Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B4157
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
MORA DO DEVEDOR
CONTRATO DE EXECUÇÃO CONTINUADA OU PERIÓDICA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
MANDATO
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
Nº do Documento: SJ200402260041577
Data do Acordão: 02/26/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 736/03
Data: 06/26/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O direito do credor de resolver o contrato, a que alude o nº 1 do citado artigo 801º do C.Civil, apenas surge com o denominado incumprimento definitivo, que não com o simples atraso ou mora do devedor.
2. A existência de incumprimento definitivo da prestação ou a possibilidade do seu cumprimento no contexto da obrigação (simples mora) são conceitos que hão ser analisados à luz do interesse do credor.
3. Há situações concretas em que o mero retardamento da prestação, porque a inviabiliza no contexto da obrigação assumida, tornando-a impossível porque destituída de interesse para o credor, se traduz, desde logo, em incumprimento definitivo.
4. Estão nesta situação as obrigações derivadas de contratos de execução continuada celebrados intuitu personae ou que pressupõem uma relação de confiança e de colaboração estreita, tal como o de prestação de serviço de acompanhamento e tratamento de pessoa doente e incapacitada de se locomover, em relação aos quais todo o comportamento que afecte gravemente essa relação põe em perigo o próprio fim do contrato, abala o fundamento deste, e pode justificar, por isso, a resolução.
5. Sempre que o contrato celebrado implica uma prestação de serviço, não só pessoal, mas também de natureza permanente não pode deixar de se entender que a simples ausência da pessoa que se encarregou daquele serviço ou a sua substituição por outra, sem o assentimento da outra parte, traduz grave incumprimento contratual que, sem dúvida, justifica a resolução.
6. O incumprimento definitivo ocorre sempre que, independentemente de interpelação, o contraente manifesta, de forma clara e definitiva a sua intenção de não cumprir o contrato (ou de cessar o cumprimento quando se trate de contrato de execução continuada).
7. O mandato pode ser representativo se o mandatário realiza o negócio em nome do mandante e com os necessários poderes de representação, ou sem representação se o mandatário age nomine próprio, embora por conta do mandante.
8. No mandato representativo o negócio jurídico realizado pelo mandatário produz os seus efeitos na esfera jurídica do mandante (arts. 1178º, nº 1 e 258º, do C.Civil), enquanto no mandato sem representação o mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato (art. 1181º, nº 1, do mesmo código).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" intentou, no Tribunal Judicial de Amarante, acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra B e C, peticionando que:

a) a primeira ré seja condenada a entregar-lhe a quantia de 23.000.000$00, que recebeu pela venda do prédio urbano identificado no art. 19° da petição inicial, acrescida de juros legais contados desde a data da venda;

ou, em alternativa,

b) seja a mesma condenada a transferir para a autora a propriedade do prédio indicado no art. 38° da petição inicial, pagando do seu bolso todos os impostos, taxas e demais despesas necessários, incluindo as notariais e registrais, bem como a pagar-lhe a quantia de 3.000.000$00, referida nos artigos 43° a 51° da petição, quantia esta acrescida dos respectivos juros legais, contados desde 23/04/98;

c) se declare resolvido o contrato de prestação de serviços celebrado entre a autora e a 2ª ré e seja condenada esta a reconhecer essa resolução com todas as consequências;

d) ambas as rés sejam solidariamente condenadas a pagar à autora, por danos patrimoniais e não patrimoniais, alegados nos arts. 51° e seguintes da petição, a indemnização no montante que se vier a liquidar em execução de sentença.

