Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
647/17.6T8OLH.E2.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECURSO DE REVISTA
REGIME APLICÁVEL
DUPLA CONFORME
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
VALOR DA CAUSA
SUCUMBÊNCIA
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – DISPOSIÇÕES INTRODUTÓRIAS / DISPOSIÇÕES GERAIS / RECURSOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / DECISÕES QUE ADMITEM RECURSO.
Doutrina:
- Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 600-602;
- Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª ed., Quid Juris, Lisboa, 013, p. 130;
- Cláudia Oliveira Martins, O procedimento de exoneração do passivo restante, Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, 2016, p. 222-223;
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, p. 384-389.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 14.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 629.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 06-03-2014, PROCESSO N.º 462/10.8TBVFR-L.P1.S1, IN SASTJASSESSORIA CÍVEL, NOVEMBRO DE 2018, P. 34;
- DE 18-09-2014, PROCESSO N.º 1852/12.7TBLLE-C.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-11-2014, PROCESSO N.º 1444/08.5TBAMT-A.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-05-2015, PROCESSO N.º 687/10.6TVLSB.L1.S1-A, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02-06-2015, PROCESSO N.º 189/13.9TBCCH-B.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-01-2016, PROCESSO N.º 32/14.1T2ASL-B.E1;
- DE 12-08-2016, PROCESSO N.º 841/14.1TYVNG-A.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 24-01-2017, PROCESSO N.º 51/14.8T8LSB-B.L1.S1;
- DE 13-07-2017, PROCESSO N.º 8951/15.1T8STB.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-12-2017, PROCESSO N.º 184/13.8TVNG-E.P1.S1;
- DE 24-04-2018, PROCESSO N.º 3429/16.9T8STS-B.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 698/17.5T8GMR-B.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-05-2019, PROCESSO N.º 12/12.1TBGMR-F.G2, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-05-2019, PROCESSO N.º 526/15.1T8CSC.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O artigo 14º, 1, do CIRE estabelece uma regra de não admissibilidade de recurso para o STJ, em terceiro grau de jurisdição, independentemente da verificação da dupla conformidade decisória, em litígios respeitantes ao processo de insolvência, incluindo os incidentes nele processados (como a exoneração do passivo restante) e as suas componentes e vicissitudes decisórias (como a que respeita à alteração do rendimento indisponível para cessão ao fiduciário).

II. A revista é exclusivamente admitida no art. 14º, 1, do CIRE para a oposição de julgados e afasta o regime geral recursivo e as impugnações gerais excepcionais previstas pelo art. 629º do CPC.

III. Convolada uma revista excepcional em revista normal e apreciada a sua admissibilidade de acordo com o art. 14º, 1, do CIRE, não se prescinde da verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade das decisões judiciais, desde logo os que respeitam ao valor relevante da causa e ao valor da sucumbência mínima em face da alçada da Relação (art. 629º, 1, do CPC).
Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça

6.ª Secção


I. RELATÓRIO

A) Por sentença datada de 23.5.2017, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA, na sequência da apresentação à insolvência efectuada por esse devedor em 19.5.2017.

B) Nesse mesmo requerimento de apresentação à insolvência, a devedora peticionou a exoneração do passivo restante, nos termos dos arts. 235º e ss do CIRE, que, depois de ouvido, e pronunciando-se pelo deferimento, o administrador da insolvência (no relatório a que alude o art. 155º do CIRE, que faz fls. 83 e ss), sem pronúncia dos credores, foi liminarmente admitido por despacho inicial de 8.11.2017 (fls. 109 e ss), transitado em julgado, sendo ademais declarado, pelo Juízo de Comércio de Olhão do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, que, “durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível da insolvente será aquele que ultrapassar o valor que venha a auferir e que exceda o valor de um salário mínimo nacional (com as sucessivas actualizações) até Abril de 2019 e, a partir dessa data, o valor igual ao salário mínimo nacional acrescido de € 50,00, a entregar ao fiduciário, nomeando para o cargo o Sr. Administrador de Insolvência” e que “durante o período de cessão – 5 anos após o encerramento do processo – a insolvente fica obrigada a observar as imposições previstas no nº 4 do artigo 239° do CIRE, na redacção introduzida pelo DL 79/2017, de 30 de Junho”.

