Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3066/18.3T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
AUDIÇÃO PRÉVIA DAS PARTES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
NOTIFICAÇÃO
CONTRA-ALEGAÇÕES
INCONSTITUCIONALIDADE
ABUSO DO DIREITO
PACTO DE NÃO CONCORRÊNCIA
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Tendo a questão do abuso de direito sido inserida nas contra-alegações do recorrido, em diversas passagens da alegação, peça que foi notificada ao recorrente, não foi este surpreendido com qualquer alteração decisória com a qual não podia contar, não havendo decisão-surpresa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I RELATÓRIO

1. Decisões e Soluções - Intermediários de Crédito, Lda. e Decisões e Soluções – Mediação Imobiliária, Lda., instauraram acção sob a forma de processo comum contra, AA, pedindo que o Réu seja condenado: a) A pagar à 1ª A. a quantia de €2.500,00, a título de indemnização pela denúncia antecipada do contrato, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento; b) A pagar à 2ª A. a quantia de €52.500,00, também a título de indemnização, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento.


2. Regularmente citado, contestou o Réu por exceção e impugnação, deduzindo também reconvenção, onde, subsidiariamente, para o caso de se entender que a ajuizada cláusula de não concorrência é válida, reclama o direito a ser compensado num valor que computa em €48.000,00 (equivalente a 2.000,00/mês), e ainda numa indemnização no montante de €18.000,00 correspondente ao prejuízo causado pelo incumprimento daquilo a que as Autoras se obrigaram, quantias em cujo pagamento pede a respetiva condenação sem prejuízo dos juros legais desde a citação.


3. Replicaram as Autoras à matéria excepcional e reconvencional, concluindo pela sua improcedência e reiterando o pedido deduzido inicialmente.


4. No despacho saneador foi julgada improcedente a invocada excepção de ilegitimidade ativa, sendo que a final a acção e a reconvenção foram julgadas improcedentes por não provadas e o Réu e as Autoras absolvidas dos respetivos pedidos, através do seguinte dispositivo:

Nestes termos e pelo exposto, decido:

a) Julgar totalmente improcedente procedente, por provada, a presente acção e, em consequência, absolver o R. dos pedidos;

b) Julgar improcedente, por não provado, o pedido reconvencional do R./Reconvinte, referente à condenação das AA. ao pagamento de 18.000€, a título de incumprimento contratual e violação dos deveres de lealdade e boa fé, dele absolvendo as AA./Reconvindas.

c) Considerar prejudicado o restante pedido reconvencional, em virtude da apontada nulidade do pacto de não concorrência”


5. Inconformada, recorreu a Autora/Decisões e Soluções - Mediação Imobiliária, Lda., tendo a Relação proferido acórdão, conhecendo da apelação, enunciando no respetivo dispositivo: “Pelo exposto, na improcedência da apelação, e ainda que por fundamentação não coincidente, confirmam a sentença recorrida.”


6. Novamente inconformada a Autora/Decisões e Soluções – Mediação Imobiliária, Lda. interpôs recurso de revista, em termos gerais, e subsidiariamente, em termos excepcionais, invocando a propósito, a contradição de julgados, juntando cópia do acórdão fundamento (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de abril de 2019, proferido no âmbito do Processo n.º 27467/15.0T8PRT.P1), cujo trânsito está certificado.


7. O Exm.º Senhor Juiz Conselheiro, a quem o recurso foi distribuído, exarou despacho em cumprimento do disposto no Provimento n.º 23/2019 do Supremo Tribunal de Justiça, remetendo os autos à formação.


8. Por acórdão de 29 de Junho de 2021, a formação a que se reporta o art.º 672.º veio a admitir a revista pela via excepcional, por reconhecer existir contradição de julgados quanto à seguinte questão - A validade do pacto de não concorrência e da cláusula penal constantes do clausulado, nos ajuizados contratos de agência, celebrados entre a A./recorrente e o R/recorrida – entre o acórdão recorrido e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14/04/2019, proferido no âmbito do Processo n.º 27467/15.0T8PRT.P12, afirmando: “Como vemos, a orientação assumida no acórdão fundamento vai no sentido de reconhecer a validade do pacto de não concorrência e da cláusula penal constantes do cláusulado nos contratos de agência/subagência, em oposição afirmada aqueloutra vertida no acórdão recorrido, encerrando uma questão de direito suscetível de ditar destino diverso daquele traçado no acórdão recorrido. Impõe-se, assim, a necessidade da intervenção deste Tribunal de revista, a título excecional, para que conheça da questão atinente à validade do pacto de não concorrência e da cláusula penal constantes do cláusulado nos ajuizados contratos de agência.”.


