Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1118/09.0TBCHV,G1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: NULIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ABUSO DO DIREITO
BALDIOS
Data do Acordão: 05/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITOS REAIS / BALDIOS.
Doutrina:
- A. Varela, in R.L.J., ano 114, 75.
- Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 73-74.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo IV, 349, 373.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, vol. I, 3.ª Edição, 296; Vol. I, 4.ª ed., 300.
- Tatiana Guerra de Almeida, Comentário ao Código Civil – Parte geral, 789.
- Vaz Serra, B.M.J., n.º 85, 253.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 289.º, N.º1, 334.º, 762.º, N.º 2, 1308.º, 1310.º.
CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES (CEXP): - ARTIGO 23.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, AL. D).
D.L. N.º 68/93, DE 04-09: - ARTIGOS. 4.º, N.º 1, 29.º, 31.º, N.º 1, A CONTRARIO, E N.º4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

-DE 12/10/2010, IN WWW.DGSI.PT/JTRG .

-*-

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 21/09/1993, IN C.J., ACS. S.T.J., ANO I, TOMO III - 1993, 21.
-DE 22/11/1994, IN C. J., ACS. DO S.T.J., ANO II, TOMO 111-1994, 158.
-DE 11/01/2011, PROC. 801/06.6TYVNG.P1.S1, 1.ª SEC., EM WWW.DGSI.PT
-DE 15/04/2015, EM WWW.DGSI.PT
-DE 19/01/2016, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Se o acórdão recorrido conheceu das questões suscitadas na apelação – embora remetendo para a motivação da sentença e sem explicitar, formalmente, a improcedência dessa apelação –, não incorre em nulidade, por omissão de pronúncia – art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

II - O abuso do direito é um meio pelo qual se visa evitar que, no exercício de um qualquer direito (faculdade ou poder legal), sejam intoleravelmente ultrapassados os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; traduz-se na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido.

III - Afronta, de forma flagrante, o princípio da boa fé e o fim social e económico do direito (de uso e fruição comunitária), a pretensão do autor – representante de assembleia de compartes dos baldios de V –, de, em decorrência do reconhecimento da nulidade do contrato-promessa celebrado de alienação gratuita do mesmo terreno (art. 4.º, n.º 1, e 31.º, n.º 1, a contrario, do DL n.º 68/93, de 04-09), ver restituída a parcela de terreno ocupada pela sociedade ré – concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e saneamento –, acarretando a destruição de obra de indiscutível interesse público (saneamento e abastecimento de água) e de custo avultado, concluída em momento posterior ao da constituição dos órgãos de gestão e administração dos baldios, à vista de toda a gente; circunstancialismo em que perde relevo o prejuízo ao mesmo imposto, pela reduzida extensão da ocupação, pela extensa área remanescente e tendo em conta a utilização que as populações fazem dos terrenos baldios, caracterizada por actividades tradicionais, notoriamente em franco declínio (roçar mato, apanha de lenha, pastoreio).

IV - O caso revela também uma situação de desequilíbrio ou desproporção no exercício do direito, em que há uma “desconexão” entre as situações sociais típicas prefiguradas pelas normas jurídicas que atribuem direitos e o resultado prático desses direitos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

O CONSELHO DIRECTIVO DOS BALDIOS DE AA, por si e em representação da Assembleia de Compartes dos Baldios de AA, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma ordinária, contra ÁGUAS DE BB, SA (actualmente Águas do CC, SA).

Pediu que se declare que o prédio inscrito na matriz predial de … sob o art. …571, identificado no art. 12º da p.i., é baldio e que a parcela onde a ré construiu depósitos de água faz parte integrante de tal prédio, e que se condene a ré a entregar-lhe tal prédio, livre e devoluto, bem como a demolir as obras ali realizadas e a remover os escombros de tal demolição, deixando o dito prédio no seu estado anterior, bem como a abster-se de praticar sobre o mesmo prédio quaisquer actos de posse.

Como fundamento, alegou que o prédio denominado DD, descrito em 12º da p.i., é baldio, tendo, não obstante, a ré nele construído dois depósitos em betão armado, para armazenamento de água, ocupando uma área de 1.600 m2, sem qualquer título válido para tal.

A ré contestou, alegando que a ocupação e construção no terreno em causa, que reconhece, se deveu a acto de Junta de Freguesia de …, a qual lhe cedeu a dita parcela de terreno para realização das obras em causa, inseridas no plano de abastecimento público de água potável, e que tal cedência foi formalizada através de contrato-promessa de cedência de terrenos baldios para instalação e equipamentos de interesse público, acto esse que foi praticado em momento anterior à constituição da Assembleia de Compartes aqui autora, pelo que legalmente válido, pugnando pela improcedência da acção.

A autora replicou.

Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente nestes termos:

A) Declaro que o prédio inscrito na matriz predial de … sob o art. …571, identificado em B) dos factos dados como provados nesta decisão, é baldio, e que pertence aos compartes de …;

B) Declaro que a parcela onde a ré construiu os depósitos de água referidos em 13) dos factos dados como provados nesta decisão faz parte integrante de tal prédio;

C) Absolvo a ré dos demais pedidos contra ela formulados pela autora nos presentes autos. (…)

Discordando desta decisão, dela interpuseram recurso o autor e a ré, tendo a Relação decidido:

Por isso e nos termos expostos, concede-se provimento ao recurso da A. e em consequência:

A) Declara-se que o prédio inscrito na matriz predial de … sob o art. …571, identificado em B) dos factos dados como provados nesta decisão, é baldio, e que pertence aos compartes de AA;

B) Declara-se que a parcela onde a ré construiu os depósitos de água referidos em 13) dos factos dados como provados nesta decisão faz parte integrante de tal prédio;

C) Condena-se a ré BB a entregar à A. tal prédio, livre e devoluto, bem como a demolir as obras ali realizadas e a remover os escombros de tal demolição, deixando o dito prédio no seu estado anterior, bem como a abster-se de praticar sobre o mesmo prédio quaisquer actos de posse.

Custas da apelação pela apelante BB.

Inconformada, a ré vem agora pedir revista, tendo apresentado as seguintes conclusões:

1. A apreciação do recurso interposto pela Ré não se encontra minimamente individualizada, nem a final se conclui nada relativamente ao mesmo, pelo que se argui a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia.

2. O negócio referido em D) dos factos provados foi celebrado antes de ter sido constituída a Assembleia de Compartes de AA, pela Junta de Freguesia respetiva, pelo que do ponto de vista da entidade administrante, em situação de inteira legalidade

3. Autora e Ré são os titulares dos direitos e obrigações emergentes do contrato promessa de doação em causa nestes autos. A autora é a promitente doadora e a ré a promitente donatária.

4. Uma entidade que celebra com outra um contrato-promessa de doação de um terreno, na sequência do qual são construídos no mesmo dois reservatórios de água que ocupam 1600 m2 e que, cinco anos mais tarde, vem exigir a restituição do terreno e a demolição dos ditos reservatórios atua com abuso de direito nas modalidade de venire contra factum propium, suppressio, tu quoque e desequilíbrio.

5. Violou, assim, a decisão recorrida os arts. 615º nº 1 d) do CPCivil e 334º do CCivil.

Termos em que deve à revista ser dado provimento, revogando-se a decisão recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia;

- Se a pretensão do autor, de ver restituído o imóvel ocupado pela ré, constitui abuso do direito.

III.

No acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes factos:

A) No dia 16 de Outubro de 2004 foi constituída a Assembleia de Compartes, Conselho Directivo e Comissão de Fiscalização dos AA.

B) O prédio rústico denominado "CC", sito na freguesia de …, concelho de …, composto de terra de mato com a superfície de 8 900 m2, a confrontar do norte e do poente com EE, do sul com FF e do nascente com caminho público encontra-se inscrito, desde 1957, na matriz predial rústica sob o artigo …571, inscrição essa feita a favor da Junta de Freguesia de ….

C) Através de escritura pública de justificação notarial, outorgada no Cartório Notarial de … no dia 22 de Abril de 1999, GG, HH, II, na qualidade, respectivamente, de presidente, secretário e tesoureiro da Junta de Freguesia de …, declararam que a sua representada é dona e legitima possuidora, com exclusão de outrem, dos trinta e três prédios (em que se inclui o referido artigo …571) devidamente identificados no documento complementar elaborado nos termos do nº 2 do artigo 64° do Código do Notariado que fica a fazer parte integrante desta escritura, acrescentando que nenhum dos prédios se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial competente, estão todos inscritos na matriz respectiva da dita freguesia de …, em nome da sua representada. Mais declararam que a posse da Junta de Freguesia de …, se vem exercendo desde tempos imemoriais, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, deles cuidando e usufruindo como o faz um verdadeiro proprietário e que, dado o modo de aquisição, - a usucapião -, não tem a sua representada outro meio extrajudicial de comprovar aquele direito. Foram testemunhas desse acto JJ, KK e LL.

D) Através de escrito particular denominado "Contrato Promessa de Cedência de Terrenos Baldios", outorgado em 19 de Maio de 2004, a Junta de Freguesia de …, em representação das comunidades locais, como entidade responsável pelos baldios paroquiais e demais terrenos sob a sua administração, declarou que administra os terrenos baldios sitos em …, freguesia de …, concelho de …, dos quais faz parte integrante o prédio rústico com a área de 8900m2 inscrito na matriz sob o artigo …571 da referida freguesia e prometeu ceder, a título gratuito, à empresa "Águas de BB, S.A." a parcela de terreno com a área de 1683m2, destinada à implantação do reservatório R6A integrado no "Projecto dos Subsistemas de Abastecimento de Água do MM", autorizando, em consequência, a referida empresa a tomar posse da referida parcela, consentindo a construção e a abertura de acessos e caminhos até ao local dos equipamentos, em localização a definir, autorizando igualmente a instalação provisória de estaleiro, maquinaria e equipamento destinado à obra e comprometendo-se a celebrar a escritura de doação. Esse acordo obteve a deliberação favorável da freguesia, conforme documentos que constam a fls. 54 a 62 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

