Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
91/11.9TBBAO.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: VENDA DEFEITUOSA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
QUILOMETRAGEM FORJADA
ERRO SOBRE O OBJECTO DO NEGÓCIO
APURAMENTO DA ESSENCIALIDADE DO ERRO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO – ART. 640º DO CPC
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADA EM PARTE E CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª ed., em anotação aos artigos 640.º e 662.º.
- Antunes Varela, “Código Civil” Anotado.
- Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil” Anotado, vol. I, 3.ª ed., 636.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª ed., 580.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 215.º, 247.º, 251.º, 323.º, N.º4, 905.º, 911.º, 913.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 640.º, 662.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 15-5-2012, DE 9-7-2015, DE 29-10-2015, DE 1-10-2015 E DE 19-2-2015, DE 18-2-2016, 11-2-2016, DE 19-1-2016, DE 3-12-2015 OU DE 16-11-2015, TODOS EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
1. Mostra-se cumprido o ónus de alegação relativamente à impugnação da decisão da matéria de facto numa situação em que o recorrente, além de indicar os pontos de facto impugnados e enunciar a decisão alternativa, sustenta essa modificação em depoimentos testemunhais que identificou, localizou e transcreveu, apelando à sua valoração com ponderação, também, das regras da experiência.

2. O comprador de coisa defeituosa pode pedir a anulação do contrato por erro sobre o objecto negocial, desde que o vendedor conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o comprador, do elemento sobre que incidiu o erro, nos termos dos arts. 251º e 247º, ex vi arts. 911º e 913º do CC.

3. A essencialidade do erro é um conceito de direito que deve ser deduzido dos factos provados e das circunstâncias que os rodeiam.

4. Verifica-se a essencialidade do erro num contrato de compra e venda de um veículo usado celebrado entre dois sujeitos que se dedicam a essa actividade comercial, tendo o vendedor informado o comprador que o veículo tinha apenas 82.000 Kms quando, afinal, tinha, pelo menos, 138.410 Kms, e tendo sido fixado o preço em € 28.000,00 quando o valor do veículo não excedia cerca de € 17.500,00.

Decisão Texto Integral:

I - AA - Comércio de Automóveis, Unipessoal, Ldª, intentou contra BB, acção pedindo que:

a) Se declare anulado um contrato de compra e venda, declarando-se ainda que, em virtude dessa anulação, cada uma das partes deve restituir à outra o que dela recebeu;

b) Se condene o R. a restituir à A. a quantia de € 28.000,00, acrescida dos juros vencidos desde o termo de Setembro de 2005, que montam a € 5.972,40, até ao efectivo pagamento, liquidando-se os vincendos no final;

c) Se condene o R. a pagar à A. € 40.000,00, a título de indemnização pelos danos causados ao seu bom nome.

Para tanto alegou que comprou ao R. um veículo automóvel, sendo que esse automóvel apresentava quilometragem inferior à real, o que o R. bem sabia, facto que foi essencial para que a A. comprasse o veículo.

A A. vendeu o veículo sem saber que os quilómetros haviam sido alterados e, por ter sido demandada judicialmente pelos compradores, foi anulada a compra e venda operada pela A. a esses terceiros, tendo sido a A. condenada a restituir-lhes o preço.

A anulação da venda causou danos na imagem da A.

O R. contestou impugnando os factos alegados pela A.

Realizado o julgamento, foi proferido um despacho no qual se deu conhecimento às partes de que o tribunal entendia que se poderia perspectivar a redução do preço – arts. 913º e 911º do CC – e se lhes concedeu oportunidade de se pronunciarem quanto ao referido enquadramento jurídico, para se evitarem decisões surpresa.

Nenhuma das partes se pronunciou sobre a questão, sendo proferida sentença que reconheceu à A. o direito a ver reduzido o preço do contrato para o valor de € 17.500,00.

Considerando que o preço originário do negócio foi de € 28.000,00, condenou o R. a pagar à A. a quantia de € 10.50000, com juros desde o trânsito em julgado da decisão até efectivo e integral pagamento, absolvendo o R. de tudo o mais quanto foi peticionado pela A.

Ambas as partes recorreram e a Relação julgou improcedente o recurso da A. e procedente o recurso do R., revogando a sentença e absolvendo o R. do pedido.