9. Conhecido o recurso de revista, admitido por via excepcional, veio o STJ a proferir acórdão onde decidiu:

Pelos fundamentos indicados é negada a revista e confirmado o acórdão recorrido, ainda que com diferente fundamentação.”


10. É deste acórdão que vem questionada a conformidade com a lei, invocando o requerente que o tribunal cometeu nulidades, nos seguintes termos:

“1. Dispõe o art. 615º n.º 1 al. d) do Cód. Proc. Civil que é nula a sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”

2.    Sendo tal preceito aplicável também aos acórdãos proferidos em sede recursiva, nomeadamente aqueles proferidos, em revista, pelo Supremo Tribunal de Justiça, por via da remissão expressa contida nos arts. 685º e 666º do Cód. Proc. Civil.

ISTO POSTO:

3.    Coligido o douto acórdão proferido, constata-se que o mesmo negou provimento à revista, confirmando o douto acórdão recorrido, ainda que com diferente fundamentação.

4.    Com efeito, ajuizou-se, assim que:

“(…) Tal como no acórdão do STJ de 05/05/2020, processo n.º 13603/16.2T8SNT.L1.S2, não se fará aqui uma teorização das questões jurídicas, mas um olhar atento ao direito e ao caso concreto, o qual se impõe até por via do instituto do abuso de direito, que é de conhecimento oficioso e tem todos os elementos de enquadramento indicados, nem que seja de modo implícito, no processo.

A pretensão das AA. ultrapassa manifestamente os limites da boa fé na execução do contrato e nos efeitos e nos efeitos pretendidos valer da sua celebração, in casu, pelo que não podem as mesmas ver-se-lhes reconhecido o direito à pretensão que formularam, por contrariar o regime do art. 334º do CC. (…)

5.    Tal como resulta do trecho da decisão supra transcrito, julgou este Supremo Tribunal que a recorrente actuou em abuso de direito, com o que negou o reconhecimento do seu direito.

6.    Foi, assim, com fundamento na aplicação, a título oficioso, do instituto do abuso de direito que negou provimento à revista, confirmando, com diversa fundamentação a acórdão recorrido.

7.    Sempre com o máximo respeito por diverso entendimento, considera a recorrente que o acórdão proferido, ao enveredar pela aplicação oficiosa do instituto do abuso de direito, nos termos em que o fez, de modo a aí fundar a decisão de mérito, incorreu em manifesta violação do princípio do contraditório.

8. Por não ter concedido às partes – mormente à A/recorrente, que é, a final, a parte prejudicada por tal solução jurídica – a possibilidade de se pronunciar sobre a eventual aplicação ao caso dos autos do instituto do abuso de direito, quando o mesmo não foi nas decisões das duas instâncias e, nessa media, não foi uma questão aflorada em sede de recurso, o douto acórdão proferido consubstancia uma verdadeira decisão-surpresa.

9.  Sendo, por tal motivo, nulo.

10. Com efeito, nos termos do disposto no art. 3º n.º 3 do Cód. Proc. Civil,

“3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

11. É o corolário do princípio do contraditório, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico-civil, dotado de assento constitucional (vide art. 20º da Constituição da República Portuguesa).

12. Ainda na decorrência desse princípio, determina o art. 4º do Cód. Proc. Civil que

“O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.”

13. Trata-se, pois, do princípio da igualdade das partes, que se impõe ser cotejado com o princípio do contraditório.

14. Crê a recorrente que a redacção do art. 3º n.º 3 do Cód. Proc. Civil se mostra claríssima no sentido de que é um dever do juiz cumprir o princípio do contraditório, ainda que esteja em causa uma questão de conhecimento oficioso (como, por exemplo, o abuso de direito).

15. Ora, o que se verificou nos presentes autos é que esta concreta questão – abuso de direito – não foi suscitada nos autos por qualquer das decisões proferidas nas instâncias.

16. De igual sorte, atentos os concretos fundamentos vertidos na decisão da 1ª instância e no douto acórdão proferido em sede de apelação, não era minimamente expectável para a A./recorrente que o Mmo. Tribunal a quo fosse aplicar o instituto jurídico do abuso de direito como motivo e fundamento para julgar a acção totalmente improcedente.

17. É, assim, inegável que ao negar provimento à revista, julgando a acção improcedente, com recurso a um fundamento jurídico não objecto do recurso de revista, sem conceder às partes a prévia possibilidade de sobre o mesmo se pronunciar, a decisão em causa configura uma decisão-surpresa, proibida, pois, à luz das normas jurídicas supra citadas.

18. Acresce que, nestas concretas circunstâncias, a preterição, por este Supremo Tribunal, da concessão às partes do exercício do direito ao contraditório prévio, constitui nulidade processual, por preterição de acto legalmente imposto, e cuja omissão foi susceptível de influir na decisão de mérito da causa. (Cfr. arts. 3º n.º 3 e 195º do Cód. Proc. Civil.