Alegou, para tanto, em síntese, que:

- em virtude do seu estado de saúde e do de sua mãe, a autora contratou a 2ª ré para que cuidasse de si e de sua mãe;

- como uma das contrapartidas pelos serviços a prestar por essa ré, a autora comprometeu-se a fazer testamento em favor dela, instituindo-a sua herdeira universal;

- para maior comodidade para a 2ª ré na prestação dos serviços referidos, a autora, aconselhada por esta, decidiu-se a vender a sua casa, onde residia, a fim de que fosse comprada outra casa nas proximidades da residência daquela ré;

- para o efeito, a autora passou à 1ª ré procuração concedendo poderes para vender, nas condições que entendesse, o referido prédio, podendo receber o preço dele e dar a correspondente quitação;

- através da 2ª ré, a autora incumbiu a 1ª ré e esta obrigou-se perante a primeira, a comprar-lhe uma casa nas vizinhanças da 2ª ré.

Contestaram as rés, concluindo pela improcedência da acção, para o que alegaram, no essencial, que:

- a 2ª aceitou cuidar da autora e de sua mãe nos termos referidos mediante remuneração mensal de 150.000$00;

- e prestou, efectivamente, tais serviços à autora no período de Maio de 1997 a Março de 1999, num total de 22 meses, e a autora apenas lhe pagou a remuneração correspondente a um mês;

- a casa onde actualmente vive a autora foi colocada em nome da primeira ré de acordo com a autora e em virtude desta não dispor de meios que lhe possibilitassem pagar a remuneração mensal acordada com a 2ª ré, na prestação de serviços a que esta se obrigou.

Em reconvenção, e para o caso de a acção proceder, pediram que a autora seja condenada a pagar à 2ª ré a importância de 3.270.822$00, acrescida dos juros vincendos, à taxa legal de 7%, calculados sobre a importância de 3.150.000$00, até efectivo e integral pagamento.

Na réplica, impugnou a autora os factos alegados em reconvenção e concluiu como na petição inicial.

Exarado despacho saneador, condensados e instruídos os autos, procedeu-se a julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, após o que foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, nestes termos:

- a 1ª ré foi condenada a transferir para a autora a propriedade do prédio indicado no art. 38° da petição e a pagar-lhe a quantia de € 714,36, acrescida de juros contados desde a citação;

- foi declarado resolvido o contrato de prestação de serviços celebrado entre a autora e a 2ª ré e esta condenada a reconhecer essa resolução;

- foram condenadas ambas as rés a pagar à autora a indemnização por danos não patrimoniais, a liquidar em execução de sentença;

- foram julgados improcedentes o primeiro pedido formulado pela autora e o pedido reconvencional.

Inconformadas apelaram as rés, sem êxito embora, uma vez que o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 26 de Junho de 2003, julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Interpuseram agora as rés recurso de revista, pretendendo a substituição do acórdão recorrido por outro que julgue a acção improcedente.

Contra-alegando sustentou a recorrida a bondade do julgado.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.
As recorrentes findaram as respectivas alegações formulando as conclusões seguintes (e é, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):
1. DA MATÉRIA PROVADA NÃO PODE CONCLUIR-SE, SALVO SEMPRE MELHOR OPINIÃO, QUE HOUVE INCUMPRIMENTO DEFINITIVO DO CONTRATO CELEBRADO ENTRE A RECORRENTE MARIA AUGUSTA E A RECORRIDA.

2. MUITO MENOS QUE, A HAVER TAL INCUMPRIMENTO, O MESMO SE FICOU A DEVER AO COMPORTAMENTO DA RECORRENTE MARIA AUGUSTA.

3. DOS AUTOS NÃO RESULTA PROVADO NEM O INCUMPRIMENTO NEM A CULPA DA 2ª RECORRENTE, NEM A FUTURA FALTA DE INTERESSE, POR PARTE DA RECORRRIDA, NO CUMPRIMENTO DA PRESTAÇÃO.