A A. interpôs recurso de revista em que suscitou as seguintes questões essenciais:

- Interpretação e aplicação do art. 640º, nº 1, do CPC, na medida em que permite a rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto em casos em que o recorrente tenha optado pela transcrição total dos depoimentos testemunhais;

- Anulação do contrato de compra e venda, ponderando os factos provados para efeitos de integração do erro sobre o objecto do contrato, nos termos dos arts. 251º e 247º do CC e, se necessário, os factos que se apuraram  na outra acção em que que o R. interveio acessoriamente e cuja sentença constitui caso julgado.

Não houve contra-alegações.


II – Decidindo:

1. Quanto à apreciação que a Relação fez da impugnação da decisão da matéria de facto:

1.1. No anterior recurso de apelação a recorrente impugnou a decisão da matéria de facto relativamente aos pontos I a VIII que na sentença foram considerados “não provados”. Concluiu que deveriam ser dados como “provados”, aí sustentando, em parte, a procedência da acção especialmente quanto ao pedido de indemnização por danos morais constante da al. c).

A recorrente identificou os factos objecto de impugnação e sustentou a decisão alternativa designadamente nos depoimentos das testemunhas que arrolou, as quais identificou devidamente. Acrescentou ainda o relevo que poderia ser extraído, na sua tese, das “circunstâncias específicas do processo”, da experiência comum (o que nos remete para o uso pretendido de presunções judiciais) e das circunstâncias geográficas em que exerce a sua actividade.

Concretamente, quanto aos depoimentos das três testemunhas, sustentou a sua credibilidade, indicando o local onde se encontra a sua gravação, sendo que em Anexo procedeu à transcrição total dos referidos depoimentos.

Relativamente ao ponto I sustentou a alteração numa declaração que foi subscrita pelo R.

Quanto ao ponto II, no depoimento de uma testemunha.

Quanto aos pontos III e IV na experiência comum, o mesmo ocorrendo quanto aos pontos V e VI.

Quanto aos pontos VII e VIII acrescentou especialmente o depoimento de outra testemunha.


1.2. O ónus de alegação na impugnação da decisão da matéria de facto regulado pelo art. 640º do CPC é multifacetado e o seu cumprimento não se torna fácil. Mas pese embora o rigor e a seriedade com que as partes devem enfrentar as exigências legais, não devem as mesmas exponenciadas pelo Tribunal da Relação a quem a pretensão é dirigida. Importa que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640º do CPC seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspectos de ordem material.

É esta uma matéria que tem sido objecto de diversos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça que, de forma incisiva, vem procurando travar uma tendência que teima em manter-se para a rejeição de recursos de apelação quando está em causa a reapreciação da decisão da matéria de facto.

Dessa tendência e da necessidade de a combater já o ora relator deu conta em Recursos no Novo CPC, 3ª ed., em anot. aos arts. 640º e 662º, com menção de alguns arestos mais recentes de que se destacam os Acs. do STJ, de 29-10-15 (Rel. Lopes do Rego), de 1-10-15 (Rel. Ana Luísa Geraldes) e de 19-2-15 (Rel. Tomé Gomes), a que agora podem acrescentar-se os mais recentes arestos do STJ, de 18-2-16, 11-2-16, de 19-1-16, de 3-12-15 ou de 16-11-15, todos em www.dgsi.pt.

Repare-se em alguns segmentos de alguns arestos (todos em www.dgsi.pt):

- Ac. do STJ, de 19-1-16:

A falta da indicação exacta e precisa do segmento da gravação em que se funda o recurso, nos termos da al. a) do nº 2 do art. 640º do CPC, não implica, só por si, a rejeição do pedido de impugnação sobre a decisão da matéria de facto;

- Ac. do STJ, de 29-10-15:

O ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata rejeição do recurso quando, para além de o apelante referenciar os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, ser tal indicação complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso;

- Ac. do STJ, de 1-10-15:

Tendo a recorrente identificado os concretos pontos de facto que tem como mal julgados, indicado os meios de prova que deveriam ter conduzido a um resultado probatório diverso e transcrito parte dos depoimentos, não se pode manter a decisão de rejeição do recurso sobre matéria de facto;

- Ac. do STJ, de 1-10-15 (Secção Social):

Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados e as respostas alternativas propostas pelo recorrente, foram devidamente expostos na motivação os fundamentos da impugnação e os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1ª instância (solução também adoptado em dois outros Acs. do STJ, ambos datados de 18-2-16 (Secção Social));

- Ac. do STJ, de 9-7-15:

Tendo o apelante, nas suas alegações de recurso, identificado os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência aos pontos da base instrutória, indicado o depoimento das testemunhas que entendeu mal valorados, fornecido a indicação da sessão na qual foram prestados e o início e termo dos mesmos, apresentado a sua transcrição e referido qual o resultado probatório que deveria ter tido lugar, relativamente a cada quesito e meio de prova, tanto bastava para que a Relação tivesse procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de a rejeitar;

- Ac. do STJ, de 19-2-15:

A insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas. Tendo o recorrente, nas conclusões recursórias, especificado os concretos pontos de facto que impugna, com referência às respostas dadas aos artigos da base instrutória, indicando também aí a decisão que, no seu entender, deve sobre eles ser proferida, e tendo especificado no corpo das alegações os meios de prova convocados e indicado as passagens das gravações dos depoimentos em foco, têm-se por preenchidos os requisitos formais do ónus de impugnação exigidos pelo art. 640º, nºs 1 e 2, al. a), do CPC. A insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória exposta pelo recorrente é matéria a apreciar em sede do mérito da decisão impugnada.


1.3. O acórdão recorrido já apreciou a impugnação quanto ao ponto I, deixando claro que a declaração a que a recorrente aludiu não ultrapassa o facto que a 1ª instância já considerara provado e que abaixo se enuncia sob o nº 4 dos factos provados.

Relativamente ao ponto II, como adiante se demonstrará, não tem qualquer interesse para a resolução do caso, sendo inútil a pretendida reapreciação.

Já quanto aos pontos III a VIII atinam exclusivamente com o pedido de condenação em indemnização por danos morais que foi excluída tanto pela 1ª instância como pela Relação. Nesta medida, continua a ter interesse a reapreciação da decisão que foi proferida quanto a tais factos.

É certo que a recorrente não indicou relativamente a cada ponto os precisos segmentos dos depoimentos testemunhais que determinariam uma decisão diversa. Mas não pode exponenciar-se um tal elemento ao ponto de desprezar tudo o mais que foi alegado e, além disso, ignorar a justificação que foi apresentada pela recorrente de que a apreciação do valor probatório de cada testemunha, no caso concreto, exige a audição ou a leitura de todo o depoimento, em confronto com a motivação que relativamente a cada ponto foi exposta na sentença. Importante é ainda atentar, dentro dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, a duração dos depoimento ou a extensão da respectiva transcrição, não podendo a Relação alhear-se dessas características, adoptando uma postura formal e tabelar.

Por regra, o ónus de motivação da impugnação da decisão da matéria de facto se não satisfaz com a mera transcrição. Mas se isso é válido para algumas situações em que existem múltiplos depoimentos, ou depoimentos extensos, ou em que a matéria de facto é diversificada, subdividindo-se por diversas questões, já importa que se ponderem de outra forma situações que apresentam diversas características que tornam mais acessível a percepção dos motivos pelos quais a parte se insurge contra a decisão da matéria de facto. Também devem ser valorados outros aspectos que tenham sido observados pelo recorrente e que permitem uma maior aproximação entre a sua pretensão e a realidade que ressalta dos autos.

No caso concreto, a recorrente procedeu à transcrição dos depoimentos, para os quais remeteu, sendo de notar que são relativamente curtos, sendo fácil a tarefa de reapreciação que é imposta pelo art. 662º do CPC. Além disso, apelou a que a Relação ponderasse ainda as regras da experiência quer para efeitos de valoração dos depoimentos na sua globalidade, quer para efeitos de integrar algumas lacunas.

Neste contexto, considerando o teor das alegações que foram apresentadas, estavam reunidas as condições para que a Relação procedesse à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto relativamente a esses pontos.


2. Quanto ao enquadramento jurídico dos factos:

2.1. Sem embargo do cumprimento do anteriormente determinado, existem condições para avançar com a apreciação do recurso de revista no que concerne aos pedidos formulados sob as als. a) e b), ou seja para a apreciação do pedido de anulação do contrato e de condenação do R. na restituição da quantia recebida.