19. De igual modo, urge ainda configurar este vicio de nulidade, como nulidade do acórdão, nos termos do disposto no art. 615º n.º 1 al. d) do Cód. Proc. Civil, dado estar em causa uma questão que o Mmo. Tribunal a quo não podia, pois, tomar conhecimento.

20. Não obstante se tratar de questão de conhecimento oficioso, deverá considerar-se que ao preterir o necessário exercício do direito ao contraditório das partes, o tribunal acabou por, a final, conhecer de questão que, por tal razão, não podia conhecer.

21. Concretamente quanto ao conhecimento oficioso do abuso de direito e à necessidade do exercício do contraditório prévio pelas partes, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 16/05/2000, processo n.º 1311/99, Cons. Relator SOUSA INÊS, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:

“I – O abuso de direito é de conhecimento oficioso

II – Quando a acção deva ser decidida com fundamento em abuso de direito e este não tenha sido alegado como defesa deve-se, para a sentença não constituir decisão-surpresa, mandar cumprir o artigo n.º 3º n.º 3 do CPC.”

22. Veja-se ainda o vertido no Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/12/2019, proferido no processo n.º 14227/19.8T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, de onde se retira o seguinte sumário:

I - Existe, presentemente, uma conceção ampla do princípio do contraditório, a qual teve origem em garantia constitucional da República Federal Alemã, tendo a doutrina e jurisprudência começando a ligar ao princípio do contraditório de ideias de participação efetiva \das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão, passando o processo visto como um sistema, dinâmico, de comunicações entre as partes e o Tribunal.

II - Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.

III - Decisão - surpresa é a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.

IV - Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.

V - Contudo, o dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito, mesmo que meramente adjetivas, suscetíveis de virem a integrar a base de decisão, situação presente.

VI - Constitui decisão-surpresa a decisão tomada pelo tribunal relativamente à notada ilegitimidade passiva não discutida pelas partes e que esteve na base da decisão de forma proferida.

VII - A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico, mesmo que adjetivo.

23. De igual modo, veja-se o douto entendimento constante do Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/10/2018, proferido no âmbito do processo n.º 721/12.5TVPRT.P1, igualmente disponível em www.dgsi.pt

(…)

Nos termos do art. 3º/3 CPC “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”. Dispõe, por sua vez, o artigo 4.º do mesmo diploma legal: “[o] tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais”.

Como observa LEBRE DE FREITAS [4] a consagração do princípio da proibição das decisões surpresa, resulta de uma conceção moderna e mais ampla do princípio do contraditório,“[…] com origem na garantia constitucional do Rechtiches Gehör germânico, entendido com uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.

O princípio do contraditório no plano das questões de direito exige que antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie [5].

Conforme resulta do regime legal o juiz deve fazer cumprir o princípio do contraditório em relação às questões de direito, mesmo de conhecimento oficioso, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade.

Pretende-se, por esta via, evitar a formação de “decisões-surpresa”, ou seja, decisões sobre questões de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente sem que tenham sido previamente consideradas pelas partes.

Dispensa-se a audição da parte contrária em casos de manifesta desnecessidade, o que pode ocorrer quando:

- “as partes embora não a tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente a tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica, não contrariada, que manifestamente não consentia outra qualificação;

- quando a questão seja decidida favoravelmente à parte não ouvida; ou

- quando seja proferido despacho que convide uma das partes a sanar a irregularidade ou uma insuficiência expositiva”

Na interpretação do conceito de “decisão-surpresa” o Supremo Tribunal de Justiça tem defendido que “o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão surpresa, não determina ao tribunal de recurso que, antes de decidir a questão proposta pelo recorrente e/ou recorrido, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado, desde que as normas concretamente aplicadas não exorbitem da esfera da alegação jurídica efetuada (Ac. STJ 11 de fevereiro de 2015, Proc. 877/12.7TVLSB.L1-A.S1,www.dgsi.pt).

Por outro lado, considera-se que o cumprimento do contraditório não significa “que o tribunal «discuta com as partes o que quer que seja» e que alivie as mesmas «de usarem a diligência devida para preverem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão»” (Ac. STJ 09 novembro de 2017, Proc. 26399/09.5T2SNT.L1.S1, Ac STJ 17 de junho de 2014, Proc. 233/2000.C2.S1www.dgsi.pt).

Considera-se, ainda, que: “[h]á decisão surpresa se o Juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta e atinada decisão do litígio. Ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever” (Ac. STJ 19 de maio de 2016, Proc. 6473/03.2TVPRT.P1.S1,www.dgsi.pt).

