Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
351/13.4JAFAR.E1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: ARMA PROIBIDA
CÔNJUGE
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
EXEMPLOS-PADRÃO
FINS DAS PENAS
FRIEZA DE ÂNIMO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 03/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA.
Doutrina:
- Augusto da Silva Dias, Delicta in se, Coimbra Ed., 2008, 419.
- Cristina Líbano Monteiro, in RPCC, Ano XVI, I, Janeiro - Março de 2006, 164.
- Eduardo Correia, Direito Criminal, II, 1965, 301-303.
- Fernando Silva, Direito Penal Especial – Crimes contra as pessoas, 48 e ss..
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 290 -292.
- Iesheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, 1194.
- J. António Veloso, “As Penas”, in R. O. A., Abril de 1999, 536, 560
- Maia Gonçalves, “Código Penal”, Anotado, 18.ª ed., 2007, 509.
- Maria Margarida da Silva Pereira, Direito Penal, II, Os Homicídios, AAFDUL, 2008, 100-103.
- Miguez Garcia e Castela Rio, “Código Penal”, 616.
- Rabinowick, Crimes Passionais, 2007, 54, 182.
- Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, comentário ao art.º 152.º
- Teresa Serra, Homicídio qualificado, 63.
- Eduardo Correia, Comissão Revisora do Código Penal, de 82, Actas, 1979, 24.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.º2, 71.º N.ºS 1 E 2, 77.º, N.º1, 131.º, 132.º, N.º2, ALS. B), J), 152.º, N.ºS 1 A), 2 E 4.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º, 24.º, 25.º E 26.º.
LEI N.º 5/2006 DE 23/02, COM A ALTERAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N.º 17 / 2009, DE 6/5: - ARTIGO 86.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-DE 10.12.2014.

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 18.6.86, BMJ 358, 260, DE 8.2.84, BMJ, 334, 251, DE 2.10.97, P.º N.º 689/97, DE 18.2.98, P.º N.º 1414/97, DE 15.4.98, P.º N.º 74/98, DE 30.10.2003, P.º N.º 3281/03, DE 16.2.2005, IN CJ, STJ, 2005, I, 196, DE 17.1.2007, CJ, STJ, I, PÁG. 170, DE 12.1.2008, P.º N.º 2806 /08, 3.ª SEC., DE 20.10.2010, P.º 651/09.8PBFAB. AR, 3.ª SEC., DE 30.11.2011, P.º N.º 238/10. 2.JACBR. S1;
-DE 4.10.2006, CJ, ANO XIV, TIII, 205;
-DE 17.1.2007, P.º N.º 3485/06.-3:ª SEC.;
-DE 27.3.2008, P.º N.º 815/08;
-DE 14.7.2010, P.º N.º 364/09.OGESLV.E1. S1, 3.ª SEC.;
-DE 16.6.2011, P.º N.º 600/09-3.ª;
-DE 12.3.2015, P.º N.º 40/11.4JAAVR.C2, 3.ª.
Sumário :

I - As circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132.º do CP têm de reflectir uma imagem global do facto agravada, um plus de culpa do agente, quando comparativamente com o homicídio simples, pelo concurso desses exemplos-padrão, de verificação não automática, em termos da pena estabelecida para o homicídio simples não responder aos sentimentos colectivos dominantes, ao seu sentido de justiça e aos fins das penas.
II - A magnitude da culpa há-de mostrar uma especial censurabilidade ou perversidade, aquela documentando uma forma especialmente desvaliosa de realização do facto pelo agente, esta revelando a presença de qualidades especialmente desvaliosas na sua personalidade enquanto relação com o dever jurídico e ético-existencial imposto pelas regras de subsistência comunitária.
III -A jurisprudência do STJ tem afirmado que a frieza de ânimo é uma acção praticada a coberto de evidente sangue frio, pressupondo um lento, reflexivo, deliberado, calmo e imperturbado processo na preparação e na execução do crime, que maquinou, por forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e pela vida humana.
IV - O arguido age a coberto de um lento, frio, reflexivo e cauteloso desígnio de matar, rebelde à reflexão e à ponderação em contrário, se seleccionou o meio adequado de dar a morte ao cônjuge, o meio mais certeiro, ao mesmo tempo em que repudiou qualquer outro que menos probabilidade de sucesso lhe oferecesse.
V - A finalidade da pena, na concepção utilitarista afirmada no art. 40.º do CP, é a de prevenção, tanto geral, como forma de neutralizar o efeito de delito como exemplo negativo para a sociedade e de fortalecer a consciência jurídica da comunidade, como especial, em vista da reinserção social do agente, por forma a não reincidir.
VI - Crime passional é o que se comete por paixão, não aquele em que o agente mata por ciúme, por egoísmo, por sentido de posse ou por vingança, casos em que o agente não merece indulgência.
VII - Considerando que o propósito criminoso é muito intenso, que retirou a vida à mulher com quem esteve casado durante quase 30 anos, mãe das suas três filhas, duas delas menores, que actuou num clima traiçoeiro e imprevisto, apanhando-a de surpresa na via pública, imobilizando-a com um braço à volta do pescoço e disparando de imediato um tiro na cabeça, e que cometeu o crime na presença da filha mais nova do casal, é de aplicar a pena de 19 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado dos arts. 131.º e 132.º. n.ºs 1 e 2, als. b) e j), do CP, agravado pelo art. 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23-02.
VIII - A pena do concurso tem como limite mínimo a parcelar mais alta e como limite máximo o somatório de todas as penas aplicadas (2 anos e 6 meses pela prática de um crime de violência doméstica do art. 152.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 4, do CP, 1 ano e 6 meses pela prática de um crime de detenção de arma proibida do art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006 e 19 anos pela prática do crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma de fogo sem manifesto e registo).
IX - Considerando a gravidade dos factos, o dolo e a ilicitude elevadas e as acentuadas necessidades de prevenção geral e especial, condena-se o arguido na pena conjunta de 21 anos de prisão.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do  Supremo Tribunal de Justiça:


 No âmbito do P.º  Comum com intervenção do Tribunal Colectivo N.º 351/13.4JAFAR,  do Tribunal Judicial da Comarca do ..., foi julgado o arguido AA, e, a final, condenado pela prática de:

 um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.ºs 1, alíneas a), 2 e 4, do Código Penal na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

 de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos art.º 131.º e 132.º n.º 1 e 2 al. b) e j) do Código Penal, agravado pelo art. 86º n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23/02,  na pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão.

um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº. 86º n.º 1 al. c) da Lei n.º 5/2006 de 23/02, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, em cúmulo  jurídico  na pena única de 24 (vinte e quatro) anos de prisão.