C) Nessa mesma decisão foi declarado o encerramento do processo de insolvência, nos termos dos arts. 230º e 232º, 2, do CIRE.

D) Ainda nessa decisão judicial que declarou a insolvência, foi fixado provisoriamente à acção o valor de € 557,00 (vencimento da requerente), conforme artigo 15º do CIRE (fls. 38).

E) Inconformada, a insolvente veio interpor recurso de apelação. Em sequência, o Tribunal da Relação de Évora veio primeiro, nos termos do art. 662º, 2, c), do CPC, anular oficiosamente a decisão recorrida, sem conhecimento do mérito, ordenando que fosse proferida decisão pela 1ª instância sobre a matéria de facto, elencando especificamente os factos que considera assentes.

F) O Tribunal de 1.ª instância, na sequência do determinado, proferiu nova decisão em 21 de Junho de 2018 relativa à exoneração do passivo restante, que englobou a factualidade provada, reproduzindo-se no mais a anterior decisão, e remeteu os autos de novo ao Tribunal da Relação de Évora (fls. 238 e ss).

G) A insolvente reiterou a interposição de apelação da nova decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Olhão, Juízo de Comércio de Olhão / Juiz 2 (fls. 249 e ss), tendo  finalizado as suas Conclusões com os seguintes pontos:

hh) Deste modo, deve a decisão recorrida ser alterada, fixando-se em €870,00 o sustento mensal minimamente digno da Requerente.

ii) Conclui a Recorrente pedindo que o despacho inicial de exoneração do passivo restante seja substituído por outro que exclua do rendimento disponível que a insolvente venha a auferir o equivalente a um salário mínimo nacional e meio.

jj) O que significa que o valor mensal minimamente digno da insolvente deve ser fixado em, pelo menos um salário mínimo nacional e meio (com as sucessivas actualizações), mais €50,00 a partir de Abril de 2019.

ee) Declarando-se que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível da insolvente será aquele que ultrapassar o valor que venha a auferir e que exceda o valor de um salário mínimo nacional e meio (com as sucessivas actualizações) até Abril de 2019 e, a partir dessa data, o valor igual ao salário mínimo nacional e meio acrescido de € 50,00, a entregar ao fiduciário, nomeando para o cargo o Sr. Administrador de Insolvência.”

H) A credora Recorrida «BB S.A.» apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência e manutenção da sentença recorrida.

I) Decidindo numa segunda oportunidade, focando-se sobre a “adequação do valor excluído do rendimento disponível da recorrente”, o Tribunal da Relação de Évora concluiu que “a insolvente deve ceder ao fiduciário tudo o que exceda o valor correspondente a um salário mínimo nacional, o que nos merece inteiro acolhimento, para efeitos de sustento minimamente digno desta insolvente”, pelo que julgou “adequado que seja cedido todo o rendimento que exceda o montante correspondente a um salário mínimo nacional, qualquer que seja o título de tal recebimento, ao fiduciário durante o período de cinco anos, designado período da cessão, subsequente ao encerramento do processo de insolvência, como bem decidiu o Tribunal a quo, negando provimento ao recurso de apelação e, consequentemente, confirmando a decisão recorrida.

J) Novamente inconformada, a Recorrente interpôs recurso de revista excepcional para o STJ, tendo por base, considerando o Requerimento de Interposição e as suas Conclusões, os arts. 14º do CIRE e 672º, 1, b) e c) (suportando-se aqui na contradição com acórdão do STJ de 2/2/2016, processo 3562/14.1T8GMR.G1.S1), e formulando a final o mesmo que pedira ao Tribunal da Relação de Évora.

K) Por Acórdão de 28.3.2019, que faz fls. 383-384, a Formação de Juízes do STJ, a que alude o art. 672º, 3, do CPC, determinou que “(…) 5. À presente situação e decisão aplica-se o regime de recursos definido no art. 14º do CIRE. O n.º 1 deste art. 14º determina que no processo de insolvência não é, em regra, admissível o recurso dos acórdãos da Relação, excepto ‘se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro …’. Esta norma estabelece, pois, um regime especial de admissibilidade do recurso para as decisões proferidas no âmbito do processo de insolvência, sendo certo que o regime instituído na norma não é condicionado pelo regime da revista excepcional, designadamente pela existência da dupla conformidade das decisões das instâncias. Assim, deve valer o regime especial consagrado no evidenciado dispositivo, em detrimento do regime geral de recursos e, consequentemente, não deve ter aplicação o regime comum relativo à revista excepcional. (…)”

L) Nesse mesmo Acórdão, foi convolado e distribuído o presente como revista normal (ponto 6. do aludido Acórdão).