LOPES DO REGO defende que “[…]na audição excecional e complementar das partes, fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela” [7]

O exercício do contraditório dependerá sempre da verificação de uma nova abordagem jurídica da questão, que não fosse perspetivada pelas partes, mesmo usando da diligência devida. (…)

A análise desta questão em sede de sentença, a título oficioso, não foi precedida do contraditório, pois as partes não foram convidadas a pronunciar-se sobre esta nova perspetiva de abordagem da questão em litígio, ou seja, a validade da causa ou fonte da obrigação de não concorrência, pois na sentença considerou-se que a cessão de quotas e a cláusula de não concorrência estavam interligadas, com o sentido de não sendo valida a cessão de igual forma não se pode considerar válida a cláusula de não concorrência.

Os réus na resposta ao recurso admitem que não suscitaram a exceção.

Perante os elementos que constam dos autos, não se pode considerar que fosse exigível que tivessem suscitado tal exceção ou que o apelante não ignorasse que a questão podia ser conhecida a título oficioso pelo tribunal.

Estamos perante um acordo complexo, que visa a regulamentação de várias questões que opunham as partes, todos familiares. A alegada cessão foi objeto de registo na competente conservatória do registo comercial, o que desde logo transmite uma presunção de validade do ato de cessão levado ao registo, através do competente ato onde foi formalizada.

Ainda que se admita que a questão da validade da cessão de quotas constitui matéria de conhecimento oficioso, não se pode considerar que mesmo implicitamente decorria dos factos dados como assentes e alegados pelas partes, que era expetável que a mesma poderia ser apreciada oficiosamente em virtude do tribunal não estar vinculado ás alegações de direito das partes (art. 5º CPC).

Todo o litígio foi conduzido no sentido de se apurar se existia ou não atividade concorrente. Não se discutia a cessão de quotas, matéria que as partes dão como assente, nem a validade do acordo celebrado em 28 de junho de 2011.

Somos pois levados a considerar que não era expetável que no contexto definido como objeto do litígio se abordasse a validade da cláusula de não concorrência tal como ficou decidido na sentença.

A decisão não se mostra favorável à parte não ouvida, pois o autor viu denegada a sua pretensão à indemnização com fundamento em exercício de atividade concorrente por parte dos réus. As partes nunca foram convidadas a formalizar o aperfeiçoamento dos articulados no pressuposto de se discutir a validade da cessão de quotas. Não se revela ser desnecessário o exercício do contraditório.

Ainda que a apreciação da validade da cessão de quotas possa constituir matéria de conhecimento oficioso, tal circunstância não dispensava o Tribunal do exercício do prévio contraditório, ao abrigo do art.3º/3 CPC.

(…)

A nulidade processual é distinta da nulidade da sentença, uma vez que a nulidade por falta de pronúncia, a que alude o art. 615º/1 d) CPC está diretamente relacionada com o comando do art. 608º/2 do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões) relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido [11].

Nos termos do art. 615º 1/d) CPC a sentença é nula, quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

O vício em causa está relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento” – art. 608º/2 CPC.

Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

Não ignoramos que dentro de certa linha de entendimento [12] se tem considerado que a “omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa”, configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia. Nestas circunstâncias o exercício do contraditório.

Esta interpretação revela-se coerente com a atual conceção do princípio do contraditório, entendido como “garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” [13]. O direito de influir no êxito da ação, mais não será do que mais uma emanação do princípio da tutela jurisdicional efetiva previsto no art. 20º CRP.

No caso presente verificando-se a omissão do prévio exercício do contraditório, perante uma questão de direito, suscitada oficiosamente e que ditou o fim da ação, a sentença é nula, nos termos do art. 615º/1 d) CPC.

As circunstâncias que determinam a nulidade da sentença impedem que no caso o tribunal de recurso faça uso da regra da substituição, prevista no art. 665º CPC. Declarando-se a nulidade da sentença devem os autos baixar ao tribunal de 1ª instância, para se cumprir o contraditório em relação à concreta questão da validade da cessão de quotas, face ao critério do art. 220º CSC, após o que será proferida nova sentença. (…)

24. Face ao supra expendido, e salvo o merecido respeito por entendimento diverso, deverá julgar-se verificada a nulidade do acórdão proferido, por preterição do contraditório prévio e, portanto, por se tratar de decisão-surpresa, proibida à luz do disposto no art. 3º n.º 3 do Cód. Proc. Civil, seja nos termos do disposto no art. 195º, seja nos termos do art. 615º n.º 1 al d) do Cód. Proc. Civil, ex vi art. 666º do Cód. Proc. Civil.