4. ENTRE A RECORRRIDA E A RECORRENTE B NÃO FOI CELEBRADO OU EXISTIU, DE QUALQUER FORMA, UM CONTRATO DE MANDATO.

Encontra-se definitivamente fixada a seguinte factualidade (que ordenaremos de forma mais conveniente à apreensão da situação em apreço):

i) - a autora padece de doença na coluna cervical que a impede de se locomover por si, encontrando-se paralítica e permanentemente acamada;

ii) - durante muitos anos, a autora foi acompanhada e tratada na sua doença por sua mãe, que lhe confeccionava as refeições, cuidava das suas roupas, tratava da sua higiene pessoal e acompanhava-a nas deslocações para tratamento a hospitais e centros de saúde;

iii) - a mãe da autora encontra-se envelhecida e bastante doente;

iv) - em virtude do seu estado de saúde e do de sua mãe, a autora sentiu necessidade de contratar alguém que cuidasse de si e de sua mãe, para confeccionar as refeições, lavar e cuidar das roupas, tratar da higiene pessoal, fazer a arrumação e asseios diários da casa e as acompanhar nas deslocações para tratamento a hospitais e centros de saúde;

v) - em princípios de 1998, a 2ª ré e a autora acordaram que a primeira cuidaria desta e de sua mãe, assumindo as obrigações descritas em iv);

vi) - como uma das contrapartidas pelos serviços a prestar por ela, a autora comprometeu-se a fazer testamento em favor da 2ª ré, instituindo-a sua herdeira universal;

vii) - antes da celebração do acordo referido, a autora residia, com a sua mãe, na casa de que era proprietária sita no lugar de Santiago, freguesia de Lufrei, Amarante, inscrita na matriz predial sob o art. 524º e descrita na Conservatória do Registo Predial na ficha n° 122/Lufrei;

viii) - para maior comodidade por parte da 2ª ré na prestação dos serviços referidos em iv), a autora, aconselhada pela 2ª ré, decidiu-se a vender a casa atrás identificada a fim de que fosse comprada outra casa nas proximidades da residência da 2ª ré;

ix) - e através da 2ª ré, a autora incumbiu a 1ª ré e esta obrigou-se perante a primeira, a comprar-lhe uma casa nas vizinhanças da 2ª ré;

x) - para o efeito aludido em viii), a autora passou em 29/01/98, à 1ª ré a procuração inclusa a fls. 13 e seguintes dos autos de arresto apensos (cujo teor se dá por reproduzido) declarando, além do mais, que concede poderes para vender pelo preço, condições e cláusulas que entender o prédio urbano sito na Freguesia de Lufrei, deste Concelho de Amarante, inscrito na matriz sob o art. 524º, podendo receber o preço dele e dar a correspondente quitação, outorgar e assinar a respectiva escritura nas condições que entender;

xi) - porque houve necessidade de proceder a alterações ao teor da inscrição matricial e proceder ao registo de tais alterações, a autora passou nova procuração à 1ª ré, inclusa a fls. 15 dos autos de arresto apensos (cujo teor se dá por reproduzido).

xii) - no uso dos poderes que lhe foram conferidos, a 1ª ré declarou vender a D e mulher E, que declararam aceitar a venda, o prédio indicado em vii), nos termos que constam do documento incluso a fls. 17 e seguintes dos autos de arresto apensos (cujo teor se dá por reproduzido);

xiii) - como contrapartida dessa venda, a 1ª ré recebeu dos compradores a quantia de 23.000.000$00;

xiv) - a 1ª ré não entregou a referida quantia à autora;

xv) - por escritura com data de 29/05/98, nos termos que constam da certidão inclusa a fls. 23 e seguintes da providência cautelar, as várias pessoas ali identificadas como primeira e segunda outorgantes declararam vender à 1ª ré, que declarou aceitar o contrato, em seu próprio nome e para si, o lote de terreno sito no lugar de Devesa ou Casa Nova, Freguesia de S. Gonçalo, e benfeitorias nela implantadas;

xvi) - a 1ª ré fez registar definitivamente a seu favor a referida aquisição na Conservatória do Registo Predial de Amarante, como resulta da certidão inclusa a fls. 28 e seguintes da providência cautelar;

