Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
27911/18.4T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
REQUISITOS
AUDIÇÃO PRÉVIA DAS PARTES
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
FALECIMENTO DE PARTE
NEGLIGÊNCIA
DESPACHO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CONSTITUCIONALIDADE
PROCESSO EQUITATIVO
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
Data do Acordão: 04/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Do disposto no artigo 281º do Código de Processo Civil conclui-se que: é necessário que seja proferida decisão sobre a deserção (referindo-se o nº 4 do artigo 281º do Código de Processo Civil a “simples despacho”), não ocorrendo, portanto, de forma automática.

II. Não basta o mero decurso do prazo de seis meses para que ocorra a deserção da instância, é necessário, também, apurar-se se o processo está parado por negligência das partes.

III. No que respeita à audição antes de ser proferida a decisão a julgar extinta a instância por deserção, não se encontra qualquer disposição legal que determina essa audição, nem a mesma decorre do princípio do contraditório ou do princípio da cooperação e do dever de gestão processual.

IV. A não intervenção do Tribunal desde o despacho que suspende a instância por óbito de um interessado até à decisão que julga extinta a instância por deserção, não viola o princípio da cooperação previsto no artigo 7º do Código de Processo Civil ou o dever de gestão processual previsto no artigo 6º deste diploma legal, porquanto não cabe ao Tribunal terminar com a inércia das partes, impondo-lhes a prática de atos que as mesmas não pretendam praticar (devendo sofrer as consequências legais da sua omissão), pois a maior intervenção que o Código de Processo Civil confere ao Juiz para providenciar pelo andamento célere do processo e com vista à prevalência da justiça material em detrimento da justiça adjetiva, não afasta o princípio da autorresponsabilização das partes.

V. Não ocorre inconstitucionalidade por violação do princípio do processo equitativo, do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. João de Sousa Santos & Filhos, Lda. intentou esta ação a 13/12/2018 contra AA.

2. A 4/02/2019, no âmbito da tentativa de citação do Réu, a secção juntou aos autos cópia do assento de óbito do Réu AA.

3. A Autora – na pessoa do seu advogado, como sempre – foi notificada desta junção por carta elaborada no próprio dia.

4. A 30/05/2019, a Autora fez o seguinte requerimento:

Não tendo logrado obter, das diligências feitas, qualquer informação acerca de eventuais herdeiros do réu, vem requerer se digne mandar oficiar à Conservatória dos Registos Centrais no sentido de informar se aquele deixou algum testamento.

5. Por despacho de 3/06/2019 foi indeferido tal requerimento com a seguinte fundamentação:

Não cabe ao tribunal substituir-se às partes nas diligências tendentes à realização dos seus direitos e ao cumprimento dos respectivos ónus.

No que tange concretamente à obtenção de informação ou documento que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, o tribunal só intervém se estiver alegada e demonstrada justificada dificuldade séria em obtê-los – é o que resulta do disposto no art. 7/4 do CPC.

No caso, não só não vem invocada a existência de tal dificuldade séria em obter a informação referida, como a mesma pode ser obtida por qualquer cidadão, como resulta de https://justica.gov.pt/Servicos/Saber-se-existe-testamento.

6. A 9/07/2019, a Autora vem requerer:

A junção de uma certidão da Conservatória dos Registos Centrais declarando que não existe qualquer testamento emitido pelo réu. Mais requer um prazo de 15 dias para tentar de novo apurar a existência de eventuais herdeiros.

7. Tal requerimento é indeferido por despacho de 11/07/2019, com o seguinte fundamento:

Está a decorrer o prazo para a autora impulsionar os autos. O impulso processual dos autos é um ónus da autora, que tem natureza substantiva, pelo que o prazo que lhe está associado, previsto no art. 281 do CPC, tem natureza substantiva, não cabendo ao tribunal conceder ou deixar de conceder à parte prazo para o efeito.

8. Este despacho foi notificado por carta elaborada a 11/07/2019.

9. A 11/09/2019 foi proferido o seguinte despacho:

Suspensão da instância

Face ao teor do assento de óbito, junto aos autos a fl.31, declaro suspensa a instância, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 269/1-a e 270, ambos do CPC.

A suspensão apenas cessa quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida (art.276/1-a do CPC).

10. Esse despacho foi notificado à Autora por carta elaborada a 17/09/2019.

11. Desde então, não consta dos autos qualquer outro ato praticado pela Autora.

12. A 8/07/2020 foi proferido o seguinte despacho:

O processo encontra-se parado há mais de seis meses por negligência do autor em promover os seus termos.