2.2. Para o efeito mostram-se provados os seguintes factos:

1. A A. dedica-se ao comércio de automóveis, com fins lucrativos.

2. O R. dedica-se ao comércio de automóveis usados, com fins lucrativos.

3. No exercício da sua actividade comercial, em 20-12-04, o R. declarou vender à A., e esta declarou comprar para revenda no seu comércio, o veículo automóvel Mercedes-Benz, modelo C200 CDI, matrícula ..-…-ZF, pelo preço de € 28.000,00.

4. No acto referido em 3., o R. declarou à A. que o veículo ali descrito apresentava uma quilometragem de cerca de 82.000 Kms.

5. O R. não podia ignorar que, ao fazer a declaração referida em 4., provocava a convicção na A. que o veículo descrito em 3., apenas tinha percorrido cerca de 82.000 Kms (facto alterado pela Relação).

6. A A. ficou convencida que o veículo apenas havia percorrido o número de quilómetros descrito em 4.

7. O valor de um Mercedes-Benz, com o modelo referido em 3., com pouco mais de 2 anos após o fabrico e com pouco mais de 80.000 Kms, tem um valor superior a igual veículo, com igual tempo de fabrico, com 138.410 Kms, o que o R. não ignorava.

8. Um Mercedes-Benz, com características idênticas ao descrito em 3. e com 138.410 Kms, tinha, em Dezembro de 2004, um valor de cerca de € 17.500,00.

9. A A. nunca aceitaria pagar o valor referido em 3. se tivesse conhecimento de que o veículo referido tinha 138.410 Kms.

10. O R. não ignorava que o número de 82.000 Kms que constava do conta-quilómetros do veículo descrito em 3., na data de 30-12-04, determinou a A. a comprar o mesmo veículo pelo preço de € 28.000,00.

11. Em Janeiro de 2005, a A. declarou vender o veículo descrito em 3. a CC, e este declarou comprar o mesmo veículo, pelo preço de € 30.925,47.

12. Na altura da entrega do veículo ao comprador CC, o veículo registava no seu conta-quilómetros ter percorrido cerca de 82.000 Kms.

13. Com data de 18-4-05, o R. subscreveu, nele apondo a sua assinatura, o escrito de folhas 16, intitulado Declaração com o seguinte teor:

Declara, sob compromisso de honra, sem quaisquer reservas e para todos os devidos e legais efeitos, ter procedido, no dia 20-12-04, à venda de um veículo automóvel … à AA … pelo preço de € 28.000,00, importância que recebeu desta, da qual lhe dá a correspondente quitação.

Mais declara que, à data da referida venda à AA, o veículo apresentava uma quilometragem de cerca de 82.000 Kms.

Por ser verdade e corresponder à sua vontade, vai a presente declaração ser datada e assinada, em sinal de plena e total concordância com o seu teor.

Resende, 18-4-05”.

14. Em 5-9-05, o adquirente do veículo 3., CC, e sua mulher, intentaram uma acção contra a A., na qual pediram a anulação do contrato de compra e venda desse veículo à A., com base no facto do veículo, à data do negócio, ter percorrido muitos mais quilómetros que os indicados no respectivo mostrador (conta-quilómetros).

15. Essa acção correu seus termos nos autos do processo nº 183/05.3TBRSD do Tribunal Judicial de Resende.

16. A A. foi citada para os termos dessa acção, tendo apresentado a sua contestação, na qual requereu a intervenção do ora R. que nela interveio e apresentou a sua contestação.

17. Na contestação que apresentou no processo acima referido, o R. alegou que, “quando vendeu o automóvel em causa”, “o conta-quilómetros indicava de facto cerca de 82.000 Kms”, e que “havia-o adquirido na Alemanha em finais de Outubro de 2004 à Automobile Calli Genbtt, com sede em Munique, e o seu conta-quilómetros indicava cerca de 79.000 Kms”, pelo que, “se acaso o conta-quilómetros foi adulterado ou mexido, esse facto não foi praticado por si, e que nisso não tem também qualquer responsabilidade”.