xvii) - pela referida aquisição, a 1ª ré entregou aos vendedores a quantia de 16.000.000$00;

xviii) - a 1ª ré pagou pelos acabamentos da casa a quantia de 4.000.000$00, correspondente a parte do preço recebido pela venda da casa de Lufrei;

xix) - as rés não entregaram à autora a escritura de compra e venda, como ela lhes pediu;

xx) - a casa foi paga com dinheiro que a primeira ré recebeu proveniente da venda da casa de Lufrei, que era propriedade da autora;

xxi) - as rés, por incumbência da autora, e com dinheiro desta, pagaram à imobiliária que mediou na venda da casa de Lufrei, a título de comissões, a quantia de 724.000$00;

xxii) - as rés, por incumbência da autora, e com dinheiro desta, pagaram o imposto de sisa devido pela aquisição do lote de terreno, no montante de 800.000$00 (conforme documento cuja junção se ordenou);

xxiii) - as rés, com dinheiro da autora, procederam ao pagamento das seguintes quantias: 103.310$00, a título de emolumentos, com a escritura pública de aquisição desse lote; 49.970$00 no registo e posteriores averbamentos; 19.773$00 na contratação de fornecimento de água no mesmo prédio; 18.861$00 na contratação do fornecimento de água ao mesmo prédio; 657.500$00 no equipamento da cozinha desse prédio; 47.500$00 de cortinas e seus varões de suporte; 12.670$00 de candeeiros de tecto; 351.000$00 numa cama articulada; 46.200$00 em gás para abastecimento do prédio; 26.000$00 de transportes de materiais e na limpeza do prédio;

xxiv) - todas as despesas foram feitas mediante orçamento prévio, dos quais a 1ª ré dava conhecimento à autora, que sempre os aprovou;

xxv) - em finais de Novembro de 1998, a autora e a sua mãe mudaram-se para a casa sita, perto da 2ª ré, no lugar de Devesa ou Casa Nova, onde passaram a residir em permanência;

xxvi) - a 2ª ré acompanhou a autora e sua mãe a França e aí permaneceu com elas entre o dia 15/05/99 e o dia 03/07/99, com interregno de um fim de semana no início de Junho;

xxvii) - em Julho de 1999 a 2ª ré esteve doente;

xxiii) - a autora e a 2ª ré combinaram que esta em Agosto não lhe prestaria os habituais cuidados, porque tinha de acompanhar os três filhos daquela, sendo substituída por uma terceira pessoa, com o acordo da autora e pela 1ª ré, o que fizeram;

xxix) - em Julho e Agosto de 1999, a 2ª ré não prestou à autora os serviços a que se obrigara, referidos em iv);

xxx) - nos meses de Setembro, Outubro e primeiros 15 dias do mês de Novembro, a 2ª ré não prestou à autora os serviços a que se obrigara e referidos em iv), deixando de os prestar definitivamente a partir de 12 de Fevereiro de 2000.

xxxi) - durante os meses de Setembro, Outubro e parte do mês de Novembro de 1999, a 2ª ré enviou para tratar da autora e de sua mãe uma outra pessoa, sem o consentimento da primeira, dizendo a essa pessoa que a autora lhe devia pagar a importância de 70.000$00 por mês;

xxxii) - as rés actuaram, de comum acordo, com intenção de enganar a autora e enriquecer-se à custa dela;

xxxiii) - em consequência da actuação das rés a autora sentiu inquietação e receio de vir a perder todos os seus bens de um momento para outro, ficando impossibilitada de acorrer às suas despesas com cuidados de saúde;

xxxiv) - sentiu e ainda sente sofrimento e dor, por isso;

xxxv) - é a autora e só a autora quem vem habitando a casa sita no lugar de Devesa ou Casa Nova.