Assim, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 281.º do Código de Processo Civil, julga-se a instância deserta.

13. Não se conformando com esta decisão, a Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação …...

14. O Tribunal da Relação  …. veio a julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância.

15. Inconformada com tal decisão, a Autora/Apelante veio interpor recurso de revista ou, subsidiariamente recurso de revista excecional (aquela não foi admitida e esta foi admitida pela Formação de Juízes a que alude o n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil), formulando as seguintes (transcritas) conclusões (excluindo as conclusões que se reportam à admissibilidade do recurso:

1ª. A A. propôs a presente acção contra o R., que se apurou entretanto ter falecido e sem o conhecer, desenvolveu diligências no sentido de apurar se o falecido tinha deixado herdeiros, inicialmente na terra dos seus pais, sem sucesso, e mais recentemente, através de familiares da ex-mulher, que procurou localizar.

2.ª Entretanto sobreveio o quadro de pandemia com todas as limitações que introduziu mercê dos confinamentos e das restrições sanitárias, nomeadamente em matéria de diligências junto de serviços públicos, mas que também suspendeu os prazos processuais – e tudo isso foi totalmente ignorado.

3.ª A Mma. Juiz “a quo”, por despacho de 11.09.2019, com a ref.ª 389785031, e face ao teor do assento de óbito, declarou “... suspensa a instância, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 269.º, n.º 1, alínea a) e artigo 270.º, ambos do Código de Processo Civil. A suspensão apenas cessa quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida (artigo 276.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil.”

4.ª Para além das contingências referidas, tal despacho da Mma. Juiz “a quo” induziu em erro a A., já que inculcava uma suspensão do processo até surgir um sucessor – que tudo indica que será o Estado.

5.ª Surpreendentemente e em sentido contrário, foi proferido no dia 08.07.2020 um despacho com a ref.ª 397453725, considerando que por o processo se encontrar parado há mais de 6 meses, julgava a instância deserta, nos termos e ao abrigo do art.º 281.º do Código de Processo Civil.

6.ª E considerou nesse despacho que os autos ficaram a aguardar por mais de 6 meses o impulso processual, por negligência da A...

7.ª ... mas sem previamente a ouvir de forma a avaliar se essa falta de impulso era efectivamente imputável a comportamento negligente.

8.ª Foi assim uma decisão-surpresa que de forma desproporcionada extingue a instância sem cuidar de atingir uma justa composição do litígio e dos interesses em presença.

9.ª Cabe ao Juiz, por força do art. 6º do NCPC (Lei 4/2013, de 26 de Junho) dirigir activamente o processo, determinando após a audição das partes a adopção de mecanismos de simplificação e agilização processual respeitando os princípios da igualdade das partes e do contraditório, determinar a regularização da instância e quando tal consista em acto a praticar pelas partes, convidá-las a fazê-lo.

10.ª A omissão dessa formalidade que a lei prescreve, ou seja, a de ouvir previamente as partes para o exercício do contraditório e para a prática de qualquer acto, representa uma irregularidade e produz a nulidade da decisão (art. 195º do CPC), na medida em que, como é inquestionável, na ausência das razões e argumentação das partes, mercê dessa omissão, a irregularidade cometida influiu no exame e decisão da causa.

11.ª Na verdade, o decurso do prazo de 6 meses de suspensão da instância sem impulso das partes não implica ipso facto, ou ope legis, a negligência das partes, porque não é uma razão objectiva que baste apenas por si para determinar a negligência das partes.

12.ª O Mmo. Juiz “a quo” decretou a deserção da instância, fundando a sua decisão no art. 281º do CPC, com a redacção introduzida pela Lei 41/2013, de 26 de junho.

13.ª O regime da Lei 41/2013, de 26/06, além de ter encurtado para seis meses o prazo, até aí de dois anos, concedido à parte para impulsionar os autos, sem que fosse extinta a instância por deserção, eliminou também a figura da interrupção da instância, ou seja, a instância fica deserta logo que o processo esteja sem impulso processual da parte durante mais de seis meses sem passar pelo patamar intermédio da interrupção da instância.

14.ª Por assim ser, na actual lei adjectiva a deserção da instância não é automática pelo simples decurso do prazo, como acontecia na lei anterior, pois que, para além da falta de impulso processual há mais de seis meses é também necessário que essa falta se fique a dever à negligência das partes em promover o seu andamento (artigo 281.º, nº 1 do CPCivil).