Da base instrutória

1) O Conselho Directivo dos Baldios de AA, por meio de reunião de 25 de Março de 2009, verificou e deliberou por unanimidade dos seus membros o seguinte: "Verificaram os membros do Conselho Directivo que o prédio rústico sito no lugar da BB, composto de mato com a superfície de 8900 m2, a confrontar pelo norte e poente com EE, do sul com FF e do nascente com caminho público, inscrito na matriz predial sob o artigo …571 vem sendo objecto de apropriação particular por parte da Junta de Freguesia de …, que para o efeito outorgou escritura de Justificação Notarial no Cartório Notarial de … no dia 22 de Abril de 1999. Por meio dessa escritura a Junta de Freguesia ignorou a natureza de baldio do referido prédio, considerando-o de sua propriedade privada, invocando para o efeito os actos de posse ali consignados. Em virtude desta apropriação e cedência de uma faixa de terreno à empresa Águas de BB, S.A. deliberou este Conselho Directivo propor em tribunal uma acção judicial com o objectivo, além do mais, de anular a escritura de Justificação Notarial e a reivindicação do prédio inscrito sob o artigo …571. Mais foi deliberado que antes do recurso à via judicial sejam enviadas à Junta de Freguesia cartas a comunicar a constituição da Assembleia de Compartes e Conselho Directivo dos Baldios de AA e bem assim que o Baldio do NN com o artigo matricial …571 passará a ser administrado por este Conselho Directivo".

2) O Conselho Directivo dos Baldios de AA, em reunião de 30 de Agosto de 2009, deliberou o seguinte: "Face à ausência de resposta às cartas que este Conselho Directivo enviou à Junta de Freguesia de … com datas de 02 e 09 de Junho de 2009, verifica-se que não resta outra alternativa que não seja lançar mão de uma acção judicial para repor a legalidade do Baldio do OO ou NN de que a mesma Junta se apropriou. Para o efeito deliberou este Conselho Directivo mandatar para o representar judicialmente os Senhores Drs. PP e QQ, advogados com escritório na cidade de … à Rua …, conferindo-lhes poderes forenses gerais, especiais, para desistir e transigir".

3) No dia 01 de Fevereiro de 2009 realizou-se uma reunião da assembleia de compartes do baldio de RR, na qual estiveram presentes os 86 compartes que constam da lista de fls. 94 a 96 (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido), que aprovaram o recenseamento provisório, elegeram os membros da mesa da assembleia, do conselho directivo e da comissão de fiscalização e foi concedido ao conselho directivo a competência de todas as alíneas do artigo 21.° da Lei dos Baldios nº 68/93, de 09.04, e a administração de três prédios rústicos baldios, encontrando-se as deliberações e assuntos tratados retratados na acta de fls. 29 a 33, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

4) Esta reunião foi convocada através do aviso de fls. 97, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

5) A menção de inscrição referida em B) significa que se trata de um baldio sob administração da Junta de Freguesia, dado nunca ter existido até 16 de Outubro de 2004, Assembleia de Compartes, Conselho Directivo e Comissão de Fiscalização dos Baldios.

6) O prédio referido em B), mercê de um conjunto de cedências ao longo do tempo, do alargamento do caminho público situado a nascente e da abertura de caminhos públicos a norte, sul e poente, tem actualmente uma área de cerca de 5000 m2.

7) Esse prédio teve, ao longo de mais de 50 anos, as seguintes confrontações:

Norte: EE, anterior possuidora do prédio inscrito sob o artigo …555 a favor de SS e TT, anterior possuidora do prédio inscrito sob o artigo …556 a favor de UU;

Sul: FF, anterior possuidora do prédio inscrito sob o artigo …572, que corresponde ao actual artigo …313, inscrito a favor de VV;

Nascente: Caminho público.

Poente: EE, anterior possuidora do prédio inscrito sob o artigo …555 a favor de SS; WW, anterior possuidor do prédio inscrito sob o artigo …568 a favor de XX; YY, anterior possuidora do prédio inscrito sob o artigo …569 a favor de ZZ; e AAA, anterior possuidor do prédio inscrito sob o artigo …570 a favor de BBB.

8) O prédio referido em B) é conhecido entre as populações de … e do … como "Baldio do NN", "Baldio do OO" (esta designação está assim referenciada por haver um marco geodésico nas imediações) e ainda por "Baldio do CCC".

9) Desde há mais de 20, 40, 50 e até mais de 100 anos que os moradores das aldeias do … e de … ali roçaram o mato e as ervas, apanharam agulha dos pinheiros, carqueja, giestas e mato para as suas estrumeiras com que depois fertilizavam as suas terras, ali cortavam lenhas que destinavam ao lume de suas casas, cortavam madeiras e exploravam a resina, para além de destinarem ainda o prédio a apascentar o gado, designadamente, ovinos e caprinos.

10) Pelo mesmo lapso de tempo referido, os moradores do … e … vêm fazendo do Baldio lugar de lazer e de repouso, ali brincando as crianças da escola ao longo de sucessivas gerações, fazendo magustos, geração após geração, ano após ano, década após década, sempre de modo ininterrupto.