Importa averiguar, no âmbito do recurso (as mesmas questões foram já suscitadas na apelação, tendo sido desatendida a pretensão das recorrentes de as ver decididas no sentido por elas propugnado) apenas se:

I. Não houve incumprimento definitivo do contrato de prestação de serviço celebrado entre a autora e a recorrente C nem, ainda que o contrário se entendesse, ficou tal incumprimento a dever-se a culpa daquela recorrente (não resulta provado nos autos nem o incumprimento nem a culpa da recorrente nem a futura falta de interesse por parte da recorrida no cumprimento da prestação).

II. Entre a recorrida e a recorrente B não foi celebrado nem existiu qualquer contrato de mandato.

O contrato de prestação de serviço (assim foi qualificado sem oposição o acordo celebrado entre a autora e a ré C), cuja noção é dada pelo art. 1154º do C.Civil , "é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição".

Trata-se, nos casos em que é retribuído, de um contrato bilateral, de que emergem para ambas as partes obrigações sinalagmáticas ou recíprocas que se traduzem, de um lado, na obrigação de proporcionar o resultado, e do outro na obrigação de pagar a remuneração convencionada.

É também, nos casos como o presente, em que a prestação do serviço se prolonga no tempo, um contrato de execução continuada.

Dispõe, quanto ao incumprimento das obrigações, o art. 801º que "tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, fica este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação" (nº 1). E, nesse caso, "tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, tem o direito de resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro" (nº 2).

É claro - não ocorre nos autos divergência acerca deste aspecto - que o direito do credor de resolver o contrato, a que alude o nº 1 do citado art. 801º, apenas surge com o denominado incumprimento definitivo, que não com o simples atraso ou mora do devedor. (2)

Impõe-se, pois, e antes de mais, determinar se a recorrente C incumpriu definitivamente o contrato que celebrou com a autora ou se o seu comportamento contratual apenas tipifica uma situação de mora debitoris, que acontece quando "por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido" (art. 804º, nº 2).

Esclarece-se que a tónica da distinção incide na possibilidade ou impossibilidade, vista à luz do interesse do credor, de cumprir. Assim, podemos considerar que existe simples retardamento ou mora quando a prestação, ainda possível no contexto da obrigação, não foi feita no tempo devido; em contrapartida, verifica-se a impossibilidade de cumprimento ou incumprimento definitivo quando a prestação, não tendo sido efectuada, já não é possível no contexto da obrigação. (3)

Na situação sub judice, e quanto a esta questão, demonstrou-se, essencialmente, que em Julho e Agosto de 1999, a 2ª ré não prestou à autora os serviços a que se obrigara, que nos meses de Setembro, Outubro e primeiros 15 dias do mês de Novembro, a 2ª ré não prestou à autora tais serviços, deixando de os prestar definitivamente a partir de 12 de Fevereiro de 2000.

Sem embargo de ter antes acompanhado a autora e sua mãe a França aí permanecendo com elas entre o dia 15/05/99 e o dia 03/07/99, com interregno de um fim de semana no início de Junho, de ter estado doente em Julho de 1999, de haver combinado com a autora que em Agosto não lhe prestaria os habituais cuidados, porque tinha de acompanhar os três filhos daquela, sendo substituída por uma terceira pessoa, com o acordo da autora e pela 1ª ré, o que fizeram, e de, por último, durante os meses de Setembro, Outubro e parte do mês de Novembro ter enviado para tratar da autora e de sua mãe uma outra pessoa, sem o consentimento da primeira, dizendo a essa pessoa que a autora lhe devia pagar a importância de 70.000$00 por mês.

Como acima deixámos apontado, a existência de incumprimento definitivo da prestação ou a possibilidade do seu cumprimento no contexto da obrigação (simples mora) são conceitos que hão ser analisados à luz do interesse do credor. Na verdade, "o interesse do credor é determinante na manutenção da obrigação cujo cumprimento foi retardado. Quando o credor, pelo atraso, perca o interesse que tinha na prestação, considera-se esta como impossibilitada - art. 792º, nº 2 - seguindo-se o regime do incumprimento definitivo - art. 808º, nº 1". (4).