M) A recorrente apresentou nas suas Conclusões estes itens (aqui seleccionados):

a) O art 14º do CIRE admite a interposição de recurso, na esteira do expresso no art. 672.°, n.º 1, al. c) do CPC, quando o Acórdão da Relação está em contradição com outro já transitado em julgado, proferido por qualquer outro, da Relação ou pelo STJ, no domínio da mesma legislação.
b) O acórdão 3562/14.1T8GMR.G1.S1 do Supremo Tribunal de Justiça que se nos apresenta em contradição com o douto acórdão proferido pela Relação de Évora, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, indica-nos uma noção de ‘agregado familiar’ que é desconsiderada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora e pelo Despacho proferido em Primeira Instância.

c) Neste sentido, é de realçar o facto de no acórdão do STJ proferido no processo n.º
3562/14.1T8GMR.G1.S1 se concretizar a noção do conceito de ‘dignidade’ o qual se
indissocia da exigência do sustento do devedor e do seu agregado família, enaltecendo-
se a discricionariedade do julgador para concretizar e definir tal montante: Ao casal
reformado a que alude o douto Acórdão do STJ, equipara-se, operando a respetiva
analogia, ao caso da recorrente e das suas duas filhas menores, que consigo residem 15
dias por mês.

d) Ora, o Acórdão recurso que ora se motiva é interposto do Acordão do Tribunal da Relação de Évora que confirma o novo Despacho de Exoneração de Passivo Restante proferido no processo em epígrafe referenciado na sequência do primeiro Acórdão proferido pela Relação do Tribunal de Évora que determinou o englobamento de factualidade provada no referido Despacho, não obstante, o determinado no douto Acórdão da Relação de Évora, e apesar dos factos supervenientes nele descritos pela Recorrente, no novo douto Despacho de Exoneração de Passivo Restante, que ora se recorre, pode ler-se na Decisão que "durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível da insolvente será aquele que ultrapassar o valor que venha a auferir e que exceda o valor de um salário mínimo nacional (com as sucessivas actualizações) até Abril de 2019 e, a partir dessa data, o valor igual ao salário mínimo nacional acrescido de € 50,00, a entregar ao fiduciário, nomeando para o cargo o Sr. Administrador de Insolvência.

(…)

r) Ora, o valor mensal apresentado no despacho recorrido não poderá ser minimamente
aceitável, atentas as responsabilidades parentais e os parcos rendimentos da
Requerente, os quais são complementados com muito sacrifício profissional e pessoal (…).

(…)
w) Neste contexto, não se coaduna a actual decisão de exoneração do passivo restante em
relação àquele que deve ser considerado o rendimento disponível para a ora Recorrente
insolvente.

(…)

z) O que significa que o valor mensal minimamente digno da insolvente deve ser fixado em, pelo menos um salário mínimo nacional e meio (com as sucessivas actualizações), mais € 50,00 a partir de Abril de 2019.

(…)

ff) A ora Recorrente pretende que seja revogada a decisão que fixou para o seu sustento
minimamente digno o montante de um salário mínimo nacional, acrescido de € 50,00
atenta a comparticipação da ora recorrente para as suas filhas menores, num total que
oscilará, entre os €580,00 e os €630,00, argumentando que tendo em conta as
necessidades do seu agregado familiar
deveria ter sido o mesmo fixado em, pelo menos,
num montante equivalente a um salário minimo nacional e meio, acrescido dos €50,00

atenta a comparticipação da ora recorrente para as suas filhas menores.

