, A. DD” 15. Por missivas remetidas por correio eletrónico para o armador, a ora ré e o comandante do navio datadas de 19 de Agosto de 2019 e 25 de Setembro de 2019, o autor voltou a informar da sua disponibilidade desde 24 de Junho de 2019, para embarcar e terminar a certificação. 16. Com data de 14 de Outubro de 2019, o autor remeteu nova missiva ao armador e ao comandante do navio Furnas, a “insistir na oportunidade de tornar a embarcar no navio N/M Furnas, como praticante, a fim de completar o tempo de mar (cerca de 7 meses) e obter a certificação”. 17. Em 27 de Novembro de 2019 o autor dirigiu à R. um e-mail a insistir no reembarque. 18. Em 28 de Novembro de 2019 o autor dirigiu ao armador e ao Comandante do navio Furnas um e-mail a “insistir no reembarque no navio da ...”. 19. O autor, remeteu, a 04/08/2020, carta registada com aviso de receção para a sede da ora Ré, com o seguinte teor: “Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 400o, n.o 1, do Código do Trabalho, venho, por este meio, comunicar a V/Exas. que pretendo denunciar o meu contrato de trabalho celebrado convosco em 19/04/2019, denuncia esta que produzirá efeitos a partir do dia 04/09/2020, dando, desta forma, cumprimento à obrigação legal de informação com trinta dias de aviso prévio.” 5 20. A ré pagou ao autor remuneração no valor de 780,00 euros. (aditado pelo TRE) 21. Por requerimento de 07.07.2020, o A. requereu nos serviços da Segurança Social a concessão do benefício do apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e, ainda, nomeação e pagamento da compensação a patrono. (aditado pelo TRE) 22. Por ofício expedido a 10.07.2020, o A. foi notificado do deferimento dessa pretensão. 23. Nessa sequência, a Ordem dos Advogados nomeou patrona do A. a Ilustre Advogada que subscreveu a petição inicial e que vem intervindo nas demais fases do processo. (aditado pelo TRE) III. a) – Se o acórdão da Relação enferma de nulidade. 11. Com base em raciocínio cujas bases e premissas concretas não se alcançam, sustenta a recorrente que «o Tribunal da Relação de Évora, ao não ter em atenção as normas internacionais, desconfigurou a relação laboral marítima e transformou-a numa relação laboral normal, conforme é configurada no Código de Trabalho, o que no caso em apreço originou um “estreitar de visão” jurídica e não aplicou as normas constantes da Convenção do Trabalho Marítimo de 2006, [...] o que gera uma nulidade do acórdão conforme previso no art. 615.o do Código de Processo Civil». Na verdade, a situação assim alegada não é enquadrável em qualquer das hipóteses de nulidade da decisão elencadas nas diferentes alíneas do art. 615.o, no 1, sendo certo que a recorrente também a não indica, pelo que, neste âmbito, são ininteligíveis as razões subjacentes ao peticionado. A este propósito, no seu Parecer, refere o Exmo Procurador-Geral Adjunto que “em bom rigor não se percebe qual a nulidade [...] que a recorrente invoca, mas parece ser a constante no n.o 1, al. c), daquele normativo, por entender que a fundamentação está em oposição com a decisão”. Adiantando, certeiramente: “Nesse caso, importa afirmar que a decisão do acórdão recorrido não se encontra em contradição com a fundamentação nele constante, pelo contrário, a mesma resulta como seu corolário. O que poderá ter ocorrido, na perspetiva da recorrente, é um erro no julgamento da matéria de direito, o que não constitui qualquer nulidade”. Efetivamente, como se sabe, a nulidade prevista no art. 615o, n.o 1, c), consiste numa contradição intrínseca da decisão, qual seja a de os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem, em termos logicamente inequívocos, a uma conclusão oposta ou diferente da adotada; nulidade que não se confunde, naturalmente, com a (distinta) questão de saber se determinada decisão padecerá de algum erro na aplicação do direito. In casu, não se vislumbra qualquer contradição desta natureza, tal como é patente que se encontra inverificada qualquer das demais causas de nulidade da sentença/decisão final legalmente previstas. Improcede, pois, manifestamente, a arguida nulidade. b) – Da invocada “violação da lei substantiva”. 