11) Por lapso de tempo superior a 100 anos, com o conhecimento de toda a gente da freguesia de …, as suas populações, sem oposição de quem quer que seja e sem serem perturbadas por quem quer que fosse, designadamente pelos proprietários dos prédios confinantes ou pelos vizinhos das aldeias referidas ao longo de todos os anos, ininterruptamente e de forma continuada e permanente exerceram sobre o prédio direitos de propriedade comunitária próprios e exclusivos de todos os moradores das ditas povoações sempre na convicção de não lesarem direitos ou interesses de terceiros.

12) A partir do momento em que foi constituída a Assembleia de Compartes, Conselho Directivo e Comissão de Fiscalização dos Baldios da freguesia de …, os seus membros chamaram a si a sua gestão e administração em que se inclui o dito prédio denominado Baldio do OO, da DDD ou do NN, inscrito na matriz predial sob o artigo …571.

13) Nos anos de 2005/6, numa parcela de terreno sita no referido prédio inscrito na matriz sob o artigo …571, com uma área de cerca de 1 600 m2, parcela essa de forma rectangular, encontrando-se a marginar os caminhos situados a nascente e sul do referido prédio, a co-ré Águas de BB, SA construiu dois depósitos em cimento armado para armazenamento de água.

14) A Assembleia de Compartes dos Baldios de AA não cedeu, nem por qualquer modo alienou essa parcela de terreno.

IV.

1. A recorrente começa por invocar a nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia – art. 615º, nº 1, al. d) do CPC –, por não se ter tomado aí posição sobre o recurso de apelação por ela interposto.

Não tem razão.

Apesar de se reconhecer que o acórdão recorrido poderia ser mais explícito, no que respeita a tal pronúncia e que esta poderia conter mais desenvolvida fundamentação, verifica-se que aí se reafirma – remetendo-se para a motivação da sentença – a nulidade absoluta do contrato-promessa celebrado entre a Junta de Freguesia e a ré, acrescentando-se que este contrato constitui um negócio "inconvertível, nos termos do art. 292º (será 293º) do CC, porque é nulo e de nenhum efeito e porque se trata de um contrato de natureza diferente do qual não consta qualquer preço". Eram estas as questões suscitadas na referida apelação.

Acresce que, no que respeita à nulidade do contrato, o acórdão recorrido foi além do decidido na 1ª instância, na medida em que retirou os efeitos legais dessa nulidade, determinando a restituição do terreno ocupado pela ré (art. 289º, nº 1, do CC).

Decidiu-se, por conseguinte, em sentido contrário ao pretendido pela ré, pelo que a omissão cometida se traduziu apenas na mera falta de explicitação formal da improcedência dessa apelação, improcedência esta que, todavia, decorre substancialmente da decisão contrária proferida e, bem assim, da condenação, note-se, da "apelante BB" nas custas da apelação.

2. A segunda questão suscitada neste recurso parte de um dado que é, aqui, incontroverso, tendo em consideração a decisão (nesse ponto) conforme das instâncias: a nulidade do contrato-promessa celebrado entre a Junta de Freguesia e a ré BB, por se tratar de uma alienação gratuita de um terreno baldio (art. 4º, nº 1 e 31º, nº 1, a contrario, do DL 68/93, de 4/9).

Discute-se, então, se a parcela de terreno ocupada pela ré deve, como efeito do reconhecimento dessa nulidade, ser restituído à comunidade de compartes, titular do domínio, representada pelo autor ou se essa restituição deve ser impedida por traduzir um abuso do direito.

É esta a pretensão recursiva da ré – que se reconheça a existência do abuso do direito do autor – insurgindo-se contra a decisão da Relação, que determinou a restituição do terreno, ao invés do que havia sido decidido na sentença da 1ª instância.

Por se nos afigurar com interesse, passa a reproduzir-se o teor da fundamentação das duas decisões nesse ponto.

Assim, na sentença da 1ª instância:

"Vejamos então se o direito que a autora pretende exercer deve ser acolhido pelo direito.

Atendendo apenas à versão da autora, podemos dizer que esta procura com a presente acção reivindicar a sua propriedade. O que está em causa é, portanto, o exercício do direito de propriedade.

Ora, recordando o que acima se disse sobre a posição da autora em relação ao contrato-promessa e ao concreto acto de gestão praticado pela Junta de Freguesia sobre o baldio e em relação à ré, ou seja, tudo se passando como se tivesse tudo sido praticado pela própria autora – não obstante a mesma poder pedir contas sobre isso à dita Junta de Freguesia –, cabe perguntar se a conduta desta está de acordo com a boa fé e com os bons costumes ou com o fim económico e social do seu direito.

Isto porque, como se sabe, a lei considera que é ilegítimo o exercício de um direito quando são manifestamente excedidos os limites relativos àqueles parâmetros - art. 334º do Código Civil

Ora, sendo certo que a autora é a proprietária do terreno, o direito que procura exercer neste processo é o direito à sua restituição, livre e desembaraçado.

Todavia, devemos ter presente que:

a) Foi a autora (a comunidade) que "deu" o terreno à ré;

b) No âmbito de abordagem prévia destinada à eventual expropriação do dito terreno;

c) Para um fim de relevante interesse público (da comunidade);

d) A ré é uma empresa de direito privado, mas de capitais públicos.

e) No local foram efectuados avultados investimentos;

f) A parcela em causa é objectivamente diminuta quando comparada com as extensas áreas que normalmente constituem os baldios.

