Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
174/17.1PXLSB.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: ACORDÃO DA RELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
IN DUBIO PRO REO
LEGÍTIMA DEFESA
HOMICÍDIO
Data do Acordão: 06/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGAR O RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL –PROVA – JULGAMENTO / AUDIÊNCIA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO.
DIREITO PENAL – FACTO /CAUSAS QUE EXCLUEM A ILICITUDE E A CULPA / LEGÍTIMA DEFESA.
Doutrina:
- A. Robalo Cordeiro, Escolha e medida da pena, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, p. 272;
- Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, p. 475, 481, 547, 563, 566 e 574;
- Castanheira Neves, A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de “revista”, Digesta, Coimbra Editora, 1995, p. 523 ss.;
- Eduardo Correia, Direito Criminal II, reimp. 1971, Almedina, p. 41-42;
- Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Teoria do Crime, Católica Editora, 2015, p. 180;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., 2007, Vol. I, p. 516;
- Jordi Nieva Fenoll, La valoración de la prueba, Marcial Pons, Madrid, 2010, p. 212 e ss.;
- Jorge Figueiredo Dias, Direito penal 2 – Parte Geral – As consequências jurídicas do crime, p. 255 e ss.;
- Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal Parte Geral e Especial, Almedina, 2014, p. 250;
- Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Católica Editora, 2015, p. 237.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 127.º, 355.º, 410.º, N.º 2, 412.º, N.ºS 3, 4 E 6 E 423.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 32.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 02-10-2014, PROCESSO N.º 87/12.3SGLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-12-2015, PROCESSO N.º 641/11.0JACBR.C1.S1, IN SASTJ, SECÇÃO CRIMINAL, 2015, WWW.STJ.PT;
- DE 24-05-2017, PROCESSO N.º 883/15.0PBBRR.S1;
- DE 10-10-2018, PROCESSO N.º 144/09.3JABRG.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-05-2019, PROCESSO N.º 1079/17.1JAPRT.P1.S1.
Sumário :
I - Ao efectuar a reapreciação da matéria de facto, no âmbito do recurso definido pelo recorrente – que deve especificar os pontos da matéria de facto provada que considera incorrectamente julgados e as provas que, a seu ver, impõem decisão diversa (art. 412.º, n.º 3), com referência ao consignado na acta e às passagens da gravação, no caso de as provas terem sido gravadas (art. 412.º, n.º 4) -, o tribunal procede à audição das passagens indicadas (art. 412.º, n.º 6).
II - O tribunal não está, porém, limitado à apreciação dessas passagens. Compete-lhe, para além disso, proceder à audição de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa (art. 412.º, n.º 6, 2.ª parte). Pelo que – independentemente da designação que se lhe atribua (o acórdão recorrido designa-o por “convicção”) – se lhe impõe uma formulação de um juízo que, na medida do necessário, tem de convocar outras provas relevantes e sobre as quais terá de fundar o seu próprio juízo, baseado em idêntico critério de apreciação – que é o estabelecido no art. 127.º, do CPP -, assim justificando a decisão sobre a modificação da decisão recorrida.
III - Na sua auto-suficiência, o acórdão proferido em recurso há-de, também ele, ser isento de qualquer dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, os quais, como já se viu, não podendo constituir fundamento de recurso, podem ser apreciados pelo STJ em vista da boa decisão do recurso.
IV - A intervenção do tribunal de recurso ao apreciar a prova gravada não ocorre, porém, no contexto de imediação a que está sujeita a sua produção em audiência de julgamento (art. 355.º, do CPP) ou em caso de renovação das provas perante o tribunal de recurso (art. 423.º, do CPP). O art. 127.º, do CPP situa-se num âmbito diferente, o da apreciação da prova, pela entidade competente, ou seja, impõe-se a toda a actividade de apreciação da prova, seja nas fases preliminares do processo, seja no julgamento, seja em recurso.
V - Enquanto a imediação diz respeito à produção da prova em sede de julgamento, a livre apreciação respeita à valoração e relevância da prova produzida respeita à valoração e relevância da prova produzida. Pelo que, não podendo fundir-se conceitos e princípios distintos, não pode afirmar-se que a apreciação da prova efectuada fora de um contexto de imediação na sua produção resulta em violação do art. 127.º, do CPP.
VI - A apreciação pelo STJ da observância do princípio in dubio pro reo só poderá incluir-se no âmbito da apreciação dos vícios da decisão recorrida indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, que dizem respeito à decisão em matéria de facto, os quais, como resulta do preceito, devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência. A fundamentação satisfaz plenamente as exigências legais, de completude, coerência e respeito pelo critério da apreciação da prova, podendo concluir-se que o texto da decisão recorrida não evidencia vício que possa incluir-se na previsão do n.º 2 do art. 410.º do CPP, susceptível de revelar qualquer dúvida quanto às conclusões obtidas na fixação da matéria de facto.
VII - Não resulta dos factos provados que a conduta do arguido foi antecedida de uma acção da vítima dirigida contra si, susceptível de poder ser considerada como uma agressão actual e ilícita, de modo a preencher os pressupostos da legítima defesa (art. 32.º, do CP). A conduta da vítima de arremessar a pedra contra o arguido foi determinada pela conduta deste, com o intuito de evitar que prosseguisse na sua acção de agredir com a faca que empunhava. Como se tem salientado na jurisprudência e na doutrina, contra legítima defesa não pode haver legítima defesa, sito é, não existe legítima defesa recíproca.

Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I.   Relatório

1. AA, arguido, com a identificação dos autos, interpõe recurso do acórdão de 28 de Novembro de 2018 do Tribunal da Relação de Lisboa que, dando provimento ao recurso do Ministério Público e negando provimento ao por si interposto do acórdão de 18 de Junho de 2018 do tribunal colectivo do Juízo Central Criminal de Lisboa (Juiz 9) da Comarca de Lisboa, que, considerando que este agira com excesso do meio utilizado em legítima defesa, lhe havia aplicado uma pena de 10 anos de prisão, pela prática, como autor material e na forma consumada, de 1 (um) crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal, modificou a matéria de facto dada como provada em 1.ª instância, afastando os pressupostos da legítima defesa, e, em consequência, agravou, para 12 anos, a pena de prisão aplicada.

2.  Pedindo a «anulação» do acórdão recorrido, «por violação do princípio da livre convicção, do princípio da imediação e do princípio da presunção da inocência», e defendendo que a condenação deve ser «por homicídio simples, com excesso de legítima defesa em pena não superior a oito (8) anos de prisão», apresenta o arguido motivação de recurso, concluindo (transcrição):

«1 O douto Acórdão de primeira instância leva a sua capacidade de síntese a resumir desta forma o caso "sub judice":

Do exposto a nível de prava testemunhal resulta que há duas versões distintas quanto ao modo como terão ocorrido os factos

Uma versão próxima dos factos descritos na pronúncia.

A outra colocada à versão dos factos relatada pelo arguido.

Qual foi a que convenceu o Tribunal?

A versão doo arguido AA,

Não por aquilo que até ao momento foi descrito a nível de prova testemunhal, mas essencialmente por causa das declarações da testemunha BB e de outros elementos objectivos do processo que serão mencionados" (fim de citação - fls. 18 - 2a coluna in fine)

2.  Enunciada e circunscrita, pois, de forma fácil a questão essencial "sub judice", importa agora reter qual foi a decisão do Tribunal da Relação, "a quo",

3.  E a resposta será identicamente fácil, após todo o manancial de argumentação, douto que seja, aduzido:

O Tribunal de segunda instancia em juízo final sobre a questão de facto optou, perante aquelas duas únicas versões distintas do modo como terão ocorrido os factos - pela versão próxima dos factos descritos na pronúncia,

E aqui nos encontramos no presente recurso,

4.  Preocupado em não ser enfadonho com a chamada a esta motivação do que todos bem conhecemos o que deve ser entendido neste princípio, bastará aqui afirmar a concordância com a pesquisa, histórica e hermenêutica trazida pelo Acórdão recorrido de fls. 23,2o coluna até fls. 26, um bocadinho antes do "in fine", uma vez que se trata de jurisprudência adquirida e assente por todos nós (juristas).

5.  Assim sendo, no entanto, importa apenas afirmar que este princípio de livre convicção do julgador assenta profundamente e decorre de outro princípio - o da imediação.

6. "Somos ainda, forçados a salientar que, de forma absolutamente legítima o mecanismo da impugnação de prova previsto no art.° 412.° n 3 e 4 do C.P.P. se destina tão só a corrigir aquilo que se constata serem erros manifestos de Julgamento e que resultam ostensivos da leitura do registo de prova, mas nunca a fazer tábua rasa das vantagens da imediação e do princípio da livre convicção de quem tem a difícil missão de julgar" — Acórdão do T.R.L. n° 102/17.4PEOR.L2-5-de 11/09/2018-Dr, Simões de Carvalho a fls. 32.

E também do Acórdão do T.R.L. de 2/10/2018 no Proc. 36/14.4JBLSB.L1-5, do Dr. José Adriano, a fls. 16 retira-se o seguinte:

"Sendo que a convicção do Tribunal é formada através dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, imparcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns presentes, linguagem silenciosa do comportamento, coerência de raciocínio e de atitude, serenidade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que porventura, transpareçam em audiências, de tais declarações e depoimentos ".

7. Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras, mas também pelo tom de voz e postura corporal dos intervenientes e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integrou.

"Trata-se de um acervo de informação não verbal e dificilmente documentável face aos meios disponíveis, mas imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada, segundo as regras da experiência comum",

8. Longe de estar a explicar aos Colendos Conselheiros, a natureza e alcance deste princípio, a sua chamada à colação no caso vertente prende-se apenas no realce da discrepância de meios ao alcance dos dois conjuntos de julgadores na primeira e na segunda instância.

9.        Todos são julgadores com muita (senão igual) experiência no difícil acto de julgar.

10.     Um "conjunto" escolheu uma versão da verdade histórica do caso com o cumprimento total do princípio da imediação.

Outro "conjunto" escolheu a versão oposta com base apenas na apreensão meramente acústica da prova produzida.

11.     Aqui chegados importa notar que o M° P° na sua motivação de recurso que interpôs e obteve provimento não invoca sequer qualquer vício do Acórdão de primeira instância com base nos requisitos das três alíneas do art.º 410.º n.º 2 do C.P,P.

12. Tanto bastaria para, com base na jurisprudência constante na jurisprudência dos Tribunais das Relações neste país, ter-se concluído pelo não provimento do recurso do M° P° - (aliás, no seguimento da quase totalidade dos recursos interpostos pela Defesa com o mesmo fundamento).

Acresce que, "in casu " mesmo sem tal invocação pelo M° P° o douto Tribunal da Relação, ora recorrido, desenvolveu argumentos no sentido de que se não vislumbrava terem ocorrido quaisquer vícios circunscritos às três alíneas do art.° 410.° n.º 2 do C.P.P.

13. Todavia, o Tribunal da Relação, "a quo” supera esta questão afirmando:

"Contudo, antagonicamente à tese limitativa dos poderes do Tribunal da Relação, consideramos que salvo o devido respeito por opinião em contrário o Tribunal da Relação em matéria de direito adjectivo penal tem o poder-dever de formar uma convicção própria sobre os factos, em crise pelo recorrente " (fim de citação fls. 27, 2ª coluna, in médio)

14.    Esta orientação legal adjectiva resulta bem nova na nossa prática jurisprudencial.

Aliás, por essa orientação têm pugnado centenas, se não milhares de recursos interpostos pela Defesa em todos os nossos Tribunais, de Norte a Sul.

O que acontece é que, nas raríssimas excepções em que esta orientação legal tem ocorrido, esses casos ou processos são aqueles em que o M° P° recorre (e nunca o contrário),

15.     Não se rejeitará, pois, neste recurso a orientação legal de que o Tribunal da Relação poderá apreciar a globalidade da prova produzida e avaliá-la também segundo o princípio da livre convicção.

16.    Atente-se, no entanto, que o próprio legislador, quando escreve o n.º 4 e 6 do art.º 412.º do C.P.P. (em que se fundamenta o entendimento doo Tribunal da Relação "a quo"), ao mesmo tempo impõe que, quando se impugne pontos de facto incorrectamente julgados -alínea d) do n.º 3 do artigo citado se especifiquem as provas que devem ser renovadas.

Ora, "in casu", o recorrente M° P° não solicitou a renovação da prova,

17.     No entanto, apesar de reconhecer que a Renovação da Prova, ínsita na alínea c) do n.º 3 do art.º 412.º, não pode ser determinada oficiosamente e que também não se pode ordenar oficiosamente a realização de audiência, a que se refere o art.º 411.º n.º 6 do C.P.P., a que acresce que não se vislumbre qualquer dos vícios do Acórdão de primeira instância (art.º 410.º n.º 2 do CP.P.) conjugado princípio.

-         Acaba por fazer tábua rasa do princípio da imediação (com todas e mais uma vantagens para o esclarecimento da verdade material) e do princípio da livre convicção decorrente do princípio anterior.

-         E arrogar-se, com tais limitações o douto Tribunal da Relação "a quo"e achar-se em condições de reverter “in totum”as conclusões de facto atingidas pelo Tribunal de primeira instância.

18.  Determina o nosso legislador que nos recursos perante as Relações são conhecidos os factos e o direito (art.º 428.º do C.P-P-) e que nos recursos perante o Supremo Tribunal de Justiça se vise exclusivamente o reexame da matéria de direito (art.º 434.º do CP.P.)).

19.     Ora no caso vertente, em que a matéria de facto declarada provada pelo Tribunal de primeira instância foi totalmente revertida pelo Tribunal da Relação, restará à Defesa, ao recorrente, invocar o vício de violação do princípio da imediação.

20.     Na verdade, sem a realização de nova audiência de julgamento em que se tenha operado qualquer renovação da prova, o douto Tribunal da Relação usa o seu poder de livre convicção apenas com recurso à parte acústica (gravações de audiência) de duas testemunhas (CC e de DD), desvalorizando toda a restante prova testemunhal.

21. Nomeadamente desvaloriza as declarações do arguido AA, e das testemunhas seguintes:

- EE, o qual afirmou: "Vi o AA já agarrado pelo primo do FF (03:17.03:33); o FF desferiu no AA uma pancada com uma pedra (04:10) porque vi; era uma pedra da calçada no pescoço, isto tudo foi muito rápido; primeiro foi a pedra depois foi a faca, isto tudo foi uma questão de segundos (05:38.05:39); vi o FF a correr, depois ele caiu mais à frente (06:00); eu não vi a faca (07:21); vi que ele lhe deu um soco ou qualquer (sic) mas vi realmente o FF com a pedra; mas depois de lhe dar um soco, vi a faca no corpo do FF”,

22. BB que afirmou: "O AA passou por mim calmamente e é aí que o vejo o mesmo uma faca na mão (04:36); vi apenas três pessoas embrulhadas, vi apenas três pessoas embrulhadas, embrulhados no sentido de que como estivessem aos puxões, agarrões, parecia que estava alguém a socar outra pessoa, a pessoa com a faca nas costas estava em pé (08:41) eu estava perto do café; a pessoa que estava com a faca nas costas, estava de costas para mim (09:38); não me recordo de ouvir barulho de alguma pedra a cair” (16:03)

23. – Testemunha GG:

"estava dentro do café do seu namorado (café do ... como resultou da confrontação com a fotografia retirada do Google, as quais lhe foram exibidas) quando oiço uns gritos e venho a porta ver o que se passa e vejo o ... (FF) uns metros à afrente do meu café, já no chão; a testemunha HH estava no meu café "Café ..."; o café do AA é mais ao fundo",

24.     Ora, claramente se presenciou esta última testemunha (GG) a retirar a outra testemunha (HH) do café do arguido AA, (onde decorreram os factos), razão pela qual não poderia ter assistido aos mesmos, só visionando o momento da queda do corpo à frente do seu café (que dista cerca de 20 metros do café do AA, conforme se apurou em julgamento perante o mapa do Google).