Em recurso por si interposto a Relação alterou, reduzindo, a medida da pena imposta pela pratica do crime de homicídio qualificado na pessoa do cônjuge, condenando-o na pena de 21 anos de prisão, e em cúmulo com as demais, que manteve, aplicou a o arguido a pena única de 22 anos de prisão, interpondo o arguido recurso formulando as seguintes:     

C O N C L U S Õ E S:

 1º. - A  douta sentença  recorrida condenou o Arguido na pena de 21anos de prisão pelo crime de homicidio, pº pº pelos Artº 131º e 132º, nº 1 e 2 alíneas b) e j) do Código Penal, agravado pelo Artº 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro;

 2º. - A razão do recurso reporta-se tão somente à medida da pena;

 3º. – A pena a arbitrar ao Arguido deveria situar-se próximo do seu limite médio e não do máximo;

4º. - Nos termos do Artº 131º e 132º, ambos do C.P., a moldura penal para o crime de homicídio qualificado praticado pelo Arguido é a prisão de 12 a 25 anos;

5º. – A determinação da medida da pena far-se-á em função da culpa do  agente e das exigências da prevenção - Artº 71º nº 1, do C. Penal;

  6º. – A culpa do agente não é susceptível de medida exacta, fica o julgador com uma certa liberdade na apreciação e determinação da pena;

 7º. – A liberdade do julgador é, porém, uma liberdade juridicamente vinculada ao princípio da culpa e aos fins das penas (protecção de bens jurídicos e integração do agente na sociedade) -Artº 40º do CP.

 8º. - O ponto óptimo de determinação da medida concreta a aplicar verá ter por base as exigências de prevenção especial e de reintegração social do agente;

 9º. – O Arguido agiu movido de ciúme e ímpeto de paixão;

 10º. – Foi uma reacção descontrolada na sequência do encontro com a vítima;

11º. - Neste tipo de crime – crime passional - o agente é impelido pela paixão e os sentimentos arrebatadores sobrepõem à lucidez e razão e, deste modo, leva o agente a cometer o delito;

12º. – O Arguido é PRIMÁRIO, tinha 49 anos de idade e ao longo da sua vida sempre mostrou capacidade crítica, noções sócio-morais  adequadas à percepção do ilícito criminal;

13º. - Estava integrado social e familiarmente, tinha hábitos de trabalho, porque estava a trabalhar há vários anos para o Município de ...;

14º. – A prevenção geral e a reintegração do arguido na sociedade poderá fazer-se de forma mais equilibrada, mediante uma pena me nos gravosa;

15º. – A pena visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do  agente na sociedade – Artº 40º, nº 1 do Código Penal;

16º. – A prevenção especial visa a socialização do agente, no sentido d e o preparar para no futuro não cometer outros e no neste caso temos um Arguido cuja personalidade não indica que no futuro irá praticar outros crimes;

17º. – O crime enquadra-se perfeitamente nos crimes passionais:

18º. – Para a prevenção geral, a comunidade não exige que o Arguido seja condenado numa pena próxima do seu limite máximo;

19º. – O sentido de justiça da comunidade face à culpa apurada, ficará restabelecida com um pena fixada no limite médio da pena e que constituirá o ponto óptimo da realização das necessidades preventivas da comunidade;

 20º. – Assim, é manifestamente elevada a pena de prisão de 21 anos de prisão para o crime de homicídio;

21º. – Violando as normas constantes dos do Artº71º, 131ºe 132º, todos  do Código Penal;

22º. – Tudo ponderado, entendemos adequado a aplicação ao Arguido  da pena de 15 anos de prisão pelo crime de homicídio;

23º. – E em cúmulo jurídico na pena única de 17(Dezassete) ANOS  DE PRISÃO.

 Discutida a causa, mostram-se provados os seguintes factos:

1. O arguido e BB casaram no dia ..., tendo vivido maritalmente até ao dia ... , data em que a denunciante se ausentou da residência do casal, sita na Rua ..., área desta comarca.

2. Desse casamento nasceram três filhos, ..., nascida em ....1984, Elsa ..., nascida em ....1997 e ... nascida em ....2005.

3. Desde pelo menos o ano de 2008 que o relacionamento conjugal se deteriorou e o arguido vinha agredindo verbalmente a sua esposa dirigindo-lhe nomeadamente as seguintes expressões: "vaca, puta, estúpida, não vales nada, tens amantes, tens de provar que as filhas são minhas".

4. Em data não concretamente apurada mas entre o dia 19 e o dia 23 de Abril de 2013, à noite, no interior da residência do casal, o arguido atirou o prato com a comida ao chão ao mesmo tempo que dirigia à sua esposa BB as seguintes expressões:

"Vaca, puta dum cabrão, não vales nada". Acto contínuo, o arguido abriu o seu canivete e encostou-a ao pescoço da esposa BB ao mesmo tempo que dizia que lhe separava a cabeça do tronco.

5. Em ocasião distinta mas também entre o dia 19 de Abril de 2013 e o dia 23 do Abril, no interior da residência do casal, o arguido desferiu uma chapada na sua esposa, apertou-lhe os braços e o pescoço, abrindo a porta e convidando-a a sair de casa.

6. Do exame médico-legal realizado à denunciante, datado do dia 26 de Abril de 2013, resulta que apresentava marcas avermelhadas na face anterior do pescoço e três hematomas arredondados na face posterior do braço, lesões compatíveis com os factos descritos pela própria e que lhe determinaram 8 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.