18. Na sentença proferida nesse processo foram provados os factos seguintes:

a) Encontra-se inscrita na Conservatória … a sociedade comercial AA… com o objecto social de comércio de automóveis;

b) É sócio e gerente da referida sociedade DD;

c) A propriedade do veículo automóvel de matrícula …-…-ZF encontra-se registada na Conservatória a favor de CC.

d) Em Dezembro, a AA … declarou comprar e BB declarou vender o veículo …-…-ZF.

e) Aquando do referido em d), o veículo já apresentava cerca de 82.000 Kms no conta-quilómetros.

f) No exercício da sua actividade comercial, e no início de Janeiro de 2005, a AA … declarou vender aos AA. e estes declararam comprar o veículo … do ano de fabrico de 2002 … …-…-ZF, pelo preço de € 31.500,00.

g) Para pagamento de parte do preço, os AA. entregaram à AA … o veículo Rover 217 Coupé, com a matrícula …-…-EZ, sua propriedade, que as partes avaliaram em € 5.000,00, tendo os AA. nessa data entregue à AA … as chaves, o título de registo de propriedade, livrete e requerimento-declaração para registo de propriedade do referido veículo.

h) Para pagamento de parte do preço, os AA. celebraram ainda um contrato com BANCO EE Crédito … mediante o qual esta empresa emprestou àqueles 24.000€, com obrigação de estes restituírem outro tanto, nos termos e condições gerais que constam a fls. 37 e 38.

i) O montante do empréstimo foi entregue à AA … e o restante pagamento do preço, no montante de € 2.500,00, foi efectuado em dinheiro.

j) Os AA. adquiriram o veículo automóvel referido para fazerem a viagem de regresso à Suíça, onde estão emigrados e para ali se deslocarem no dia-a-dia.

k) Desde a data referida em f), os AA. têm circulado diariamente no referido automóvel e praticado todos os actos de conservação e manutenção necessários.

l) Na data referida em f), o veículo …-…-ZF apresentava no mostrador do conta-quilómetros a distância percorrida de 82.000 Kms.

m) Em 6-4-05, o A. marido procedeu a uma revisão do veículo …-…-ZF numa garagem da Mercedes sita em Lausanne, Suíça.

n) Nessa revisão, o funcionário da Mercedes efectuou uma busca informática ao histórico do veículo e verificou que este, numa intervenção mecânica realizada em 28-11-03, na Alemanha, apresentava no conta-quilómetros 138.410 Kms.

o) Tendo sido retirados do mecanismo de conta-quilómetros do veículo, pelo menos, 56.410 Kms.

(...).

p) BB compra e vende veículos automóveis novos e usados e importou o veículo …-…-ZF da Alemanha, onde tinha a matrícula M…V.

q) À data da aquisição referida em d), o veículo já tinha matrícula portuguesa, tendo sido o BB que requereu a atribuição de matrícula portuguesa à viatura junto da Direcção Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo.

r) Foi BB que submeteu a viatura à inspecção técnica periódica cujo certificado consta a fls. 44.

s) Aquando do referido em d) e f), o motor da viatura não denotava qualquer problema de funcionamento.

t) A carroçaria e o interior da viatura encontravam-se em bom estado de conservação, como novos.

u) O R. BB adquiriu o veículo automóvel em apreço na Alemanha.

19. Com base em tais factos, o Tribunal, em sentença proferida nesse processo, declarou "a anulabilidade do contrato de compra e venda que teve como objecto o veículo, celebrado entre a AA … e os autores, condenando a AA … a pagar aos autores € 31.500,00, acrescidos dos juros vencidos desde a data da citação e dos vincendos até integral pagamento, devendo ainda os autores restituir àquela o veículo”.

20. Da sentença referida em 18. não foi interposto recurso quer pela A. quer pelo R.


2.3. Na presente acção a A. peticionou a anulação de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, pretendendo que cada uma das partes restitua à outra o que recebeu, ou seja, que o R. seja condenado a restituir à A. quantia de € 28.000,00, com juros vencidos e vincendos desde 30-9-05 até efectivo pagamento, restituindo a A. ao R. o veículo …-…-ZF.

Tal pretensão surgiu na sequência de outra acção de anulação instaurada contra a A. pelo terceiro adquirente da mesma viatura, a quem a A. o revendeu, e na qual o R. foi chamado a intervir acessoriamente para assegurar o eventual direito de regresso da A. Acção que foi julgada procedente, declarando-se a anulação do contrato de compra e venda entre a A. e o adquirente da viatura, com fundamento em erro sobre o objecto do contrato, tendo a ora A. sido condenada a restituir àquele a quantia de € 31.500,00 e juros de mora.