25.    Curiosamente, o douto Tribunal da Relação desvaloriza esta testemunha (com argumento de que os donos dos cafés não merecem credibilidade e outras considerações abstractas e, ao invés, confere toda a credibilidade ao CC (o qual todavia participou na agressão ao arguido agarrando-o pelo seu braço direito, e é amigo do FF se não mesmo o seu potencial guarda-costas para a confrontação com o arguido) bem como à JJ (a qual tinha trabalhado no café do arguido durante três meses até cerca de 3 meses antes da ocorrência os factos e segundo declarou teve uma relação afectiva com o arguido e descreveu-o como pessoa muito nervosa e muito explosiva - (fim de citação- fls. 16 do Acórdão de primeira instância).

26.    A este respeito (credibilidade do depoimento de JJ) o Tribunal de primeira instância, manifestamente, não acreditou no mesmo (fls. 16 do Acórdão) não só porque a testemunha GG a coloca, num outro café de onde era impossível visionar os factos como a testemunha EE foi peremptório ao afirmar que a DD não estava dentro do café (ao invés do que este afirmou).

27.     A tudo isso, importa acrescer que o elemento objectivo - ferimento no pescoço do arguido, comprovado clinicamente e com fotografia nos autos é incompatível com uma pedra arremessada pelo ar, no meio de uma correria de fuga...

28.     Seria muita coincidência o ofendido FF encontrar uma pedra no percurso de corrida, ter tempo para a apanhar e atirá-la ao arguido com tal pontaria que o acerta no pescoço e provoca o ferimento referido, o qual ao invés permite concluir que a mesma pedra tinha um trajecto transversal.

Na verdade, o ferimento no pescoço do arguido é, em tudo, mais consentâneo com a versão do arguido (com a pedra na mãos do FF num movimento horizontal da esquerda para a direita).

Ao contrário o impacto de uma pedra arremessada pelo ar provoca um hematoma único e não um rasgão transversal.

29.     E sabido que as agressões mútuas ocorrem em segundos e daí a grande dificuldade em discernir os movimentos de ambos os contendores,

Acresce que se tem desvalorizado o próprio instinto de sobrevivência inerente à condição humana (e não humana) o qual determina respostas instantâneas e sem frieza de raciocínio.

30. No caso vertente, o arguido e o ofendido eram amigos e não havia motivo algum para nenhum deles desejar a morte do outro.

Tudo acontece, isso sim, no contexto de uma luta com gestos automáticos,

31. Aliás, foi o ofendido quem se fez acompanhar por um amigo seu (o CC, potencial guarda-costas) o qual mentiu descaradamente em Tribunal para própria defesa, uma vez que participou na luta agarrando o braço do arguido.

32. Para além do facto de o ofendido ter chamado o arguido da porta do café, sem entrar, o que denota uma perspectiva de luta iminente e para o qual já se encontrava munido de uma pedra.

33.    De notar que o movimento de agressão com uma pedra na mão pode ser confundido com um soco pelas testemunhas, (testemunhas BB - Acórdão "a quo ", a fls. 19, a meio da 1 coluna).

34.    Em suma, quando os dois conjuntos de Juízes (o Tribunal colectivo e o Tribunal da Relação) apreciam os factos de forma tao contraditória, parece possível constatar a existência de uma dúvida resultante das duas convicções contraditórias.

Não se exige o "favor reum ".

Mas recorda-se o velho princípio “in dubio pro reo", o qual deveria ter sido aplicado no caso vertente.

35.     Na verdade, os poderes de livre convicção dos julgadores foram usados extensivamente e um deles abusivamente.

Em consequência, a verdade histórica dos fatos permanecerá, neste processo, sem ter sido alcançada, pelo que melhor seria o reconhecimento da dúvida resultante das duas convicções contraditórias, com todas as consequências inerentes.

36.     Conforme se constata, o douto Acórdão de primeira instância, apesar de entender ter havido um excesso de legítima defesa não aplicou a atenuação especial da pena – art.º 33.º n.º 1 e art.º 73.º do Código Penal.

37. O arguido recorreu desta parte e não obteve provimento porquanto no Acórdão do Tribunal da Relação se efectuou uma alteração significativa dos factos provados.

38.     Todavia, neste recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, não podemos concordar com o aumento em dois anos da pena aplicada em primeira instância,

Na verdade, o mínimo que se deve constatar é a extensão de uma luta, em que os dois contendores acabam feridos, embora de gravidade bem diferente.

Realça-se aqui que ambos os contendores têm cadastro muito semelhante, pelo que nenhum deles é anjo e nenhum deles é diabo.

39. O arguido demonstrou o seu arrependimento de uma forma bem efusiva, perante o Tribunal colectivo e perante todos os que assistiam na audiência inclusive os familiares do ofendido,

40. O Tribunal colectivo usou dos seus poderes de livre convicção para declarar provado o arrependimento.

41.    Ao invés, o Tribunal da Relação, sem nada disto ter presenciado, entendeu que não havia nenhum arrependimento, bastando-se no facto de o arguido não ter recebido a reparação do prejuízo.

42.     Ora, o arguido ficou preso logo no dia seguinte aos factos e a sua única fonte de rendimento era o Café de que era concessionário, gerente e empregado.

Poupanças nunca conseguiu.

43.    Em conclusão, segundo o entendimento do Tribunal da Relação se o arguido tivesse fortuna pessoal ou alguma poupança e a tivesse entregue à família do ofendido, estaria arrependido, mas como é pobre já não tem direito ao arrependimento.

"Nemo da quod non habet"

44.     A fls. 27, do Acórdão de primeira instância foi ponderada a favor do arguido o seguinte:

-    A culpa inferior (dolo eventual);

-    A confissão dos factos, na versão em que resultaram provados;

-    A circunstância de após ter sido atendido no Hospital, ter-se dirigido com o seu advogado às instalações da Polícia Judiciária onde se entregou, o que demonstra alguma responsabilização do arguido no tocante à grave conduta por si perpetrada;

-    O ter consciência da gravidade dos seus actos e do conhecimento causado à família da vitima, penalizando-se, inclusive, pelos danos causados à vitima e à sua família;

-    O facto de ser oriundo de um agregado família de estatuto socioeconómico baixo e de o seu desenvolvimento ter ocorrido numa zona conotada com índices significativos de criminalidade;

-    O exercício de actividade profissional à data dos factos de forma regular;

-    O relacionamento significativo de ordem afectivo que mantinha desde 2016, vivendo em união de facto desde então, tendo pedido a companheira em casamento, relacionamento que, aliás contribuiu para a estabilidade emocional do arguido e alteração dos comportamento em sentido positivo;

-    O facto de continuar a beneficiar do apoio da sua companheira, apesar da situação de reclusão;

-    Os seus intentos futuros que passam pelo afastamento do Bairro ..., zona conotada com problemáticas sociais ou criminais;

-    A atitude consentânea com as regras e normas institucionais em meio prisional;

45, De tudo isto resulta uma pena de dez anos de prisão, em primeira instância sem ter sido considerada a atenuação especial resultante do excesso de legitima defesa, pelo que, a pena deverá ser fixada em 8 anos de prisão, no máximo.

Violaram-se as seguintes disposições

-         art.º 127.º do C.P.P., porquanto o poder de livre convicção usado no douto Acórdão do Tribunal da Relação, sem a realização da audiência e renovação da prova, e por mero recurso às gravações da prova testemunhal, violou o princípio da imediação contrariando frontalmente a convicção do Tribunal de primeira instância e o princípio da presunção da inocência.

-         art.º 40.º e 71.º do C.P., porquanto a pena aplicada em segunda instância de 12 anos de prisão excede a medida da culpa e não visa a reintegração do agente na sociedade.

-      art.º 33.º do CP., porquanto o douto Acórdão recorrido não declarou provado o excesso de legitima defesa, contrariando o decidido na primeira instancia».

3. Defendendo a improcedência do recurso, o Senhor Procurador-Geral Adjunto na Relação de Lisboa apresentou a seguinte resposta (transcrição):

«O requerente LL coloca ao Tribunal as seguintes questões:

- Violação do princípio da imediação;

- Violação do princípio in dubio pro reo,

- Existência de legítima defesa na actuação do arguido; e

- Medida da pena excessiva.

A nosso ver não lhe assiste razão em qualquer destas questões.

No que respeita à primeira questão, relativa à violação do princípio da imediação, afigura-se-nos, com todo o respeito, que a mesma não passa de uma tentativa de procurar continuar a impugnar a matéria de facto.

De facto, o recorrente sabendo que não pode já impugnar tal matéria lança mão desta subtileza, assim continuando a trazer ao recurso depoimentos de testemunhas parcialmente transcritos que o tribunal da relação diz ter desvalorizado mas procurando, através deles, continuar a impugnar a matéria de facto apurada. Ou, pelo menos, tentando-o. Isto pese embora saiba, conforme o refere, que o Supremo apenas conhece de direito.

Nesta tentativa de impugnação reporta-se também ao impacto da pedra e seus efeitos para considerar, no conjunto, a matéria apurada ainda não definitivamente fixada.

Não houve, contudo, qualquer violação do princípio da imediação quando o tribunal da relação apreciou o recurso do M.P. que impugnou a matéria de facto. Obviamente que o legislador ao estabelecer o recurso sobre matéria de facto sabe que o tribunal de recurso não se encontra presente no julgamento e por isso o estabelece nas condições em que o fez permitindo, ainda assim, uma apreciação global da prova com base no registo da mesma.

A falta de imediação por parte do tribunal de recurso, e nos termos em que esses recursos se mostram concedidos, não assume qualquer relevância. A vingar a tese do recorrente tal equivaleria simplesmente à inexistência ou anulação dos recursos em matéria de facto, revogando-se assim o art.º 431 do C.P.P.

O relevante é que do processo constavam todas as provas e elementos necessário a que o tribunal de recurso pudesse apreciar toda a prova existente e formar a sua convicção. E foi isso que foi feito tendo o tribunal expressado em mais que uma ocasião que ouviu e avaliou as provas que entendeu.

Não se vê assim que tenha sido violado o alegado princípio da imediação, se com isso se pretende dizer assistências presencial ao julgamento, pois que simplesmente este princípio não existe nos tribunais de recurso nem tem consagração legal.

Não foi em consequência violada qualquer disposição legal a tal propósito nem sequer a constante do art.º 127.º do C.P.P. improcede esta primeira questão, a nosso ver.

No que respeita à alegada violação do princípio in dubio pro reo, também não vemos como foi violado, segundo o recorrente alega. Na sua construção, se a entendermos, tal violação resultaria do facto de o tribunal da relação ter divergido da primeira instância no que respeita à questão do apuramento da matéria de facto. Existindo divergência esta supõe, ou deveria supor, uma dúvida, segundo se alega.

Não é, nem pode ser contudo assim, conforme o recorrente bem sabe pois, por esta via também, sempre que uma decisão de primeira instância fosse alterada suscitar-se-ia a dúvida e seria chamado o princípio em causa. Ou seja, sempre que houvesse divergência em recursos da matéria de facto, estaríamos perante o princípio in dubio pro reo, pois tal divergência seria sinónimo de dúvida. A dúvida que permite apelar ao princípio não é esta. Esta, a existir, é estranha ao tribunal responsável pelo caso ou chamado a decidir. A dúvida relevante e que faz mobilizar o princípio citado é aquela que se coloca ou pode colocar ao tribunal quando analisa e tem que decidir determinado facto. Se não conseguir prova bastante para o mesmo e, se se lhe deparar uma dúvida inultrapassável ou intransponível, então decidirá tal facto em favor do arguido e não contra ele.

A dúvida tem que ser do tribunal e daquele que se encontre a decidir o caso naquele momento e não de qualquer outro ou de qualquer outro interveniente. Se um tribunal superior alterar determinado ponto da matéria de facto seguramente que o faz sem qualquer dúvida sobre o mesmo. A convicção deste é a que releva e se o tribunal decidir a matéria de facto sem dúvidas sobre determinado ponto, mesmo que decida contra o arguido, não há qualquer violação do princípio in dubio pro reo.

Improcede assim também este argumento ou questão suscitada pelo recorrente.

Relativamente à questão da legítima defesa, em que o recorrente continua a insistir, alegando que eram amigos e não desejava matá-lo sendo que foi a vítima que o chamou à porta do café denunciando luta eminente pois já levava uma pedra, também não lhe assiste qualquer razão.

De facto, a questão da legítima defesa nessa altura não pode deixar de colocar-se, tão só e apenas, perante a matéria de facto dada como provada. Ora, vendo esta, da mesma não consta nada do que o recorrente refere. Não pode continuar a alegar-se com base numa realidade imaginada ou que se pretende supor, mas apenas com base na realidade factual apurada nos autos.

Desta não constam os requisitos da legítima defesa, os quais nos dispensamos mesmo de elencar e analisar. A matéria de facto provada não tem nada que ver com os requisitos da legítima defesa, nem com aquilo que o recorrente vem alegar.

Improcede assim também esta sua pretensão.

No que respeita à medida da pena, que pretende situar nos 8 anos, também lhe não assiste razão. Tal pena só se poderia compreender se a realidade não fosse aquela que se apurou e tivesse que ver com aquela que o recorrente pretende que fosse, beneficiando também de atenuação especial.

Não foi esse o caso, sendo que nos revemos, no que à ponderação da pena respeita, na fundamentação constante do acórdão. Isto por referência ao grau de ilicitude, à intensidade do dolo, às necessidades de prevenção geral e especial e à culpa do arguido. De igual forma que relativamente às circunstâncias ponderadas como factor atenuante, como sejam o arrependimento e as condições pessoais inerentes ao arguido.

Nesta conformidade, em nossa opinião, também lhe não assiste razão no que respeita à medida da pena, defendendo também a improcedência do recurso quanto a esta questão.

Deverá assim o recurso improceder e ser confirmada a decisão recorrida (…)».

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitido parecer de concordância com o Ministério Público no Tribunal da Relação, no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos:

«3.        Nos termos dos art.ºs 402.º, 403.º e 412.º n.º 1 do CPP, são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento das questões oficiosas.

Revistas tais conclusões na síntese efectuada em A. 1., são, fundamentalmente, três as questões de que cumpre aqui cuidar, a saber:

─    Modificação da decisão de facto: violação dos princípios do imediação e do in dubio por reo;

─    Excesso de legítima defesa: atenuação especial da pena;

─    Medida concreta da pena: redução da prisão a não do que 8 anos.

E – antecipando conclusões – diz-se já que, acompanhando o sentido da resposta do Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa, também o Ministério Público neste STJ é pela improcedência total do recurso.

Com efeito:

A. Modificação da decisão de facto.

a. Violação dos princípios da imediação e do in dubio pro reo.