Verifica-se, deste modo, a existência de situações concretas em que o mero retardamento da prestação, porque a inviabiliza no contexto da obrigação assumida, tornando-a impossível porque sem interesse para o credor, se traduz, desde logo, em incumprimento definitivo. (5) Também, neste particular aspecto, "temos de considerar as obrigações derivadas de contratos de execução continuada celebrados intuitu personae ou que pressupõem uma relação de confiança e de colaboração estreita, ou pressupõem certas qualidades de honorabilidade, confidencialidade, etc., que são fundamentais para a consecução da finalidade contratual" pelos quais se "constitui uma relação de confiança recíproca e de colaboração, em que muito contam as qualidades pessoais dos contratantes e porventura até as suas relações sociais e a sua solidez financeira". É que "destes contratos surge uma obrigação de conteúdo mais amplo: uma abstenção de qualquer comportamento que faça desaparecer aquela relação de confiança, um dever genérico de correcção, lealdade e boa fé, dado o carácter de meio indispensável à consecução do fim do contrato, a que podemos conferir o valor de uma obrigação principal". (6)

Nestes contratos (tal como o especial de prestação de serviços de prestações profissionais como as do médico, do advogado ou do que acompanha e trata de pessoa doente e incapacitada de se locomover) "todo o comportamento que afecte gravemente essa relação põe em perigo o próprio fim do contrato, abala o fundamento deste, e pode justificar, por isso, a resolução". (7)

Doutro passo, sempre que o contrato celebrado implica uma prestação de serviço, não só pessoal, mas também de natureza permanente (que acontece, designadamente, quando alguém, como a autora, padece de doença que a impede de se locomover por si, encontrando-se paralítica e permanentemente acamada, vive com a mãe que se encontra envelhecida e bastante doente, tem necessidade de contratar uma pessoa que cuide de si e de sua mãe, para confeccionar as refeições, lavar e cuidar das roupas, tratar da higiene pessoal, fazer a arrumação e asseios diários da casa e as acompanhar nas deslocações para tratamento a hospitais e centros de saúde) não pode deixar de se entender que a simples ausência da pessoa que se encarregou daquele serviço ou a sua substituição por outra, sem o assentimento da outra parte, traduz grave incumprimento contratual que, sem dúvida, conduz à quebra da confiança nela inicialmente depositada e coloca as pessoas necessitadas de acompanhamento na angustiante incerteza do futuro.
Por isso, na medida em que (e não vamos atender às situações ocorridas em Julho de 1999 - em que a ré esteve doente - nem em Agosto imediato - dado que houve acordo na substituição, aliás justificada, da recorrente) em Setembro, Outubro e parte do mês de Novembro a 2ª ré enviou para tratar da autora e de sua mãe uma outra pessoa, sem o consentimento da primeira, dizendo a essa pessoa que a autora lhe devia pagar a importância de 70.000$00 por mês, e, a partir de 12 Fevereiro de 2000, deixou de prestar definitivamente o serviço, incumpriu aquela ré o contrato, de forma grave e com imprevisíveis consequências para a autora e sua mãe, justificando perfeitamente que a autora haja perdido a confiança que tinha e o interesse na continuação da prestação por ela do serviço que vinha prestando, conferindo-lhe, por isso, o direito de resolver o contrato.

Ademais, temos como certo que o incumprimento definitivo ocorre sempre que, independentemente de interpelação, o contraente manifesta, de forma clara e definitiva a sua intenção de não cumprir o contrato (ou de cessar o cumprimento quando se trate de contrato de execução continuada). (8)

Havendo, indubitavelmente, que enquadrar nesta situação de recusa peremptória de cumprir por parte da ré o facto de, a partir de 12 de Fevereiro, não obstante saber da diária necessidade que a autora tinha da sua prestação, haver deixado definitivamente de prestar os serviços de que fora incumbida e cuja prestação assumira.