12. Invoca seguidamente a recorrente que “o Tribunal da Relação de Évora esqueceu que existem normas internacionais e nacionais especificas” e que “ao não ter em atenção as normas internacionais, desconfigurou a relação laboral marítima e transformou-a numa relação laboral normal”. A R. não concretiza qualquer norma que impusesse diferente solução, nomeadamente qualquer norma de direito internacional, o que desde logo afasta a alegada violação do disposto no art.o 8 da Constituição da República Portuguesa. De forma igualmente manifesta, improcede, pois, esta questão, sobre a qual, mais uma vez de forma lapidar, se pronunciou o Exmo Procurador-Geral-Adjunto, no seu douto parecer, nos seguintes termos: “Entre a recorrente e o recorrido foi celebrado o contrato de trabalho junto aos autos, em 19.04.2019, denominado «Contrato de Trabalho de Marítimos», para estágio de formação prática pós-escolar a bordo, o qual foi elaborado de acordo com as normas da Convenção Internacional do Trabalho Marítimo (MLC 2006) e do Acordo Coletivo de Trabalho celebrado entre a Empresa de Navegação Madeirense Lda e Outras e a FESMAR – Federação de Sindicatos dos Trabalhadores do Mar - cf. ponto 19 do contrato. Considerando que estamos perante um contrato de trabalho a bordo de um navio que arvora bandeira portuguesa, para além de lhe ser aplicável o regime resultante da Convenção e do ACT acima referidos, encontra-se também subsumido à Lei n.o 146/2015, de 09 de setembro (LAMBN), e ao DL 280/2001, de 23 de outubro. Encontra-se ainda sempre sujeito às normas do Código de Trabalho, quer por remissão expressa do clausulado do próprio contrato de trabalho – vd., por exemplo, o seu ponto 7) –, quer as que sejam compatíveis com a sua especificidade, por força do disposto no art. 9.o daquele código. Em consequência, em relação a cada questão são aplicáveis as normas da Convenção ou do ACT, se a previrem, sendo que, em caso negativo, serão chamadas à colação as normas dos restantes diplomas legais. Ora, afigura-se que foi precisamente essa a apreciação que o acórdão recorrido fez, não tendo aplicado a Convenção quando as questões a decidir não tinham na mesma a correspondente regulação, fazendo, então, o recurso às normas do ACT ou dos restantes diplomas, particularmente do Código do Trabalho. Não se vislumbra, assim, qualquer violação da lei substantiva.” c) – Se (nomeadamente por desembarque ou por abandono do trabalho por parte do A.) o contrato de trabalho cessou ou, pelo menos, se suspendeu.
13. Está em causa um contrato de trabalho a bordo de navio, por tal se entendendo “aquele pelo qual um marítimo se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a bordo de navio, a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob autoridade destas” [art. 2o, alínea d), da Lei n.o 146/2015, de 9 de setembro, que regula a atividade de marítimos a bordo de navios que arvoram bandeira portuguesa], não suscitando controvérsia o facto de o praticante de oficial ser considerado, para estes efeitos, um “marítimo”. Nos termos do seu art. 3o, nas matérias não reguladas por este diploma, aplicam-se as regras gerais do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.o 7/2009, de 12 de fevereiro, e as demais normas legais reguladoras do contrato de trabalho que sejam compatíveis com a sua especificidade. O autor foi contratado para exercer as funções de praticante de piloto, tendo em vista obter a certificação de competências que lhe permitisse inscrever-se como oficial piloto, sendo certo que, para tanto, lhe é exigível praticar a bordo de um navio durante o período de um ano [art. 23.o, alínea b), do Decreto-Lei n.o 280/2001]. 14. Interpretando e enquadrando juridicamente a declaração do A. referida em supra no 10, concluiu a 1a instância: “[a]tendendo a que o autor não alegou o carácter temporário do desembarque nem demonstrou factos tendentes a concluir pelo mesmo, a sua declaração não pode ter outra interpretação senão aquela que a ré lhe deu – a da desvinculação definitiva do autor como tripulante do rol de tripulação e do consequente serviço a bordo da embarcação em causa”. Diferentemente, entendeu a Relação que tal conclusão não tem suporte fáctico. Vejamos. 15. O art. 62.o, do DL 280/2001, de 23.10, define os conceitos de embarque e desembarque, nos seguintes termos: 1 – Por embarque entende-se o processo destinado à inscrição dos marítimos no rol de tripulação de uma embarcação. 2 – Por desembarque entende-se a desvinculação temporária ou definitiva de um tripulante do rol de tripulação e do consequente serviço a bordo de uma embarcação. Quanto ao “rol de tripulação”, dispõe o art. 65.o, no 1, que ele consiste na “relação nominal dos marítimos que constituem a tripulação de uma embarcação”, esclarecendo o no 5 que o mesmo “é válido por uma ou várias viagens ou pelo prazo que nele for indicado, o qual nunca será superior a um ano”. Tendo presente o conjunto da factualidade provada, nada permite concluir que o A., com a declaração em apreço, tenha pretendido uma desvinculação contratual definitiva, sendo ainda certo que dos autos não constam quaisquer elementos que corroborem a alegação de que “existe uma prática do sector marítimo, segundo a qual o pedido para desembarcar de um trabalhador equivale ao pedido de cessar o vínculo laboral”. 16. Como bem decidiu a Relação, também está fora de causa o tratamento do caso dos autos no plano do abandono de trabalho, regulado no art. 403o, do Código do Trabalho (CT), figura que exige um quadro factual cuja qualificação jurídica seja inequívoca, para não se cair em facilidades incompatíveis com a sua natureza excecional. Isto, desde logo, na medida em que o abandono do trabalho só pode ser invocado pelo empregador após comunicação ao trabalhador dos factos constitutivos do abandono ou da presunção do mesmo, por carta registada com aviso de receção para a última morada conhecida deste (no 3 do mesmo artigo), comunicação que os factos provados não revelam ter sido efetuada. Com efeito, embora a comunicação prevista no n.o 3, do artigo 403.o, do CT, não consubstancie um facto constitutivo da extinção do contrato, tratando-se apenas de um requisito ou condição de atendibilidade ou de invocação da cessação do contrato pelo empregador (cfr. Ac. desta Secção Social de 26.09.2018, Proc. n.o 9200/15.8T8LSB.L1.S1), como sinaliza o acórdão recorrido, “verificada a situação de abandono do trabalho, a denúncia do contrato não opera automaticamente, sendo necessário que a entidade empregadora cumpra a referida comunicação, por se tratar de uma formalidade essencial para que a cessação produza efeitos”. 17. Todavia, afigura-se-nos que a comunicação de 21.05.2019 levada a cabo pelo A. ao armador, com conhecimento à ré, e subsequente desembarque, no dia 27 de maio (ponto no 10 da matéria de facto), configura uma desvinculação temporária, nos termos do citado art. 62.o, no 2, do DL 280/2001. Desvinculação temporária que, no fundo, se reconduz a um quadro de suspensão do contrato de trabalho, conceito entendido como cessação temporária das funções principais das partes: basicamente, o trabalhador não presta os seus serviços e, consequentemente, o empregador não lhe paga. A verificada suspensão contratual ocorreu por motivos indeterminados, uma vez que o A. se limitou a alegar vagos e não concretizados “motivos familiares”, que, aliás, não se mostram minimamente comprovados. Vale por dizer que não é possível subsumir a situação em apreço à hipótese de “impedimento temporário por facto respeitante ao trabalhador que não lhe seja imputável e se prolongue por mais de um mês, nomeadamente doença, acidente ou facto decorrente da aplicação da lei do serviço militar”, contemplada no art. 296o, no 1, do CT, nem, por identidade de razão, à de suspensão da prestação de trabalho por impedimento prolongado, prevista na cláusula 36.a, no 1, do ACT (“quando o inscrito marítimo esteja temporariamente impedido de comparecer ao trabalho por facto que não lhe seja imputável, nomeadamente serviço militar obrigatório ou serviço cívico substitutivo”). Nestas, e apenas nestas, situações especificas, prevê a lei (art. 297o, do CT) e o ACT (no 3 da sobredita cláusula) que a suspensão do contrato cessa automaticamente, ope legis, com a apresentação do trabalhador ao empregador (armador) para retomar a atividade, no dia imediato à cessação do impedimento. Havendo uma situação de impedimento não imputável ao