Assim, temos a autora a dar o dito por não dito, sem qualquer justificação, se tivermos em conta o escopo da Lei dos Baldios, num caso de manifesto interesse e benefício de toda a comunidade, podendo até a sua conduta, se acolhida pelo tribunal, vir a privar os compartes do abastecimento de água potável por tempo indeterminado, sem que se reconheça qualquer vantagem especial para os mesmos com a demolição e restituição do (pequeno) terreno. Na verdade, como se sabe, já ninguém, ou quase ninguém, recolhe mato, porque quase não há animais nas cortes, ninguém vai à lenha ou às pinhas, porque o diesel é mais cómodo, animais a pastar nos montes são quase uma miragem, porque o pastoreio faz calos, enfim, o estilo de vida actual, não obstante a severa crise que atravessamos, não é compatível com a recolha das utilidades que os terrenos baldios proporcionaram às comunidades ao longo dos séculos.

Considera-se, por isso, que, nestas circunstâncias, é abusivo o exercício por parte da autora do direito à restituição do terreno, não obstante se reconhecer que é ela, e não a ré. a sua proprietária. Este exercício contraria frontalmente os ditames da boa fé (venire contra factum proprium) e ultrapassa largamente os limites impostos pelo fim económico de tal direito: proporcionar vantagens e benefícios de que toda a comunidade possa desfrutar.

Isto não quer dizer que se crie aqui um inultrapassável imbróglio jurídico, reconhecendo a autora como proprietária e mantendo a situação, que, não sendo perpétua, é, naturalmente, de duração prolongada no tempo.

Nada impede, na verdade, e a título de mero exemplo, que se procure converter o negócio, nos termos do art. 293.º do Código Civil, passando a tratar-se de uma cessão de exploração, ou fazendo-se uma alienação onerosa, ou, caso isso não seja possível, que a ré recorra a uma expropriação.

Não se deve, contudo, no entendimento do tribunal, reconhecer validade a um acto de disposição gratuita de terreno baldio nem acolher o direito à restituição deste terreno depois daquilo que lá foi feito, e por que foi feito, e depois do que lá foi instalado, também para servir a comunidade dona do terreno baldio".

No acórdão recorrido:

"Ora, não podemos estar de acordo com o assim decidido.

Por um lado, os elementos utilizados, contidos nos factos 15.° a 23.°, foram eliminados dos factos provados.

Por outro lado, não se vê onde está o exercício abusivo por parte da autora do direito à restituição do terreno, e quando é que este exercício contraria frontalmente os ditames da boa fé (venire contra factum proprium) e ultrapassa largamente os limites impostos pelo fim económico de tal direito.

Na verdade, dispõe o n.º 1 do Art. 334º do C. Civil que "É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito".

Por seu turno o art. 762 n.º 2 do C. Civil estabelece que "No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé".

Vejamos.

O instituto do abuso de direito, consagrado no art. 334 do C. Civil, é uma cláusula geral, que tem por finalidade última temperar o exercício dos direitos subjectivos. Deve intervir em situações excepcionais, quando, do exercício de qualquer direito, sejam ultrapassados, de forma intolerável, inadmissível, os limites impostos pela boa fé, pelo bons costumes e pelo fim social ou económico do direito.

O instituto, que vem consagrado no art. 334° do Código Civil (C.C.), ilegítima o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O abuso pressupõe a existência do direito e, como refere o Ac. do S.T.J., de 22/11/1994, "no moderno pensamento jurídico os direitos subjectivos sofrem vários limites - de ordem moral, teológica e social, nomeadamente - e é a ofensa destes que constitui o abuso reprimido pela nossa lei" (in C. J., Acs. do S.T.J., ano II, tomo 111-1994, pág. 158).

Na verdade, há "venire contra factum proprium" quando alguém exerce uma posição jurídica em contradição com o comportamento pelo mesmo assumido anteriormente.

A locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Tal exercício é tido pela doutrina e pela jurisprudência como inadmissível. Como expressão da confiança, o venire contra factum proprium situa-se já numa linha de concretização da boa fé. É o que acontece com a recondução do "venire" à doutrina da confiança, que revela um estádio elevado nessa tarefa da concretização da boa fé.

Esclarecem os Profs. P. Lima e A. Varela que "a concepção adoptada do abuso do direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites", o que não significa que ao conceito "sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido"(in "Código Civil Anotado", 3ª Edição, volume I, pág. 296), com o que estão de acordo Mário Júlio de Almeida Costa, in Direito das Obrigações, págs. 73-74 e António Menezes Cordeiro, in Tratado e IV T, pág. 373.

"Porque o Código Civil vigente consagrou a concepção objectivista do abuso de direito, não se exige, por parte do titular do direito, a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que, objectivamente, esses limites tenham sido excedidos de forma manifesta e grave" - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/10/2010, in www.dgsi.pt/jtrg.

Exige-se, por outro lado, que o excesso cometido seja manifesto, que haja "uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante" (nos dizeres do Prof. Vaz Serra, in B.M.J., nº. 85°., pág. 253).