4.  Insurge-se o Recorrente nesta parte contra a circunstância de o Tribunal da Relação, no exercício do reexame da decisão de facto da 1ª instância à luz da prova documentada nos termos dos art.ºs 412.º n.ºs 3, 4 e 6 e 363.º do CPP pedido pelo Ministério Público, ter alterado diversos pontos daquela, de tudo resultando uma diferente dinâmica do episódio – à discussão que um e outro tribunal dão como assente, seguiu-se, na visão da 1ª instância, (i) o desferimento pela vítima FF de uma pancada com uma pedra que empunhava no pescoço do Arguido, (ii) a fuga, em corrida, da vítima, e a perseguição dela pelo Arguido, e (iii), por fim, o desferimento, pelo Arguido, com a faca de que desde o princípio estivera munido, do golpe nas costas da vítima que lhe viria causar a morte; já para o Tribunal da Relação, ao início da discussão seguiu-se (i) a ida do Arguido ao interior do estabelecimento de café que explorava, de onde veio munido da faca, (ii) a fuga da vítima, após breve troca de palavras com o Arguido, (iii) o arremesso pela vítima contra o Arguido de uma pedra que apanhou da calçada, atingindo-o no pescoço e (iv), por fim, a facada, pelo Arguido, nas costas da vítima que lhe viria a tirar vida – e um diferente nexo de imputação dos factos – enquanto que para a 1ª instância, o Arguido, ao agir como agiu, «admitiu como possível que podia causar a morte ao FF e conformou-se com esse resultado», para a 2ª, fê-lo «com intenção concretizada de provocar a morte de FF».

E diz, então, que tal decisão é ilegal, por assente na simples audição dos depoimentos e declarações gravados da audiência de julgamento de 1ª instância – portanto, sem a imprescindível imediação – e, tanto como isso, com violação do princípio do in dubio pro reo, que a simples existência de duas «convicções contraditórias» sobre a mesma prova sempre convocava a intervenção daquele princípio.

Mas, salvo o devido respeito, sem um mínimo de razão.

Muito sumariamente:

5.  O presente recurso é exclusivamente de direito – art.º 434.º do CPP – tendo, em princípio, o Tribunal da Relação a última palavra em matéria de facto – art.º 428.º do CPP. E só assim não acontecerá quando, por via da detecção ex officio de alguma das deficiências previstas no art.º 410.º n.º 2 do CPP ou da nulidade não sanada – n.º 3 da norma –, o Supremo Tribunal de Justiça se veja compelido a corrigir – ou a determinar a correcção – da decisão de facto em ordem à cabal aplicação do direito.

Sendo este o perfil, dos poderes de cognição do Supremo Tribunal em matéria de facto, a acusação perante ele de um vício como o da violação do princípio da imediação no julgamento (amplo) de facto pela 2.ª instância nos termos dos art.ºs 412.º n.ºs 3 e 4 do CPP tem, assim e necessariamente, que se inscrever no âmbito de alguma das invalidades referidas, e especificamente, na do erro notório na apreciação da prova previsto no art.º 410.º n.º 2 al. c) do CPP.

E tudo assim em termos de se poder afirmar – como afirmaria o cidadão comum suposto pela ordem jurídica, dotado de normal experiência de vida, senso e entendimento –, que, pela circunstância de não ter ouvido presencialmente as testemunhas e declarantes, mas apenas de ter escutado a audiogravação dos respectivos depoimentos e declarações colhida na audiência de julgamento de 1ª instância, o Tribunal da Relação incorreu em erro crasso, em erro para todos evidente, na ponderação e valoração de tais meios de prova, por isso que assentando em factos em que, a todas as luzes, jamais poderia ter assentado.

Ora, revisto o Acórdão Recorrido – e, nos termos do art.º 410.º n.º 2 citado, só deste se pode lançar mão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum –, já se conclui que nada disso acontece no caso presente, como manifestamente decorre da fundamentação da convicção probatória dos Exmos Desembargadores constante de fls. 34 a 57 do douto Acórdão Recorrido, aliás bem mais pormenorizada e abrangente do que é habitual.

E – de outro lado – nem se pode dizer que o erro notório decorre da violação do princípio da imediação enquanto regra ou princípio material de prova, que só excepcionalmente – isto é, na hipótese de renovação da prova nos termos do art.º 412.º n.º 3 al. c) do CPP, que, todavia, não se verifica in casu –, a lei exige a observância dele no recurso de reexame da matéria de facto, bastando-se, no comum das (demais) situações – n.º 6 do art.º 412º citado –, com a audição ou visualização da prova documentada.

De qualquer modo e mesmo que nada assim fosse, os recursos são – como é consabido – remédios jurídicos, não se podendo confundir o julgamento deles com o do julgamento da causa.

Daí que sempre faça menor sentido esgrimir com a ideia do princípio da imediação plena no momento do reexame da decisão de facto pelo Tribunal da Relação, sendo que – insiste-se –, é apenas de um reexame que se trata mesmo no caso do recurso amplo regulado no art.º 412.º n.ºs 3, 4 e 6 sempre referido.

6.  Melhor sentido – salvo, como sempre, o devido respeito – também não faz acusar violação do princípio do in dubio pro reo na perspectiva de regra de prova.

E não o faz, porquanto, logo, o Recorrente tem uma visão menos rigorosa sobre o modo de actuar do princípio, que não é espoletado pela simples existência de duas «convicções contraditórias» sobre a mesma prova, no caso a do Juízo Central Criminal e a do Tribunal da Relação.

E, depois – e decisivamente –, porquanto também este vício, tal como os do art.º 410.º n.ºs 2 e 3 do CPP, teria que resultar do texto do Acórdão Recorrido, que haveria de evidenciar «com um mínimo de clareza, que [o tribunal] se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados, mas acabou por escolher certos factos a dar por provados, de que resultou maior prejuízo para o arguido» (citando o acórdão deste Tribunal de 28.6.2018 - Proc. n.º 687/13.4GBVLN.P1.S1, sumariado em www.stj.pt), ou, então, denotar que «a dúvida só não» tinha sido «reconhecida em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º, n.º 2, al. c), do CPP» (citando o acórdão deste Tribunal de 25.1.2006 - Proc. n.º 4006/05, sumariado em www.stj.pt).

Ora, in casu, (também) nada disso acontece, como linearmente decorre da motivação da convicção probatória do Tribunal da Relação, de onde não resulta sombra de dúvida ou de hesitação acerca do sentido da decisão e respectivos fundamentos.

Por isso que bem cabendo aqui a asserção de que a dúvida que releva para o in dubio pro reo «é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido» (citando o acórdão deste Tribunal de 30.3.2017 - Proc. n.º 199/15.1PEOER.L1.S1, em www.dgsi.pt).

E, no caso – repete-se –, o texto do Acórdão Recorrido, por si ou mediado pelas máximas da experiência, não evidencia qualquer estado de incerteza do Exmos. Juízes Desembargadores sobre o modo ou o sentido da ocorrência dos factos, muito menos que, nesse estado, tenham optado pela versão que menos favorecia o arguido.    

7.  E, por tudo a pronúncia pela improcedência do recurso, no segmento relativo à matéria de facto. Com a consequência de se ter por definitivamente fixada a apurada no douto Acórdão Recorrido.   

B. Modificação da decisão de direito.

a. Excesso de legítima defesa: atenuação especial da pena.

8.  A este propósito, entende, em suma, o Recorrente que a sua conduta ocorreu no quadro de uma agressão actual e ilícita perpetrada pela vítima, tendo-se limitado a defender-se, embora com meio excessivo, por isso causando a morte daquela.

Daí a intervenção do art.º 33.º n.º 1 do CP e a atenuação especial da pena por que se bate.

Mas, s. m. o., sem razão, de novo!

Diz, a propósito, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa na contramotivação:

A «questão da legítima defesa nesta altura não pode deixar de colocar-se, tão só e apenas, perante a matéria de facto dada com provada. Ora, vendo esta, da mesma não consta nada do que o recorrente refere», designadamente que «não desejava» matar a vítima, «sendo que foi» esta «que o chamou à porta do café denotando luta eminente pois já levava uma pedra».

“Não pode continuar a alegar-se com base numa realidade imaginada ou que se pretende supor, mas apenas com base na realidade factual apurada nos autos.

Desta não constam os pressupostos da legítima defesa […]. A matéria de facto provada não tem nada que ver com os requisitos da legítima defesa, nem com aquilo que o recorrente vem alegar”.

Ora, o signatário subscreve, ponto por ponto, a douta alegação daquele Exmo. Colega, não fazendo na verdade qualquer sentido que o Recorrente insista na arguição que já apresentara perante a Relação, mas cujos pressupostos ainda ficaram mais longe de se poderem verificar perante as alterações da matéria de facto ali introduzidas e a que acima se fez referência, que decididamente, não suportam a ideia da legítima defesa dos art.ºs 31.º n.º 1 e 2 al. a) e 32.º do CP e, portanto, do seu excesso nos termos do art.º 33.º.

9.  Razões por que, também nesta parte, o recurso haverá de improceder.     

b. Medida concreta da pena: redução da pena de 12 para 8 anos de prisão.

10.  Por mais uma vez, não tem o recurso qualquer fundamento, não devendo a pena de 12 anos de prisão imposta sofrer qualquer redução, muito menos para os 8 anos pretendidos, que, de resto, correspondem ao mínimo da moldura abstracta do art.º 131.º do CP.

Não sofrendo dúvidas, nem por parte do Recorrente, que a conduta apurada preenche a tipicidade objectiva e subjectiva do crime homicídio p. e p. pelo art.º 131.º do CP, as razões são, de novo, as adiantadas pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação, e acima de tudo, as em que o douto Acórdão Recorrido fundamentou os 12 anos de prisão, para cujos pormenorizados, esclarecidos e exaustivos termos – fls. 63 a 68 – se remete, e, designadamente, as de que a pena concreta “determina-se em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigência de prevenção” e que, na moldura abstracta de 8 a 16 anos de prisão, os 12 anos referidos se justificam por causa do elevado grau de licitude dos factos que “revela um desvalor da acção acentuado pelo bem jurídico (vida humana) em causa»; do grau elevado do dolo, na forma directa, a «mais grave do elemento subjectivo da infracção”; da acentuada “culpa do arguido (o desvalor da atitude interior) […], porquanto […] face à situação concreta tinha possibilidade de a resolver de outra forma, sem partir para uma agressão da forma por que o fez”; do nível de prevenção especial, “abona[ndo] em favor do arguido o facto de ter confessado os factos de que vinha acusado, sem particular relevo para a descoberta da verdade, e ter propalado em audiência de discussão e julgamento estar arrependido”, as suas “condições de vida (está familiar, profissional e socialmente inserido” e o revelar alguma consciência do desvalor da sua conduta”; e das «prementes […] necessidades de reafirmação contrativa da norma violada porquanto são frequentes na área da comarca de Lisboa os crimes cometidos contra a vida humana com uso de facas de cozinha e armas, bem como [d]a existência de antecedentes criminais com algum relevo [apesar de ser um jovem com 26 anos de idade, já sofreu várias condenações, sete, no total excluindo a presente) pela prática de outros crimes contra o património e por tráfico de estupefacientes, algumas delas de crimes com gravidade (roubos, tráfico de estupefacientes, ofensas corporais), tendo beneficiado sempre de penas não privativas da liberdade ou suspensas na sua execução”, sem que, porém, tivesse “aproveita[do] as oportunidades que lhe foram sucessivamente concedidas, tanto que perpetrou os […] factos” dos autos “no decurso do prazo de suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenado no proc. n.º 221/15.1PQLSB]”.      

11.  Motivos por que, igualmente por aqui, o recurso deve improceder, não se vendo violação das normas dos art.ºs 40.º, 71.º e 33.º do CP indicadas pelo Recorrente, nem, de resto de quaisquer outras. 

III. Conclusão.

Termos em que, sem necessidade de mais alongadas considerações, o Ministério Público é pela improcedência total do recurso e pela confirmação do douto Acórdão Recorrido.»

5. Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente não respondeu.

6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

7. O recurso tem por objecto um acórdão proferido em recurso pelo tribunal da Relação que aplica uma pena de 12 anos de prisão, admissível nos termos dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, al. f), a contrario, e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, cujo âmbito, que circunscreve os poderes de cognição deste Tribunal, se delimita pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I de 28.12.1995), os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, quanto a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

Nos termos do disposto no artigo 434.º do CPP, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.

a. Os factos e a decisão em matéria de facto

a.1. Factos do acórdão da 1.ª instância e recurso para a Relação

8. O tribunal colectivo de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:

«1) AA, de alcunha “...”, e FF, de alcunha “...”, mantiveram uma relação de amizade durante algum tempo, mas nos últimos meses tiveram desentendimentos;

«2) No dia 21 de abril de 2017, cerca das 23:00 H, FF dirigiu-se ao estabelecimento de café pertencente a AA, localizado entre a Rua [...], acompanhado pelo seu amigo CC, que o conduziu até lá;

«3) Após terem estacionado o veículo em que se fizeram transportar, FF avistou AA e chamou-o;

«4) Nesse momento, o arguido AA saiu do interior do café com uma faca na mão e dirigiu-se à porta do café, acompanhado de EE, de alcunha “...”;

«5) Já no exterior do café, mas próximo da sua entrada, o arguido AA e a vítima FF trocaram algumas palavras sobre o que o arguido andaria a dizer sobre FF, na sequência da qual se gerou uma discussão entre os dois;

«6) No decurso dessa discussão, o FF, com uma pedra que tinha na mão, desferiu uma pancada no pescoço do arguido AA;

«7) Logo a seguir, quando o FF estava numa posição lateral em relação ao arguido AA e muito próximo dele, o arguido espetou-lhe a faca que tinha em seu poder nas costas, a qual ficou espetada no corpo do FF;

«8) FF começou então a correr, fugindo do arguido, tendo caído no solo momentos depois;

«9) Desta agressão resultaram as seguintes lesões: “Ferida corto-perfurante, com infiltração sanguínea, (…) com 3 cm de comprimento (…) na região dorsal esquerda”;

«10) O arguido utilizou a arma segundo um trajeto “de trás para a frente, ligeiramente de baixo para cima e ligeiramente da esquerda para a direita, a partir da metade esquerda da região dorsal”;

«11) Destas lesões resultou a morte a FF;

«12) A vítima não chegou a ser transportada ao Hospital, tendo comparecido no local uma ambulância do “INEM”, que lhe prestou assistência de reanimação, mas sem sucesso;

«13) Logo a seguir à prática dos factos, após ter pedido para ser chamada uma ambulância, o arguido saiu do local, no interior do seu veículo, de marca “BMW”, de matrícula ...-QD-..., acompanhado por EE;

«14) Foi apreendida junto ao cadáver a arma branca utilizada pelo arguido na prática dos factos;

«15) Trata-se de uma faca com uma lâmina de 19 cm de comprimento e uma largura de 3 cm;

«16) Ao atuar da forma descrita, desferindo um golpe profundo na zona torácica de FF com uma faca de que previamente se munira, o arguido bem sabia que tal zona corporal alojava órgãos vitais, admitiu como possível que podia provocar a morte de FF e conformou-se com esse resultado;

«17) O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe era censurável e proibida por lei;

«18) No interior do café e muito próximo do local onde ocorreram os factos descritos supra, encontravam-se o MM, o BB e o EE, conhecidos do arguido AA;

«19) Na sequência da agressão a que alude o facto 6º), o arguido AA ficou com um “traumatismo da região cervical – escoriação e dor local/tumefação e escoriação para–esternocleidomastoideu esquerdo”;

«20) A vítima FF tinha 1,58 cm de altura e pesava 75 Kg».