7. Desde a data em que denunciante saiu de casa, 24 de Abril de 2013, até ao dia 30 de Novembro de 2013, o arguido contactou-a por diversas vezes, quer pessoalmente na rua, quer através de chamadas telefónicas, com o intuito de a mesma retirar a queixa apresentada e regressar para a residência do casal, caso contrário a matava.

8. Acresce que por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido circulava com o seu veículo junto da residência da denunciante à data, sita na Rua ..., bem como a vigiava no seu dia-a-dia, controlando os seus movimentos, encoberto e oculto entre habitações.

9. No dia 25 de Maio de 2013, cerca das 11 horas e 10 minutos, no Pavilhão Gimnodesportivo de ..., área desta comarca, o arguido dirigiu-se junto da sua esposa com o intuito de a fazer voltar a casa.

10. No dia 29 de Junho de 2013, pelas 3 horas e 16 minutos, o arguido enviou mensagem através do seu telemóvel com o cartão n.º ... com o seguinte teor: "Estás a fazer bem, nunca te esqueças o mal é para ti".

11. Com as suas condutas o arguido quis, de modo continuado, molestar e humilhar física e psiquicamente a sua esposa BB, bem sabendo que punha em causa a sua integridade física, dignidade pessoal, seriedade e reputação.

12. Mais sabia que as suas condutas eram adequadas e idóneas a provocar-lhe, como o fez, ferimentos físicos, medo, clima de terror, inquietação, sobressalto, tristeza, mágoa e desgaste psicossomático, para além de a atingir na sua honra e consideração, o que perturbava o seu bem estar físico e psíquico, o que conseguiu.

13. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

14. No dia 25.07.2013 foi deduzida acusação contra o arguido no âmbito do processo n.º 49/13.3GAORQ, acusação essa que lhe foi notificada no dia 31.07.2013. No âmbito desse mesmo processo foi-lhe aplicada, além do mais, a medida de coacção de afastamento da então residência da esposa e de proibição de contactos com a mesma por qualquer meio, exceptuando-se os contactos telefónicos para assuntos relativos às responsabilidades parentais. No dia 24.11.2013 o arguido foi notificado de que havia sido designado o dia 2.12.2013 para se proceder a interrogatório complementar.

15. Em data não concretamente apurada, mas entre o dia 24 de Abril e o dia 30 de Novembro de 2013, o arguido AA adquiriu a um individuo cuja identificação não foi apurada, uma pistola semí-automática, de marca TANFOGLIO, de modelo GT 28, de cor prateada com a inscrição "STAR calibre 6,35", originalmente de calibre 8 mm e destinada a deflagrar munições de alarme, transformada/adaptada a disparar munições de calibre 6,35 mm BROWNING, tendo a mostrado à sua filha Lia Pepe, ao mesmo tempo que lhe dizia tê-la comprado para matar a sua esposa Celina Pepe.

16. No dia 30 de Novembro de 2013, cerca das 13 horas, o arguido AA, munido da aludida pistola, dirigiu-se junto da Biblioteca Municipal de ..., sita na ..., área desta comarca.

17. À passagem da sua esposa BB, que estava acompanhada pela filha de ambos, ..., o arguido abordou-a e após troca de palavras entre eles, desferiu-lhe diversos pontapés na sua direcção atingindo-a no seu corpo.

18. BB conseguiu libertar-se do arguido e tentou fugir.

19. O arguido agarrou-a, virou-a de frente para si colocando-lhe o braço em volta do pescoço, na zona da nuca.

20. Acto contínuo o arguido apontou a aludida arma na direcção da cabeça da sua esposa e desferiu um disparo, atingindo-a na cabeça tendo a mesma caído ao chão.

21. Em consequência da conduta acima descrita, o arguido provocou na sua esposa graves lesões traumáticas crânío-vasculo- encefálicas melhor descritas a fls. 278 a 283, que lhe determinaram a sua morte.

22. Após, o arguido abandonou o local conduzindo o seu veículo e levando consigo a filha ... em direcção à residência da sua irmã, sita na Rua ..., onde entregou a filha ... e deitou a aludida arma para dentro do caixote do lixo de cor verde que estava junto do n.º 16, tendo seguido para a sua residência sita na Rua ..., na mesma localidade.

23. A aludida arma foi recolhida do interior do caixote e apreendida, apresentando-se com o canhão armado, uma munição na câmara e outras duas no carregador, bem como se procedeu à apreensão do invólucro de calibre 6,35 mm, que se encontrava caído junto do local em que a vítima caiu no chão.

24. O arguido agiu com o propósito de tirar a vida à sua esposa BB, indo ao seu encontro munido de uma arma de fogo, bem sabendo que ao agir do modo descrito e disparando na direcção da sua cabeça, lhe provocaria a morte, o que conseguiu, tendo abandonado de imediato o local.

25. Para tanto o arguido utilizou uma pistola semí-automática, de marca TANFOGLIO, de modelo GT 28, de cor prateada com a inscrição LISTAR calibre 6,35", originalmente de calibre 8 mm e destinada a deflagrar munições de alarme, transformada/adaptada a disparar munições de calibre 6,35 mm BROWNING, que havia adquirido previamente com o intuito de matar a sua esposa o que veio a suceder.

26. Acresce que o arguido não é titular de qualquer licença de uso e porte de arma, bem sabendo que a arma apreendida nestes autos anteriormente arma de alarme e posteriormente transformada/adaptada para arma de fogo era insusceptível de registo e manifesto.

27. Mais sabia que não podia nem devia possuir, nem deter a aludida arma, por não ter a necessária licença de uso e porte de arma e sem que a mesma estivesse registada e manifestada.

28. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas por lei.

Mais se provou que:

29. O arguido era consumidor habitual de bebidas alcoólicas, sendo mais frequentes as discussões quando se encontrava alcoolizado.

30. Elaborado relatório social pelos serviços da DGRSP, do mesmo consta:

"I - Condições sociais e pessoais:

AA de 49 anos, é natural de ..., e à data dos presumíveis factos residia em ..., em casa própria com a alegada vítima e as duas filhas (9, 17 anos). A relação manteve-se durante cerca de 30 anos, e desta ligação resultou mais uma filha, de 31 anos já autónoma).