(…)
kk) Deste modo, deve a decisão recorrida ser alterada, fixando-se em €870,00 o sustento mensal minimamente digno da Requerente.
ll) Conclui a Recorrente pedindo que o despacho inicial de exoneração do passivo restante
seja substituído por outro que exclua do rendimento disponível que a insolvente venha a
auferir o equivalente a um salário mínimo nacional e meio.

mm) O que significa que o valor mensal minimamente digno da insolvente deve ser
fixado em, pelo menos um salário mínimo nacional e meio (com as sucessivas
actualizações), mais €50,00 a partir de Abril de 2019.

nn) Declarando-se que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo, o
rendimento disponível da insolvente será aquele que ultrapassar o valor que venha a
auferir e que exceda o
valor de um salário mínimo nacional e meio (com as sucessivas
actualizações) até Abril de 2019 e, a partir dessa data, o valor igual ao salário mínimo
nacional e meio acrescido de € 50,00
, a entregar ao fiduciário, nomeando para o cargo o
Sr. Administrador de Insolvência.

oo) Por este motivo a impugnação que se realiza à matéria de facto deveria espelhar em
concreto a realidade que ora se expôs,

pp) Sendo que ao invés da Fundamentação de facto apresentada, o facto provado a) 1) “A
devedora AA aufere o rendimento mensal de € 557,00, vive
sozinha e paga € 260,00 de renda de casa, suportando com a electricidade e gás a quantia
de € 47,22 por mês e € 30,000 mensais de água”,
deveria ter sido dado como provado de
forma diversa, por decorrer dos elementos juntos com a PI
, nomeadamente, de acordo
com a Acta da regulação das responsabilidades parentais que a recorrente tem durante 15 dias por mês 2 menores a seu cargo integral, pelo que o facto provado deveria ser
alterado do seguinte modo: “A devedora AA aufere o
rendimento mensal de € 557,00,
vive sozinha 15 dias, e os restantes 15 dias tem a seu
cargo as duas filhas menores
e paga € 260,00 de renda de casa, suportando com a
electricidade e gás a quantia de € 47,22 por mês e € 30,000 mensais de água”;

qq) O que justifica sobremaneira a alteração da decisão do Tribunal de Primeira Instância e
do Tribunal da Relação de Évora que a confirmou, devendo substituir-se as decisões
proferidas por outra que considerasse verdadeira composição do agregado familiar e a
convivência e participação no sustento das duas filhas menores da recorrente durante os
15 dias por mês, termos em que se deveria considerar por adequado que fosse cedido à
recorrente
todo o rendimento que exceda o montante correspondente a um salário mínimo
e meio
qualquer que seja o título de tal recebimento, ao fiduciário durante o período de 5
anos, designado período de cessão, subsequente ao encerramento do processo de
insolvência.

(…)
(vv) Se tal situação não for corrigida, será insustentável para a recorrente o cumprimento.
(ww) Assim, e como nos diz o douto Acórdão do STJ citado: “Não constando, nem da Lei
Fundamental, nem da lei ordinária, a existência de um salário mínimo familiar, definido em função dos rendimentos dessa natureza e da composição do agregado familiar, não existe fundamento legal para, no caso de ambos, os membros do casal terem sido declarados
insolventes e lhes ter sido concedida a exoneração do passivo restante, se atribuir um
valor global não discriminado que, desde que supere o salário mínimo nacional, se deva
considerar rendimento propiciador de um nível de vida minimamente digno. (...) o valor de
€ 750 que lhes (duas pessoas idosas, analogamente a Recorrente e as suas duas filhas
menores durante os 15 dias que estão a tempo completo com a mãe ora recorrente) foi
reservado como isento de cessão, não é compatível com a dignidade que a Lei Fundamental exige e o critério do art. 239º, n.º 3, al. b)-i, do CIRE acolhe. VIII – Apesar de
se dever considerar que a economia familiar importa peculiar gestão dos rendimentos
auferidos, tratando-se no caso de réditos diferenciados, ainda que com origem comum –
ambos os recorrentes são devedores/insolventes e auferem pensão de velhice – a cada
um deles deve ser atribuído montante igual ao salário mínimo nacional – porque só assim
se lhes assegura uma vivência compatível com a dignidade humana, tendo em conta
aquilo que deve ser o valor compatível com “o sustento minimamente digno”.

N) Por despacho do Relator nesta Secção, uma vez apresentados os autos nos termos do art. 672º, 5, do CPC, para «exame preliminar», as partes foram interpeladas para se pronunciarem, querendo, nos termos do art. 655º, 1, do CPC, por força do art. 679º do CPC, tendo em conta a tramitação do recurso de acordo com o artigo 14º, 1, do CIRE e a possibilidade de tal obstar ao conhecimento do recurso de revista.