9. E deu como não provados os seguintes:

«(…) Não se logrou provar todos os factos não compagináveis com os acima descritos, designadamente:

«(…) Crime

«(…) Pronúncia:

«1) Do facto 1º) da pronúncia não se provou: “anos”, “frequentes” e “possivelmente relacionados com a transação de substâncias estupefacientes”;

«2) Do facto 4º) não se provou: “este último ainda lhe disse que se «ele era homem não precisava disso” - referindo-se à faca;

«3) Do facto 13º) não se provou: “agindo com a intenção concretizada de tirar a vida àquele último».

10. Com base nestes factos, na síntese do acórdão da Relação, o tribunal da 1.ª instância «considerou que se fez prova de que:

(i) A agressão com uma faca, que determinou a morte da vítima FF, levada a cabo pelo arguido AA, surgiu na sequência e em resposta a uma agressão feita pela vítima ao arguido AA quando ambos se encontravam a discutir;

(ii) Que tal agressão levada a efeito por parte de FF se materializa no desferir de uma pancada com uma pedra no pescoço do arguido AA;

(iii) Que a ação do arguido AA (que se traduz em espetar uma faca com 19 cm de lâmina e uma largura de 3 cm nas costas da vítima) ocorreu quando se encontravam muito próximo um do outro e logo a seguir a essa pancada.»

Pelo que considerou «que se verificam os pressupostos da legítima defesa, da previsão do art.º 32.º do Código Penal, admitindo tratar-se de uma situação de “fronteira”, rematando no sentido de que a ação do arguido AA espelha um excesso de meios que determinou a inoperacionalidade desta causa de justificação de legítima defesa e sentenciou no sentido de que o aludido arguido agiu com dolo eventual e não direto como vinha pronunciado» (p. 35).

11. No recurso interposto para o Tribunal da Relação o Ministério Público impugnou esta decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, do CPP, por considerar incorrectamente julgados os pontos 4, 5, 6, 7, 8 e 16 da narração dos factos provados e os pontos 2 e 3 dos não provados, especificando as provas que, em sua análise, impunham decisão diversa – os depoimentos das testemunhas, designadamente NN, CC e OO, conjugadas com as regras da lógica e da experiência comum, e a demais prova, designadamente documental e pericial, com prevalência para o relatório de autópsia médico-legal de fls. 374 a 377 (pp. 33-34 do acórdão recorrido).

a.2. Do acórdão do Tribunal da Relação (acórdão recorrido)

12. No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação conheceu do recurso em matéria de facto, «face ao objeto do recurso delimitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente Ministério Público» (p. 33), mediante audição e detalhada análise da totalidade (p. 34) da prova gravada, produzida e examinada em audiência de julgamento (artigo 412,º, n.º 6, do CPP), incluindo a expressamente indicada no recurso (pp. 24-32), à luz do critério de livre apreciação (artigo 127.º do CPP), e convocando os ensinamentos da ciência relativos à prova testemunhal (pp. 22-24).

Depois de justificar as razões de não-aceitação do juízo negativo, da 1.ª instância, sobre a credibilidade das testemunhas NN, CC e OO (p. 35), em que, no essencial, radica a divergência de apreciação da prova, bem como de analisar a credibilidade conferida à versão do arguido e ao depoimento da testemunha CC (p. 38), e tendo em consideração a globalidade da prova produzida (pp. 38, 40), o acórdão recorrido modificou a decisão em matéria de facto, passando a considerar provados e não provados os seguintes factos:

a.2.1. Factos provados

«1. AA, de alcunha “...”, e FF, de alcunha “...”, mantiveram uma relação de amizade durante algum tempo, mas nos últimos meses tiveram desentendimentos.

2. No dia 21-abr.-2017, cerca das 23:00 horas, FF dirigiu-se ao estabelecimento de café pertencente a AA, localizado entre a Rua ..., acompanhado pelo seu amigo CC, que o conduziu até lá.

3. Após terem estacionado o veículo em que se fizeram transportar, FF avistou AA e chamou-o, tendo este assomado à porta do café.

4. Após terem trocado algumas palavras sobre o que o arguido andaria a dizer sobre FF, o arguido AA voltou ao interior do café, onde foi buscar uma faca de cozinha e saiu do interior do café com a referida faca na mão e dirigiu-se a FF, acompanhado de EE, de alcunha “...”, que também vinha munido de uma faca.

5. O FF ainda lhe disse que “se ele era homem, não precisava disso”, referindo-se à faca, tendo o arguido AA de imediato avançado para o ofendido FF com a faca na mão, a qual era perfeitamente visível.

6. O FF, perante tal avanço, temendo ser agredido com a faca, começou a correr, fugindo do arguido, tendo ainda atirado uma pedra da calçada, que atingiu o arguido AA no pescoço, numa tentativa de o demover de o perseguir.

7. No entanto, o arguido AA veio a alcançar FF, quando este fugia dele, e espetou-lhe a faca que trazia na mão nas costas de FF, o qual após apenas deu um ou dois passos e veio a cair inanimado no chão.

8. Desta agressão resultaram as seguintes lesões: “Ferida corto-perfurante, com infiltração sanguínea, (…) com 3 cm de comprimento (…) na região dorsal esquerda”.

9. O arguido AA utilizou a arma segundo um trajeto “de trás para a frente, ligeiramente de baixo para cima e ligeiramente da esquerda para a direita, a partir da metade esquerda da região dorsal”.

10. Destas lesões resultou a morte a FF.

11. O FF não chegou a ser transportado ao Hospital, tendo comparecido no local uma ambulância do “INEM”, que lhe prestou assistência de reanimação, mas sem sucesso.

12. Logo a seguir à prática dos factos, após ter pedido para ser chamada uma ambulância, o arguido AA saiu do local, no interior do seu veículo, de marca “BMW”, de matrícula ...-QD-..., acompanhado por EE.

13. Foi apreendida junto ao cadáver a arma branca utilizada pelo arguido AA na prática dos factos.

14. Trata-se de uma faca com uma lâmina de 19 cm de comprimento e uma largura de 3 cm. 

15. Ao atuar da forma descrita, desferindo um golpe profundo na zona torácica de FF com uma faca de que previamente se munira, o arguido AA bem sabia que tal zona corporal alojava órgãos vitais, e agiu com intenção concretizada de provocar a morte de FF.

16. O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe era censurável e proibida por lei.

17. No interior do café e muito próximo do local onde ocorreram os factos descritos supra, encontravam-se o MM, BB e EE, conhecidos do arguido AA.

18. Na sequência da pancada no pescoço com a pedra desferida por FF, nas circunstâncias referidas em 6, o arguido AA ficou com um “traumatismo da região cervical – escoriação e dor local/tumefação e escoriação para–esternocleidomastoideu esquerdo”.

19. A vítima FF tinha 1,58 cm de altura e pesava 75 Kg.»

a.2.2. Factos não provados

«Que os desentendimentos entre arguido AA e ofendido FF estivessem relacionados com a transação de substâncias estupefacientes».

13. Com base na matéria de facto assim modificada, o acórdão recorrido afastou o excesso de legítima defesa e o dolo eventual, que o acórdão do tribunal da 1.ª instância havia dado por verificados.

b. Quanto ao objecto e âmbito do recurso

14. No recurso que agora apresenta perante o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente invoca, em síntese, que:

a) Foi violado o artigo 127.º do CPP, por violação do princípio da imediação, pois que, extrai-se das extensas “conclusões” da motivação, o tribunal recorrido terá assumido indevidamente a formação de uma “convicção própria” a partir da prova gravada sem ter havido renovação da prova em audiência (conclusões 1-19) – o que, na sua alegação, constitui “vício” (conclusão 19) que gerou duas «convicções contraditórias» (conclusão 39), de que emerge uma «dúvida» quanto aos factos provados (conclusões 20-35), a resolver de acordo com o princípio in dubio pro reo, (conclusões 34 e 35);

b) Foi violado o art.º 33.º do Código Penal, porquanto o acórdão recorrido não declarou provado o excesso de legítima defesa, contrariando o decidido na primeira instância (conclusões 36-37);

c) Foram violados os artigos 40.º e 71.º do Código Penal, porquanto a pena aplicada em segunda instância, de 12 anos de prisão, excede a medida da culpa e não visa a reintegração do agente na sociedade (conclusões 38-45).

c. O recurso para o STJ e o princípio in dubio pro reo – aspectos gerais

15. Como tem sido repetidamente afirmado na jurisprudência deste Tribunal e na doutrina, os recursos judiciais não servem para conhecer de novo da causa. Os recursos constituem meios processuais destinados a garantir o direito de reapreciação de uma decisão de um tribunal por um tribunal superior, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas com o fundamento do recurso, com o objecto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente (assim, Castanheira Neves, «A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de “revista”», in Digesta, Coimbra Editora, 1995, pp. 523ss). O que significa que, verificados que se mostrem os fundamentos para recorrer (pressupostos da admissibilidade do recurso), o objecto do conhecimento do recurso se delimita pelas questões identificadas pelo recorrente que digam respeito a questões que tenham sido conhecidas pelo tribunal recorrido ou que devessem sê-lo, com as necessárias consequências ao nível da validade da própria decisão, assim se circunscrevendo os poderes do tribunal de recurso, sem prejuízo do exercício, neste âmbito, dos poderes de conhecimento oficioso necessários e legalmente conferidos em vista da justa decisão do recurso. Como se tem reafirmado [cfr., por todos, o acórdão de 16.12.2015 (Proc. 641/11.0JACBR.C1.S1, rel Cons. Raul Borges), em sumários de acórdãos, www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/ Criminal2015.pdf, com exaustiva indicação de doutrina e de jurisprudência], o recurso constitui apenas um “remédio processual” que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões expressas sobre matérias e questões já submetidas e objecto de decisão do tribunal de que se recorre (assim, acórdão de 9.5.2019, proc. 1079/17.1JAPRT.P1.S1, ainda não publicado).

16. O regime de recursos ordinários (artigo 399.ºss do CPP) efectiva a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação de uma decisão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, enquanto componente do direito de defesa em processo penal (cfr. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., 2007, Vol. I, p. 516), reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais. Em processo penal, esta garantia de «dupla instância» é expressamente exigida pelo artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, das Nações Unidas – segundo o qual «qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei» –, e pelo artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos, do Conselho da Europa – segundo o qual «qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei».

Como tem sido repetido pelo Tribunal Constitucional, em jurisprudência firme, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição», isto é, de «um duplo grau de recurso», «em relação a quaisquer decisões condenatórias» (cfr., por todos, os acórdãos 64/2006, 659/2011 e 290/2014).

17. Garantido o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e em matéria de direito, têm, assim, os sujeitos processuais à sua disposição duas vias possíveis de exercer o direito ao recurso. Querendo impugnar a decisão em matéria de facto ou arguir os vícios da decisão em matéria de facto a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (como se tem sublinhado na jurisprudência constante deste Supremo Tribunal – cfr., por todos, o acórdão de 2.10.2014, no Proc. 87/12.3SGLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt) e em matéria de direito, devem estes usar a via de recurso para o tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP), qualquer que seja a pena aplicada. Porém, limitando o recurso a matéria de direito (artigo 403.º do CPP), a lei impõe-lhes caminhos distintos, consoante a pena aplicada, que define o critério de competência dos tribunais superiores: se a pena não exceder 5 anos de prisão, o conhecimento do recurso é da competência do tribunal da Relação (artigo 427.º do CPP); se for superior a 5 anos, tal competência pertence ao Supremo Tribunal de Justiça (artigos 432.º, n.º 1, al. c, e 434.º do CPP).

Em caso de recurso para o tribunal da Relação, é ainda possível o recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça (supra, 7), limitado, como se viu, a questões de direito (artigo 434.º do CPP). Esta possibilidade de um segundo grau de recurso, justificada pela gravidade das penas, releva, porém, da liberdade do legislador (como tem sublinhado o Tribunal Constitucional – cfr. nomeadamente, o acórdão 64/2006), não limitando, antes reforçando, o direito ao recurso garantido pela Constituição.

18. O conhecimento do recurso implica que, no âmbito da sua competência, este Tribunal aprecie e decida, oficiosamente ou a pedido do recorrente, todas as questões de direito relacionadas com o objecto e âmbito do recurso, com vista à boa decisão. Como tem sido enfatizado na jurisprudência deste Supremo Tribunal, estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, encontra-se também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que lhe digam respeito, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4), e questões relacionadas com a apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo (cfr., por exemplo, os acórdãos de 11.4.2012, no Proc. 3989/07.5TDLSB.L1.S1, de 25.6.2015, no Proc. 814/12.9JACBR.S1, e de 3.6.2015, no Proc. 293/09.8PALGS.E3.S1, em www.dgsi.pt, bem como o acórdão de 9.5.2019, proc. 1079/17.1JAPRT.P1.S1).

A limitação do recurso ao reexame da matéria de direito não impede, porém, este Tribunal de, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova –, se eles resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, e se a sua sanação se revelar necessária à boa aplicação do direito, na dimensão do conhecimento do mérito do recurso, como este Tribunal vem de há muito afirmando em jurisprudência constante, neste âmbito se situando também a apreciação, por este Tribunal, do respeito pelo princípio in dubio pro reo (neste sentido, por todos, cfr. o acórdão de 15,12,2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1, relator Cons. Raul Borges, e abundante jurisprudência nele citada, em www.dgsi.pt). Trata-se, como se tem insistido, de vícios da decisão, revelados no texto da decisão e a partir dele, não de erros de julgamento da matéria de facto, nomeadamente de apreciação das provas, cujo conhecimento se encontra subtraído a este Tribunal.

19. É neste quadro que se torna admissível a possibilidade de o Supremo Tribunal conhecer de questões relacionadas com o princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição), que, estruturando todo o processo, se expressa, no plano dos princípios relativos à prova, na proibição de valoração de um non liquet na questão da prova em desfavorecimento da posição do arguido, nisto se traduzindo o sentido e conteúdo do princípio in dubio pro reo. Este princípio, que só vale em relação à prova da questão de facto, assume também uma dimensão que poderá conformar uma questão de direito, da competência do Supremo Tribunal. Devendo o tribunal, por força do princípio da investigação, ordenar, por iniciativa dos sujeitos processuais ou oficiosamente, todos os meios de prova necessários à decisão da matéria de facto, na perspectiva de todas as soluções de direito pertinentes (artigos 339.º, n.º 4, e 340.º do CPP), constituindo autonomamente as bases dessa decisão, e devendo fundamentá-la nos termos exigidos pelo n.º 2 do artigo 374.º do CPP, em conformidade com o critério de livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP), os vícios da decisão (artigo 410.º, n.º 2, do CPP) poderão, na inobservância dos princípios e das regras relativas à produção e valoração da prova, tornar evidente uma violação do princípio in dubio pro reo que, resultando do texto da decisão, deva ser apreciada com vista à boa decisão da causa (cfr. sobre o tema, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, reimp., 2004, p. 202-206 e 211-219) – neste sentido, entre outros, o acórdão de 15.12.2011, no processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1 (Raul Borges), com exaustiva indicação de jurisprudência, o acórdão de 16.11.2016, no processo 06P2546 (Rodrigues da Costa), e o acórdão de 10.10.2018, processo n.º 144/09.3JABRG.G1.S1, em www.dgsi.pt.

d. Quanto à alegada violação, no recurso, do princípio da imediação

20. Por definição, o recurso ordinário de uma decisão não pode constituir uma relação de incompatibilidade de decisões geradora de dúvida quanto aos factos provados. Sendo um meio processual que se destina a sujeitar uma decisão de um tribunal a um novo juízo de apreciação por um outro tribunal hierarquicamente superior, a decisão de recurso, corrigindo erros in judicando ou in procedendo, substitui a do tribunal recorrido, dentro dos seus limites, nomeadamente na parte e nos termos em que dela diverge, modificando-a.