No abuso do direito não é um direito ou um interesse alheio que é ofendido mas sim um direito próprio que é abusivamente exercido e, por isso, o exercício deste direito é, então, tido como ilegítimo (cfr. Prof. A. Varela, in R.L.J., ano 114, pág. 75).

Como se escreveu no Ac. do S.T.J. de 21/09/1993, "existirá abuso do direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito; dito de outro modo, o abuso do direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica envolve o seu reconhecimento" (in C.J., Acs. do S.T.J., ano I, tomo III - 1993, pág.21, e referências doutrinais aí mencionadas).

Ainda nos termos referidos pelo Ac. do S.T.J. de 11/01/2011, o abuso do direito "reconduz-se à prática de um acto ilegítimo, sendo a sua ilegitimidade consistente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos" e, conclui, "Trata-se afinal, de criar uma situação de desequilíbrio, 'genus' que tem como 'species' o exercício danoso inútil, a actuação dolosa e a grave desproporção entre o exercício do titular excrescente e o sacrifício por ele imposto a outrem" (Proc. 801/06.6TYVNG.P1.S1, 1ª Sec., Cons. Sebastião Póvoas, in www.dgsi.pt).

Ora, atento tudo quanto acima fica dito, vistas as posições assumidas pelas partes na petição e na contestação, e vistos os factos dados como provados, não se vê onde está o exercício abusivo do direito por parte da A., ou mesmo em que é que o seu comportamento excede os limites impostos pela boa fé (art. 762 nº 2 do C. P. Civil).

Na verdade, cominando a lei com a nulidade, nos termos gerais do direito (art. 4.° n.º 1 da Lei n.º 68/93 de 4/09) os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento tendo por objecto terrenos baldios, bem como a sua posterior transmissão, sendo o acto de transmissão para a Ré BB da referida parcela de terreno nulo por não dispor a transmitente (Junta de Freguesia) competência para tal, não se vê onde está o exercício abusivo do direito por parte da A. (Conselho Directivo dos Baldios de AA, por si e em representação da Assembleia de Compartes dos Baldios de AA), ao pedir que se declare que o prédio inscrito na matriz predial de … sob o art. …571, identificado no art. 12.º da petição inicial, é baldio, e que a parcela onde a ré construiu depósitos de água faz parte integrante de tal prédio, e que se condene a ré a entregar-lhe tal prédio, livre e devoluto, bem como a demolir as obras ali realizadas e a remover os escombros de tal demolição, deixando o dito prédio no seu estado anterior, bem como a abster-se de praticar sobre o mesmo prédio quaisquer actos de posse.

O exercício abusivo de direito tem de estar suportado em factos, que, como se vê, inexistem no caso vertente.

Existindo abuso de direito quando, no exercício de qualquer direito, sejam ultrapassados, de forma intolerável, inadmissível, os limites impostos pela boa fé, pelo bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, atento o que fica dito, não vemos em que o comportamento da A. pode ser ancorado o invocado abuso de direito.

Sendo assim, a sentença deve ser revogada no que a este aspecto diz respeito.

Em suma: a Relação "não vê" que, no circunstancialismo do caso, que não referiu nem apreciou em concreto, a pretensão do autor, de ver restituído o terreno baldio, configure um abuso do direito.

Crê-se que não se decidiu bem: apesar de não se acompanhar em todos os pontos a fundamentação da decisão da 1ª instância, designadamente no que respeita à "crueza" com que retrata a utilização actual dos baldios e à própria "qualificação" do abuso (o venire, que tem a ver com a identidade de posições da Junta de Freguesia e da "comunidade" autora), afigura-se-nos que a decisão de impedir a restituição com base no abuso do direito é correcta.

Será oportuno referir o circunstancialismo que nos parece relevante, que decorre de alguns factos provados e revelado também por outros elementos que constam dos autos.

Assim:

- O terreno reivindicado pelo autor constitui uma parcela, com a área de cerca de 1.600 m2, de um terreno baldio, que tem a área actual de 5.000 m2 – supra factos nºs 13 e 6;

- Esse terreno insere-se numa área mais vasta de baldios da mesma freguesia, que inclui o Baldio do EEE, com a área de 80.000 m2, e o Baldio do FFF, com a área de 3.500 m2 – doc. de fls. 31 e 33, junto pela autora;

- Até 16.10.2004 nunca existiu Assembleia de Compartes, Conselho Directivo e Comissão de Fiscalização dos Baldios (nº 5), sendo os baldios geridos e administrados pela Junta de Freguesia;

- Nessa data, foi constituída a Assembleia de Compartes, Conselho Directivo e Comissão de Fiscalização dos Baldios da freguesia de …, tendo os seus membros chamado a si a gestão e administração desses baldios (nº 12);

- O DL 270-A/2001, de 6/10, criou o sistema multimunicipal de abastecimento de água e saneamento de BB, com vista a solucionar os problemas de abastecimento de água e tratamento de águas residuais das populações dessa região, potenciando a auto- sustentabilidade e ecoeficiência desse sistema (cfr. preâmbulo do diploma e art. 1º);

- Constituiu a sociedade ré, à qual foi concessionado esse sistema, com a finalidade do o gerir e desenvolver – art. 3º;

- Para o efeito, essa sociedade poderia proceder às expropriações necessárias à implantação e exploração das infra-estruturas – Base XVIII, do DL 319/94, de 24/12.