15.ª E, conforme também resulta, artigos 19.º a 21.º do ponto II. A das alegações supra e que “brevitatis causa” aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais, não sendo automática a referida deserção, o tribunal, antes de proferir o despacho a que se refere o nº 4 do artigo 281.º do CPCivil, deve ouvir as partes por forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é, efectivamente, imputável a comportamento negligente das partes.

16.ª Tendo em conta a profundidade da alteração dos institutos em causa (interrupção e deserção), os efeitos graves da mesma resultantes (extinção da instância), e o evidente propósito do legislador em obstar que possa ocorrer grave prejuízo dos direitos das partes resultantes da aplicação do NCPC, bem como o facto de se ter de aquilatar do comportamento negligente da parte na omissão do impulso processual, não pode o tribunal proferir despacho a declarar a deserção da instância sem, previamente, dar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão

17.ª O tribunal “a quo”, ao decidir como decidiu, não só incorreu em nulidade da decisão nos termos do art. 195º do CPC como incorre em erro de julgamento e viola a lei, e nomeadamente o art. 6º e 281º/1 e 3 do CPC.

18.ª Em nossa modesta opinião o legislador é claro quando impõe que se apure a existência de negligência, sem ser através de cronómetro. O tempo não basta para o aferir.

19.ª Daí que, diferentemente da solução prescrita no n.º 5 do art. 281.º, o legislador consagre quanto às demais situações a necessidade de um despacho judicial. E não se trata de um despacho a recordar meramente a lei. Trata-se de um despacho proferido no contexto do dever de gestão processual prescrito no art. 6.º do CPC, e em respeito pelo exercício do contraditório.

20.ª Se o mero recurso ao cronómetro fosse bastante para qualificar a negligência, então os actos dos magistrados praticados fora dos prazos previstos no art. 156.º do CPC não deixariam de ter (injustamente, sublinhe-se) essa mácula, ainda que sem idêntica consequência.

21.ª Se o legislador entendesse que não seria necessário prevenir a parte para as consequências da pretensa inércia processual antes de tomar qualquer decisão, então teria imposto expressamente, como o faz no n.º 3 daquele art. 156.º do NCPC, que a parte justificasse a razão da inobservância do prazo.

22.ª O Acórdão recorrido, tal como a decisão de 1ª instância, entendem que basta o decurso do prazo, cegamente, sem curar de ouvir a parte, sem qualquer prevenção, para se presumir, insistimos, presumir, a negligência da parte – uma presunção que a lei não consagra, como seria suposto.

23.ª Os arts. 281.º e 6.º do CPC devem ser julgados inconstitucionais quando interpretados no sentido que resulta do Acórdão recorrido, designadamente por violação do disposto nos arts. 1.º, 2.º, 9.º, b), 20.º e 202.º, n.º 2 da CRepP.

24.ª Com as alterações introduzidas pelo novo CPC, a extinção dos processos por deserção, sem o patamar intermédio antes existente, assume uma enorme relevância jurídica, tanto maior quando decorrente de interpretações como as perfilhadas no Acórdão recorrido, segundo as quais, tal como na decisão de 1ª instância, e como se disse, basta o decurso do prazo, cegamente, sem curar de ouvir a parte, sem qualquer prevenção, para se presumir, insistimos, presumir, a negligência da parte.

25.ª Ora, os tribunais têm-se dividido na apreciação desta matéria, como resulta do Acórdão fundamento e dos demais mencionados, e do Acórdão recorrido, que por sua vez tria outros arestos.

26.ª A apreciação da questão é assim controversa e tem relevância jurídica pelo que se justificaria sempre a revista excepcional.

E conclui: deve a presente revista ser julgada procedente e, consequentemente, revogar-se o Acórdão recorrido e a decisão que declarou extinta a instância por deserção, devendo ser substituída por outra que notifique a A. para promover o andamento dos autos ou requerer o que tiver por conveniente sob pena de a instância ser julgada extinta por deserção”.

16. Não houve contra-alegações.

17. Cumpre apreciar e decidir.


II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelos A.A. –  Recorrentes decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à questão de saber se antes de proferir decisão sobre a extinção da instância as partes devem ser ouvidas sobre o seu interesse no prosseguimento dos autos.


III. Fundamentação.

1. Com relevo para a apreciação do objeto do presente recurso, destaca-se o factualismo processual constante do Relatório.