O recurso em matéria de facto destina-se exactamente a obter uma alteração da decisão recorrida quanto aos factos provados, devendo, em caso de procedência, modificar a decisão do tribunal de 1.ª instância, se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º do CPP [artigo 431.º, al. b)]. A modificação é uma consequência imposta pela inconciliabilidade do resultado obtido pela reapreciação levada a efeito pelo tribunal superior com o da apreciação e decisão do tribunal recorrido.

21. Ao efectuar essa reapreciação, no âmbito do recurso definido pelo recorrente – que deve especificar os pontos da matéria de facto provada que considera incorrectamente julgados e as provas que, a seu ver, impõem decisão diversa (artigo 412.º, n.º 3), com referência ao consignado na acta e às passagens da gravação, no caso de as provas terem sido gravadas (artigo 412.º, n.º 4) –, o tribunal procede à audição das passagens indicadas (artigo 412.º, n.º 6).

Porém, o tribunal superior não está limitado à apreciação dessas passagens. Compete-lhe, para além disso, proceder à audição de «outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa» (artigo 412.º, n.º 6, segunda parte). Pelo que – independentemente da designação que se lhe atribua (o acórdão recorrido designa-o por «convicção») – se lhe impõe uma formulação de um juízo que, na medida do necessário, tem de convocar outras provas relevantes e sobre as quais terá de fundar o seu próprio juízo, baseado em idêntico critério de apreciação – que é o estabelecido no artigo 127.º do CPP –, assim justificando a decisão sobre a modificação da decisão recorrida.

Com efeito, como estabelece o artigo 425.º, n.º 4, do CPP, «é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º», o que obriga a respeitar os requisitos de fundamentação que lhe são próprios, também em respeito pelo dever constitucional de fundamentação das decisões (artigo 205.º da Constituição e 24.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) e, para além disso, a que o tribunal de recurso não exceda ou não exerça os poderes de cognição legalmente impostos, assim garantindo a validade da sua decisão [artigo 379.º, n.º 1, al. c)].

Na sua auto-suficiência, o acórdão proferido em recurso há-de, também ele, ser isento de qualquer dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, os quais, como já se viu, não podendo constituir fundamento de recurso, podem ser apreciados pelo Supremo Tribunal de Justiça em vista da boa decisão do recurso.

22. A intervenção do tribunal de recurso ao apreciar a prova gravada não ocorre, porém, no contexto de imediação a que está sujeita a sua produção em audiência de julgamento (garantido pelo artigo 355.º do CPP) ou em caso de renovação das provas perante o tribunal de recurso (artigo 423.º do CPP) (como, note-se, se pondera no acórdão recorrido – p. 24).

O artigo 127.º do CPP situa-se num âmbito diferente, o da apreciação da prova, pela «entidade competente», como diz este preceito, ou seja, impõe-se a toda a actividade de apreciação da prova, no momento e no contexto em que esta apreciação deva ocorrer, seja nas fases preliminares do processo, nomeadamente com vista à decisão de acusação ou de pronúncia, seja no julgamento, seja em recurso. Enquanto a imediação diz respeito à produção da prova, no momento decisivo do processo para estabelecer a culpabilidade do arguido, que é o julgamento (e, eventualmente no recurso com renovação de prova), a livre apreciação respeita à valoração e relevância da prova produzida, de acordo com as regras da experiência, da lógica e da ciência, em função do facto que constitui o objecto da prova. Pelo que, não podendo fundir-se conceitos e princípios distintos, não pode afirmar-se que a apreciação da prova efectuada fora de um contexto de imediação na sua produção resulta em violação do artigo 127.º do CPP.

23. Do que se expõe se conclui, pois, que não encontra qualquer fundamento a alegação da violação do princípio da imediação ou da livre convicção, em resultado das denominadas duas «convicções contraditórias» susceptíveis de gerar «dúvida» quanto aos factos provados, a resolver de acordo com o princípio in dubio pro reo.

Pelo que, nesta parte, é manifesta a improcedência do recurso.

e. Quanto à alegada violação do princípio in «dubio pro reo»

24. Como anteriormente se explicitou, a apreciação pelo STJ da observância do princípio in dubio pro reo só poderá incluir-se no âmbito da apreciação dos vícios da decisão recorrida indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, que dizem respeito à decisão em matéria de facto, os quais, como resulta do preceito, devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência.

25. Vista a decisão recorrida, esta revela-se solidamente fundamentada, construindo a argumentação da justificação da decisão em matéria de facto nos seguintes termos:

«A análise crítica da totalidade da prova por declarações e testemunhal já se mostra acima levada a efeito nos termos plasmados no texto deste aresto.

Importa agora esmiuçá-la novamente.

Vejamos.

(…) desde já adiantamos que, salvo o devido respeito por opinião em contrário, não vislumbramos razão com força legal suficiente para conceder credibilidade às declarações do arguido AA, quer às prestadas perante a Senhora JIC (…), quer às produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento (…).

Na verdade, este tribunal procedendo à audição da totalidade da prova gravada prestada em sede de audiência de discussão e julgamento de 1.ª instância, pesando devidamente a globalidade das declarações do arguido AA, as declarações das assistentes ... e ... e globalidade dos depoimentos das testemunhas PP, ..., NN , CC, ..., MM, BB, OO, EE, GG, e ..., não encontra razão válida para considerar as testemunhas NN , CC e OO como não credíveis, pois, tendo presente os respetivos depoimentos, não se mostram os mesmos objetivamente analisados, pesados e desconstruídos pelo tribunal a quo, não se apontando objetivamente o porquê, a razão de ciência para não lhes conferir credibilidade, sendo certo que uma vez ultrapassado há mais de um decénio do século XXI, a moderna ciência da Psicologia do Testemunho nos ensina que não basta partir do preconceito de que é amigo para daí ver o que ele diz como em relação inconciliável com a verdade histórica.

Na verdade, o que realmente importa apreciar e valorar é o que o declarante ou testemunha diz e analisar e pesar devidamente os seus depoimentos. Dando-se um salto qualitativo: passando da etapa que se traduz em valorar a credibilidade da testemunha a examinar o que realmente importa: a credibilidade do seu testemunho.

Pelas razões que acrescentaremos infra, com o devido respeito por opinião diversa não vemos razão válida para retirar a credibilidade às testemunhas acima referidas.

Na realidade, desde já adiantamos que, pesando a globalidade dos depoimentos das testemunhas NN, CC e OO, as mesmas não só se apresentam a nosso ver credíveis e não tendenciosas, como claramente apontam todas para uma versão dos factos que se nos afigura em relação conciliável com a verdade histórica, face à globalidade da prova para estes autos carreada e produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento e sujeita ao contraditório da mesma, como igualmente refutam motivadamente a versão apresentada pelo arguido AA, que o tribunal a quo agasalhou.

Vejamos sucintamente o porquê desta afirmação.

Na decisão impugnada o tribunal a quo, aquando da apreciação crítica da prova aponta que, a seu ver, não se fez prova da versão que apelida de “simplista” da acusação/pronúncia, mas antes da “narrativa” trazida a juízo pelo arguido AA.

Em apertada síntese, o tribunal a quo considerou que se fez prova de que:

(i) A agressão com uma faca, que determinou a morte da vítima FF, levada a cabo pelo arguido AA, surgiu na sequência e em resposta a uma agressão feita pela vítima ao arguido AA quando ambos se encontravam a discutir;

(ii) Que tal agressão levada a efeito por parte de FF se materializa no desferir de uma pancada com uma pedra no pescoço do arguido AA;

(iii) Que a ação do arguido AA (que se traduz em espetar uma faca com 19 cm de lâmina e uma largura de 3 cm nas costas da vítima) ocorreu quando se encontravam muito próximo um do outro e logo a seguir a essa pancada.

Por sua vez, considerou o tribunal a quo na decisão ora posta em crise, que se verificam os pressupostos da legítima defesa, da previsão do art. 32.º do Código Penal, admitindo tratar-se de uma situação de “fronteira”, rematando no sentido de que a ação do arguido AA espelha um excesso de meios que determinou a inoperacionalidade desta causa de justificação de legítima defesa e sentenciou no sentido de que o aludido arguido agiu com dolo eventual e não direto como vinha pronunciado.

Desde já adiantamos que, salvo o devido respeito por opinião em contrário, assiste inteira razão ao recorrente Ministério Público, no segmento que agora nos ocupa atinente à impugnação da matéria de facto.

Vejamos sucintamente o porquê desta afirmação.

O caso em apreço não espelha a existência dos pressupostos da legítima defesa, isto pela singela — mas decisiva razão — de que a ação penalmente relevante do arguido AA não surgiu na sequência de qualquer agressão de FF, mas sim apresenta-se como um ato deliberado do arguido AA.

A agressão realizada pelo arguido AA — que se traduziu em espetar uma faca com 19 cm de lâmina e uma largura de 3 cm nas costas de FF, — não surgiu como resposta a qualquer agressão por parte da vítima, que se encontrava desarmada e que apenas ali tinha vindo para falar com o arguido AA. 

In casu, o arguido AA utilizou a faca de que se havia previamente munido, sabendo que vinha na direção de vítima FF, não em situação de luta física entre ambos (atente-se que a vítima não apresentava quaisquer lesões na parte frontal do corpo, nem quaisquer lesões de defesa ativa e passiva), mas quando o arguido AA corria atrás da vítima com a faca na mão e esta fugia dele.

Com o devido respeito por opinião diversa afigura-se-nos que é isso que resulta da globalidade dos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento.

Relembremos agora novamente o essencial da prova registada e objeto de gravação que já acima ficou na parte relevante descrita». (Seguindo-se a transcrição parcial dos depoimentos das testemunhas NN, CC e OO).

«Pesando devidamente os depoimentos destas testemunhas, maxime o depoimento da testemunha ..., facilmente se enxerga:

— Que o arguido AA assomou à porta do seu café, e que após um “bate-boca” em que FF perguntou ao arguido AA porque andava a falar mal dele, o arguido voltou ao interior do café onde se previamente muniu com a faca com a qual veio a agredir mortalmente a vítima FF.

— Que o arguido AA foi na direção de FF, acompanhado do seu amigo “Edu”, a testemunha ..., que também vinha munido de uma faca, conforme declarado pelas testemunhas NN Abreu e CC.  

— Que após FF ter dito ao arguido AA “se era homem não precisava da faca” (confirmado pela testemunha CC), o arguido AA avançou para a FF com a mencionada faca, tendo FF encetado a fuga, durante alguns metros, momento em que gritou “com faca não, com faca não”, vindo a ser atingida, nas costas, com um golpe, pela faca, desferida pelo arguido AA, de modo profundo, provocando-lhe as lesões descritas no relatório de autópsia, que foram causa direta e necessária da sua morte.

Porque assim se nos afigura ser, existe uma desarmonia e contradição entre a globalidade da prova produzida e os factos dados como provados nos termos acabados de descrever, na medida em que a versão descrita na decisão impugnada se “ancora” na “narrativa” do arguido AA prestada em audiência de discussão e julgamento, a qual numa perspetiva dinâmica dos factos aqui em causa, nos parece discordante com as características do ferimento provocado a facada nas costas da vítima (a aludida faca foi utilizada pelo arguido AA segundo um trajeto “de trás para a frente, ligeiramente de baixo para cima e ligeiramente da esquerda para a direita, a partir da metade esquerda da região dorsal”;); e é desmentida pelas testemunhas NN e CC.

Na verdade, se bem vemos, na “narrativa” do arguido AA a testemunha CC agarrou-o por um braço (o braço direito) e FF desferiu-lhe um golpe com uma pedra, no pescoço, ao que o arguido AA reagiu com a facada, desferida com a mão esquerda, “como que por instinto”.

Ora, toda esta “narrativa” é inteiramente refutada pela testemunha CC, que nega ter tido qualquer contacto físico com o arguido AA e que afirma com clareza que foi o arguido AA quem se dirigiu com a faca à pessoa de FF, logo após algumas palavras, tendo FF encetado a fuga.

Com o devido respeito por opinião em contrário, não vislumbramos razão válida ancorada na lei ao caso aplicável, para o tribunal a quo ter considerado estes depoimentos como tendenciosos, quando a fuga de FF é também confirmada pela testemunha NN e pela testemunha OO, e mostra-se harmónica com a zona do corpo onde a vítima foi atingida.

A isto acresce que, não se vislumbra o porquê do caminho seguido pelo tribunal a quo quando somente atende à “narrativa” apresentada pelo arguido AA, em audiência de discussão e julgamento a qual é contrariada em certa medida pela versão dada à Senhora Juíza de instrução Criminal, aquando do seu primeiro interrogatório judicial de arguido detido, nos termos que melhor veremos infra, e pelos depoimentos das acima aludidas testemunhas, “narrativa” que não torna inteligível o porquê de FF ser atingido nas costas com a violência que foi.

Na verdade, se bem vemos, na “narrativa” do arguido AA, ele assevera que foi agarrado no braço direito por CC e atingido com a pedra por FF no pescoço. Como reação, deu uma facada com a faca que tinha na mão esquerda, nas costas da vítima.

Neste particular cabe aqui perguntar: Porquê nas costas? Se estava dominado pela testemunha CC e por FF, seria mais conforme às regras da lógica, mais coerente, que tivesse desferido a facada na parte da frente ou nos membros superiores do ofendido.

Na realidade, não podemos aqui olvidar que o arguido AA, em sede de primeiro interrogatório judicial apresentou uma versão algo semelhante à que narrou em audiência de discussão e julgamento, com a exceção atinente ao ponto que referiremos mais abaixo, acerca do que se passou, conforme resulta das declarações que prestou nessa sede, no dia 22-abr.-2017, as quais foram por este tribunal integralmente escutadas de harmonia com o disposto no art. 141.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal.

In casu, o arguido AA prestou declarações em sede de primeiro interrogatório judicial, assistido por mandatário constituído e depois de informado de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações por ele prestadas poderão ser utilizadas no processo.

Ora, pese embora o arguido AA tivesse apresentado uma versão algo semelhante à que apresentou em audiência de discussão e julgamento, expressou um quid que, curiosamente, não fez qualquer alusão em sede de julgamento. Narrou que viu a vítima FF a cair em cima da faca, isto apesar de não referir onde se encontrava a faca, se já estava espetada nas costas ou caída no chão». (Segue-se transcrição das declarações do arguido em primeiro interrogatório judicial).

«O Tribunal a quo conferiu enorme credibilidade, não só ao arguido AA (cuja “narrativa” aceitou como verdadeira), mas igualmente à testemunha BB, a qual no dizer do tribunal, está em consonância com a “narrativa” do arguido AA.