25. Nulidade essa que se deixa expressamente alegada, para todos os devidos efeitos legais.

NESTE TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO QUE V. EXA. DOUTAMENTE SUPRIRÁ DEVERÁ PROCEDER A PRESENTE ARGUIÇÃO DE NULIDADE, ANULANDO-SE O DOUTO ACÓRDÃO PROFERIDO, E NOS TERMOS SUPRA EXPOSTOS E CONCEDENDO-SE ÀS PARTES A POSSIBILIDADE DE EXERCER O DIREITO AO CONTRADITÓRIO QUANTO À QUESTÃO OFICIOSAMENTE SUSCITADA, ALUSIVA AO INSTITUTO DO ABUSO DE DIREITO.


11. Foram apresentadas contra-alegações nas quais se defende não haver nulidade, nem inconstitucionalidade, o que se expressa na seguinte afirmação: “Não assiste qualquer razão à Recorrente, aliás é até contra o pensamento da lei e de toda a jurisprudência – porque todas as garantias de defesa e o contraditório, foram asseguradas ao longo de todo o processo e também na decisão deste Colendo Tribunal.”


II. FUNDAMENTAÇÃO

12. Relevam aqui os elementos constantes do relatório supra.

13. Nas questões suscitadas no recurso de revista o recorrente defendeu que a decisão do TR não era correcta porque:

- o legislador optou por trazer para o ordenamento jurídico interno aquando da publicação do Decreto-lei n.º 178/86 e plasmar no art. 9º do citado diploma tão somente estes 3 requisitos de validade da cláusula/pacto de não concorrência.

- E apesar de, face o vertido no art. 20º n.º 4 da Directiva, o legislador interno ter a possibilidade de restringir ainda mais o regime aplicável à cláusula de não concorrência, o que se verificou foi que nem em 1986, nem depois aquando das alterações introduzidas em 1993, o nosso legislador pretendeu operar tais restrições.

- Nomeadamente, e para o que releva nos presentes autos, fazer depender a validade da cláusula de não concorrência à efectiva previsão, nesse pacto, do pagamento de uma contrapartida ao agente e, muito menos, cominar tal omissão com um vício tão gravoso nas suas consequências como é o da nulidade.

- o estabelecimento de um pacto de não concorrência ao abrigo e em conformidade com o referido art. 9º do DL 178/86, de 3 de Julho, e a cláusula penal compensatória ao mesmo associada em nada colide com os direitos fundamentais previstos no art. 47º, 58º e 61º da CRP ou inviabiliza a plena aplicação do art. 13º al g) do citado normativo legal.

O STJ conheceu do recurso iniciando pela análise da posição do TC e de seguida procurou aplicá-la ao caso concreto dos autos dizendo:

15.2. No caso dos autos, a aplicar-se a orientação do tribunal constitucional a obrigação de não concorrência poder-se-ia impor ao R, por estarem preenchidos todos os requisitos impostos: “Deste resulta que o principal e o agente podem convencionar um pacto de não concorrência com eficácia pós-contrato, desde que: (i) o pacto seja reduzido a escrito; (ii) a não concorrência fique limitada à proibição de exercer atividades concorrentes com a atividade do principal; (iii) a duração da obrigação de não concorrência não seja superior a dois anos; e (iv) tal obrigação esteja restrita à área ou círculo de clientes no qual o agente atuava.

A obrigação de não concorrência tem, além do mais, um caráter sinalagmático e oneroso: uma vez que, por força do disposto na alínea g) do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 178/86, é devida «uma compensação, pela obrigação de não concorrência após a cessação do contrato», esta, ao mesmo tempo que impõe ao agente um dever de non facere, com o conteúdo e pelo período máximos admitidos no artigo 9.º, gera para o principal uma correlativa obrigação compensatória.

 (negrito nosso, com citação do acórdão do TC)

15.3. Para assim se concluir impõe-se ainda aludir à compensação pela obrigação de não concorrência, à luz do caso concreto e da orientação já seguida por este STJ em situações paralelas, como se faz de seguida.

Compulsados os factos provados e o teor das cláusulas do contrato celebrado com o R. não houve a estipulação de uma contrapartida ou compensação para a assunção da obrigação de não concorrência pós-contratual, o que não invalida o direito do R. à sua exigência, porquanto a obrigação de não concorrência confere-lhe um direito a uma compensação pela obrigação que assuma, por força do disposto no art.º 13.º, al. g) da LCA.

Quer isto dizer que se poderia concordar com a orientação defendida no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12/04/2019, proferido no processo n.º 27467/15.0T8PRT.P1), em que se defende a validade da cláusula em apreço e se considera que o facto de no contrato não se ter previsto uma compensação para o agente, como contrapartida desta obrigação por si assumida, não gera qualquer invalidade ou ineficácia do pacto em causa, mas sim, um direito do agente a pedir, judicialmente se for o caso, a compensação em causa.