trabalhador, compreende-se que lhe seja reconhecido o direito de potestativamente retomar a atividade laboral. Fora deste circunstancialismo, como acontece no caso dos autos, não pode deixar de entender-se que a cessação da suspensão exige que nesse sentido haja acordo das partes, nos termos gerais. Em particular no âmbito do contrato de trabalho a bordo – contrato com regime especial, devido à especificidade do objeto da prestação laboral, caracterizada, desde logo, pela alternância entre períodos mais ou menos prolongados de permanência a bordo no mar, de permanência em porto e de inatividade, prestação que assim apresenta amplas áreas de incompatibilidade com o regime laboral comum – não teria qualquer justificação que (em tais casos) um marítimo (para mais, contratado para efeitos de tirocínio e obtenção de certificado de competências) pudesse determinar unilateralmente a retoma da atividade laboral, independentemente de considerações de necessidade e disponibilidade do empregador. 18. Por outro lado, e não obstante, considerando que a “suspensão não tem efeitos no decurso de prazo de caducidade” (art. 295o, no 3, do CT) e que, nos termos já referidos, o rol de tripulação é válido por prazo nunca superior a um ano, é imperioso concluir que o contrato de trabalho em causa caducou um ano depois do seu início, ou seja, em 19 de abril de 2020. Com efeito, conjugando o preceituado no sobredito no 5 do art. 65o do DL 280/2001 com o conteúdo do contrato a termo incerto celebrado pelas partes [ao abrigo do disposto no art. 140o, no 2, g), do CT], “com o objetivo da prática adquirida a bordo (tirocínio) para a obtenção do certificado de competências”, retira-se que o contrato tinha o termo resolutivo máximo de um ano (cfr. art. 345o, do CT). d) – Consequências jurídicas da suspensão do contrato de trabalho.
19. A suspensão do contrato de trabalho em causa manteve-se até ao momento da sua caducidade, em 19.04.2020, sem direito à retribuição (mesmo nas situações específicas referidas, fica, naturalmente, suspenso este direito – cfr. cláusula 36.a, no 1, do ACT, e Ac. desta Secção Social de 03.11.2016, Proc. 216/14.2TTVRL.G1.S2)6. A título de diferenças remuneratórias, o A. apenas tem direito às referentes aos 39 dias em que efetivamente trabalhou (entre 19.04.2019 e 27.05.2019), ou seja, nos termos considerados no acórdão recorrido: “985,00 € x 39/30 = 1.280,50 €, a que se deduzirão 780,00 € já pagos, pelo que o crédito aqui verificado é de 500,50 €”. Quanto aos demais créditos laborais, também apenas poderão ser reconhecidos com referência a este período. Com efeito: “Durante a (...) suspensão, mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efetiva prestação de trabalho” (art. 295o, no 1, do CT); e, “terminado o período de (...) suspensão, são restabelecidos os direitos, deveres e garantias das partes decorrentes da efetiva prestação de trabalho” (no 4 do mesmo artigo) Nas palavras de Monteiro Fernandes, a suspensão paralisa os efeitos jurídico-práticos essenciais do contrato, sofrendo, assim, “as relações factuais de trabalho (...) uma descontinuidade mais ou menos importante, que não afeta a vigência do contrato”7. Especificamente a propósito do direito a férias pagas, refere o mesmo autor: 8 “Quanto ao direito a férias pagas, e muito embora ele não inclua entre os pressupostos da sua constituição a efetividade de serviço, julga-se inegável que a existência de prestação de trabalho (ou, ao mesmo, da possibilidade dela) condiciona diretamente a efetivação de tal direito. O fundamento do direito a férias não se harmoniza com a ficção do gozo de um período de repouso durante uma fase em que o contrato está suspenso e a prestação de trabalho não se realiza. Assim, o direito a férias permanece, durante a suspensão, em estado latente. Ano após ano, a sua efetivação vai-se tornando impossível (...), de harmonia com o princípio de que as férias correspondentes a cada ano devem nele ser gozadas (art. 240o/1), (...)”