Contudo, com o devido respeito por opinião em contrário, resulta da audição integral do seu depoimento que foi esta testemunha BB o último a sair do café e não viu qualquer agressão nem o local exato e circunstâncias em que ocorreu, apenas viu uma pessoa com uma faca espetada nas costas e vultos envolvidos.

E na realidade compreende-se que assim seja. No dizer da testemunha no exterior do referido Café do arguido AA, aquando dos factos aqui em causa, não existia iluminação pública, e neste particular importa aqui ter presente que, em 21-abr.-2017 (uma sexta-feira), data dos factos, em Lisboa, Portugal, a lua encontrava-se na fase de Quarto Minguante, entrando Lua Nova apenas em 25-abr.-2017, pelas 13:06 horas.

Daí que, com o devido respeito por opinião em contrário não se entenda a extrema relevância atribuída a esta testemunha que pouco viu, em contraposição com as testemunhas que acima referimos, maxime a testemunha CC, a que tudo assistiu e permaneceu no local dos factos até à chegada da PSP.

Na verdade, cumpre aqui realçar que foi CC a única testemunha que permaneceu no local até à chegada da Polícia e que logo se identificou e falou com a polícia, conforme resulta do auto de notícia de fls. 9 a 12 (original junto a fls. 128-131 dos autos (vol. 1.º) e foi confirmado em audiência pela testemunha PP, na sessão de 19-mar.-2018.

Com o devido respeito por opinião em contrário, o facto de ser amigo de FF não significa por si, sem mais, que o seu testemunho não seja verdadeiro, como parece ter concluído o tribunal. O que summo rigore há que valorar é o depoimento da testemunha e não a pessoa do declarante. Pois a valoração da pessoa do depoente não é motivável ainda que possa parecer o contrário. “Não creio no amigo porque é amigo”.

O que há que fazer é valorar objectivamente o depoimento da testemunha. Quer dizer é preciso analisar se o relato que realizou foi coerente, se a testemunha contextualizou, se se corrobora este relato com outras provas e se existem detalhes oportunistas no depoimento.

Na verdade, se bem vemos, hodiernamente é já mais que tempo de qualquer depoimento de uma testemunha dever ser escutado de maneira igualitária a qualquer outro declarante, deixando à margem todo o tipo de juízos preconcebidos sobre a sua pessoa.

Em suma: deve avaliar-se o depoimento da testemunha e não detalhes da sua pessoa. Do seu depoimento deve a nosso ver examinar-se coerência do relato, contextualização, existência de corroborações periféricas e ausência de circunstâncias oportunistas no referido relato.

Quanto a nós, a esta luz, antagonicamente à posição adotada pelo tribunal a quo, com o devido respeito por opinião em contrário, consideramos a testemunha CC se mostra credível e presenciou diretamente os factos, sendo a descrição feita de forma que nos parece coerente, apresentando um relato estruturado, contextualizado, existem corroborações periféricas, mostra-se lógica e de acordo com as regras da experiência de vida e consonante com o local do corpo onde FF foi atingido (nas costas) e local onde a vítima caiu inanimada, não denotando no globalidade do seu depoimento a existência de detalhes ou circunstâncias oportunistas.

Neste particular cabe aqui ter presente que todas as outras testemunhas fugiram rapidamente do local, tal como fez o arguido AA.»

24. O que na fundamentação vem expendido a propósito das bases teóricas e dos critérios a considerar na apreciação e valoração da prova testemunhal, que foram aplicados no acórdão recorrido, corresponde ao pensamento que consensualmente vem sendo afirmado na literatura da especialidade, não suscitando controvérsia (para além dos autores citados no acórdão recorrido, pode ver-se também Jordi Nieva Fenoll, La valoración de la prueba, Marcial Pons, Madrid, 2010, pp. 212ss).

A fundamentação satisfaz plenamente as exigências legais, de completude, coerência e respeito pelo critério da apreciação da prova, podendo concluir-se que o texto da decisão recorrida não evidencia vício que possa incluir-se na previsão do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, susceptível de revelar qualquer dúvida quanto às conclusões obtidas na fixação da matéria de facto.

Assim sendo, improcede a alegação da violação do princípio in dubio pro reo.

c) Quanto ao alegado excesso de legítima defesa

26. A pretensão do recorrente de que a condenação só pode ocorrer com fundamento em excesso de legítima defesa pressupõe, na lógica do recurso, a igualmente pretendida «anulação» do acórdão recorrido, «por violação do princípio da livre convicção, do princípio da imediação e do princípio da presunção da inocência», e a manutenção, sem alteração, dos factos provados no acórdão da 1.ª instância. O que, como se viu, não procede.

De acordo com essa decisão, a agressão de que resultou a morte da vítima, foi levada a efeito pelo arguido no quadro de uma agressão actual e ilícita por parte da vítima, com o propósito de se defender, mas com excesso do meio utilizado. O que levou o tribunal a considerar preenchida a previsão do artigo 33.º, n.º 1, do Código Penal, segundo o qual «Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada».

27. As modificações da matéria de facto introduzidas pelo acórdão da Relação definem um quadro distinto, no qual não está presente a agressão por parte da vítima descrita no acórdão da 1.ª instância, que teria desencadeado a acção do arguido. Como vem referido na fundamentação do acórdão recorrido (transcrita no ponto anterior),

«O caso em apreço não espelha a existência dos pressupostos da legítima defesa, isto pela singela — mas decisiva razão — de que a ação penalmente relevante do arguido AA não surgiu na sequência de qualquer agressão de FF, mas sim apresenta-se como um ato deliberado do arguido AA.

A agressão realizada pelo arguido AA — que se traduziu em espetar uma faca com 19 cm de lâmina e uma largura de 3 cm nas costas de FF, — não surgiu como resposta a qualquer agressão por parte da vítima, que se encontrava desarmada e que apenas ali tinha vindo para falar com o arguido AA. 

In casu, o arguido AA utilizou a faca de que se havia previamente munido, sabendo que vinha na direção de vítima FF, não em situação de luta física entre ambos (atente-se que a vítima não apresentava quaisquer lesões na parte frontal do corpo, nem quaisquer lesões de defesa ativa e passiva), mas quando o arguido AA corria atrás da vítima com a faca na mão e esta fugia dele.

Com o devido respeito por opinião diversa afigura-se-nos que é isso que resulta da globalidade dos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento.»

E noutro local:

«(…) antagonicamente ao considerado pelo tribunal a quo, afigura-se-nos que no caso em apreço não se verificam os pressupostos da legítima defesa, nos termos do art. 32.º do Código Penal.

São requisitos da legítima defesa:

a) Uma agressão atual ou iminente;

b) Que a agressão seja ilícita, não motivada por provocação do defendente;

c) A existência do animus defendendi;

d) Impossibilidade de recurso à força pública; e

e) A necessidade racional do meio empregado ( ).

Ora, a agressão atual é a que se mostra iminente, está em curso ou ainda perdura.

Por sua vez, não atua com animus defendendi o arguido AA que agrediu o seu adversário pelas costas nas concretas circunstâncias acima descritas e apuradas por este tribunal.

Face à materialidade fática provada e fixada supra por este Tribunal, dúvidas não existem de que verificada não está a existência de qualquer agressão atual e ilícita por parte do ofendido FF, isto — pela singela mas decisiva razão — de que a ação de atirar com a pedra ao arguido AA, por parte de FF foi tão-somente uma tentativa de demover o arguido AA de agredi-lo com a faca, com a qual avançava na sua direcção.

Ora, a ação do arguido AA, de avançar no encalço do ofendido FF, com a faca na mão (faca com uma lâmina de 19 cm de cumprimento e uma largura de 2 cm) e com intenção de o agredir com o referido objeto, é prévia à denominada “agressão” com a pedra por parte do ofendido FF (Sendo certo e sabido que contra legítima defesa não pode haver legítima defesa [cf. neste sentido o sentenciado no Ac. do STJ de 24-mai.-2017 (Pires da Graça), proc. n.º 883/15.0PBBRR.S1 – 3.ª Secção], acrescenta-se em nota).

Constatamos assim que a facada desferida pelo arguido AA não foi uma reação a esse ato, mas um ato deliberado e intencional do arguido AA.

Porque assim se nos afigurar ser, consideramos que dos factos apurados por este tribunal e acima fixados resulta com evidência que o arguido AA não agiu em legítima defesa, por não se verificarem requisitos acima indicados, razão pela qual inexiste no caso em apreço legítima defesa».

28. Esta conclusão do tribunal recorrido quanto à não verificação dos pressupostos da prisão preventiva, para, num segundo momento, se poder avaliar do excesso do meio de defesa utilizado, mostra-se coerente com os factos estabelecidos pelo Tribunal da Relação.

Com efeito, por um lado, não resulta dos factos provados que a conduta do arguido foi antecedida de uma acção da vítima dirigida contra si, susceptível de poder ser considerada como uma agressão actual e ilícita, de modo a preencher os pressupostos da legítima defesa (artigo 32.º do Código Penal). Por outro, revelam os mesmos factos que a conduta da vítima de arremessar a pedra contra o arguido foi determinada pela conduta deste, com o intuito de evitar que prosseguisse na sua acção de a agredir com a faca que empunhava, o que, podendo configurar uma acção de defesa por parte da vítima, não admitiria uma recíproca acção de defesa justificada por parte do arguido. Como se tem salientado na jurisprudência e na doutrina, contra legítima defesa não pode haver legítima defesa, isto é, não existe «legítima defesa recíproca» [assim, o acórdão de 20.5.2017, no processo 883/15.0PBBRR.S1 (Pires da Graça), in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/criminal_sumarios 2017.pdf, bem como Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Teoria do Crime, Católica Editora, 2015, p. 180, Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Católica Editora, 2015, p. 237, e Miguez Garcia / Castela Rio, Código Penal Parte Geral e Especial, Almedina, 2014, p. 250). Citando Eduardo Correia: «que a agressão preordenada, isto é, intencionalmente dirigida a criar as condições de uma legítima defesa – para, sob o manto formal do direito que dele emerge, obter a exclusão da ilicitude de um facto que preenche um tipo legal de crime – impede pura e simplesmente o funcionamento do direito de legítima defesa é coisa que hoje pode considerar-se opinião dominante»; e referindo-se à agressão seguida de provocação: «quando o acto provocador constituir em si uma agressão ilícita», «nesta hipótese contra o ataque que procura evitá-la não poderá falar-se de legítima defesa: estar-se-á aqui em face de uma nítida aplicação do princípio de que contra a legítima defesa não pode exercer-se uma legítima defesa» (Direito Criminal II, reimp. 1971, Almedina, pp. 41-42).

29. Assim sendo, impõe-se a conclusão de que não houve violação do artigo 33.º, n.º 1, do Código Penal, pelo que improcede igualmente o recurso nesta parte.

d) Quanto à medida da pena

30. Com relevo para a determinação da sanção está provado ainda que:

«O arguido tem antecedentes criminais registados:

— Pelo Acórdão proferido no P.C.C. n.º 113/08.0SWLSB da 1.ª Vara Criminal de Lisboa, transitado em julgado a 16.3.2011, foi condenado na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de 3 crimes de roubo, p. e p. pelo art. 210.º, n.º 1 do C.P.;

— Pela sentença proferida no P.C.S. n.º 221/15.1PQLSB do Juízo Local Criminal de Lisboa (J 11), transitada em julgado a 29.3.2016, foi condenado na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de 1 crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, al. a) do D.L. n.º 15/93, de 22.1.;

— Pela sentença proferida no P.C.S. n.º 72/08.0PJOER do 2.º Juízo de competência criminal do Tribunal Judicial de Oeiras, transitada em julgado a 16.3.2011, foi condenado na pena de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de 1 crime de roubo, p. e p. pelo art. 210.º, n.º 1 do C.P.;

— Pela sentença proferida no P.C.S. n.º 370/10.2SGLSB do 2.º Juízo Criminal de Lisboa, transitada em julgado a 15.3.2012, foi condenado na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e acompanhada de regime de prova, pela prática de 1 crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, al. a) do D.L. n.º 15/93, de 22.1.;

— Pela sentença proferida no Processo sumário n.º 113/13.9PXLSB do 2.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, transitada em julgado a 28.5.2013, foi condenado na pena de 100 dias de multa pela prática de 1 crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2 do D.L. n.º 15/93, de 22.1.;

— Pela sentença proferida no P.C.S. n.º 50/12.4SGLSB do 4.º Juízo Criminal de Lisboa, transitada em julgado a 11.4.2014, foi condenado na pena de 80 dias de multa pela prática de 1 crime de injúrias agravada, p. e p. pelos arts. 181.º e 184.º, com referência ao art. 132º, n.º 2, al. l), todos do C.P.;

— Pela sentença proferida no P.C.S. n.º 284/11.9S7LSB do 5.º Juízo Criminal de Lisboa, transitada em julgado a 7.9.2015, foi condenado na pena de 160 dias de multa pela prática de 1 crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1 do C.P..

21. O arguido é oriundo de um agregado familiar de estatuto socioeconómico baixo, composto pelo pai e duas irmãs germanas mais novas.

22. Tem ainda três irmãos consanguíneos mais velhos fruto de anteriores relações do pai.

23. O desenvolvimento do arguido ocorreu predominantemente na zona de Alcântara, em Lisboa, numa área geográfica conotada com índices significativos de criminalidade;

24. Desde idade precoce, sob influência de pares da sua zona residencial, o arguido adotou comportamentos desviantes, de vadiagem e de absentismo escolar;

25. A nível económico, o pai trabalhava nas limpezas de barcos e a mãe como cozinheira, contudo devido aos consumos abusivos do álcool canalizavam a maior parte dos proventos para sustentar esta adição, pelo que os descendentes passaram por dificuldades ao nível das necessidades básicas.

26. Posteriormente veio a ocorrer a separação dos pais, tendo a mãe optado pela mudança da zona de residência no sentido de melhorar as condições habitacionais e inserção da família numa zona mais ordeira, contudo este afastamento não se traduziu num efetiva mudança de comportamentos, uma vez que o arguido mantinha um grupo de referência ligado a consumos de haxixe.

27. O arguido ingressou no ensino em idade normal, tendo durante o período escolar registado diversas retenções no ensino básico.

28. Posteriormente, através do Centro de Emprego, veio a frequentar um curso de cozinheiro profissional, abandonando-o por não lhe pagarem de forma atempada a respetiva bolsa de formação, e revelando dificuldade em dar continuidade à sua escolarização.

29. No domínio laboral, após um período em que não desenvolvia qualquer atividade estruturada, veio a fazer alguns biscates como ajudante do pai ou na construção civil.

30. Posteriormente empreendeu a exploração de um café/bar, num espaço arrendado sito no Bairro ..., tendo aberto atividade em outubro de 2015, desenvolvendo a sua atividade profissional de forma regular.

31. O seu sustento assentava nos lucros resultantes do seu trabalho e do salário da mãe que trabalhava como empregada de limpezas.

32. Na área afetiva estabeleceu um relacionamento significativo em 2016, vivendo em união de facto desde então, tendo pedido a companheira em casamento.

33. Esse relacionamento contribuiu para a estabilidade emocional do arguido e alteração de comportamentos, adotando um estilo de vida mais saudável e dedicando-se à prática desportiva de futebol.

34. À data dos factos residia em habitação arrendada em zona habitacional sem conotações criminais ou problemáticas sociais. O agregado familiar era composto por si e pela companheira, sendo a dinâmica familiar estruturada e normativa.