O que também está de acordo com a orientação adoptada no acórdão do STJ de 18-03-2021, processo 2017/19.2T8PDL.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

 E nomeadamente a posição aí indicada: “Sendo a convenção de não concorrência válida e, por isso, beneficiando o principal, a sua eficácia não pode ficar paralisada pela falta de fixação da compensação a favor do agente, sendo certo ainda que essa situação não pode ser interpretada, sem o concurso de outras circunstâncias, como uma desconsideração pelo cumprimento da compensação a favor do agente”

15.4. Valeriam aqui também as justificações apresentadas no indicado acórdão deste STJ: “A compensação do agente tanto pode ser convencionada, com a vantagem de ficar, desde logo, determinada num valor certo, como vir a ser objeto de fixação posterior, designadamente através de decisão judicial, no caso de subsistir desacordo insanável entre as partes. No sentido de que a compensação não está dependente de acordo prévio, desde há muito, se tem expressado a doutrina (JANUÁRIO GOMES, Apontamentos sobre o Contrato de Agência, in Tribuna da Justiça, 1990, 3, pág. 28, e F. FERREIRA PINTO, Contratos de Distribuição, 2013, pág. 456). Na verdade, no caso da convenção da obrigação de não concorrência, a compensação é um efeito legal inerente à mesma convenção, não interferindo sequer na sua validade (F. FERREIRA PINTO, ibidem). De resto, estando o direito à compensação determinado, nomeadamente por lei, ainda que não quantificado, está excluída a nulidade da convenção, por omissão do valor da compensação, decorrente do disposto no art. 280.º, n.º 1, do Código Civil. Com efeito, é manifesto que não se está perante um negócio jurídico indeterminável, mas apenas indeterminado quanto ao valor da compensação do agente, passível, no entanto, de ser suprido, designadamente com recurso à equidade (art. 15.º do DL n.º 178/86). Reportando à matéria dos autos, verifica-se que entre as partes foi celebrado uma convenção de não concorrência, após a cessação do contrato, sem que tivesse sido fixada, em concreto, a compensação do agente. Decorrendo o direito à compensação da lei, a sua omissão no contrato escrito torna-se irrelevante, não podendo o direito ser negado ao agente, só porque não foi expressamente formalizado na convenção de não concorrência e, por outro lado, não deixando o contrato de revestir a natureza sinalagmática. Acresce ainda que a fixação da compensação é sempre suprível, quer por acordo quer por decisão judicial. Estando certo o direito à compensação pelo agente, ao contrário do alegado, está excluída a natureza indeterminada da convenção e, consequentemente, a sua nulidade, por efeito do disposto no art. 280.º, n.º 1, do Código Civil, assim como a sua desconformidade com a Constituição da República Portuguesa. De resto, a lei específica do contrato de agência não estabeleceu a nulidade da convenção de não concorrência, quando não tiver sido fixada a compensação do agente.”

16. Mas não pode deixar de se dizer que também valem aqui igualmente as considerações constante do acórdão do STJ de  05-05-2020, processo 13603/16.2T8SNT.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt., no qual a situação concreta apresentada ao tribunal tem similitude com a situação em análise e o tribunal entendeu que a necessidade de protecção do subagente poder-se-ia efectuar em defesa contra a acção indemnização por violação do pacto de não concorrência, reconhecendo a não exigibilidade das cláusulas penais contratuais pedidas na acção quando os AA não tivessem pago qualquer compensação ao subagente pela obrigação de não concorrência que alegaram ter sido violada.

Disse-se aí:

“Assim, não se procurará uma teorização geral da questão, mas a simples aplicação ao caso concreto. Entende-se, aliás, como já foi sendo ventilado supra, que haverá que ter em consideração concreta os interesses e valores de cada caso.

8. No caso vertente, não subsistem no nosso entendimento dúvidas de que a ponderação de valores, direitos e interesses em presença faz pesar a balança para o Recorrente. Não pode ele, a troco de nada, ficar amarrado a um compromisso sem limite.

Seria situação semelhante a uma pena (ou a uma corveia, no mínimo) sem fim, ou a uma nova espécie de servidão da gleba.

9. Não é que os tempos hodiernos e os seus ventos de reforçada livre iniciativa e afins possam tudo justificar em nome de uma liberdade económica à outrance que se sabe bem ser polémica e envolver muitas questões ideológicas. E desde logo não pode ser ultrapassado, em nome do laissez faire, um completo olvido do pacta sunt servanda. Não será tanto pela ideia de absoluto livre mercado (com sua desregulação, por vezes) que se crê que o Recorrente tem razão na questão controversa assinalada pela Formação.