Já na sentença proferida nos presentes autos foi considerada improcedente a anulação do contrato com base no erro sobre o objecto do contrato (arts. 251º e 247º do CC), afirmando-se que “sem erro ou dolo o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior” (fls. 324), ao mesmo tempo que se discreteou sobre o erro essencial e o erro incidental, para concluir que a quilometragem do veículo não constituía um elemento determinante da vontade da A.

Foi seguida uma linha decisória completamente desajustada da realidade, olvidando o que decorre da matéria de facto provada e também das regras da experiência, para desembocar numa solução que, além de inferir a existência de uma intenção que não decorre da matéria de facto provada – a de que a A. adquiriria o veículo por valor inferior - extravasa o objecto do processo, produzindo um efeito jurídico diverso daquele que lhe foi pedido. Com efeito, em lugar de se reconhecer o direito de anulação do contrato, optou-se oficiosamente pela redução do preço que, decorrendo em abstracto do art. 911º, ex vi art. 913º do CC, não foi solicitada pela A.

Neste contexto, a sentença não encontrou acolhimento em nenhuma das partes, pois ambas a impugnaram, decidindo a Relação julgar improcedente o recurso da A. (que defendeu a anulação do contrato) e procedente o recurso do R. (que se insurgira contra a condenação na devolução da quantia determinada em função da redução do preço).

Todavia, também aqui continuou a nebulosa, uma vez que a Relação, em lugar de reflectir na matéria de direito os factos que foram considerados provados acerca do erro, afirmou a falta de demonstração da essencialidade que justificaria anulação.


2.4. Enfim, na rota decisória, as instâncias perderam-se nas vagas das considerações jurídicas, quando, afinal, bastaria encontrar abrigo na enseada formada pelos arts. 251º e 247º do CC sobre o erro sobre o objecto do contrato.

Não se entende efectivamente o que motivou a 1ª instância a afastar, no caso, a anulação do contrato com base em erro essencial sobre o objecto e menos ainda por que motivo a Relação não corrigiu tal falha de perspectiva, integrando os factos provados no pedido formulado e nos dispositivos legais.

O resultado dessa deriva ficou bem à vista, a justificar as observações que a recorrente expôs nas alegações do presente recurso, pois que o decidido pelas instâncias não satisfaz nem os interesses das partes, nem os objectivos do processo, nem, enfim, os desígnios de um Sistema de Justiça.

O facto de na primeira acção a A. ter sido condenada a restituir a quantia que recebera a título de preço (sem que se perceba ainda qual a real situação do veículo que foi vendido a pessoas que estavam emigradas na Suíça) reforça ainda mais a falência daqueles objectivos, já que, em lugar de o acórdão consolidar uma solução para o litígio que divide as partes, acabou por confrontar a A. com a necessidade de instaurar outra acção na qual seja formulado, porventura, o pedido de redução do preço que, em bom rigor, já nem permitirá uma correcta composição do litígio, atento o período de tempo que decorreu desde a outorga do contrato em 2005.

Retomemos, pois, o curso natural das coisas, simplificando aquilo que, na verdade, é simples, tanto mais que os factos apurados falam por si, tornando dispensáveis profundas considerações teóricas em torno da figura do erro sobre o objecto negocial.

Ponhamos de lado, por um momento, os exemplos que a doutrina dá de erro essencial e erro incidental para que não se perca a noção de que os Tribunais não tratam de questões académicas, mas apenas de litígios delimitados pela matéria de facto provada que traduz a realidade que importa integrar juridicamente, proferindo uma decisão que proceda a uma correcta, razoável e compreensível composição do litígio.


2.5. Ao comprador de coisa que sofra de vício que a desvalorize ou que não tenha as qualidades asseguradas pelo vendedor é conferido, além do mais, o direito de pedir a anulação do contrato com fundamento em erro, desde que se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade (art. 905º, ex vi art. 913º do CC). Direito a que poderá acrescer uma indemnização pelos danos emergentes do contrato, independentemente da culpa do vendedor, nos termos dos arts. 909º e 915º do CC.

Quedando-nos pela anulação do contrato – já que o pedido de indemnização ainda dependerá da fixação definitiva da matéria de facto provada e não provada, nos termos que anteriormente foram determinados – decorre do art. 251º do CC que esse é o efeito de “erro que atinja os motivos determinantes da vontade” e “se refira … ao objecto do negócio”. Para tal basta que também se verifiquem as circunstâncias previstas no art. 247º, ou seja, que “o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro” (cfr. o Ac. deste STJ, de 15-5-12, www.dgsi.pt).