35. A nível económico não existiam dificuldades económicas, já que o casal encontrava-se inserido a nível profissional, conseguindo assegurar a subsistência de ambos com cerca de €2.200,00 líquidos.

36. Apesar da sua situação de reclusão, a sua companheira não desistiu de o apoiar.

37. Em termos futuros e de forma a afastar-se do Bairro ..., pretende trabalhar numa marisqueira, propriedade da mãe da companheira e que se situa numa zona sem problemáticas sociais ou criminais;

38. Penaliza-se pelos danos causados à vítima e família desta e a nível familiar penaliza-se pelo sofrimento causado à companheira, valorizando o seu apoio.

39. Em meio prisional tem revelado atualmente uma atitude consentânea com as regras e normas institucionais, registando um punição por posse de telemóvel datada de 2017

40. Mostra-se preocupado com o desfecho do processo, tendo consciência da gravidade dos seus atos e do sofrimento causado à família da vítima.

41. Após ter praticado os factos descritos e ser atendido no Hospital do ..., dirigiu-se com o seu advogado às instalações da Polícia Judiciária onde se entregou.»

31. A determinação da medida da pena assenta na seguinte fundamentação do acórdão recorrido:

«Por razão de metodologia em ordem a evitar repetições, uma vez que, por uma banda, o Ministério Público suscita a agravação da pena fixada pelo tribunal a quo e, por sua vez, antagonicamente o arguido AA na sua motivação recursória e respetivas conclusões suscita a questão da atenuação especial da pena, tudo aquilo que neste segmento deixarmos expresso a propósito do quantum da pena tem, com as devidas adaptações, aplicação no recurso interposto pelo aludido arguido no âmbito dos presentes autos e que será tratado mais abaixo.

A materialidade fáctica provada e fixada supra — verificados em concreto os elementos constitutivos do “tipo” — integra, a prática pelo arguido AA, em autoria material, na forma consumada, de um (1) crime de homicídio, da previsão do art. 131.º, do Código Penal.

Com efeito, mostram-se preenchidos todos os elementos de ordem objetiva e subjetiva, integradores do crime de homicídio consumado, perpetrado com dolo direto na pessoa de FF, crime da previsão do art. 131.º do Código Penal com referência ao art. 14.º, n.º 1 do mesmo Corpo de Leis.

In casu para além de o arguido AA ter confessado parcialmente os factos de que vinha acusado (sem particular relevância para a descoberta da verdade; e o arguido ter verbalizado arrependimento em declaração prestada em audiência de discussão e julgamento, com um pedido de desculpas), não existem outras circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena, deste modo não opera in casu qualquer causa de atenuação especial da pena.

A tarefa da análise das consequências jurídicas do crime é, em regra, composta de três fases: 1.ª determinação da moldura penal abstrata cabida ao crime; 2.ª determinação da medida concreta; e 3.ª escolha da pena.

Nos termos do disposto no art. 40.º do Código Penal na sua versão de 1995 que estabelece as finalidades das penas e das medidas de segurança “A aplicação de penas (...) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

São finalidades de prevenção geral positiva de integração (proteção de bens jurídicos) e a prevenção especial (reintegração do agente) as que se têm em conta na escolha da pena.

Anabela Rodrigues [in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, 1991 (em nota)] entende estar na base da escolha da pena a prevenção especial, “sendo um orientamento de prevenção, agora de prevenção geral no seu grau mínimo — o único que deve fazer afastar a conclusão a que se chegou em termos de prevenção especial”.

A aplicação de penas e medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1 do Código Penal).

O momento da aplicação das penas refere-se ao “estádio” da realização do direito penal em que, segundo Claus Roxin, se deve ter em vista a proteção subsidiária preventiva, quer geral quer individual, de bens jurídicos e de prestações estatais; ou seja, o fim de prevenção geral, já não no sentido de mera intimidação, mas com o significado, mais amplo e positivo, de “salvaguarda da ordem jurídica na consciência da comunidade” (Como refere COSTA, Gonçalves da, citando Roxin, em estudo publicado na RPCC, ano 3º, n.ºs 2/4, a p. 328, cit.).

A parte especial do Código Penal mostra o que é considerado nocivo numa sociedade sendo a partir dessa sistemática que se deve procurar a determinação do "conteúdo de desvalor de um facto punível" o conceito material de crime (Wolfgang Nauke, introdução à parte especial do Direito Penal, AAFDL, 1989, cit.).

O bem jurídico protegido é in casu a vida humana. (…)

Atendendo ao disposto no art. 71.º do Código Penal, a medida concreta da pena determina-se em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção.

Os fundamentos da medida da pena aplicada devem constar expressamente da sentença, como impõem os normativos dos artigos 205.º, n.º 1, Constituição da República Portuguesa, 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, Código de Processo Penal e 71.º, n.º 3 do Código Penal.

Para graduar concretamente a pena há que respeitar o critério fornecido pelo n.º 2 do art. 71.º do Código Penal na sua versão de 1995, ou seja, atender a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele”.

O legislador concretiza tal critério, exemplificativamente, nas diversas alíneas daquele artigo.

A exigência de as circunstâncias referidas, favoráveis ou desfavoráveis ao agente (atenuantes ou agravantes) não integrarem o tipo legal de crime, ressalta de já terem sido levadas em conta pelo legislador na determinação da moldura legal, o que, no caso contrário, violaria o princípio “ne bis in idem” (ver por todos CORDEIRO, Robalo, A., Escolha e medida da pena, in "Jornadas de Direito Criminal", CEJ, p. 272, em nota).

Assim, é pela dimensão da culpa, a chamada moldura da culpa — que a pena não pode ultrapassar — que se vai determinar o limite superior da pena, como impõe o n.º 2 do art.º 40.º do Código Penal.

Esta disposição corresponde ao afloramento do princípio geral e fundamental de que o direito penal é estruturado com base na culpa do agente, atendendo, aliás, à defesa da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente consagrada, por exemplo, nos arts. 1.º, 13.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Depois, as exigências de prevenção geral impõem uma “submoldura” que terá nos limites da culpa a sua dimensão.

Trata-se, aqui, de determinar qual a pena necessária para assegurar o respeito pelos valores violados, pelo que a pena a aplicar, não pode ultrapassar os limites da prevenção geral, uma vez que, como dispõe o art. 18.º n.º 2, Constituição da República Portuguesa, só razões de prevenção geral podem justificar a aplicação de reações criminais.

Finalmente, será dentro da moldura da prevenção geral que se fixará a pena a aplicar, considerando as necessidades de prevenção especial, isto é, atendendo às exigências de ressocialização e reintegração.

Em resumo: a realização da finalidade de prevenção geral que deve orientar a determinação da medida concreta da pena abaixo do limite máximo fornecido pelo grau de culpa, relaciona-se com a prevenção especial de socialização por forma que seja esta finalidade a fixar, em último termo, a medida final da pena [Cf. RODRIGUES, Anabela, A determinação da medida concreta da pena...", RPPC, n.º 2 (1991); e Figueiredo Dias, Direito Penal Português, as consequências jurídicas do crime, 1993, p. 243, em nota].

Os factos referidos nas alíneas do n.º 2 do art. 71.º, quer pertençam ao tipo de ilícito objetivo ou subjetivo, quer digam respeito ao juízo ou tipo de culpa, intervêm na determinação da medida concreta da pena pela via da culpa.

Concretizando, quanto à apurada conduta do arguido AA.

Devem ser considerados o grau de ilicitude dos factos e de violação dos deveres impostos ao agente (que são in casu elevados), a intensidade do dolo: [dolo direto (revelando o recorrente um propósito firme, uma vontade persistente de cometer o crime).] Por outro lado, a intensidade como tipo da culpa revela que o arguido AA, com a sua conduta desrespeitou o dever-ser jurídico-penal e os sentimentos manifestados no cometimento do crime.

Relativamente à prevenção geral a defesa da ordem jurídica, necessidade da pena, há que ter em conta a frequência destes crimes (na área desta comarca de Lisboa) e a gravidade das suas consequências.

Contudo, na determinação daquela necessidade é preciso ter presente a advertência de Santiago Mir Puig acerca da necessidade da medida concreta da pena respeitar o princípio constitucional básico: o princípio da igualdade.

Este princípio há de impedir que tanto por razões conjunturais (frequência dos crimes, alarme social) se esgrima a prevenção geral para elevar a pena de algum ou alguns indivíduos mais que a de outros com o que a prevenção especial se administra desigualmente (in Derecho Penal - Parte General, Barcelona, 1996, 4.ª Ed., pp. 750 e 751, em nota).

Ao nível da prevenção especial, e face aos elementos apurados no processo, tem particular relevo face à existência de antecedentes criminais por parte do arguido AA.

Tem algum relevo a falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada nos factos devendo ser censurado através da aplicação da pena.

O juízo de culpabilidade sobre o comportamento do agente de factos objectivamente criminosos assenta na conclusão que dos factos se possa extrair a propósito do juízo de censura ético-jurídica sobre esse mesmo comportamento. É necessário que se possa concluir que o agente atuou com conhecimento da ilicitude do seu ato — isto é: sabendo que praticava atos proibidos — e com capacidade de discernir de acordo com essa avaliação e com margem de liberdade suficiente para se determinar de forma diferente, não o praticando — ou seja: ter no momento dos factos possibilidade de não os praticar e, assim, de se comportar de forma ética, social e juridicamente não reprovável.

Sobre este aspeto não se coloca qualquer dúvida de que o arguido AA é merecedor de juízo de censura ético-jurídica em que se fundamenta a culpa, face à prova de que os atos por si praticados foram resultado da sua vontade consciente, ciente da sua proibição e atuando com aquela margem de liberdade que lhe permitiria ter-se determinado de forma diferente.

Ao nível de prevenção geral positiva de integração, são de grau médio as necessidades de prevenção.

Relativamente à determinação concreta da pena o art. 71.º do Código Penal dispõe que “a determinação da medida da pena dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção”.

Ter-se-á ainda em conta que “a pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa” (cf. art. 40.º, n.º 2 do Código Penal).

A culpa e a prevenção são os critérios regulativos da determinação da pena concreta.

O requisito da culpa traduz a vertente pessoal do crime, entendido como um juízo de censura pela personalidade manifestada no facto, fixando-se através dela o limite máximo da pena, sendo pressuposto da mesma, limitando-se de “forma inultrapassável” as exigências de prevenção [Cf. DIAS, Figueiredo, Jorge de, in Direito penal 2 – Parte Geral – As consequências jurídicas do crime, p. 255 e segs. (em nota)].

A exigência de que a medida da pena seja feita em função da prevenção explica-se pelo facto de se dever atender à necessidade comunitária da punição do caso concreto, e à tutela do bem jurídico-penal em causa, reafirmando a validade da norma violada (prevenção geral positiva ou de integração). Serão considerações de prevenção geral que limitarão o limite mínimo.

São, no entanto, considerações de prevenção especial, viradas para a ressocialização e reintegração do delinquente na comunidade, que determinarão, a final, a medida da pena.

Importa de seguida eleger a totalidade das circunstâncias do complexo integral de facto que relevam para a culpa e para a prevenção, determinando o substrato da medida da pena, tendo em conta os concretos fatores referido no n.º 2 do art.º 71.º do Código Penal (…).

No caso sub judice o grau de ilicitude do facto é elevado acentuando a ilicitude o meio utilizado para concretizar a agressão (faca com uma lâmina de 19 cm de comprimento e uma largura espetada nas costas de FF, nas circunstâncias apuradas e acima).

O modo de execução do crime foi algo gravoso.

A circunstância de se ter ausentado do local, logo após a prática dos factos milita contra o arguido.

As consequências do crime foram graves conduzindo à morte FF, mas já fazem parte do “tipo”.

A intensidade do dolo como tipo-de-ilícito foi elevada (a intensidade do dolo corresponde ao indispensável à existência do dolo direto verificado), na medida em que o arguido / recorrente AA agiu com dolo na sua modalidade mais intensa, dolo direto (revelando o arguido/recorrente um propósito firme, uma vontade persistente de cometer o crime. Por outro lado, a intensidade como tipo da culpa revela que o arguido/recorrente, com a sua conduta desrespeitou o dever-ser jurídico-penal).

As exigências de prevenção, na vertente da socialização, fazem-se sentir, aqui, com mediana intensidade, considerando que o arguido nasceu em 08-mai.-1992, tem 26 anos de idade; à data dos factos exercia atividade profissional; tinha relacionamento de ordem afetivo que mantinha desde 2016, vivendo em união de facto desde então.

Já as exigências de prevenção geral são muito elevadas, a exigir uma pena equilibrada e justa, atenta a objetiva gravidade jurídica do crime e a necessidade de defesa da sociedade perante este tipo de criminalidade, que infelizmente parece alastrar atualmente e que tanto alarme social provoca.

Com peso atenuativo bastante temos a considerar a confissão parcial dos factos (sem particular relevo para a descoberta da verdade dos factos), manifestou ou exteriorizou verbalmente em audiência de discussão e julgamento arrependimento, as condições pessoais do arguido acima descritas e a sua condição económica.

Assim sendo e ponderando:

— Que o grau de ilicitude é elevado e revela um desvalor da ação acentuado pelo bem jurídico (vida humana) em causa.

— Que o grau de intensidade do dolo é in casu de grau elevado (dolo direto) — o dolo direto é a forma mais grave do elemento subjetivo da infração.

— Que a culpa do arguido (o desvalor da atitude interior) é acentuada, porquanto o mesmo face à situação concreta tinha possibilidade de a resolver de outra forma, sem partir para uma agressão da forma como fez.

— Que relativamente ao nível da prevenção especial abona em favor do arguido o facto de ter confessado parcialmente os factos de que vinha acusado, sem particular relevo para a descoberta da verdade, e ter propalado em audiência de discussão e julgamento estar arrependido. As suas condições de vida (está familiar, profissional e socialmente inserido). O arguido revela alguma consciência do desvalor da sua conduta.

— Que contra o arguido opera o facto de serem prementes as necessidades de reafirmação contrativa da norma violada porquanto são frequentes na área da comarca de Lisboa os crimes contra a vida humana cometidos com uso de facas de cozinha e armas, bem como a existência de antecedentes criminais com algum relevo [apesar de ser um jovem com 26 anos de idade, já sofreu várias condenações, sete, no total (excluindo a presente) pela prática de outros crimes, contra o património e por tráfico de estupefacientes, algumas delas de crimes com gravidade (roubos, tráfico de estupefacientes, ofensas corporais), tendo beneficiado sempre de penas não privativas da liberdade ou suspensas na sua execução. No entanto, não veio a aproveitar as oportunidades que lhe foram sucessivamente concedidas, tanto que perpetrou os presentes factos no decurso do prazo de suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenado no proc. nº 221/15.1PQLSB].

Assim, a individualização da pena far-se-á essencialmente pelo que acima apontámos em função da culpa e da ilicitude, das exigências de prevenção geral e demais circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, impondo-se a fixar uma pena justa e adequada à pessoa da arguido AA, relativamente ao tipo legal de crime posto em crise, pelos factos por este perpetrados e objeto destes autos, tendo presente que estamos perante um Direito Penal do Facto e não Direito Penal do Autor.