É que tem que haver um equilíbrio de prestações e compromissos. Não podendo quem celebre um contrato deste tipo vir depois a encontrar-se com “uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma”, enquanto a contraparte se prevalece da sua palavra. Especificamente o contrato de agência é definido, por Mário Frota, como “acordo através do qual certa pessoa assume, com caráter permanente, a obrigação de promover, em nome e por conta de outrem, e mediante remuneração, a conclusão de contratos em certa zona (Contrato de Trabalho, Coimbra, Coimbra Editora, 1978, p. 117). O caráter oneroso é patente. E o não cumprimento de uma remuneração como contrapartida da não concorrência após a cessação do contrato contradiz o sentido de todo o contrato.

É a própria ideia de sinalagma (que funda o contrato em geral) que obriga a um equilíbrio e ajustamento. Ajuste de interesses é o contrato, diz Galvão Teles, acordo vinculativo com declarações de vontade harmonizáveis entre si, afirma-o Antunes Varela, vontades distintas mas ajustadas reciprocamente, observa Almeida Costa. A doutrina não encontra certamente opiniões discordantes desta necessidade dir-se-ia “simbólica” (em sentido etimológico): em que a uma parte corresponde necessariamente uma outra.

(…)

Termos em que se deve considerar o Recurso procedente na parte indicada pela Formação, e, nessa mesma parte, revogado parcialmente o Acórdão do Tribunal da Relação, absolvendo-se os RR do pagamento da indemnização pela violação do pacto de não concorrência à segunda autora. No mais, mantém-se o Acórdão recorrido.”

(fim de transcrição)


E veio a ponderar as considerações efectuadas face à sua aplicação ao caso concreto, concluindo:

(início de citação)

16.1. No caso concreto as AA. pretendem ver-lhe reconhecida a indemnização por violação da cláusula de não concorrência, tendo assumido expressamente que não compensaram o R. pela sua assunção, ainda que pretendam fazer crer este tribunal que essa possibilidade não se encontra excluída, se o Réu assim o exigir, em acção para o efeito intentada, numa lógica de ver satisfeita a sua pretensão e deixar para o futuro a eventual correcção de alguma injustiça ou desequilíbrio contratual (conclusões da revista: 67. Na sequência deste douto entendimento, urge considerar que se a falta de fixação da compensação ao agente não interfere na validade do pacto de não concorrência (que é, ao fim e ao cabo, a sua génese), por maioria de razão não poderá interferir na validade da cláusula penal que é, tão-somente, e como é consabido uma antecipada fixação do dano, neste caso, do dano decorrente de violação da obrigação de não concorrência. 68. Estando o direito a uma compensação pelo agente acautelado por via da previsão legal contida no art. 13º al g) do DL 178/86, a fixação e accionamento da cláusula penal em nada colide com o mesmo.)

16.2. Não se pode concordar com esta abordagem, na situação específica trazida ao processo, em que a remuneração do agente pelo período de vinculação contratual foi apenas de 900 euros, em mais de 6 meses de “vínculo”, com o perfil profissional do Réu, já conhecido das AA, uma vez que era profissional deste ramo de actividade antes da celebração do contrato, e sem que lhe tenha sido atribuída qualquer compensação pela obrigação de não concorrência que agora se pretende dever se indemnizada por ter sido violada, ainda que reconhecendo que o Reu tem direito a ser compensado pela obrigação assumida de não concorrer, pois essa compensação resultará da lei.

Tal como no acórdão do STJ de 05-05-2020, processo 13603/16.2T8SNT.L1.S2, não se fará aqui uma teorização das questões jurídicas, mas um olhar atento ao direito e ao caso concreto, o qual se impõe até por via do instituto do abuso de direito, que é de conhecimento oficioso e tem todos os elementos de enquadramento indicados, nem que seja de modo implícito, no processo.

A pretensão das AA. ultrapassa manifestamente os limites da boa fé na execução do contrato e nos efeitos pretendidos valer da sua celebração, in casu, pelo que não podem as mesmas ver-se-lhes reconhecido o direito à pretensão que formularam, por contrariar o regime do art.º 334.º do CC.