O) A recorrente respondeu a tal interpelação: reiterou a admissibilidade do recurso, pois cumpre os “requisitos gerais de impugnação recursiva”, assim como as “especificidades contidas no art. 14º, n.º 1, do CIRE”, nomeadamente a contradição jurisprudencial com o Ac. do STJ supra referido.

P) Corrido o prazo legal, nenhum recorrido se pronunciou.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir em Conferência.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO

Questão prévia da admissibilidade do recurso

1. O especial regime dos recursos previsto no art. 14º, 1, do CIRE («No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.») tem sido objecto de uma apurada e fundamentada aplicação por parte deste Supremo Tribunal e nesta 6.ª Secção.

Em primeira linha, no que respeita ao âmbito de aplicação da disciplina restritiva nele contido em razão da matéria – logo, da amplitude da inibição de acesso de Acórdãos proferidos por Tribunal da Relação ao terceiro grau de jurisdição do STJ, tendo em conta a especialidade da norma de irrecorribilidade –, tem-se uniformemente julgado e decidido que a revista “normal” – independentemente do juízo sobre a condição negativa da “dupla conformidade decisória”, tal como prevista no art. 671º, 3, do CPC – está vedada a todas as decisões proferidas no processo de insolvência (e, extensivamente, no processo especial de revitalização), incluindo-se as decisões tomadas nos incidentes que do ponto de vista formal e estrutural integram o referido processo e nele se tramitam (excluindo-se portanto da irrecorribilidade todas as acções e incidentes processados por apenso ao processo de insolvência e PER, a não ser, por expressa previsão legal e constituindo apenso nos termos do art. 41º, 1, do CIRE, os embargos opostos à sentença de declaração de insolvência): v., por ex., os Acs. de 13/11/2014[1] e de 12.8.2016[2], absorvendo igualmente a posição e os fundamentos da doutrina, focada com acerto na relação do n.º 1 com o n.º 2 (quando neste se faz referência a «todos os recursos interpostos no processo ou em qualquer dos seus apensos») do art. 14º do CIRE[3]. Em suma, a razão visada na restrição (ao art. 671º, 1 e 2, do CPC), centrada na particular celeridade e desejada estabilidade processual nas matérias da insolvência (cfr. Preâmbulo, ponto 16, do DL n.º 53/2004, que aprovou o CIRE) e da revitalização pré-insolvencial, aplica-se à tramitação endógena dos processos e deixa de fora a tramitação apensa e adjectivamente autonomizada desses mesmos processos, cujos litígios correm o regime comum (como induz justamente o referido art. 14º, 2, do CIRE). Para essa tramitação endógena tão-só se admite que se precluda a limitação do direito de recurso a um grau apenas nos casos de oposição de acórdãos em matéria relativamente à qual não exista ainda uniformização de jurisprudência (2.ª parte do art. 14º, 1).

Ora, se assim é, como tem sido entendimento constante, o incidente de exoneração do passivo restante, sendo tramitado (especificamente para pessoas singulares) nos próprios autos de insolvência, é abrangido pelo art. 14º, 1, do CIRE, o que veda, em princípio, reapreciação da decisão sobre o pedido principal do incidente e sobre qualquer dos seus despachos e decisões próprios (nos termos e pressupostos dos arts. 236º-248º do CIRE, até sob a forma de subincidentes[4]). É o caso dos autos, em que, a propósito da “cessão do rendimento disponível” determinada no despacho inicial(-liminar) de admissão do incidente (regulado no art. 239º)[5], a Insolvente, aqui Recorrente, pugnou até à Relação pela alteração do despacho de exoneração do passivo superveniente a fim de ser substituído por decisão que aumente o valor da quantia indisponível para efeitos de cessão ao fiduciário – para casos análogos, v. os Acórdãos do STJ de 24/1/2017[6] e de 14/5/2019[7].

Em segunda linha, no que toca à relação com o regime comum de recursos perante o STJ, a jurisprudência desta 6.ª Secção não deixa margem para dúvidas: “[o regime do art. 14º, 1, é] um regime especialíssimo o qual, a se, afasta o regime geral recursivo e ainda todas as impugnações gerais excepcionais prevenidas no artigo 629º do CPCivil, assim como afasta o regime recursório atinente à Revista excepcional” (por todos, cita-se exemplarmente o Acórdão de 13.7.2017[8]). Se assim igualmente é, tal asserção tem o significado elementar de não poder serem seguidos o regime e o procedimento decisório da revista excepcional, plasmados nos arts. 671º, 3, e 672º, 1 e 2, do CPC, quando está em causa um recurso interposto nos termos do artigo 14.º, 1, do CIRE. Daqui se compreende a decisão da Formação tomada nos autos, motivando a sua distribuição como revista “normal”.

