Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P294
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL PENAL NO TEMPO
DIREITO AO RECURSO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
PRINCÍPIO DA ORALIDADE
IN DUBIO PRO REO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
HOMICÍDIO
VIOLAÇÃO
TENTATIVA
ROUBO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ2008050702943
Data do Acordão: 05/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - Estando em causa um recurso [para o STJ] interposto já posteriormente à data da entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29-08, que procedeu à alteração do CPP, o mesmo somente é admissível nos casos contemplados no art. 432.º, e sem prejuízo do art. 433.º daquele diploma, ou seja, nomeadamente de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do art. 400.º (art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP).
II - Tendo o acórdão recorrido, ao julgar parcialmente procedente o recurso, aplicado pena não superior a 8 anos de prisão, e reduzido a pena aplicada (confirmação in mellius), poderia dizer-se que não seria admissível recurso do acórdão da Relação (cf. art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, na sua anterior redacção).
III - Porém, como é pacífico e jurisprudência comum deste Supremo, a lei reguladora da admissibilidade dos recursos é a que vigora no momento em que é proferida a decisão de que se recorre: no domínio da aplicação da lei processual penal no tempo vigora a regra tempus regit actum, só assim não acontecendo em relação às normas processuais penais de natureza substantiva.
IV - Assim, tendo o acórdão da Relação sido proferido em 20-06-2007, ou seja, antes da publicação da Lei 48/2007, de 29-08 (que entrou em vigor em 15-09-2007), e atendendo a que se se aplicasse a lei posterior (art. 400.º, n.º 1, al. f), na sua actual redacção) se coarctaria o direito ao recurso (admissível pela lei anterior quanto aos crimes de roubo e de homicídio, na forma tentada, e não ao de violação, na forma tentada, devido à confirmação in mellius), é de aplicar a lei processual em vigor à data da decisão.
V - O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento na 2.ª instância, mas dirige-se somente ao exame dos erros de procedimento ou de julgamento que lhe tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa e não indiscriminadamente a todas as provas produzidas em audiência. O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127.º do CPP.
VI - Nos termos desse preceito, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, sendo que a expressão «salvo quando a lei dispuser diferentemente» se refere às excepções ao princípio da livre apreciação da prova, em que a lei determina e reconhece o valor probatório de determinado meio de prova [v.g. a prova pericial (art. 163.º), os documentos autênticos (art. 169.º), a confissão integral e sem reservas em audiência de julgamento (art. 344.º)].
VII - Não sendo caso de excepções legais, a livre apreciação da prova não é arbitrária, discricionariamente subjectiva ou fundada em mero capricho, outrossim deve observância a regras de experiência comum, utilizando como método de avaliação da aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo, como acentuou o TC no seu Ac. n.º 1165/96, de 19-11 (BMJ 491.º/93).
VIII - O juízo de discricionariedade na avaliação da prova é necessariamente vinculado, sempre fundamentado, racionalmente objectivado e logicamente motivado, de forma a susceptibilizar controlo.
IX - A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em 1.ª instância, embora tendo como limite as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.
X - A violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicada pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas inamovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
XI - Na consideração dos factos (do conjunto de factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
XII - Na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a mesma se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente. Mas tendo na devida consideração as exigências de prevenção geral e, especialmente na pena do concurso, os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente (cf. Ac. do STJ de 20-12-2006, Proc. n.º 3379/06 - 3.ª).
XIII - Tendo em conta que:
- o arguido foi condenado nas penas parcelares de 3 anos de prisão, 2 anos e 6 meses de prisão, e 2 anos de prisão, respectivamente pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, um crime de violação, na forma tentada, e um crime de roubo, pelo que a baliza penológica aplicável ao concurso de crimes se situa entre os 3 anos e os 7 anos e 6 meses de prisão;
- agiu ocasionalmente na prática dos factos, «para a satisfação da libido e o propósito de, com o uso de violência, praticar cópula com a ofendida», sendo delinquente primário, na altura com 18 anos de idade, inserido socialmente, sem propensão para delinquir, embora revelando insensibilidade e baixeza de carácter, de forma a que a sua actuação global não diminui a sua culpa, face à gravidade dos factos, interconexionados entre si;
não se revela desadequada a pena conjunta aplicada, de 4 anos e 6 meses de prisão, cuja execução não é de suspender, pois que, perante a gravidade dos crimes praticados e as fortes exigências de prevenção geral, a simples censura do facto e a ameaça da pena não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
XIV - Verificando-se que:
- em consequência da actuação do arguido, a SM sofreu hematoma na pálpebra superior e inferior direita; ferida incisa com 4 cm de comprimento e 1 cm de profundidade na região malar direita; hemorragia na conjuntiva bulbar do olho direito; hematoma no nariz; escoriações e equimose em todo o lado esquerdo da face; ferida perfurante com 0,5 cm no quarto espaço intercostal direito junto ao bordo direito do externo; ferida perfurante junto ao bordo esquerdo do apêndice xifoide com 3 cm de comprimento penetrando e perfurando o diafragma; ferida perfurante com 3 cm de comprimento no quadrante inferior esquerdo do abdómen penetrando toda a parede abdominal; ferida perfurante com 4 cm de comprimento e 8 cm de profundidade e a 1 cm da vagina e a 1 cm do ânus na raiz da coxa esquerda; escoriações nos grandes lábios compatível com tentativa de penetração vaginal; sete perfurações do intestino delgado; laceração de artéria do mesocolon e perfuração com cerca de 2 cm do diafragma; e fractura dos ossos próprios do nariz sem desvio do septo;
- tais lesões – não obstante a assistência de um terceiro e do hospital onde, prontamente, lhe foram prestados todos os cuidados médicos e uma intervenção cirúrgica de urgência – determinaram para a SM, de forma directa e necessária, um período de doença com incapacidade para o trabalho de 120 dias, sendo o quantum doloris de grau 3 (numa escala de 1 a 7), e, como sequelas, cicatriz de aspecto quelóide, com 3 cm de extensão, no sulco intermamário; cicatriz de 2 cm na região malar direita; cicatriz, levemente quelóide, com 2 cm, no quadrante abdominal inferior esquerdo, a 5 cm da linha mediana e a 8 cm do umbigo; cicatriz mediana abdominal supra e infra umbilical, com 18 cm, com algumas zonas ligeiramente quelóides; e cicatriz com 4 cm na face interna da coxa esquerda;
- a SM, então uma jovem com 17 anos de idade, em consequência das lesões descritas, para além das referidas dores, anteviu e receou pela sua própria morte, foi submetida a uma operação cirúrgica de emergência, que se traduziu em mais dores e sofrimentos, e ficou com as descritas cicatrizes, espalhadas por todo o corpo, as quais o desfeiam;
- SM, até então cheia de alegria e vontade de viver, sofreu profundos traumas psicológicos, uma enorme dor, sofrimento interior e tristeza, perdeu a alegria de viver, transformou-se numa jovem amedrontada, introvertida e triste e sofreu vergonha e humilhação social porque a tentativa de violação de que foi vítima foi falada e comentada no meio social em que vive, tendo a conduta do arguido deixado marcas e estigmas que a acompanharão toda a vida;
- ao praticar os actos em causa, que sabia contrários à lei, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente;
a indemnização arbitrada, de € 15 051,23, não se revela desajustada.
Decisão Texto Integral: