Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B1679
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE
TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA - TIR
TRANSPORTE RODOVIÁRIO
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
DOLO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Nº do Documento: SJ200607060016797
Data do Acordão: 07/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - O contrato de transporte é a convenção pela qual alguém se obriga perante outrem, mediante um preço, a - por si ou por terceiro - levar ou conduzir pessoas e/ou coisas dum lugar para outro,

II - No caso do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada regulado pela Convenção Relativa ao Contrato de Transporte de Mercadorias por Estrada celebrada em Genebra em 19/5/1956 ( CMR ), aprovada para adesão pelo DL 46.235, de 18/3/65, e alterada pelo Protocolo de Genebra de 5/7/78, aprovado para adesão pelo DL 28/88, de 6/9, supõe, as mais das vezes. três entidades - o expedidor, o transportador e o destinatário.

III - Como decorre do art.4º CMR, esse contrato pode ter natureza consensual.

IV - A execução material da prestação de facto a que o transportador se obriga desdobra-se em três operações - a recepção da mercadoria, a sua deslocação ( ou transporte em sentido estrito ) e a sua entrega ao destinatário no local de destino.

V - Trata-se dum contrato de resultado, isto é, que gera ou de que deriva uma obrigação de resultado, que só se pode ter por cumprida com a entrega da mercadoria transportada ao seu destinatário.

VI - O art.13º CMR confere ao destinatário tanto o direito de, em caso de demora, exigir ao transportador a entrega da mercadoria não entregue, como o de indemnização fundada na responsabilidade civil emergente do incumprimento ( ou do cumprimento defeituoso ) desse contrato, no caso de perda (total ou parcial, ou, ainda, de avaria) da mercadoria transportada.

VII - Na Convenção referida, a responsabilidade pelo incumprimento, ou pelo cumprimento defeituoso, do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada encontra-se regulada, por forma especial ou particular, estabelecendo o seu art.23º desvio limitativo de princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos.

VIII - As regras gerais a que obedece o ónus da prova estabelecidas no art.342º C.Civ.assentam na denominada teoria das normas ( Normentheorie ), de Rosenberg, baseada na relação entre regra e excepção, de que resulta que cada uma das partes terá de alegar e provar os pressupostos da norma que lhe é favorável.

IX - De harmonia com esse critério, em vista do art.29º CMR, e no âmbito especial do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, em que, consoante arts.17º e 23º CMR, vigora a regra da limitação da responsabilidade do transportador, o dolo deste ou do pessoal respectivo é facto constitutivo do direito à indemnização plena que a lei geral assegura em sede de responsabilidade civil contratual ( como decorre dos arts.494º, a contrario sensu, e 562º C.Civ.).

X - Para obter indemnização não sujeita aos limites estabelecidos no art.23º CMR, é, por conseguinte, o destinatário que, conforme art.342º, nº1º, C.Civ., terá que provar que a perda ou desaparecimento de mercadoria transportada se deveu a acto voluntário do transportador ou do pessoal ao seu serviço.

XI - No nosso ordenamento jurídico, a equiparação da negligência grosseira ao dolo surgiu, pontualmente, como novidade, com a reforma processual civil operada em 1995/96, para o restrito efeito de condenação por litigância de má fé - cfr. art.456º CPC.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


Em 24/11/99, Empresa-A, e Empresa-B, intentaram contra Empresa-C, Lda, agora Empresa-D, S.A., acção declarativa com processo comum na forma ordinária, que foi distribuída ao 2º Juízo da comarca da Maia.

Pediram a condenação da Ré a pagar as quantias de, respectivamente, à 1ª A., 2.769.472$00, mais 177.707$00 de juros de mora, e à 2ª , a de 2.505.712$00, acrescida de 160.783$00 de juros de mora.

Alegaram, para tanto, em síntese, que, tendo contratado com a demandada o transporte, de Itália para Portugal, de mercadoria que se perdeu, sofreram os prejuízos reclamados nesta acção.

Contestando, a Ré opôs estar a sua obrigação de indemnização sujeita aos limites fixados nos arts. 23 º e 27º CMR, não tendo as AA indicado quaisquer factos susceptíveis de indiciar, directa ou indirectamente, a existência do dolo por elas invocado para excluir o limite da indemnização, conforme art.29º CMR.

Após audiência preliminar infrutífera, proferiu-se saneador tabelar, com seguida indicação da matéria de facto assente e organização da base instrutória. Foi indeferida reclamação relativa àquela primeira.

Instruídos os autos mediante carta precatória expedida para a inquirição de testemunhas, veio, após julgamento, a ser proferida, em 28/5/2003, sentença que, julgando parcialmente procedente e provada a acção, condenou a Ré a pagar à 1ª A., Empresa-A, a quantia de € 6.190, 45, e à 2ª A., Empresa-B, a de € 6.684,07, acrescidas, ambas, de juros, à taxa ( anual ) de 5%, vencidos desde 15/12/98, e vincendos, até efectivo e integral pagamento, bem como a pagar, a uma e outra, indemnização, a liquidar em execução de sentença, pelos prejuízos sofridos com a perda dos ganhos relativos às vendas das mercadorias desaparecidas e resultantes da privação de vendas de outras mercadorias, absolvendo a Ré do mais pedido.

Por acórdão de 29/11/2005, a Relação do Porto julgou procedente o recurso de apelação que a Ré interpôs dessa sentença, que revogou.

Absolvendo-a do mais pedido, condenou a Ré a pagar à 1ª A., Empresa-A, € 34,44 e o correspondente em euros a 7.930$60 ( ou seja, € 39,56 ), e à 2ª A, Empresa-B, € 37,48 e o correspondente em euros a 8.765$40 ( ou seja, € 43,72 ), com, todas essas quantias, juros, à taxa ( anual ) de 5%, vencidos desde 15/12/98, e vincendos (1) , até efectivo e integral pagamento.

É dessa decisão que as AA pedem, agora, revista.

Em fecho da alegação respectiva, deduzem 17 conclusões. Em termos úteis, estas (indica-se, entre parênteses, a numeração original ) :

1ª ( = 1ª, 2ª e 3ª ( 1ª parte ) ) - O acórdão recorrido erra tanto pela aplicação aos factos provados, dos arts.17º, nº1º, e 23º, nº3º, CMR, relativos à perda da mercadoria, como pelo afastamento do princípio geral da culpa do devedor pelo incumprimento do contrato ( cfr. art.799º, nº1º, C.Civ.).

2ª ( = 3ª ( 2ª parte ), 4ª e 5ª) - Só provado que a transportadora, a tal obrigada nos termos do contrato celebrado, não entregou a mercadoria à destinatária, o acórdão recorrido considerou que, uma vez que não há distinção legal entre essas figuras, a perda é equivalente a descaminho, ignorando que só existe perda da mercadoria quando resulte provado ter sido por facto alheio à vontade do transportador e dos auxiliares respectivos que aquele perdeu a mercadoria que estava ao seu cuidado.

3ª ( = 6ª) - Não se pode confundir perda da mercadoria com incumprimento do contrato de transporte, pois nem todos os casos de incumprimento desse contrato derivados da não entrega da mercadoria se podem subsumir a uma situação de perda, aplicando-se automática e indistintamente o art.17º CMR

4ª ( = 7ª ) - Para além da prestação principal de transporte, o transportador tem igualmente outros deveres, como o de zelo, cuidado e guarda, deveres acessórios estes que se retiram dos termos gerais do art.799º, nºs 1º e 2º, C.Civ.

5ª ( = 8ª ) - Ficou provado que a mercadoria chegou ao seu destino e desapareceu já nos armazéns da Ré, pelo que não se pode considerar que existiu simples perda da mercadoria e não descaminho ou extravio.

6ª ( = 9ª ) - Da aplicação à factualidade dada como provada das regras gerais da responsabilidade do devedor pelo incumprimento das obrigações e das regras do ónus da prova resulta que os arts. 17º, nº1º, e 23º, nº3º, CMR não são aplicáveis ( no caso dos autos ).

7ª ( = 10ª ) - Porque implica limitação da responsabilidade, a perda é um facto favorável ao transportador, pelo que este, para poder beneficiar do regime previsto para a perda da mercadoria, tem de alegar e provar as circunstâncias em que a mesma ocorreu, a fim de que, perante elas, o tribunal decida se o caso foi de perda ou de extravio, e se foi por dolo ou falta que lhe seja imputável (que tal ocorreu).

8ª ( = 11ª ) - A perda não é elemento constitutivo do direito do destinatário enquanto credor da entrega da mercadoria, sendo ao transportador que incumbe alegar as razões pelas quais a tal não procedeu, incluindo a perda e ( respectivas ) circunstâncias, a fim de beneficiar, se for caso disso, da exclusão ou da limitação da responsabilidade.

9ª ( = 12ª ) - As AA. provaram o que lhes cabia, ou seja, que a mercadoria não lhes foi entregue, constituindo-se, assim, a transportadora na obrigação de provar que esse facto não se deveu a culpa sua, afastando a sua responsabilidade e a sua obrigação de indemnizar nos termos gerais ( arts.344º e 799º C.Civ.).

10ª ( = 13ª ) - Cabia à Ré alegar factos que demonstrassem que a não entrega da mercadoria se deveu a efectiva perda, pois não existe qualquer presunção legal, nem na Convenção CMR, nem em qualquer outra disposição legal, de que resulte que existe sempre perda da mercadoria quando o transportador não procede à sua entrega ao respectivo destinatário.

11ª ( = 14ª ) - Interpretando o art.17º, nº1º, CMR de uma forma que extrapola a própria lei (sic), pois não existe qualquer normativo legal de presunção de perda, o Tribunal da Relação presumiu que a mercadoria se perdeu.

12ª ( = 15ª ) - Existindo incumprimento do contrato de transporte por qualquer causa, são aplicáveis, em primeira linha, as regras gerais dos arts.799º ss C.Civ., ou seja, há uma presunção de culpa do devedor pelo não cumprimento da prestação respectiva ( art.344º C.Civ.).

13ª ( = 16ª ) - Está, assim, a Ré obrigada, nos termos do art.798º C.Civ., a indemnizar todos os prejuízos que causou à A., compreendendo essa indemnização tanto o dano emergente, como o lucro cessante ( arts.562º, 563º e 564º C.Civ.).

14ª ( = 17ª ) - O acórdão recorrido viola os arts.17º, 23º e 29º CMR, 342º, 344º, 562º, 563º, 564º, 798º e 799º C.Civ., e 383º C.Com.

Houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Convenientemente ordenada, a matéria de facto fixada pelas instâncias é como segue (2):

( a ) - As AA. são sociedades comerciais por quotas, que têm por objecto social a comercialização de artigos de joalharia ( A )

( b ) - A Ré, por sua vez, é uma sociedade comercial, cujo objecto social consiste na indústria de transporte de carga em veículos automóveis ( B ).

( c ) - No exercício da sua actividade comercial, as AA., através da sua representante comum, AA, contrataram com a sociedade Empresa-E, sociedade de direito italiano, a compra de diversos artigos em ouro ( C ).
( d ) - As AA. contrataram com a Ré o transporte desses artigos em ouro de Itália para Portugal
( D ).

( e ) - O valor dos mesmos ascendia a 18.021.000 liras italianas, correspondente a 2.079.481$00
( 1º).

( f ) - A mercadoria das AA foi transportada pela Ré, em camião, desde a Itália até Portugal.
( g ) - Essa mercadoria foi transportada em dois volumes ( G ).

( h ) - O cartão com a mercadoria destinada à 1ª A. tinha o peso de 3,4 Kg ( H ).

( i ) - O cartão com a mercadoria destinada à 2ª A. tinha o peso de 3,7 Kg ( I )

( j ) - A mercadoria referida deu entrada nos armazéns da Ré, vindo a desaparecer desses armazéns e nunca chegou à posse da A ( E e F ).

( l ) - Em 9/11/98, a mercadoria em questão já se encontrava no armazém da Ré em Camarate, tendo as AA sido informadas desse facto.

( m ) - Nesse dia, a Ré informou as AA de que no dia seguinte iria entregar a mercadoria destinada às duas empresas e de que deveria estar disponível o cheque para pagamento das guias de transporte.

( n ) - Perante esta informação, a legal representante das AA pediu que lhe entregassem a mercadoria ainda na tarde do dia 9/11/98.

( o ) - Foi informada por um funcionário da Ré que poderia deslocar-se aos escritórios da Ré para pagar as guias e depois, com as guias pagas, levantar a mercadoria nos armazéns da Ré, em Camarate.

( p ) - A legal representante das AA pagou e levantou as guias e, de seguida deslocou-se ao armazém da Ré, sito em Camarate, para levantar a mercadoria.

( q ) - As AA. pagaram à Ré o custo do transporte, no montante de 16.696$00 ( 2º).

( r ) - As AA repartiram entre si o custo decorrente da importação das mercadorias transportadas pela Ré, nas seguintes proporções : 47,5% para a 1ª A., Empresa-A, e 52,5% para a 2ª A., Empresa-B.

( s ) - O encarregado de armazém da Ré escreveu nos recibos de saída de armazém que a mercadoria não tinha sido entregue.

( t ) - Para aquisição das mercadorias, as AA. suportaram os custos com duas viagens às Feiras de Pádua e Milão, num total de 516.608$00 ( 3º) (3) .

( u ) - Em 15/12/98, as AA interpelaram por fax a Ré, e, com base no extravio das mercadorias transportadas, reclamaram desta uma indemnização no valor de 5.286.651$00.

( v ) - Como a mercadoria em causa se destinava a ser vendida na época de Natal, e dado que se tratava de mercadoria exclusiva, a estratégia de venda das AA. passava pela utilização dessa mercadoria como indução de venda de outras mercadorias, relativamente às quais não existirá agora a mesma capacidade de colocação ( 5º e 6º).

Apreciando e decidindo :

Em comum definição (4) , constitui contrato de transporte a convenção pela qual alguém se obriga perante outrem, mediante um preço, a - por si ou por terceiro - levar ou conduzir pessoas e/ou coisas dum lugar para outro.

Supondo, as mais das vezes, três entidades - o expedidor, o transportador e o destinatário -, o contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada celebrado pelas partes nestes autos é regulado pela Convenção Relativa ao Contrato de Transporte de Mercadorias por Estrada celebrada em Genebra em 19/5/1956 ( CMR ), aprovada para adesão pelo DL 46.235, de 18/3/65, e alterada pelo Protocolo de Genebra de 5/7/78, aprovado para adesão pelo DL 28/88, de 6/9.

Do art.4º CMR decorre, de facto, poder esse contrato ter natureza consensual (5).

Bem assim exacto que a execução material da prestação de facto a que o transportador se obriga se desdobra em três operações - a recepção da mercadoria, a sua deslocação ( ou transporte em sentido estrito ) e a sua entrega ao destinatário no local de destino -, trata-se dum contrato de resultado, isto é, que gera ou de que deriva uma obrigação de resultado, que só se pode ter por cumprida com a entrega da mercadoria transportada ao seu destinatário (6) .

O art.13º CMR confere ao destinatário tanto o direito de, em caso de demora, exigir ao transportador a entrega da mercadoria não entregue, como o de indemnização fundada na responsabilidade civil emergente do incumprimento ( ou do cumprimento defeituoso ) desse contrato, no caso de perda (total ou parcial, ou, ainda, de avaria) da mercadoria transportada.

Nunca, afinal, controvertida a efectiva responsabilidade da demandada ao menos nos termos do art.17º, nº1º, CMR, ou seja, o an respondeatur, é o quantum respondeatur que se tem vindo a discutir nestes autos.

Essencialmente apoiada a sentença apelada no regime geral da responsabilidade contratual decorrente dos arts.487º, nº2º, e 799º, nºs 1º e 2º, C.Civ., não se atentou então devidamente em que é na Convenção referida que se encontra regulada, por forma especial ou particular, a responsabilidade pelo incumprimento, ou pelo cumprimento defeituoso, do contrato em questão, e que essa Convenção estabelece, no seu art.23º, desvio limitativo de princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos (7) . Isto adiantado :

Da matéria de facto apurada só resulta claro que a mercadoria em questão desapareceu, isto é, que ocorreu efectivamente a perda regulada nos arts.17º e 23º CMR.

Nada permite concluir com segurança que esse desaparecimento tenha resultado de acto voluntário do pessoal ao serviço da transportadora (8), susceptível de justificar o afastamento desse regime-regra da específica responsabilidade em questão, isto é, por incumprimento de contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, só admitido no art.29º CMR para a hipótese de dolo - ou equivalente, como, em ordenamento jurídico que tal contemple, como o francês, será o caso da denominada negligência grosseira (faute lourde) - por parte do transportador. Ora :

Estabelecidas no art.342º C.Civ. as regras gerais a que obedece o ónus da prova, verifica-se que assentam na denominada teoria das normas (Normentheorie), de Rosenberg, baseada, como explica Antunes Varela (9), na relação entre regra e excepção.

Segundo essa doutrina, " incumbe à parte cuja pretensão se apoia em determinada norma alegar e provar que os pressupostos dessa norma se verificam no caso concreto litigado ".

Resulta dela, em suma, que cada uma das partes terá de alegar e provar os pressupostos da norma que lhe é favorável.

De harmonia com esse critério, era, claramente, às ora recorrentes que cabia a prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, no caso, o art.29º CMR, servem de pressuposto ao efeito jurídico por elas pretendido, que é a obtenção duma indemnização sem as limitações estabelecidas nos precedentes arts.23º ss.

Nem dúvida sofrerá, enfim, que, em vista do art.29º CMR, no âmbito especial do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, em que, consoante arts.17º e 23º CMR, vigora a regra da limitação da responsabilidade do transportador, o dolo deste ou do pessoal respectivo é facto constitutivo do direito à indemnização plena que a lei geral assegura em sede de responsabilidade civil contratual ( como decorre dos arts.494º, a contrario sensu, e 562º C.Civ.).

Para esse efeito, de obter indemnização não sujeita aos limites estabelecidos no art.23º CMR, é, por conseguinte, sobre o destinatário que, conforme art.342º, nº1º, C.Civ., recai o ónus da prova de que a perda ou desaparecimento de mercadoria transportada se deveu a acto voluntário do transportador ou do pessoal ao seu serviço (10) .

Com preterição infundada da previsão do art.17º, nº1º, CMR, em que as ora recorrentes, com um tanto confuso discurso, vêm agora insistir, a sentença apelada partiu do regime geral da responsabilidade contratual, em vez de como devido, do regime próprio, particular ou especial, do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada celebrado pelas partes para concluir menos bem ( conforme pág. 7 dessa sentença, a fls.156 dos autos ) ser sobre a Ré, ora recorrida, que recaía o ónus da prova, e, consequentemente, da alegação, de factos que excluíssem que lhe fosse imputável dolo, negligência grosseira ou falta grave.

No nosso ordenamento jurídico, a equiparação da negligência grosseira ao dolo surgiu, pontualmente, como novidade, com a reforma processual civil operada em 1995/96, para o restrito efeito de condenação por litigância de má fé ( cfr. art.456º CPC ).

Regra no âmbito descrito no art.1º, nº1º CMR a limitação da responsabilidade imperativamente estabelecida, conforme art.41º, nº1º, no seu art.23º, era às demandantes - aliás bem cientes disso mesmo, como o próprio articulado inicial manifesta - que, para beneficiarem da excepção àquela regra estabelecida no art.29º, incumbia a demonstração de dolo da demandada, e não a esta que cabia provar estar tal efectivamente excluído na hipótese ocorrente (11) .

Mal cumprido, é certo, o dever de guarda ou custódia, e de zelo ou cautela, do transportador, por isso incurso na responsabilidade prevenida no art.17º, nº1º, CMR, bem, no entanto, se teve na Relação em conta o estabelecido nos arts.23º, nºs 3º, 4º e 7º CMR, cujo art.29º deixa sem cabimento a disposição geral do art.383º C.Com.

A predita Convenção, a que Portugal aderiu, vincula imediatamente os tribunais nacionais, desmerecendo contemplação os considerandos desenvolvidos em relação a solução que dela decorre linearmente, como é o caso da ora impugnada. Com efeito :

Como observado em aresto desta Secção de 17/5/2001, publicado na CJSTJ, IX, 2º , 91 - ( v.92, final da 1ª col.) :

" A CMR quis manifestamente manter dentro de certos limites o quantum indemnizatório a cargo do transportador.

Fica ressalvado o direito de o expedidor poder exigir indemnização maior desde que proceda de harmonia com os arts.24º e 26º, pagando por isso preço mais elevado pelo transporte ... ( ... )

Nem se diga que o transportador será assim tentado a " perder " a mercadoria.

A verdade é que ele responde pelo prejuízo, sendo apenas limitado o quantum no caso de mera culpa. "

Como então também notado, não se bastando com a responsabilização do transportador nos termos da Convenção aludida, o expedidor pode, ainda, segurar a mercadoria.

Alcança-se, em vista do exposto, a decisão que segue :

Nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 6 de Julho de 1006
Oliveira Barros - relator
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
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(1) No pedido formulado não há menção explícita de juros vincendos. Não foi, em todo o caso, reclamada eventual nulidade da decisão no que lhes diz respeito ( cfr. arts.661º, nº1º, e 668º, nºs 1º, al.e), e 3º, CPC ).
(2) V., a este respeito, Antunes Varela, RLJ 129º/51. Indicam-se, entre parênteses, as correspondentes alíneas e quesitos e, onde não haja parênteses, refere-se o aditado na sentença ao abrigo do disposto no art.659º, nº3º, CPC e com base no acordo das partes manifestado nos articulados e nos documentos a fls 25, 28, e 29. Omitiu-se o facto mencionado na sentença apelada sob o nº24 , que não se consegue compreender, pois é do teor seguinte : " O valor da mercadoria comprada à Ré ( ? ) ascendia a 8.526.000 liras italianas ". Esse montante é o da factura da sociedade italiana relativa à 1ª A., a fls.15 ss dos autos.
(3) Despesa desde logo não indemnizável face ao disposto no art.563º C.Civ., foi, no entanto, considerada na sentença apelada.
(4) V., v.g., Ac. STJ de 28/1/97, CJSTJ, V, 1º, 73-9.

(5) V. ARP de 19/5/87, CJ, XII, 3º, 169, 1ª col., IV-1. É assim expressamente referido na definição que dele dá o Ac.STJ de 11/3/99, CJSTJ, VII, 1º, 141-I ( e 145, 1º col., a meio), reproduzida em ARC de 19/5/98, CJ, XXIII, 3º, 23-I e IV.

(6) Como assinalado em Ac. STJ de 10/11/93, CJSTJ, I, 3º, 118-II e 120, final da 2ª col.-121, 3 primeiros par.

(7) Que decorre dos arts.494º, a contrario sensu, por não ser aplicável à responsabilidade obrigacional, e 562º C.Civ. Cfr. ARP de 23/6/87, CJ, XII, 3º, 211, citado na contestação. O mesmo em Ac.STJ de 20/5/97, CJST, V, 2º, 85, em que se menciona que o nº3º do art.23º CMR ( modificado pelo Protocolo de Genebra de 5/7/78 ) introduz, no respeitante ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, um desvio à disciplina geral da responsabilidade contratual que se traduz na fixação dum limite indemnizatório em caso de perda da mercadoria.
(8) E, assim, do extravio ou descaminho considerados, a propósito do qual a recorrente cita na alegação respectiva Alfredo Proença e J. Espanha Proença, " Transporte de Mercadorias ", 47, assim : " A perda e o extravio são figuras estruturalmente diferentes, porquanto aquela consiste no desaparecimento físico da mercadoria por acto involuntário do transportador ou do seu pessoal ( por ex., o volume que se desprende e cai no decurso da viagem, ou do líquido de recipiente, que foi sendo vertido ), o extravio consiste no descaminho da mercadoria por acto voluntário do transportador ou do seu pessoal ". Como observado em contra-alegação, resultando duma e outra dessas situações a não entrega da mercadoria ao destinatário, a distinção dos termos em confronto reside apenas na intencionalidade do acto. Tem-se, por isso mesmo, por incontornável que no regime da CMR a distinção só releva nas precisas condições do seu art. 29º, simplesmente consistindo a perda contemplada no art.17º, nº1º, na não entrega da mercadoria. Na contra-alegação da ora recorrida, cita-se, ainda, dos mesmos autores e obra, a página seguinte à referida pelas recorrentes ( ou seja, a pág.48 ) : " ( ... ) a jurisprudência do STJ (... ) entende que o conceito de perda tem, na Convenção, uma base heterogénea, incluindo, portanto, o extravio, salvo os casos de dolo ou falta equiparada ", e adita-se que o mais pelas mesmas desenvolvido reproduz o discurso daqueles autores no plano de iure condendo ( e não de iure condito), ou seja, no plano do que entendem ser o melhor regime, que não no do regime legal actualmente em vigor.

(9) No " Manual de Processo Civil ", 2ª ed., 456, último par. O subsequente desenvolvimento é o que se encontra na RLJ 117º/30 e 31.

(10) É, com inteira clareza, neste sentido Ac.STJ de 27/1/2005, proferido no Proc.nº 4499/04-6ª, com sumário no nº 87 dos Sumários de Acórdãos deste Tribunal organizados pelo Gabinete dos Juízes Assessores do mesmo, pág.58-1ª col. Bem que respeitante a avaria, v. também Ac.STJ de 17/3/2005, proferido no Proc.nº 4657/04-2ª, com sumário no nº89 dos Sumários referidos, pág.50 - IV e VIII.

(11) Na alegação que ofereceu na apelação ( respectiva pág.7, a fls.182 dos autos ), a ora recorrida cita a este propósito Francisco José Sanchez-Gamborino ,"El contrato de transporte internacional. CMR ", 250 e 251 : " El dolo ha de ser rigorosamente probado por quien invoque su existência. Nunca se presume." Não tivemos acesso a esta obra. Que no âmbito da CMR o dolo não se presume é o que, de facto, se afirmou em ARL de 9/2/93, CJ, XVIII, 1º, 122. Tão só, nos termos gerais do art.799º, nº1º, C.Civ., se presume, mesmo no âmbito da CMR, a mera culpa ou negligência do transportador, como elucidado, com citação de pertinente doutrina, em ARL de 21/11/91, CJ, XVI, 5º, 134-III e 135-9