- Em 19.05.2004, a Junta de Freguesia de …, "como entidade responsável pelos baldios paroquiais e demais terrenos sob a sua administração" prometeu ceder, a título gratuito, à ré a parcela de terreno com a área de 1683m2, destinada à implantação do reservatório R6A integrado no "Projecto dos Subsistemas de Abastecimento de Água do MM", autorizando, em consequência, a referida empresa a tomar posse da referida parcela – supra D);

- Consta desse contrato que este teve por pressupostos:

- O disposto na Lei 68/93, de 4 de Setembro ou Lei dos Baldios;

- A segunda outorgante tem em curso a execução do programa de saneamento e abastecimento de águas às populações, concretamente a obra constante do "Projecto do Subsistema de Abastecimento de Água do MM";

- O projecto que a segunda outorgante pretende implantar é de manifesto interesse para as populações locais (…);

- A parcela de terreno a ocupar pelo equipamento a construir não prejudica a fruição dos baldios pelos compartes.

Na clª 3ª desse contrato refere-se que a referida cedência é a título gratuito em face do interesse para as populações que tal infra-estrutura representa."

- Como consta da acta da Assembleia de Freguesia de 30.04.2004, a deliberação de ceder gratuitamente à ré a parcela de terreno em questão foi aprovada por unanimidade, tendo sido reconhecida a urgência do reforço do abastecimento de água aos lugares de …, "dado o actual deficiente e muito insuficiente caudal de água que abastece a Freguesia" – fls. 59 e 60;

- A obra de construção dos depósitos foi efectuada pela ré em 2005/2006 (nº 13);

- Essa obra ocupa cerca de 1.600 m2 de terreno baldio (nº 13).

Importa começar por salientar que o regime restritivo que vigora sobre a alienação de baldios – são nulos os actos e negócios jurídicos de apropriação e de apossamento que os tenham por objecto, nos termos do art. 4º, nº 1, da Lei 68/93, de 4/9 – não é absoluto.

Assim, em determinadas condições, previstas na lei, permite-se a sua alienação voluntária – art. 31º do referido diploma.

No caso, a obra realizada pela ré é de indiscutível interesse para a população por ela abrangida, como decorre do diploma que instituiu o sistema de abastecimento e de saneamento e que constituiu a sociedade ré. Tratando-se de instalação de infra-estrutura de interesse colectivo, a parcela do terreno baldio podia ser alienada para esse fim, a título oneroso – al. b) do nº 1 do art. 31º.

E, apesar de os depósitos de água não constituírem propriamente um equipamento social, convém ter presente que, se o fossem, o terreno podia ser alienado, mesmo a título gratuito – art. 31º, nº 4.

Como é evidente, ao invocar este regime, não se pretende contrariar o que foi já reconhecido e decidido, mas tão só sublinhar que existem casos justificados em que é permitida legalmente a alienação de baldios e que, as circunstâncias descritas, ponderadas pela própria autarquia, tornam de algum modo compreensível o negócio que esta celebrou, não se podendo dizer que a invalidade tenha sido cometida de forma grosseira e chocante, por absolutamente injustificada.

De qualquer forma, será de relevar esses outros aspectos já referidos: o indiscutível interesse público da obra efectuada, que visa solucionar o problema de abastecimento de água às populações; também o custo avultado da obra.

Por outro lado, a área de terreno ocupada é reduzida, quer em termos absolutos, quer tendo em atenção a extensa área remanescente que fica ainda reservada para logradouro comum.

Assim, em contraponto ao aludido interesse público da obra, o prejuízo imposto aos compartes perde relevo, necessariamente: pela reduzida extensão da ocupação e tendo em conta a importância que hoje assume a utilização que as populações fazem dos terrenos baldios, caracterizada por actividades tradicionais que estão notoriamente em franco declínio (roçar mato, apanha de lenha, pastoreio, etc.).

Numa outra perspectiva, saliente-se que a obra foi realizada nos anos de 2005/2006, já depois da constituição dos órgãos das comunidades locais que fruem estes baldios (12.10.2004) e de esses órgãos terem chamado a si a gestão e administração dos baldios.

Será forçoso reconhecer que, pela sua dimensão, a obra da ré foi levada cabo à vista de toda a gente.

Todavia, não foi alegada, nem consta que tenha sido deduzida, qualquer oposição a tal obra; só em 2009, três anos depois da conclusão da obra, é que esta acção veio a ser proposta.

Dispõe o art. 334º do CC que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Pretende-se por este meio evitar que no exercício de um qualquer direito (faculdade ou poder legal) sejam intoleravelmente ultrapassados os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O abuso do direito traduz-se, assim, "na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido"[2].

A ideia é a de que "o exercício de uma faculdade juridicamente tutelada não se finda em si mesmo, antes pressupõe uma actuação vinculada aos fins (sejam eles imanentes, sistémicos ou de qualquer outra natureza) que fundamentam o reconhecimento e a tutela jurídica de tal posição". O abuso ocorre, pois, quando "uma actuação ou abstenção de determinado comportamento, em si mesmo tutelado pela norma, conduz, pelo modo do seu exercício ou pelo seu efeito, a um resultado que repele ao fundamento de tal tutela jurídica"[3].