O agregado familiar possuía uma condição económica razoável, o arguido desempenhava funções na área da construção civil, na Câmara Municipal de ... (desde há 5 anos), e o cônjuge desempenhava funções de ajudante de cozinha.

Segundo AA, inicialmente, a dinâmica estabelecida no casal era estável, vindo a desgastar-se com o tempo. Referiu-nos que, desde há cerca de 3/4 anos, começaram a surgir desequilíbrios relacionais, que o mesmo atribuiu a questões relacionadas com a colocação laboral do cônjuge, não nos especificando pormenores mantendo ao longo da entrevista, um discurso pouco comunicativo e reservado relativamente aos factos que está acusado.

Da informação recolhida no meio de residência, há referência a consumos de bebidas alcoólicas, por vezes excessivos, que tendiam a surgir após o horário de trabalho e aos fins-de-semana, em contextos recreativos, situação que comprometia a dinâmica familiar (perspectiva que o mesmo rejeita).

O processo de socialização de AA decorreu junto dos pais e oito irmãos, apresentando uma condição económica deficitária, uma vez que, o pai desempenhava funções na área da agrícola e a mãe era doméstica.

A dinâmica familiar foi-nos descrita pelo arguido, como ajustada, tendo-se constituído a mãe como a principal figura de referência.

O seu trajecto escolar decorreu até aos 11 anos, concluído o 4.9 ano de escolaridade. A falta de motivação e interesse coadjuvado com a necessidade em obter rendimentos económicos, fizeram com que o arguido iniciasse o seu percurso laboral na área da construção civil, actividade onde sempre se manteve, de forma regular.

No meio de residência, são reconhecidos ao arguido hábitos de trabalho, considerando-o uma pessoa integrada socialmente, com um leque de amizades vasto. Pese embora a existência de vários conhecidos e amigos, é tido como uma pessoa reservada.

Desde Dezembro de 2013, que AA se encontra sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, à ordem do processo 351/13.4JAFAL, indiciado da prática de um crime de homicídio qualificado, praticado contra a presumível vítima no presente processo.

Em meio prisional, não existem registos de desajuste às regras institucionais. Face à acusação que enfrenta, efectua reduzida auto-crítica, não se revendo na prática de alguns dos fatos.

Não obstante, AA revela disponibilidade para o cumprimento de regras e injunções que lhe venham a ser impostas.

II – Conclusão:  

Do percurso de vida de AA, ressaltam-se como fatores de proteção a estabilidade laboral ao longo dos anos, bem como, a integração social.

Presentemente, o facto do arguido se encontrar preso preventivamente, pelo crime de homicídio qualificado, alegadamente contra a vítima no presente processo, evidencia-nos que, AA não reúne condições para o cumprimento de uma medida de tipo probatório."

31. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.

Colhidos os legais vistos, opondo-se o Exm.º  Procurador Geral-Adjunto neste STJ e na Relação ao provimento do recurso, cumpre decidir:

A inferir das conclusões do recurso, o seu objecto cinge-se à questão da medida da pena concreta pela prática do crime homicídio qualificado (de 21 anos de prisão) e a pena de concurso imposta ao arguido, de 22 anos de prisão.

O homicídio na pessoa da esposa do arguido com a qual contraiu casamento em 3.1.1984 e conviveu até 24 de Abril de 2013, data em que a cônjuge mulher deixou o lar conjugal, ocorreu no dia 30 de Novembro de 2013, cerca das 13 horas, altura em que o arguido AA, se  dirigiu  para junto da Biblioteca Municipal de ..., e à  passagem da sua esposa BB,  que estava acompanhada pela filha de ambos, ...,  abordou-a,  e após troca de palavras entre eles, desferiu-lhe diversos pontapés na sua direcção, atingindo-a no seu corpo.
 A cônjuge mulher,  conseguindo  libertar-se do arguido, tentou fugir, porém o arguido agarrou-a, virou-a de frente para si e  colocando-lhe o braço em volta do pescoço, na zona da nuca, vindo, de imediato, a  apontar a pistola de que se munira,    atingindo-a na cabeça, com um tiro que disparou,  tendo a mesma caído ao chão, causando-lhe  graves lesões  traumáticas, de que lhe adveio a morte por efeito directo e necessário.
 O crime de homicídio é, assim, qualificado, desde logo, pelo concurso das circunstâncias  descritas no n.º2 do art.º 132.º, do CP,  al.b)  –ser o arguido cônjuge da vítima -  e   j),  ao agir com frieza de ânimo, reflexão dos meios usados, persistindo na intenção de matar por mais de 24 horas,  cominando pena abstracta de 12 a 25 anos de prisão para o agente.
Acrescente-se a este propósito que o arguido, em data indeterminada, mas  entre  aquelas dias  -24 de Abril e 30 de Novembro de 2013-, adquiriu a terceiro inidentificado, uma pistola semi-automática, de marca TANFOGLIO, calibre  6,35", originalmente de calibre 8 mm,  destinada a deflagrar munições de alarme, transformada/adaptada a disparar munições de calibre 6,35 mm BROWNING,  exibindo-a   à filha de ambos, ..., de 8 anos,  confessando-lhe que se destinava a matar a mãe, intenção que repetiu quando à  vítima e telefonava  ou com ela se cruzava, caso não retirasse a queixa da GNR,  
  
  Das qualificativas previstas expressamente  no art.º 132.º, do CP,  resulta que a  agravante do homicídio na pessoa  do  cônjuge  ou  ex-cônjuge,  foi ampliada, agora  pela alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9,    à pessoa do mesmo ou outro sexo, com o qual o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação ou contra progenitor comum, responde às circunstâncias históricas, da “ ocasio legis  “, emergente como é da constatação de aumento exponencial do homicídio nesse quadro relacional ou ex-relacional, pondo em igualdade de tratamento tanto as relações familiares actuais ou  de passado, como as  parentais   não familiares e as análogas às dos cônjuges, com vista a regulamentar as exigências inibitórias de que o viver em comum, na diversidade criada, para subsistir, em razoável convivência,  não dispensa.
A especial gravidade do homicídio- como ainda da violência  doméstica- no seio do quadro relacional  e qualitativo descritos, levou o legislador a, imperiosamente, não furtar o homicídio da especial agravação em alusão, mesmo quando cessada a ligação, pois  se impõe o respeito pelo outro,  efeitos havendo  que perduram apesar da  sua extinção-cfr. Maria  Margarida da Silva Pereira, Direito Penal, II, Os Homicídios, AAFDUL, 2008,  págs. 100 ª 103.

É o reflexo  da nova visão da sexualidade  e das uniões de facto, comenta  o Cons.º Maia Gonçalves, CP, Anotado, 18.ª ed., 2007, 509.
 As circunstâncias agravantes  expressamente previstas  no art.º 132.º n.º 2, bem como outras, atípicas, não expressamente contempladas   ( a enumeração é meramente exemplificativa )   conquanto  façam, ainda, funcionar qualquer daquelas, sendo inaceitável que não passem por nenhum dos exemplos- padrão, guias, factos-índice,  nas palavras de Augusto da Silva Dias, in Delicta in se,  Coimbra Ed.,, 2008, 419 ( cfr., ainda, o recente AC. deste STJ, de 12.3.2015, P.º n.º 40/11.4JAAVR.C2, 3.ª e o AC. do TC, de 10.12.2014, a que faz alusão )     são referidas à culpa, seus elementos,  e não do tipo legal, uma vez que  com aquele  n.º 2, se não pretendeu “ alargar o tipo “, na orientação do Prof.  Eduardo Correia, à  Comissão  Revisora do Código Penal, de 82, Actas, 1979, 24, no entendimento  uniforme, contrariado pela Prof. Fernanda Palma, que as configura como um misto de ilicitude e de culpa, ou seja de antijuridicidade e de reprovação individual, embora algumas possam reportar-se ainda à ilicitude (cfr. Ac. do STJ, de 16.6.2011, Rec.º n.º 600/09-3.ª).  
Tais circunstâncias  hão-de reflectir uma imagem global do facto agravada, um “ plus “ de  culpa do agente, quando comparativamente com o homicídio simples, pelo concurso de tais    exemplos- padrão, de  verificação não  automática, conotando o facto com um condicionalismo de tal modo grave, reflectindo uma atitude profundamente divorciada do agente em relação a uma determinação normal  de acordo com o valores comunitariamente reinantes (cfr. Teresa Serra, Homicídio qualificado, pág. 63),  em termos de  a pena estabelecida para o homicídio simples não responder aos sentimentos colectivos dominantes, ao seu sentido de justiça  e aos fins das penas.
A magnitude da culpa há-de mostrar,  para actuação,  em qualquer dos casos uma especial censurabilidade e perversidade  do agente, aquela documentando  uma forma especialmente desvaliosa de realização do facto pela  pessoa do agente;   a  especial perversidade a  presença de qualidades especialmente desvaliosas na  sua personalidade  enquanto   relação com o dever jurídico e   ético-existencial imposto pelas regras de subsistência comunitária.
 A afirmação da agravante da frieza de ânimo releva de uma “firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada“, de “uma forte intensidade criminosa“, a “mora habens“ mostra não só que  o criminoso teve uma larga oportunidade, que não aproveitou para se deixar penetrar pelos contramotivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu  totalmente a sensibilidade  e sobretudo que a força criminosa é de tal maneira intensa que o agente, largo tempo depois de tomar a resolução pratica o respectivo crime sem hesitação como mero “déclancher“ da decisão tomada prévia e longinquamente, é a doutrina do Prof. Eduardo Correia, que  norteou a inclusão típica  daquela agravante –cfr. Direito Criminal, II, 1965, 301-303.

O exemplo padrão dá, agora, sem o consignar, consagração à agravante modificativa da premeditação em vigor no CP de 1886, com tradução  já no   CP de 1856.     
Ao nível da jurisprudência o seu enunciado é uniforme: significa calculismo, reflexão sobre os meios necessários à sua execução,  maquinação na obtenção do resultado, preenchendo o campo de consciência.
O arguido deixa-se, em preenchimento de tal qualificativa, motivar  por factores completamente desproporcionais,  aumentando a intolerância perante o seu facto, neste sentido cfr. Fernando Silva, in  Direito Penal Especial –Crimes contra as pessoas, págs 48 e segs., citado no Ac. deste STJ de 4.10.2006, CJ, Ano XIV, TIII, 205.    
 A jurisprudência deste STJ tem afirmado “ una voce “ que a frieza de ânimo é uma acção praticada a coberto de evidente sangue frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo na preparação e execução do crime, que maquinou, por forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humanas –cfr., além de tantos outros, os  Acs. de  18.6..86, BMJ  358, 260, 8.2.84,BMJ, 334, 251,  2.10.97, P.º n.º 689/97, 18.2.98, P.º n.º 1414/97, 15.4.98, P.º n.º 74/98  e  30.10.2003, P.º n.º 3281/03, 16.2.2005, in CJ, STJ, 2005, I, 196, 17.1.2007,  CJ, STJ, I, pág.  170, 12.1.2008, P.º n.º 2806 /08, 3.ª  Sec., 20.10.2010, P.º 651/09.8PBFAB. AR, 3.ª Sec.. idem, com abundante recolha jurisprudencial, o de 30.11.2011, Rec.º n.º 238/10. 2.JACBR. S1.   

Agiu, deste modo, o arguido a coberto de um lento, frio, reflexivo e cauteloso desígnio de matar,  preenchendo-lhe o campo da consciência, rebelde à reflexão e à ponderação em contrário,  que, de resto,  não põe em crise no recurso,  ao seleccionar o meio  adequado de  dar a morte ao cônjuge, o meio mais certeiro, repudiando   qualquer outro que menos probabilidade de sucesso lhe oferecesse( cfr. Ac. deste STJ, de 17.1.2007, P.º n.º 3485/06.-3:ª  Sec., concorrendo, pois,  a  agravante qualificativa prevista na al.j), do n.º 2, do art.º 132.     

Vejamos a questão d a concreta medida da pena quanto ao crime homicídio qualificado:                                 

  A pena é um conceito complexo e o seu ponto de partida é a determinação dos seus fins, pois só partindo dessa finalidade concretamente definida se pode julgar quais os factos que são importantes no caso concreto para a determinação da medida judicial da pena –cfr. Iesheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, 1194.
A finalidade da pena, na concepção utilitarista afirmada no art.º 40.º n.º 2, do CP, é a de prevenção, tanto geral, como  forma a neutralizar o efeito do delito como exemplo negativo para a sociedade, contribuindo por isso mesmo, ainda, para fortalecer a consciência jurídica da comunidade, satisfazendo o sentimento de justiça do meio circundante do agente e especial, em vista da reinserção social do agente, por forma a  não reincidir.  
É pelo recurso a esta taxonomia, da prevenção geral, de efeito de satisfação da confiança na lei e intimidatório sobre os mais rebeldes, potenciais delinquentes e de ressocializar o agente,  recuperá-lo socialmente, reeducá-lo   por forma  a  neutralizar e até prevenir o efeito do crime.
Essa neutralização passa, segundo Gibbs, citado por J. António Veloso, in R O A, Abril de 1999, in As penas, pág. 536, pela motivação consciente pelo medo da  pena, redução da oportunidade do delito, exposição a vigilância duradoura,  pela inculturação, ou seja interiorização da norma penal, modificação dos padrões de vida do agente, estigmatização social do mesmo  pela aplicação de medidas de conhecimento, com eficácia social e económica, afastamento da fontes do crime e formação de hábitos de conformidade à norma.
Numa  concepção pragmática da pena, postulada por  um “ direito  penal sem metafísica “, à margem de sentido ético, por isso mesmo de  reduzida   eficácia,  nas palavras, que seguimos,  ainda,   de, J. António Veloso, loc. cit. pág.560, a função da pena é, pois, assegurar a protecção dos bens jurídicos e  reinserir socialmente o agente, não fazer dele um proscrito, mas um ser capaz de se fidelizar ao direito, abandonando  caminhos desviantes.

No pressuposto particular, concorrente em cada agente, estão a culpa e as necessidades de prevenção, bem assim todas as circunstâncias anteriores, concomitantes, ou posteriores ao crime, que atenuam  ou agravam a responsabilidade criminal –art.º 71.º n.ºs 1 e 2, do CP.            
A culpa não é elemento – art.º 71.º n.º 1, do CP – da pena, mas um seu limite pelo topo, funcionando como “ antagonista “  da prevenção,  quaisquer que sejam as exigências da prevenção, finalidades  conviventes entre si superando a geral  a especial, face ao seu  interesse público e particular respectivamente.
A vontade de consumar o crime, o dolo de crime é muito intenso, porque perdurante desde que comprou a pistola (entre 24 de Abril e 30.11.2013) até à morte da vítima.

Esta não faz mais do que espelhar o resultado de um clima conjugal  em desavença e  entrechoque que  se instalou no seio do casal,  e se degradou,  pelo menos desde  o ano de 2008,  vindo  na sequência a agredir  verbalmente a vítima, dirigindo-lhe nomeadamente as seguintes expressões: "vaca, puta, estúpida, não vales nada, tens amantes, tens de provar que as filhas são minhas".

 Em data não concretamente apurada mas entre o dia 19 e o dia 23 de Abril de 2013, à noite, no interior da residência do casal, o arguido atirou o prato com a comida ao chão ao mesmo tempo que dirigia à sua esposa BB as seguintes expressões:

"Vaca, puta dum cabrão, não vales nada". Acto contínuo, o arguido abriu o seu canivete e encostou-a ao pescoço da esposa BB ao mesmo tempo que dizia que lhe separava a cabeça do tronco.

Em ocasião distinta mas também entre o dia 19 de Abril de 2013 e o dia 23 do Abril, no interior da residência do casal, o arguido desferiu uma chapada na sua esposa, apertou-lhe os braços e o pescoço, abrindo a porta e convidando-a a sair de casa, causando-lhe lesões  que lhe determinaram 8 dias de doença sem incapacidade laboral ou física.  

Desde a data em que denunciante saiu de casa, 24 de Abril de 2013, até ao dia 30 de Novembro de 2013, o arguido contactou-a por diversas vezes,  pessoalmente,  quer na rua, quer através de chamadas telefónicas, com o intuito de a mesma retirar a queixa apresentada  na GNR e regressar para a residência do casal, caso contrário a matava.

Acresce que por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido circulou com o seu veículo junto da residência da vítima, sita na Rua ..., bem como a vigiou  no seu dia-a-dia, controlando –lhe os seus movimentos, encoberto e oculto entre habitações.

O propósito  criminoso  é muito intenso, o grau de desvalor não é menos, a inferir que suprimiu o bem da vida, o bem que ocupa a pirâmide dos direitos fundamentais e de que todos os demais  derivam pelo simples facto de  se ser pessoa,   próprio   da mulher  com quem estivera casado quase 30 anos,  mãe das suas três filhas, duas então menores, a que faltará o  seu auxílio e carinho, sem esquecer  o contexto em que decorreu o homicídio, num clima  algo traiçoeiro e de surpresa,  imprevisto, ao surgir-lhe  na via pública, e  depois de lhe desferir  pontapés, virá-la para si, imobilizando-a com um braço passado à volta do pescoço, retirando-lhe a  possibilidade de defesa, terminando  por  disparar um tiro imediatamente  mortal, atingindo-a na cabeça.     

Acresce, ainda, que o arguido cometeu o crime na presença da filha de ambos, ..., então de 8 anos  que, ao presenciar o desenlace  da mãe em condições tão  trágicas, por certo não deixará de carregar o peso dos acontecimentos, por longo tempo, se não por toda a vida.