Para este resultado são também significativos os factos provados 25.  - As AA., por carta datada de 8/1/2018, comunicaram ao R. o seguinte: “Atendendo à sua carta de 27 de Novembro de 2017, iremos considerar o contrato que foi celebrado em 30 de Maio de 2017, através do qual foi nomeado “Subagente”, como resolvido, pelo que, nada mais haverá a exigir por qualquer uma das partes. (…) Relembramos também que, em virtude do contrato de exclusividade celebrado com a Decisões e Soluções, V. Ex.ª está proibido de prestar os seus serviços a outras pessoas, singulares ou coletivas, que desempenhem atividade concorrente com a da Decisões e Soluções, pelo que não poderá, legalmente, ter qualquer vínculo semelhante com qualquer outra entidade empregadora, nos vinte e quatro meses seguintes à presente cessação. Se V. Ex.ª violar esta obrigação de não concorrência, de forma direta ou indireta, terá de pagar à Decisões e Soluções uma indemnização que poderá ascender a 100.000,00€ (cem mil euros), por força da aplicação das cláusulas penais contratualmente previstas no n.º 5 da Cláusula Décima. (…)” – no qual as AA se consideram desvinculadas de qualquer obrigação para com o Réu, na qual se inclui a compensação pela obrigação de não concorrência, ao mesmo tempo que se intitulam como “beneficiárias da obrigação de não concorrência” – e os factos 41 e 43, respectivamente: “41. O Réu é mediador imobiliário há muitos anos e faz da mediação imobiliária o seu modo de vida e ganha pão.”; 43. O R., no ano de 2017 e nos meses que antecederam o seu início de funções na DS Nova …., facturou serviços no valor global de 23.481,84€, tendo apresentado declaração de IRS relativa a esse ano na qual declara idêntico rendimento.

O que significa que, in casu, o TR…… não andou longe da verdade quando, sobre a cláusula penal por violação da obrigação de não concorrência, afirmou “uma tal penalização constitui não só um mecanismo coercitivo da liberdade de iniciativa, de empresa e de trabalho que passa a impender sobre o agente, como um inaceitável instrumento de pressão para a sua abdicação do direito à compensação que legalmente lhe é reconhecido”.

Ainda que ainda que não se vá tão longe quanto o tribunal recorrido ao afirmar “Pensamos que é nesta categoria que entra a exigência do cumprimento de um pacto de não concorrência pelo contraente dele beneficiário sem o prévio pagamento de uma qualquer compensação destinada ao ressarcimento da inactividade por essa via imposta ao agente”, generalizando a afirmação, no caso concreto, a condenação do Réu seria uma enorme injustiça, que não se aceita sancionar, quando o Réu poderia já não ter a possibilidade de fazer valer o seu direito à compensação pela aceitação da obrigação de não concorrência, ainda de peticionada em reconvenção.

(fim de citação)


A questão do abuso de direito veio inserida nas contra-alegações do recorrido, em diversas passagens da alegação, peça que foi notificada ao recorrente e que não foi assim surpreendida com qualquer alteração decisória com a qual não podia contar.

Assim, ainda que se admita que possa ser entendido como o recorrente o fez – “Foi, assim, com fundamento na aplicação, a título oficioso, do instituto do abuso de direito que negou provimento à revista, confirmando, com diversa fundamentação a acórdão recorrido – sempre se diria que o abuso de direito embora não constituísse questão objecto do recurso por não ter sido solicitada a sua análise pelo recorrente, não deixa de ser relevante, por via da defesa do recorrido.

Na verdade, sempre se adicionaria o seguinte: se o recorrente não contradisse a posição do recorrido foi porque entendeu não dever pronunciar-se sobre a temática, com a qual podia, aliás, contar como decorrência lógica das decisões que tinha vindo a impugnar. O contraditório existiu, pela notificação das contra-alegações, não se impondo que o Tribunal o duplicasse.


Este é o sentido que colhemos da jurisprudência citada, nomeadamente do acórdão do STJ de 16/05/2000, processo n.º 1311/99, citado pelos reclamante, e que  vai no sentido da decisão aqui proferida, pois aí se indicou que haveria necessidade de acionar o contraditório se a questão nunca tivesse sido suscitada nos autos, nomeadamente na defesa de alguma das partes.

É isso que se colhe do sumário, no seu ponto 2:

II – Quando a acção deva ser decidida com fundamento em abuso de direito e este não tenha sido alegado como defesa deve-se, para a sentença não constituir decisão-surpresa, mandar cumprir o artigo n.º 3º n.º 3 do CPC.”


Na mesma linha de raciocínio nos parece apontar a posição de LOPES DO REGO, transcrita na reclamação.

A questão do abuso de direito não só decorria da defesa como também com ela a reclamante podia contar, não tendo ocorrido decisão-surpresa do tribunal, até porque se confirmou a decisão recorrida.

III. DECISÃO

Pelos fundamentos indicados não se verifica nenhuma nulidade da decisão, por violação do princípio do contraditório, nem qualquer inconstitucionalidade, indeferindo-se a reclamação.

Custas pela recorrente, 3 UCs


Lisboa, 4 de Novembro de 2021


Fátima Gomes (relatora)

Fernando Samões

Maria João Vaz Tomé