No caso, sopesando todas as circunstâncias e razões acima descritas, parece-nos que a pretensão do autor, de ver restituído o terreno ocupado pela ré, com destruição da obra aí edificada, afronta, de forma flagrante, o princípio da boa fé e o fim social e económico do direito (de uso e fruição comunitária) exercido sobre tal terreno.

Por um lado, foi tardia a reacção, provada, dos compartes do baldio e dos órgãos que os representam, encetada muito depois de concluída a obra realizada pela ré. Se a utilização do terreno baldio assumia uma importância tão fundamental para os compartes que tradicionalmente dele beneficiavam, justificava-se uma atitude mais pronta e veemente de oposição à construção dos depósitos, que impedia essa utilização. Não se compreende que tenham assistido passivamente a tal construção, deixando concluir esse avultado investimento, só depois, anos depois, vindo alegar a ilegalidade da ocupação.

[Neste ponto, porém, crê-se que a questão estará agora, realisticamente, mais centrada no quantum da compensação devida pela ocupação do que propriamente nesta ocupação – cfr. os sucessivos pedidos de suspensão da instância, na perspectiva de obtenção de acordo entre as partes (19.01.2011, 02.05.2011, 13.09.2011, 08.05.2012 e 04.12.2012), sendo revelador o facto de o autor e a Junta de Freguesia já terem acordado a afectação de metade do "benefício económico" que aquele venha a obter da ré – ponto 4º da transacção de fls. 322].

Por outro lado, importa realçar o manifesto interesse da obra para as populações que dela vão beneficiar, obra que se materializou em avultado investimento económico.

Todavia, os depósitos construídos ocupam uma extensão limitada de terreno baldio – 1.600m2 – e não irá causar prejuízo substancial ao benefício que os compartes poderiam obter com a sua utilização. Esta, como se disse, é caracterizada pelas aludidas actividades tradicionais, que não têm já a importância de outrora, sendo certo que a área ocupada é pequena, continuando os compartes a poderem utilizar extensas áreas para as referidas actividades.

Tem sido apontada como situação (residual) de abuso do direito o desequilíbrio ou desproporção no seu exercício: casos em que há "uma desconexão – ou se se quiser, uma desproporção – entre as situações sociais típicas prefiguradas pelas normas jurídicas que atribuem direitos e o resultado prático desses direitos"[4].

Pensa-se que no nosso caso ocorre uma tal situação de desequilíbrio: uma evidente legitimidade formal do direito exercido pelo autor, tendo este exercício, porém, como resultado, uma desproporção manifesta e intolerável entre a vantagem obtida, reduzida pelas razões acima referidas, e o sacrifício que iria ocasionar, com a destruição da obra, impedindo a satisfação do interesse colectivo que esta visa satisfazer e que se situa em patamar superior.

Como se diz no Acórdão do STJ de 15.04.2015[5], "a satisfação dos interesses patrimoniais de qualquer interessado não pode resultar num desvio clamoroso da função do bem reivindicado, devendo evitar-se que, mediante a declaração de um efeito que formalmente resulta da lei, ocorram prejuízos de incomensurável gravidade na esfera da contraparte, sem que na esfera do interessado se note uma contrapartida significativa".

Neste caso, como aí se acrescenta, apesar da sustentação formal da pretensão do autor, esta deve ser recusada por grave afectação das regras previstas no art. 334º do CC.

Apesar de ser recusada por esta via a restituição do terreno, pedida no âmbito da reivindicação exercida pelo autor, tem de reconhecer-se que há uma efectiva perda das utilidades que o terreno propiciava aos compartes do baldio e que essa perda, pela natureza da obra realizada, assume carácter permanente, traduzindo-se numa verdadeira expropriação do terreno em questão.

Expropriação que a ré poderia ter efectuado, mas que teria, como correspectivo, o pagamento de uma justa indemnização (cfr. arts. 1308º e 1310º do CC, 23º do CExp e 29º da Lei 68/93).

Esta indemnização seria, neste caso, um verdadeiro sucedâneo da referida restituição e, por essa razão, tem vindo a entender-se que é imprescritível, como se decidiu recentemente neste Tribunal (Acórdão de 19.01.2016, acessível no referido sítio).

É a possibilidade de exercício desse direito a uma justa indemnização que se deixa aqui ressalvada, apesar da improcedência da acção que vai ser decretada.

V.

Em face do exposto, concede-se a revista e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, no que respeita ao pedido de restituição do aludido terreno baldio, repristinando-se a decisão da 1ª instância.

Custas da apelação e da revista a cargo do autor.


Lisboa, 17 de maio de 2016

Pinto de Almeida (Relator)

Júlio Gomes

José Raínho


_______________________________________________________
[1] Proc. nº 1118/09.0TBCHV.G1.S1
F. Pinto de Almeida
Cons. Júlio Gomes; Cons. José Rainho
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., 300.
[3] Tatiana Guerra de Almeida, Comentário ao Código Civil – Parte geral, 789.
[4] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo IV, 349.
[5] Em www.dgsi.pt.