O arguido   denotou, com  isso,   forte insensibilidade como, igualmente,  com a  violência  que lhe foi infligindo, ao longo de alguns  anos,  no interior do domicílio comum,  causa de agravação, como o é se for em presença de menores que acabam por ser vítimas indirectas,  ferindo-a  grave e reiteradamente  na sua dignidade e respeito devidos,   atingindo a  sua integridade corpórea, a  segurança e  tranquilidade  pessoais, a paz interior,  gerando-lhe medo, terror,  tristeza, com  inevitável desgaste físico e psíquico,  tendo sido,por isso,  condenado pela prática do crime de violência doméstica, agravado, p. e  p. pelo  art.º 152.º n.ºs 1 a), 2 e 4, do CP, a que cabe a pena abstracta de 2 a 5 anos de prisão, acrescida de penas acessórias –n.º 4..  

O tipo legal  de crime em causa  propõe-se tutelar mais do que a integridade física, como no passado  restritivamente, se considerou, para se alargar a uma panóplia de bens jurídicos de que  a pessoa,  como um todo, usufrui, e por isso se compreendem  nos  actos de violência doméstica  os maus tratos físicos,  incluindo os castigos corporais,  psíquicos, como  as injúrias e a difamação, a humilhação, a provocação,  as privações da liberdade, como o sequestro, e as  ofensas sexuais, tudo  de modo reiterado, ou de  uma vez só,   sendo, então, crime de um acto só, isolado,   desde que  neste caso, pela sua intensidade, avaliada segundo as circunstâncias do caso,   assuma uma especial  grandeza e gravidade  a ponderar no âmbito  de avaliação  e graduação da ilicitude.

Há quem  o configure como delito contra a saúde individual, abrangendo a física, psíquica e a espiritual  e a liberdade, no seu aspecto sexual  individual, outros autores relevam o valor da dignidade humana sobre o valor da  saúde e outros ainda o da dignidade colectiva,  situando-se o Prof. Figueiredo Dias,   entre os que  propendem para o bem jurídico protegido  se cifrar n o da saúde pública na sua complexidade –cfr., CC CP, Taipa de Carvalho, comentário ao art.º 152.º, e   ainda, o Código Penal, comentado por Miguez Garcia e Castela Rio, pág. 616, dando conta da não uniformidade  doutrinária  neste capítulo.           

No processo de inquérito instaurado n.º 49/13.3GAORQ,da Comarca de Ourique,  o arguido  foi  acusado por esse  crime  e no âmbito desse mesmo processo foi-lhe aplicada, além do mais, a medida de coacção de afastamento da então residência da esposa e de proibição de contactos com a mesma por qualquer meio, exceptuando-se os contactos telefónicos para assuntos relativos às responsabilidades parentais, tendo sido notificado 6 dias antes da prática do crime de que havia sido designado o dia 2.12.2013 para se proceder ao  seu  interrogatório complementar.

E terá sido a pendência  desse   processo em Tribunal, não custa  a crer,  a causa próxima do crime a aditar às remotas supracitadas.

 

O arguido invoca como causa de atenuante  da sua responsabilidade o ciúme de que  estava possuído, e com isso estarmos em presença de um crime passional,  mas sem razão,  porque não vem comprovado, depois porque o ciúme não  funciona como factor  desculpabilizante   do  agente crime, mais parecendo até, no caso vertente,  tudo tratar-se de  punição da vítima  por se recusar a fazer cessar a queixa –suposto que possível- e retornar ao domicílio comum. 

O crime passional é o que se comete por paixão, sentimento mais forte do que a emoção, mais passageira.

Para Nucci  a paixão é uma excitação  sentimental levada ao extremo, com implicações nervosas e psíquicas de  maior gravidade. ” É o charco que cava o leito, infiltrando-se no solo “, no dizer de Kant, citado por Nelson Hungria.

O agente que mata por ciúme, não mata por afecto, mas por egoísmo, inveja, sentido de posse, vingança, não merecendo indulgência, no dizer de Rabinowick, in Crimes Passionais, 2007, 54; o crime é, então, a expressão de um sentimento de exacerbado egoísmo, gerado pela incerteza e insegurança do ser sobre que incide, havido mais como objecto do que pessoa.

O agente de crime passional, além do mais, atenta contra o princípio da liberdade de cada, com os limites impostos pela convivência colectiva e de auto-realização, seguindo o caminho que julgue mais vantajoso, com consagração na CRP, nos art.ºs 24.º, 25.º e 26.º.  
Sobre a personalidade do criminoso passional aquele autor, reflectindo, escreveu, que  ele raciocina muito antes de tomar a decisão, e os que matam por paixão  “ fazem-no com todo o desejo e em plena consciência do seu acto” –op. cit. pág. 182
Entre os cônjuges o homicídio tem vindo a registar aumento, preocupante, entre nós. Segundo um estudo estatístico fornecido pela Assessoria  de Juízes junto deste STJ,   referente ao quinquénio 2010 a 2015, o número de homicídios julgados neste Supremo, ascendeu a 33, sendo 16 deles qualificados, variando  quanto a estes  as penas aplicadas entre  14, 15, 15, 16, 16, 16, 16, 17, 17, 17, 17, 18, 20, 20, 20 e 20 anos. Mais recentemente, em 2014, detectamos, com referência a uxoricídios, penas de 15 anos, 19 anos, 18 anos e 2 meses, 17 anos, em 2013, 18 anos, 16 anos e 6 meses, em 2011, 17 anos, 18 anos e 16 anos.

Vale por dizer que as necessidades de prevenção geral, em vista da protecção e reforço a todo o tempo  do sentimento de confiança   colectivo  na lei, são muito sentidas,  como forma de tranquilizar o tecido social em inquietude, rejeitando  qualquer ideia de  impunidade do homicida, clamando pelo merecido  efeito   pedagógico  sobre o  agente.

O arguido é delinquente primário, mostrava-se socialmente integrado, no meio de residência são reconhecidos ao arguido hábitos de trabalho, com um leque de amizades vasto e pese embora a existência de vários conhecidos e amigos, é tido como uma pessoa reservada.