Daqui resulta, em síntese, que esta revista, uma vez assim distribuída pela Formação:

— não pode deixar de ser atípica, na exacta medida em que apenas e exclusivamente poderá ser apreciada tendo em conta a oposição de julgados invocada para a sua viabilização, nos termos determinados pela 2.ª parte do n.º 1 do art. 14º do CIRE, e das normas aplicáveis à regularidade de recurso fundado em “conflito jurisprudencial”, sem mais qualquer outro fundamento;

— não prescinde de ser comum ou ordinária, uma vez que a admissibilidade da revista implica necessariamente a verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade das decisões judiciais, entre os quais se contam, em figurino cumulativo, a relação entre o valor da causa e da sucumbência e a alçada dos tribunais da Relação, regulada no art. 629º, 1, do CPC, aplicável por força do art. 17º, 1, do CIRE, tal como não dispensa a verificação dos requisitos próprios de admissibilidade legal do recurso de revista, tal como indicados no art. 671º, CPC, sempre por força da remissão operada pelo art. 17º, 1, do CIRE.


2. Uma vez admitida e convolada em revista “normal”, a admissibilidade do recurso está dependente da existência de contradição ou oposição de julgados à luz da 2.ª parte do art. 14º, 1, do CIRE, tal como alegado nas Conclusões da corrente.

Porém, independentemente da análise formal e substancial da subsistência da oposição do acórdão recorrido com o acórdão fundamento do STJ, e ainda que não se junte cópia, ainda que não certificada, desse acórdão (art. 637º, 2, CPC), o certo é que a submissão do recurso de revista após convolação ao crivo do art. 629º, 1, do CPC, leva à rejeição do presente recurso, pois não se dispensa a verificação dos pressupostos gerais do valor da causa e da sucumbência em confronto com a alçada legal, por força da aplicação do art. 17º, 1, do CIRE (v. os Acórdãos do STJ de 24/4/2018[9], 12/12/2017[10], 26/1/2016[11], 2/6/2015[12] e 18/9/2014[13]-[14]). Seja se nos focarmos no valor relevante da causa (que se apreende na decisão de declaração de insolvência: cfr. arts. 15º do CIRE e 306º, 2, 307º, 1, 1ª parte, do CPC), seja se sindicarmos o valor da sucumbência sofrido pela Recorrente com o acórdão sob recurso – a Recorrente pugnava pelo aumento da quantia indisponível do montante originariamente fixado em referência ao valor de um salário mínimo nacional (com as sucessivas actualizações) até Abril de 2019 e, a partir dessa data, a valor igual ao salário mínimo nacional acrescido de € 50,00, para o montante de € 870[15] e tal foi indeferido com a improcedência da apelação –, não se cumpre o art. 629º, 1, CPC, em referência ao valor da alçada (legalmente vigente) do Tribunal da Relação (€ 30.000: art. 44º, 1 e 3, da Lei 62/2013, de 26 de Agosto). Por isso, há inequívoco motivo para julgar findo o recurso.


3. Já no que respeita a um outro segmento das Conclusões da Requerentes, a saber – «pp) Sendo que ao invés da Fundamentação de facto apresentada, o facto provado a) 1) “A devedora AA aufere o rendimento mensal de € 557,00, vive sozinha e paga € 260,00 de renda de casa, suportando com a electricidade e gás a quantia de € 47,22 por mês e € 30,000 mensais de água”, deveria ter sido dado como provado deforma diversa, por decorrer dos elementos juntos com a PI, nomeadamente, de acordo com a Acta da regulação das responsabilidades parentais que a recorrente tem durante 15 dias por mês 2 menores a seu cargo integral, pelo que o facto provado deveria ser alterado do seguinte modo: “A devedora AA aufere o rendimento mensal de € 557,00, vive sozinha 15 dias, e os restantes 15 dias tem a seu cargo as duas filhas menores e paga € 260,00 de renda de casa, suportando com a electricidade e gás a quantia de € 47,22 por mês e € 30,000 mensais de água.» –, é de todo inadmissível o seu conhecimento, uma vez atendida a preclusão do regime geral de fundamentos da revista comum, previstos no art. 674º do CPC (e independentemente da sua averiguação em concreto, neste caso em averiguação do art. 662º e sindicação do art. 674º, 1, b)), de acordo com a interpretação seguida do art. 14º, 1, do CIRE.