É, assim, evidente que o contrato de prestação de serviço podia ser resolvido pela autora, posto que, como seria também fundamento dessa resolução, o incumprimento tenha sido imputável à ré C, isto é, se tenha devido a culpa dela.

Ora, pese embora a argumentação da recorrente, no âmbito do incumprimento das obrigações presume-se a culpa do devedor: é o que se infere do art. 799º, nº 1, que estabelece que "incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua".

Desta forma, não teria a autora que alegar quaisquer factos conducentes à prova da culpa dessa recorrente, antes teria ela que demonstrar que não agiu com culpa.

O que manifestamente não fez.

Improcede, em consequência, neste aspecto, a pretensão das recorrentes.

Também no que respeita à segunda questão suscitada, não têm as recorrentes, a nosso ver, qualquer razão.

O contrato de mandato é aquele "pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra" (art. 1157º).

"No mandato há, pois, uma pessoa, o mandante, que encarrega outra, o mandatário, de realizar determinado acto no interesse e por conta do primeiro; procura-se, assim, fazer realizar, por intermédio de outrem os actos que ao próprio interessado não convém efectuar pessoalmente", em correspondência com "a ideia de alguém confiar a outrem a realização de um acto". (9)

Sendo certo que "se o mandatário realiza o negócio em nome do mandante e com os necessários poderes de representação, diz-se que o mandato é representativo: o mandatário actua como representante do mandante. Se, porém, o mandatário age nomine proprio, o mandato não é acompanhado de representação". (10)

Não obstante, não apenas no mandato representativo o negócio jurídico realizado pelo mandatário produz os seus efeitos na esfera jurídica do mandante (arts. 1178º, nº 1 e 258º), como também no mandato sem representação "o mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato" (art. 1181º, nº 1).

In casu, é óbvio que a autora celebrou com a ré B um contrato de mandato, conferindo-lhe poderes de representação, quando a incumbiu de vender a casa sita no lugar de Santiago, freguesia de Lufrei, Amarante, inscrita na matriz predial sob o art. 524º e descrita na Conservatória do Registo Predial na ficha n° 122/Lufrei, já que passou, para o efeito, procuração concedendo-lhe poderes para, além do mais, vender pelo preço, condições e cláusulas que entender o prédio urbano sito na Freguesia de Lufrei, deste Concelho de Amarante, inscrito na matriz sob o art. 524º, podendo receber o preço dele e dar a correspondente quitação, outorgar e assinar a respectiva escritura nas condições que entender.

Mas também resulta evidente, face à prova constante dos autos, que relativamente à aquisição do terreno e acabamento da casa sita nas proximidades da residência da ré C, celebrou com a mesma B um contrato de mandato sem representação.