São lhe conhecidos consumos alcoólicos por vezes excessivos, fora do tempo e local de trabalho, em especial em “ contexto desportivo “, prejudicando a dinâmica familiar.  

O arguido, a inferir do relatório social deu em julgamento uma versão dos factos, quase totalmente excludente da sua responsabilidade criminal, pois teria sido a vítima a retirar-lha a arma das mãos, que detinha somente para a assustar, acabando por disparar.  

Por todo o exposto dentro de uma moldura penal de 12 a 25 anos de prisão, agravada, ainda, no seu limite mínimo de 1/3 e cingindo-se o máximo a 25 anos, pelo uso de arma de fogo sem manifesto e registo –art.º 86.º n.º 3, da lei n.º 5/2006, de 23/2, com a alteração  introduzida  pela Lei n.º 17 / 2009, de 6/5,  considerando que  é muito intensa a vontade criminosa do arguido  e  que uma pena  justa é aquela que não excede a  medida da culpa e   satisfaça as exigências mínimas de prevenção de geral, servindo de exemplo,  atingido  que seja um patamar,   por considerações  de  prevenção especial, que o vão influenciar, “abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar“ –cfr. Prof. Figueiredo Dias, In Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág.229, exigências que se mostram muito prementes e que as exigências de prevenção especial se mostram igualmente de grande relevo, não porque seja de prever que o arguido reincida atento o seu passado criminal, sem antecedentes, de integração social e de pessoa de trabalho, mas para que interiorize o mal que fez, vista a importância do bem jurídico suprimido, a vida da sua companheira de quase 30 anos, o modo de execução do crime, em condições de indefesa da vítima, que agrediu a pontapé, antes de sobre ela disparar um tiro letal, o relacionamento agressivo que mantinha alcançando foros de violência doméstica, traduzindo um desvalor em grau elevado do facto  e do resultado, ou seja da ilicitude, se aplica  a pena de 19  (dezanove) anos de prisão, no que vai condenado.

 Citando-se  Bettioli, “a pena não deve ser brutal ou desumana, mas, também, não pode ser insuficiente. Ela tem de corresponder ao que o homem comum aceita como meio idóneo para atingir os fins de ressocialização e de prevenção (geral e especial)”.

A 1.ªinstância cominou uma pena de 22 anos de prisão; a Relação uma de 21, não muito distante da máxima consentida no nosso ordenamento jurídico. A pena máxima deve ser aplicada em contexto de extrema, rara e intolerável violência, de chocante gravidade, sob pena de se ficar sem espaço na moldura a inclusão  dessas situações, conforme se sublinhou no ac. deste STJ, 27.3.2008-P.º 815/08, solução que a não ser observada cria casos de injustiça relativa, em inobservância do princípio da igualdade de tratamento penal,  previsto no art.º 13.º, da CRP. O princípio da igualdade manifesta-se em paralelo com o da justiça relativa na aplicação das penas.

Resta, agora, abordar a questão da medida da pena de concurso:

A fixação da medida concreta da pena em sede de concurso rege-se por critérios específicos, propondo-se o legislador sancionar os factos e a personalidade do agente no seu conjunto, nos termos art.º 77.º n.º 1, do CP,  em que  o agente é punido, de certo que pelos individualmente praticados, mas  não como um mero somatório, em visão atomística, mas antes de forma mais elaborada, dando atenção àquele conjunto, numa dimensão  penal nova fornecendo o conjunto dos factos a  gravidade do ilícito global praticado, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 290 -292; cfr. os Acs. deste STJ, in P.ºs n.º s 776/06, de 19.4.06 e 474/06, essa moldura),  mais abrangente, como se escreveu no Ac. deste STJ, de 14.7.2010, P.º n.º 364/09.OGESLV.E1. S1, desta 3.ª Sec., levando –se em conta exigências gerais de culpa e de prevenção, tanto geral como de análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

 A pena de concurso tem como limite mínimo a parcelar mais alta, de 19 anos, e o máximo o somatório de todas, de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de um crime de violência doméstica, p e p. pelo art.º 152.º n.º 1 a), 2 e 4, do CP, de 19 (dezanove) anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos art.º 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2 al. b) e j) do Código Penal, agravado pelo art. 86º n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23/02 e de 1 ano  e 6 meses  pela prática de  um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº. 86º n.º 1 al. c) da Lei n.º 5/2006 de 23/02.

Como escreve Cristina Líbano Monteiro em comentário na RPCC, Ano XVI, I, Janeiro - Março de 2006, pág. 164, não há que efectuar-se operações aritméticas,  ou seja fazendo introduzir factores de compressão, sob o  modelo  de fracções aritméticas,   pois que as penas  se não determinam, à face da lei,  mediante recurso a tais operações.   

 O todo a avaliar, segundo a mesma autora, Rev.  e  loc. cits.,  supõe que o julgador há-de descer da fixação compartimentada das penas  e atentar no conjunto, na perspectiva nova, convertida numa conexão de sentido, no ilícito de novo formado, a que corresponde uma nova culpa, integrado  pelo factos, mas, agora,  em relação, fixando-se  o julgador, ainda, na inter-relação definida, pois pode acontecer que, apesar de muitos, a sua gravidade se mostre relativa.

E quanto à personalidade do agente importa indagar se o acto é a expressão de uma simples pluriocasionalidade, fruto de um  desvio ocasional ou se, diversamente, se  revela  integrado numa carreira criminosa, produto de um amolecimento ósseo, indiferente à observância de bens ou valores jurídicos e suas consequências,  uma vez infringidos.

Descaracterizada in casu esta faceta exacerbante da pena, pela comprovação da suas condições pessoais supracitadas, mas considerando a gravidade dos factos, o dolo e a ilicitude elevadas, as acentuadas necessidade de prevenção geral e especial e as demais circunstâncias do caso, se condena numa pena de concurso de 21 (vinte e um) anos de prisão que todas aquelas parcelares  engloba.

Provê-se em parte ao recurso.

Sem tributação.        

Armindo Monteiro (Relator)

Santos Cabral