4. Não se verificando os pressupostos de admissibilidade da revista enquadrada no art. 14º, 1, do CIRE, em referência aos requisitos gerais da impugnação recursiva, demandados pela aplicação do art. 17º, 1, do CIRE, fica vedado a este tribunal – por falência, quanto a esses requisitos gerais, em cumulação, do valor relevante da causa e da sucumbência mínima – conhecer do objecto do recurso.

III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso, atenta a sua manifesta inadmissibilidade.


*

Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário.

STJ/Lisboa, 11 de Julho de 2019

Ricardo Costa (Relator)

Assunção Raimundo

Ana Paula Boularot

SUMÁRIO (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

____________________
[1] Processo n.º 1444/08.5TBAMT-A.G1.S1, Rel.: Pinto de Almeida, in www.dgsi.pt.
[2] Processo n.º 841/14.1TYVNG-A.P1.S1, Rel.: Nuno Cameira, in www.dgsi.pt.
[3] Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª ed., Quid Juris, Lisboa, 013, sub art. 14º, pág. 130. V., ainda na jurisprudência da 6.ª Secção do STJ sobre esse argumento, o Acórdão de 6.3.2014, processo n.º 462/10.8TBVFR-L.P1.S1, Rel. Azevedo Ramos, com disponibilidade de Sumário in A admissibilidade do recurso de revista no processo de insolvência – A jurisprudência recente da 6.ª Secção do STJ, Assessoria Cível do STJ, Novembro de 2018, pág. 34.
[4] V. em abono, no que respeita a publicação e registo e ao regime de apoio judiciário, os arts. 247º e 248º do CIRE.
[5] V., para a tramitação e fixação da (in)disponibilidade, Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, págs. 600-602, Cláudia Oliveira Martins, “O procedimento de exoneração do passivo restante”, Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, 2016, págs. 222-223, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 384-389.
[6] Processo n.º 51/14.8T8LSB-B.L1.S1, Rel.: Salreta Pereira (com disponibilidade de Sumário in A admissibilidade do recurso de revista no processo de insolvência… cit., pág. 20).
[7] Processo n.º 12/12.1TBGMR-F.G1526/15.1T8CSC.L1.S1, Rel. Ricardo Costa, in www.dgsi.pt.
[8] Processo n.º 8951/15.1T8STB.E1.S1, Rel.: Ana Paula Boularot, in www.dgsi.pt. Mais recentemente, com igual Rel., v. o Acórdão de 12.7.2018, processo n.º 698/17.5T8GMR-B.G1.S1, www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 3429/16.9T8STS-B.P1.S1, Rel.: Ana Paula Boularot, in www.dgsi.pt.
[10] Processo n.º 184/13.8TVNG-E.P1.S1, Rel. Júlio Gomes, Sumário in A admissibilidade do recurso de revista no processo de insolvência… cit., pág. 10.
[11] Processo n.º 32/14.1T2ASL-B.E1, Rel. Nuno Cameira, Sumário in A admissibilidade do recurso de revista no processo de insolvência… cit., pág. 27.
[12] Processo n.º 189/13.9TBCCH-B.E1.S1, Rel.: Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt.
[13] Processo n.º 1852/12.7TBLLE-C.E1.S1, Rel.: Maria dos Prazeres Beleza, in www.dgsi.pt.
[14] Concordante: Abrantes Geraldes, Recursos… cit., pág. 67 e nt. 103, em articulação com as págs. 57 e 59 e 61.
[15] São esses os montantes que devem ser considerados para aferir a perda resultante da improcedência da apelação em face do decidido pela 1.ª instância (“decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor (…)”, diz o art. 629º, 1, CPC, interpretado quanto à “sucumbência mínima” de acordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ, de 14/5/2015 (AUJ n.º 10/15), processo n.º 687/10.6TVLSB.L1.S1-A, Rel. Fernando Bento, in www.dgsi.pt: “diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1.ª instância e no acórdão da Relação”).