Tudo ponderado, e tendo presente o disposto nos arts. 40.º, 41.º, e 71.º, todos do Código Penal, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto perpetrado, o modo de execução deste e gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo (dolo directo e intenso), a condição pessoal da agente (nasceu em 08-mai.-1992 – tem presentemente 26 anos de idade) a sua situação económica, a conduta anterior e posterior aos factos (confissão parcial dos factos; arrependimento feito já em declaração na audiência, com um pedido de desculpas) e tendo presente:

— Que são por todos enxergadas as intensas e prementes necessidades de prevenção geral a satisfazer na punição dos crimes de homicídio.

— Que a defesa social que o ordenamento jurídico incorpora, exige um combate ativo ao crime de homicídio que se projeta no domínio da sua punição.

Ponderando o grau de culpa, as necessidades de reprovação, de prevenção geral e especial e de ressocialização e reintegração, situação económico-financeira do arguido e suas condições de vida, por tudo o que dito fica, entendemos justa e adequada cominar o arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada, do referido crime de homicídio simples, previsto e punido pelo art. 131.º do Código Penal, com a pena de 12 (doze) anos de prisão.»

32. As considerações de ordem geral em que se fundamenta a determinação da pena exprimem as características fundamentais do nosso sistema penal, com expressão normativa nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, que merecem total concordância, sem prejuízo de algumas precisões que se farão seguidamente, em particular no que diz respeito à avaliação da gravidade dos factos praticados, em função das circunstâncias que, por via da prevenção ou da culpa, para ela concorrem, e da especificidade dos termos da relevância de algumas dessas circunstâncias.

33. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa», devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no artigo 71.º do mesmo diploma.

Encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na «justa medida», impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º). Como reiteradamente se tem observado, a projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pela necessidade de protecção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas, em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigos 40.º e 71.º do Código Penal).

34. Na determinação da medida da pena, nos termos do artigo 71.º, devem ser levadas em consideração as circunstâncias relacionadas com o facto ilícito típico praticado e com a personalidade do agente manifestada no facto (personalidade onde o facto radica e o fundamenta), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, incluídas no denominado «tipo complexivo total» (na expressão de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., p. 234) e não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele.

Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, n.º 2, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os factores a que se referem a alínea a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente) e a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram), bem como os factores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade [factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto)].

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e de prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime (alínea e), com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto (alínea f). O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do artigo 71.º do Código Penal, Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, que se segue, em particular pp. 475, 481, 547, 563, 566, 574, e Figueiredo Dias, op. cit., pp. 232-357).

35. É, pois, na determinação da presença e na consideração destes factores, embora de enumeração não exaustiva, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, neste caso a vida, concretizada no ataque ao bem jurídico objecto da acção levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação.

36. Na determinação da medida da pena, considerou o tribunal recorrido, as «intensas e prementes necessidades de prevenção geral a satisfazer na punição dos crimes de homicídio», que «a defesa social que o ordenamento jurídico incorpora, exige um combate ativo ao crime de homicídio que se projeta no domínio da sua punição», que «as exigências de prevenção geral são muito elevadas, a exigir uma pena equilibrada e justa, atenta a objetiva gravidade jurídica do crime e a necessidade de defesa da sociedade perante este tipo de criminalidade, que infelizmente parece alastrar atualmente e que tanto alarme social provoca» e que «contra o arguido opera o facto de serem prementes as necessidades de reafirmação contrativa da norma violada porquanto são frequentes na área da comarca de Lisboa os crimes contra a vida humana cometidos com uso de facas de cozinha e armas».

A este propósito, importa, todavia, advertir que, como reconhece o acórdão recorrido – onde afirma que «a defesa da ordem jurídica, a necessidade da pena, há que ter em conta a frequência destes crimes (na área desta comarca de Lisboa) e a gravidade das suas consequências», devendo, contudo, respeitar-se o «princípio da igualdade», que «há-de impedir que tanto por razões conjunturais (frequência dos crimes, alarme social) se esgrima a prevenção geral para elevar a pena de algum ou alguns indivíduos mais que a de outros» –, e que, como anteriormente se explicitou, estando a finalidade de prevenção geral delimitada pelo bem jurídico violado (artigo 40.º do Código Penal), esta referência ao bem jurídico conforma uma exigência de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto, constitucionalmente imposta, pelo que há-de ser a gravidade do facto, aferida pelo concurso das circunstâncias relevantes do artigo 71.º do Código Penal, que, a final, dentro dos limites mínimo e máximo das penas, servirá para definir os limites das necessidades de prevenção (como salienta Anabela M. Rodrigues, ob. cit., p. 369). Estando a finalidade de prevenção inscrita na gravidade da moldura da pena, «do que se trata agora é de determinar as exigências de prevenção que ressaltam no caso sub judice, no complexo da sua forma de execução, da sua específica motivação, das consequências que dele resultam, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.» (Figueiredo Dias, ob. cit. p. 241). Isto sem prejuízo de, «nas consequências não culposas do facto» [artigo 71.º, n.º 2, al. a)] se poderem incluir «considerações relativas à frequência de crimes de certo tipo ou gravidade», nomeadamente «pela insegurança geral causada por uma série de crimes particularmente graves», que poderão relevar pela via da prevenção geral positiva «com a consequente necessidade acrescida de tutela dos bens jurídicos e de preservação das expectativas comunitárias» (Anabela M. Rodrigues, ob. cit. p. 675, citando Figueiredo Dias, ob. cit. p. 241)).

Nesta base, atenta a matéria de facto provada e dela não se mostrando estar em causa uma situação de particular insegurança ou de «alarme social» resultante de uma série de crimes particularmente graves, em que se deva inscrever o crime praticado pelo arguido, não se encontra fundamento para se conferir especial relevância de agravação à necessidade de prevenção geral acrescida, para além do que deve ser considerado enquanto critério geral.

37. Considerou também o acórdão recorrido que «o grau de ilicitude é elevado e revela um desvalor da ação acentuado pelo bem jurídico (vida humana) em causa», «acentuando a ilicitude o meio utilizado para concretizar a agressão (faca com uma lâmina de 19 cm de comprimento e uma largura espetada nas costas de FF, nas circunstâncias apuradas e acima)», que «o modo de execução do crime foi algo gravoso» e que «as consequências do crime foram graves conduzindo à morte FF, mas já fazem parte do “tipo”».

Estando provado que a morte da vítima resultou das lesões provocadas por um único golpe que perfurou as costas da vítima atingindo o coração – facto que, embora não descrito, como devia, na descrição da matéria de facto de facto provada, se extrai da fundamentação, em que se diz que «o arguido AA avançou para a FF com a mencionada faca, tendo FF encetado a fuga, durante alguns metros, momento em que gritou “com faca não, com faca não”, vindo a ser atingido, nas costas, com um golpe, pela faca, desferida pelo arguido AA, de modo profundo, provocando-lhe as lesões descritas no relatório de autópsia, que foram causa direta e necessária da sua morte» (supra, 25) –, não poderá conferir-se particular valor de agravação ao modo de execução do crime e às suas consequências. Tratando-se de um crime de resultado e de execução livre e não se vendo que a forma de execução e o instrumento utilizado tenham excedido o necessário a produzir o resultado, o que se reconduz ao preenchimento dos elementos objectivos do tipo legal de crime, não se mostra fundado identificar nestas circunstâncias factor de agravação a ponderar nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.

38. Considerou ainda o acórdão recorrido que deve ser considerado «o grau de violação dos deveres impostos ao agente (que são in casu elevados)» e «a intensidade do dolo: [dolo direto (revelando o recorrente um propósito firme, uma vontade persistente de cometer o crime).]» e, que, «por outro lado, a intensidade como tipo da culpa revela que o arguido AA, com a sua conduta desrespeitou o dever-ser jurídico-penal e os sentimentos manifestados no cometimento do crime». Acrescentando que, «sobre este aspeto não se coloca qualquer dúvida de que o arguido AA é merecedor de juízo de censura ético-jurídica em que se fundamenta a culpa, face à prova de que os atos por si praticados foram resultado da sua vontade consciente, ciente da sua proibição e atuando com aquela margem de liberdade que lhe permitiria ter-se determinado de forma diferente».

Não se confundido o «grau de violação dos deveres impostos ao agente», que são deveres relevantes das «particulares relações do agente (com o bem jurídico, a vítima, o objecto da acção etc.) – que, não fazendo parte do tipo (proibição da dupla valoração), todavia devem servir para caracterizar uma culpa agravada» (assim Figueiredo Dias, ob. cit, pp. 247-248), e que, neste caso não se identificam –, com o dever de não cometer o crime, que se esgota na tipicidade, apenas haverá que considerar, como factor de agravação, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 71.º, a modalidade de dolo – dolo directo – com que o arguido actuou.

39. No que diz respeito à prevenção especial, o tribunal «a quo» conferiu relevância à confissão parcial dos factos, «sem particular relevo para a descoberta da verdade», ao facto de, em audiência de julgamento, o arguido «ter propalado estar arrependido» «com um pedido de desculpas», às «suas condições de vida (está familiar, profissional e socialmente inserido)» e aos seus antecedentes criminais «criminais com algum relevo [apesar de ser um jovem com 26 anos de idade, já sofreu várias condenações, sete, no total (excluindo a presente) pela prática de outros crimes, contra o património e por tráfico de estupefacientes, algumas delas de crimes com gravidade (roubos, tráfico de estupefacientes, ofensas corporais), tendo beneficiado sempre de penas não privativas da liberdade ou suspensas na sua execução. No entanto, não veio a aproveitar as oportunidades que lhe foram sucessivamente concedidas, tanto que perpetrou os presentes factos no decurso do prazo de suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenado no proc. nº 221/15.1PQLSB]».

A este propósito, importa levar em conta que as condenações foram, todas elas, por crimes de pequena gravidade – roubos punidos com penas de prisão suspensas, crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e de consumo de estupefacientes punidos com penas de prisão suspensas e de multa, um crime de injúrias e um crime de ofensa á integridade física, punidos com multa –, não tendo qualquer deles relação com o crime deste processo, não devendo, pois, por si só, constituir «índice de uma culpa mais grave».

40. Ressalta que, tendo 24 anos à data da prática do crime, o arguido registava já condenações por nove crimes, em sete processos – o que indicia falta de preparação para manter uma conduta lícita, apesar das advertências formais e solenes inerentes a essas condenações –, que o seu «desenvolvimento ocorreu predominantemente na zona de Alcântara, em Lisboa, numa área geográfica conotada com índices significativos de criminalidade», que «desde idade precoce, sob influência de pares da sua zona residencial, adotou comportamentos desviantes, de vadiagem e de absentismo escolar» (pontos 23 e 24 da matéria de facto), que, após a separação dos pais, apesar de a mãe ter «optado pela mudança da zona de residência no sentido de melhorar as condições habitacionais e inserção da família numa zona mais ordeira, este afastamento não se traduziu num efetiva mudança de comportamentos, uma vez que o arguido mantinha um grupo de referência ligado a consumos de haxixe», que o arguido não investiu na sua formação (teve várias retenções no ensino básico e abandonou um curso de formação – pontos 27 e 28), não teve actividade laboral estruturada e só em 2015 passou a ter trabalho regular no café/bar que explorava no Bairro ... e estabeleceu uma relação afectiva que «contribuiu para a estabilidade emocional do arguido e alteração de comportamentos, adotando um estilo de vida mais saudável e dedicando-se à prática desportiva de futebol» (pontos 29 a 33).

À data dos factos o arguido encontrava-se inserido profissionalmente, sem dificuldades económicas, «conseguindo assegurar a subsistência de ambos com cerca de €2.200,00 líquidos». No estabelecimento prisional «tem revelado atualmente uma atitude consentânea com as regras e normas institucionais, registando um punição por posse de telemóvel datada de 2017» (ponto 39) e tem o apoio da sua companheira (ponto 36). Nessa data «residia em habitação arrendada em zona habitacional sem conotações criminais ou problemáticas sociais», com «o agregado familiar composto por si e pela companheira, sendo a dinâmica familiar estruturada e normativa». Para além disso, «em termos futuros e de forma a afastar-se do Bairro ..., pretende trabalhar numa marisqueira, propriedade da mãe da companheira e que se situa numa zona sem problemáticas sociais ou criminais», «penaliza-se pelos danos causados à vítima e família desta e a nível familiar penaliza-se pelo sofrimento causado à companheira, valorizando o seu apoio» e «mostra-se preocupado com o desfecho do processo, tendo consciência da gravidade dos seus atos e do sofrimento causado à família da vítima» (pontos 37 a 40).

As condições pessoais revelam, assim, a existência de elevadas necessidades de prevenção especial, apesar de se dever notar um percurso positivo muito significativo a partir de 2015, a fazer diminuir significativamente tais necessidades. Todavia, estas circunstâncias, que permitiriam razoavelmente fundar um juízo favorável quanto ao comportamento futuro do arguido, a influenciar positivamente a determinação da pena, não permitem concluir pela confirmação dessas bases, postas em causa pela prática do crime que constitui o objecto deste processo.

41. No que diz respeito às circunstâncias em que o crime foi cometido (supra descritas em 12.a.2.1.) revelam os factos provados que o acto se seguiu a uma confrontação verbal com a vítima, com quem tinha mantido uma relação de amizade, apenas se sabendo que «trocaram algumas palavras sobre o que o arguido andaria a dizer» sobre esta, que, após isso, o arguido voltou ao interior do café e regressou munido de uma faca, que avançou com ela na direcção da vítima, que esta ainda lhe disse «se ele era homem, não precisava disso», que «perante tal avanço, temendo ser agredido com a faca, [a vítima] começou a correr, fugindo do arguido, tendo ainda atirado uma pedra da calçada, que atingiu o arguido no pescoço, numa tentativa de o demover de o perseguir» e que «o arguido AA veio a alcançar FF, quando este fugia dele, e espetou-lhe a faca que trazia na mão nas costas de FF, o qual após apenas deu um ou dois passos e veio a cair inanimado no chão».

Quanto ao dolo, não está provado que o arguido se muniu da faca com a intenção de, com ela, tirar a vida à vítima e que, ao avançar para ela já tinha formado essa intenção, embora tal instrumento tivesse características letais, mas apenas que, ao desferir um golpe profundo na zona torácica da vítima com a faca com que previamente se munira «agiu com intenção concretizada de provocar a morte» desta. Sendo o golpe a «concretização» da intenção, daí não resulta que esta se encontrasse formada desde o momento em que o arguido se muniu da faca. O que, revelando a prática do facto com dolo directo, não permite concluir sobre o tempo de persistência na intenção criminosa.

42. Ao crime praticado corresponde uma pena de 8 a 16 anos de prisão.

Assim, tudo ponderando nos termos dos artigos 40.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º, n.º 2, do Código Penal, mostra-se fundado concluir no sentido de uma intervenção correctiva da pena aplicada, a qual se fixa em 11 (onze) anos de prisão, por, nesta medida, se afigurar adequada e proporcional à gravidade do crime cometido e à realização das finalidades de prevenção visadas pela sua aplicação, de protecção dos bens jurídicos e de reintegração.

Pelo que, deve, pois, o recurso, nesta parte, ser julgado parcialmente procedente.

Quanto a custas

43. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP, que dispõe sobre a responsabilidade do arguido por custas, só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. Não sendo o caso, não há lugar a pagamento.

III. Decisão

44. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar o recurso parcialmente procedente, fixando-se a pena em 11 (onze) anos de prisão.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 26 de Junho de 2019.

Lopes da Mota (relator)
Vinício Ribeiro