. Apesar de em regra o direito a férias não se encontrar condicionado à assiduidade ou efetividade de serviço (art. 237o, no2, do CT), esta regra conhece os desvios contemplados no art. 239o, do mesmo diploma, sendo ainda certo que, mesmo no caso de impedimento não imputável ao trabalhador, É certo que quando a suspensão contratual cessa o trabalhador retoma, em princípio, a possibilidade de gozar férias, em relação a esse ano, nos termos do no 6 do mesmo artigo. Regime que faz todo o sentido quando, cessando a suspensão, é retomada a vigência e dimensão prática da relação laboral, mas já não quando, como no caso vertente, a suspensão cessa por via da extinção do contrato. Situação que, desde logo por isso, se encontra fora do âmbito desta previsão normativa. Por outro lado, esta possibilidade exige que o trabalhador presta serviço durante seis meses antes de poder exercer o direito a férias (proporcionalmente ao tempo de trabalho executado), nos termos conjugados do citado no 6 com o preceituado no no 1, requisito também inverificado no caso dos autos. Posto isto: No tocante a proporcionais dos subsídios de férias e de Natal, equivalendo 39 dias a 10,83% do ano civil, tem o A. direito a 985,00 € x 0,1083 x 2 = 213,35 €. “No caso de a duração do contrato de trabalho ser inferior a seis meses, o trabalhador tem direito a dois dias úteis de férias por cada mês completo de duração do contrato” (art. 239o, no 4, do CT), pelo que, tendo o A. trabalhado 39 dias, tem direito a dois dias de férias não gozadas, no valor de 57,70 €. Ao contrário do decidido no acórdão recorrido, afigura-se-nos que não há a considerar qualquer crédito de horas por formação, por nos encontrarmos fora da esfera de proteção dos arts. 130o a 134o do CT: o vínculo laboral do A., cuja finalidade era a prática de tirocínio e obtenção de certificado de competências, destinava-se precisamente a formação, pelo que o contrato, tendo em conta as finalidades ao mesmo subjacentes, já contemplava e esgotava as exigências legais consagradas nesta matéria. e) – Se prescreveram os créditos invocados pelo A.
20. Sustenta a recorrente que a relação laboral cessou em 27.05.2019, pelo que, tendo a presente ação sido proposta 13.10.2020, decorreu o prazo de prescrição de um ano, estipulado no art. 337o, no 1, do CT. Todavia, como decorre de tudo o antes exposto, o contrato em causa apenas cessou em 19.04.2020, pelo que – e independentemente de a ação dever considerar-se proposta na data em que foi requerido o benefício do apoio judiciário (sendo isso referido na petição inicial e junto documento comprovativo)9 – é patente que à data da propositura da ação ainda não decorrera o prazo prescricional de um ano. Improcede, assim, esta questão. IV. 21. Em face do exposto, acorda-se: a) Em não tomar conhecimento do recurso na parte atinente às questões referidas em supra nos 7 e 8. b) Concedendo parcialmente a revista e alterando o acórdão recorrido: – Em condenar a R. a pagar ao A. a quantia global de 771,55 € (setecentos e setenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos) – Em absolver a R. quanto ao mais em que foi condenada pelo acórdão recorrido. Custas da revista, bem como nas instâncias, na proporção do vencido, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia o A. Lisboa, 23 de junho de 2023 Mário Belo Morgado (Relator) Júlio Manuel Vieira Gomes Ramalho Pinto
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1. Como todas as demais disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎ 2. Recursos no NCPC, 2013, p. 85.↩︎ 3. Neste sentido, v.g. Acs. do STJ de 15.09.2021 (Proc. n.o 559/18.6T8VIS.C1.S1- 4.a Secção), de 22.02.2017 (Proc. n.o 1519/15.4T8LSB.L1.S1 - 4.a Secção), de 07.10.2021 (Proc. n.o 235/14.9T8PVZ.P1.S1 - 1.a Secção) e de 12.01.2021 (Proc. n.o 379/13.4TBGMR-B.G1.S1 - 1.a Secção), disponíveis in www.dgsi.pt.↩︎ 4. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.o, 663.o, n.o 2, e 679o, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.o, n.o 3, do mesmo diploma.↩︎ 5. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎ 6. Por ter considerado injustificadas as faltas do A. entre 28.05.2019 e 24.06.2019, o Tribunal da Relação não lhe conferiu o direito a qualquer retribuição neste período.↩︎ 7. Direito do Trabalho, 16.a edição, pp. 417 e 423.↩︎ 8. Ibidem., p. 424.↩︎ 9. Cfr. Ac. desta Secção Social de 09.05.2018, Proc. 31/14.3TTCBR.C3.S1.↩︎ |