Conclusão que - apesar do entendimento contrário das recorrentes - não pode deixar de se extrair do seguinte: a) para maior comodidade por parte da 2ª ré na prestação dos serviços que lhe prestava, a autora, aconselhada pela 2ª ré, decidiu-se a vender a casa atrás identificada a fim de que fosse comprada outra casa nas proximidades da residência da 2ª ré; b) através da 2ª ré, a autora incumbiu a 1ª ré e esta obrigou-se perante a primeira, a comprar-lhe uma casa nas vizinhanças da 2ª ré; c) por escritura de 29/05/98, as várias pessoas ali identificadas como primeira e segunda outorgantes declararam vender à 1ª ré, que declarou aceitar o contrato, em seu próprio nome e para si, o lote de terreno sito no lugar de Devesa ou Casa Nova, Freguesia de S. Gonçalo, e benfeitorias nela implantadas; d) a 1ª ré, que entregou aos vendedores 16.000.000$00, fez registar definitivamente a seu favor a referida aquisição na Conservatória do Registo Predial de Amarante; e) a 1ª ré pagou pelos acabamentos da casa a quantia de 4.000.000$00, correspondente a parte do preço recebido pela venda da casa de Lufrei; f) a casa foi paga com dinheiro que a primeira ré recebeu proveniente da venda da casa de Lufrei, que era propriedade da autora; g) as rés, por incumbência da autora, e com dinheiro desta, pagaram à imobiliária que mediou na venda da casa de Lufrei, a título de comissões, a quantia de 724.000$00, pagaram o imposto de sisa devido pela aquisição do lote de terreno, no montante de 800.000$00, procederam ao pagamento das quantias de 103.310$00, a título de emolumentos, com a escritura pública de aquisição desse lote, de 49.970$00 no registo e posteriores averbamentos, de 19.773$00 na contratação de fornecimento de água no mesmo prédio, de 18.861$00 na contratação do fornecimento de água ao mesmo prédio, de 657.500$00 no equipamento da cozinha desse prédio, de 47.500$00 de cortinas e seus varões de suporte, de 12.670$00 de candeeiros de tecto, de 351.000$00 numa cama articulada, de 46.200$00 em gás para abastecimento do prédio, e de 26.000$00 de transportes de materiais e na limpeza do prédio; h) todas as despesas foram feitas mediante orçamento prévio, dos quais a 1ª ré dava conhecimento à autora, que sempre os aprovou; i) em finais de Novembro de 1998 a autora e sua mãe mudaram-se para a casa sita, perto da 2ª ré, no lugar de Devesa ou Casa Nova, onde passaram a residir em permanência; j) é a autora e só a autora quem vem habitando a casa sita no lugar de Devesa ou Casa Nova.

Perante este circunstancialismo - e não é despiciendo o facto de, com a sua actuação, as rés terem agido de comum acordo com intenção de enganar a autora e enriquecer-se à custa dela - surge inevitável a conclusão de que conscientemente a ré B previu e quis a celebração de mandato não representativo, até como forma de ocultar a sua qualidade de mandatária, embora não tivesse conseguido obter o seu desiderato (que também era o da 2ª ré).

Em consequência, tendo adquirido a casa em que a autora reside em execução do mandato sem representação que, como vimos, com esta celebrou, estava obrigada aquela ré a transferir para a autora, tal como se decidiu no acórdão recorrido, o que, na referida qualidade, adquiriu (art. 1181º, nº 1).

Pelo exposto, decide-se:
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pelas rés B e C;
b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;
c) - condenar as recorrentes nas custas da revista.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2004
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
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(1) Diploma a que pertencem as disposições adiante mencionadas sem outra referência.
(2) Cfr. Brandão Proença, in "A Resolução do Contrato no Direito Civil", Coimbra, 1996, pag. 109.
(3) Cfr. Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. II, 4ª edição, Coimbra, 1990, pag. 61.
(4) Menezes Cordeiro, in "Direito das Obrigações", 2º volume, Lisboa, 1990, pag. 444.
(5) Podem apontar-se os clássicos exemplos da entrega de um veículo, adquirido para o comprador participar em determinada prova automobilística, depois da realização da prova, ou da apresentação de um banquete encomendado para um casamento em dia posterior à sua realização.
(6) Baptista Machado, "Pressupostos da Resolução por Incumprimento", in Obras Dispersas, vol. I, Braga, 1991, pags. 140 e 141.
(7) Ibidem, pag. 141.
(8) Galvão Telles, in "Direito das Obrigações", 6ª edição, Coimbra, 1989, pag. 248. Acs. STJ de 24/10/95, in CJSTJ Ano III, 3, pag. 78 (relator Martins da Costa); de 15/12/98, in BMJ nº 482, pag. 243 (relator Costa Marques); de 26/10/99, no Proc. 711/99 da 1ª secção (relator Ferreira Ramos); e de 04/12/2003, no Proc. 3968/03 da 7ª secção (relator Salvador da Costa).
(9) Pessoa Jorge, in "O Mandato sem Representação", Lisboa, 1961, pags. 19 e 17.
(10) Ibidem, pag. 20.