2. Da extinção da instância por deserção

A instância suspende-se quando falecer alguma das partes (alínea a) do nº 1 do artigo 269º do Código de Processo Civil).

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 281º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no nº 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

Tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, a instância ou o recurso consideram-se desertos quando, por negligência das partes, o incidente se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses (nº 3 do artigo 281º do Código de Processo Civil).

A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator (nº 4 do artigo 281º do Código de Processo Civil).

A instância extingue-se com a deserção (alínea c) do artigo 277º do Código de Processo Civil.


Do disposto no artigo 281º do Código de Processo Civil conclui-se que: é necessário que seja proferida decisão sobre a deserção (referindo-se o nº 4 do artigo 281º do Código de Processo Civil a “simples despacho”), não ocorrendo, portanto, de forma automática.

E que para que ocorra a decisão, torna-se necessário que:

– o processo aguarde o impulso processual há mais de seis meses;

– o processo não seja impulsionado por negligência das partes.

Assim, não basta o mero decurso do prazo de seis meses para que ocorra a deserção da instância, é necessário, também, apurar-se se o processo está parado por negligência das partes.

Deste modo, tendo presente estes termos, o juiz, na sua decisão, deve pronunciar-se sobre o decurso do prazo e a ocorrência da negligência das partes ou não.

Para apurar da ocorrência de negligência das partes, ao juiz compete analisar o comportamento processual das partes no âmbito do processo, isto é, se a parte (ou partes) demonstraram no processo as dificuldades em impulsionar os autos, as diligências necessárias para remover os eventuais obstáculos com que se tem deparado para afastar a causa que levou à suspensão, e, inclusive, solicitar o contributo do tribunal para que as razões impossibilitadoras do prosseguimento normal dos autos sejam afastadas ou se a parte (ou partes) se manteve numa inação total, desinteressando-se do prosseguimento normal dos autos.

No que respeita à audição antes de ser proferida a decisão a julgar extinta a instância por deserção, não se encontra qualquer disposição legal que determina essa audição, nem a mesma decorre do princípio do contraditório ou do princípio da cooperação e do dever de gestão processual.

Ora, quanto ao disposto no nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, como se refere no Acórdão do STJ, de 14 de dezembro de 2016, “o princípio do contraditório tem em vista questões de facto ou de direito que sejam suscitadas no processo, impondo-se ao Tribunal decidi-las, não tem em vista, o que é completamente diferente, impor ao Tribunal, no âmbito de um incidente inominado que não está previsto na lei, convidar os interessados que, no aludido período de seis meses optaram por não juntar aos autos nenhum documento nem suscitar qualquer questão, explicar o seu comportamento ou apresentar os documentos ou suscitar as questões que podiam ter suscitado e não suscitaram” (in www.dgsi.pt), nem, por outro lado, a decisão pode configurar uma decisão surpresa, porquanto desde o momento em que tem conhecimento do despacho que determinou a suspensão da instância as partes sabem que, se ocorrer a sua inércia durante 6 meses, a instância será extinta por deserção, não podendo ficar surpreendidos com uma tal decisão do Tribunal.

Por outro lado, a não intervenção do Tribunal desde o despacho que suspende a instância por óbito de um interessado até à decisão que julga extinta a instância por deserção, não viola o princípio da cooperação previsto no artigo 7º do Código de Processo Civil ou o dever de gestão processual previsto no artigo 6º deste diploma legal, porquanto não cabe ao Tribunal terminar com a inércia das partes, impondo-lhes a prática de atos que as mesmas não pretendam praticar (devendo sofrer as consequências legais da sua omissão), pois a maior intervenção que o Código de Processo Civil confere ao Juiz para providenciar pelo andamento célere do processo e com vista à prevalência da justiça material em detrimento da justiça adjetiva, não afasta o princípio da autorresponsabilização das partes.

No sentido de não ser necessária a audição das partes antes de ser proferida decisão sobre a extinção da instância por deserção, cf. o Acórdão do STJ atrás citado e os Acórdãos do STJ, de 20 de setembro de 2016, de 5 de julho de 2018, de 12 de janeiro de 2021 (in www.dgsi.pt).


3. O caso dos autos           

No Tribunal de 1ª instância foi proferido despacho a suspender a instância por óbito do Réu AA, “nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 269/1-a e 270, ambos do CPC.

A suspensão apenas cessa quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida (art. 276/1-a do CPC).”

Este despacho foi notificado à Autora em 17 de setembro de 2019.

Decorrido o prazo de seis meses, foi proferida decisão a julgar deserta a instância, mais concretamente, em 8 de julho de 2020 (isto é, cerca de 10 meses após a notificação daquele despacho e sem que a Autora tenha apresentado qualquer requerimento ou tenha dado a conhecer da dificuldade de obter elementos que possibilitassem a intervenção a habilitação de herdeiros. Só antes do despacho a ordenar a suspensão da instância tinha requerido que o Tribunal fizesse uma diligência que estava ao seu alcance efetuar, como resulta do relatório supra).

Tendo presente o que atrás se referiu, a instância extingue-se por deserção quando o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses, por negligência das partes.

Ora, a Autora teve conhecimento que a instância foi suspensa por óbito do Réu AA e que deveria promover o incidente de habilitação de herdeiros (ficando suspensa até esse momento) para que os autos prosseguissem os seus termos.

As partes não podem deixar de saber que a suspensão da instância conduziria à deserção da instância se, por sua negligência, os autos continuassem sem impulso durante seis meses, não se podendo classificar como uma decisão surpresa (violadora do princípio do contraditório) a decisão que julgou extinta a instância por deserção.

A Autora não deduziu o incidente de habilitação de herdeiros e durante este longo período de seis meses nada disse.

Como se referiu, competia às partes, sem necessidade de intervenção do tribunal, dar conhecimento no processo (atenta a não dedução do incidente de habilitação de herdeiros) de todas as suas eventuais dificuldades para deduzirem o incidente, podendo solicitar a intervenção do tribunal para afastar eventuais obstáculos que tivessem encontrado.

O que não podem é pretender a intervenção do tribunal perante o seu desinteresse e omissões com vista ao prosseguimento dos autos, questionando as partes pelo seu silêncio e manifesto desinteresse e incentivando-os à prática de qualquer ato.

Assim, não tendo o Tribunal de ouvir as partes, no caso concreto, a Autora, sobre as razões da sua manifesta inação, nem determinar a prática de qualquer ato, a decisão do Tribunal da Relação deve ser confirmada.

A Autora, nas suas alegações, refere que “Os arts. 281.º e 6.º do CPC devem ser julgados inconstitucionais quando interpretados no sentido que resulta do Acórdão recorrido, designadamente por violação do disposto nos arts. 1.º, 2.º, 9.º, b), 20.º e 202.º, n.º 2 da CRepP.”

Ora, podemos dizer que não se mostram violados esses preceitos constitucionais, nem, aliás, a Autora/Recorrente indica os fundamentos que encontra da violação desses preceitos.

Como já escrevemos no Processo n.3422/15.9T8LSB.L1.S2:

Tal como refere, neste particular, Paulo Ramos de Faria (ob. cit., p. 15), se ao sistema de justiça estadual repugna a paragem negligente dos termos do processo, (…) também repugna a extinção deste, quando ainda é útil, com o consequente desaproveitamento de toda a actividade processual pretérita, obrigando (desnecessariamente) a que nova demanda seja instaurada. Deve, por isso, aceitar-se que a genérica proibição de comportamentos contraditórios abrange igualmente o Estado-tribunal e que, nessa justa medida, estando o juiz vinculado, desde logo, pelas suas próprias decisões, deve ser coerente e consequente com a sua atividade pretérita, sendo que esta proibição mais não é do que uma manifestação do princípio da confiança que decorre, por sua vez, do princípio da segurança jurídica plasmado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

De resto, o próprio Tribunal Constitucional vem utilizando tal princípio como parâmetro de organização ou disciplina do processo, afirmando que a garantia do processo equitativo comporta uma dimensão de segurança e previsibilidade dos comportamentos processuais, tutelando adequadamente a possibilidade de conhecimento das normas com base nas quais são praticados os atos e formalidades processuais, assim como as expectativas em que as partes fazem assentar a sua estratégia processual. Com efeito, o processo surge como um imperativo de segurança jurídica ligado a duas exigências: a determinabilidade da lei e a previsibilidade do direito. O processo justo e equitativo é também aquele cuja regulação prevê que a sequência de actos que formam o processo esteja pré-determinada ao pormenor pelo legislador, em termos de ser possível assegurar com previsibilidade que as partes são titulares de poderes, deveres, ónus e faculdades processuais e que o processo é destinado a finalizar certo tipo de decisão final. Os dois elementos são indissociáveis: a previsibilidade das consequências da prática dos atos processuais pressupõe que as normas processuais sejam claras e suficientemente densas, atributos sem os quais ficará violado o princípio da segurança jurídica.

Um processo equitativo é também um processo previsível. Uma forma processual só é justa quando o conjunto ordenado de atos a praticar, bem como as finalidades a cumprir, tanto na propositura, como especialmente no desenvolvimento da ação, seja expresso por meio de normas cujos resultados sejam previsíveis e cuja aplicação potencie essa previsibilidade. Para que haja previsibilidade são, porém, necessárias duas condições: que o esquema processual fixado na lei seja capaz de permitir aos sujeitos do processo conhecer os poderes e deveres que conformam a relação processual; e que haja univocidade de interpretação das normas processuais. É que se os sujeitos do processo não se encontram em condições de compreender e calcular previamente as consequências das suas acções, o processo é inidóneo à realização da tutela jurídica. A idoneidade funcional do processo implica, pois, que ele seja construído em termos de possibilitar aos sujeitos processuais o conhecimento das normas com base nas quais calculam o seu modo de agir (cf. Ac. do TC n.º 604/2018, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ e no mesmo sentido Acórdãos do TC n.ºs 678/98, 485/2000, 183/2006, 335/2006 e 56/2003, todos disponíveis no mesmo sítio).

Ora, dir-se-á, desde logo, transpondo estas considerações para o caso dos autos, que as normas que impõem às partes o ónus do impulso processual subsequente e que estipulam para a sua inobservância uma consequência processual não são inovatórias e nem sequer inesperadas, quer porque se encontram previstas na lei processual desde o Código de Processo Civil de 1939, quer porque, sendo claras, permitem que as partes saibam, de antemão, que a sua omissão terá a aludida consequência.

Com efeito, traduzindo-se o princípio do processo equitativo, na dimensão do justo processo, além do mais, na confiança dos interessados ou dos sujeitos processuais nas decisões de conformação ou de orientação do processo, mal se compreenderia que aqueles pudessem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais, por força do próprio comportamento do tribunal, não podiam razoavelmente contar.

Trata-se, conforme se afirmou no acórdão do STJ de 03 de março de 2004 (tirado pelas secções criminais, no processo n.º 4421/03 e disponível em www.dgsi.pt, mas cujos ensinamentos, neste particular, são inteiramente transponíveis para o caso sub judice), do princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz. O processo equitativo, como “justo processo” supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa. Mas determina também, por correlação ou contraponto, que as autoridades que dirigem o processo, seja o Ministério Público, seja o juiz, não pratiquem actos no exercício dos poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência confiante de condições legais do exercício de direitos, com a posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que depositaram confiança no rigor e na regularidade legal de tais actos.

A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.

Ora, no caso presente, a mencionada cominação no Código de Processo Civil não pode considerar-se inesperada quando a inércia da parte seja causadora da paragem do processo, mantendo-se a parte inerte, sem sequer indicar ao Tribunal as dificuldades que encontra para que os autos prossigam com a habilitação de herdeiros do Réu falecido, não se mostra violada a garantia de um processo equitativo.

Por outro lado, o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva é um direito fundamental constituindo uma garantia da proteção de direitos fundamentais, sendo inerente à ideia de um Estado de direito; contudo, este princípio de conformação através da lei. Também ninguém pode ser privado de levar a sua causa à apreciação de um tribunal.

No caso presente, a Autora teve possibilidade de apresentar o seu caso a um tribunal, e perante a verificação de que o Réu AA tinha falecido, determina a lei que, para que os autos prossigam, a Autora tinha de proceder à habilitação de herdeiros, de forma que não se desperdiçasse a atividade processual da parte, impondo-lhe, contudo, aquele ónus.

A Autora nada fez, nem diligenciou para obter os elementos necessários para proceder à habilitação (ou nem sequer informou o tribunal das suas dificuldades na obtenção desses elementos, demonstrando que não se mantinha inerte).

A Autora, apesar de toda a sua inércia, não perdeu a possibilidade de demandar os herdeiros do falecido Réu, agora em novo processo (e este eventual custa resulta do seu próprio comportamento que não pela dificuldade criada para que um tribunal aprecie a sua pretensão).

Pelo exposto, o recurso terá de improceder.

IV. Decisão

Posto o que precede, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

As custas do recurso ficam a cargo da Recorrente.

Lisboa, 20 de abril de 2021


Pedro de Lima Gonçalves (relator)

Fátima Gomes

Fernando Samões


Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do decreto – Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, declara-se que têm voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Fátima Gomes e Fernando Samões.