Na apreciação dos elementos normativos e na sua intersecção com a matéria de facto provada não podem ignorar-se as circunstâncias específicas do negócio, assim como a actividade exercida por cada uma das partes, sendo que, para o que agora nos interessa, tanto a A. como o R. se dedicam à compra e venda de automóveis com fins lucrativos. São, pois, conhecedores das regras e dos riscos desse negócio e do modo como se determina o valor de veículos automóveis em segunda mão, importados ou não do estrangeiro

Assim foi feito no Ac. deste STJ, de 31-5-04 (www.dgsi.pt), num caso semelhante em que também fora adulterada a quilometragem de um veículo.

Por outro lado, para a aferição dos elementos que integram o vício é indiferente o elemento subjectivo acerca do aspecto negocial sobre que incidiu o erro. Apesar de não estar demonstrado que foi o R. quem viciou o conta-quilómetros do veículo que vendeu à A. ou que nessa data tinha conhecimento de que a viciação havia ocorrido, tal não interfere no resultado, sendo importante, isso sim, que o erro em que a A. incorreu tenha incidido sobre aspectos essenciais para a sua vontade de contratar que o R. conhecesse ou, pelo menos, não devesse ignorar.

Como refere Antunes Varela, no CC anot, à margem do art. 913º, são as deficiências de carácter objectivo que anteriormente enuncia, “mais do que o erro do comprador ou o acordo negocial das partes – que servem de real fundamento aos direitos concedidos por lei ao comprador e que justificam, pela especial perturbação causada na economia do contrato, os desvios contidos besta secção ao regime comum do erro sobre as qualidades das coisas”.

Sobre a matéria cfr. ainda Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 8ª ed., pág. 580.


2.6. No caso, revela-nos a matéria de facto provada que, no âmbito da actividade profissional que exercia, o R. importou da Alemanha um veículo usado que aparentemente teria 82.000 Kms. Foi com esta característica essencial que o apresentou à A., tendo esta aceite a sua compra por € 28.000,00.

Todavia, o veículo não tinha os 82.000 Kms que o respectivo contador indicava, mas acima de 148.410 Kms, factor que influía directamente no seu valor comercial.

O R. não podia ignorar que, ao apresentar à A. um veículo com uma quilometragem inferior à real provocava nesta a convicção de que o veículo apenas tinha essa quilometragem, o que se comprovou no caso.

Ora, com a quilometragem real o veículo valeria apenas cerca de € 17.500,00 e não os € 28.000,00 que foram pagos pela A. Ademais, esta nunca aceitaria pagar o valor que efectivamente pagou se tivesse conhecimento que o veículo referido tinha 138.410 Kms.

Acresce que o R. não ignorava que a quilometragem fictícia é que foi determinante para a comprar o mesmo veículo pelo preço de € 28.000,00.


2.7. Num contexto em que ambas as partes eram comerciantes do ramo automóvel e em que, como é do conhecimento geral, o valor comercial dos veículos (maxime de veículos usados importados do estrangeiro) é directa e essencialmente influenciado pelo seu estado de conservação e ainda, numa escala elevada, pela idade e pela quilometragem percorrida, não pode duvidar-se de que a divergência entre o que o contador mostrava e a quilometragem efectiva constituía um factor essencial para a A. no que concerne à sua opção de comprar, para revenda, facto que o R. seguramente não deveria ignorar.

O facto de a A. ter destinado efectivamente o veículo à revenda e de, além disso, ter sido posteriormente confrontada com uma acção de anulação com fundamento na mesma divergência respeitante à quilometragem do veículo, obrigando-a a restituir a quantia recebida, apenas confirma o que a demais matéria de facto já revela.

Neste contexto, não pode afirmar-se de modo algum, como o fez a sentença de 1ª instância, que a A. adquiriria, ainda assim, o veículo por um preço inferior. Nada permite afirmar que, mesmo assim a A. o viria a adquirir, não devendo olvidar-se que se tratava de um veículo importado, de marca Mercedes, em que os factores aspecto/conservação e idade/quilometragem exercem um enorme reflexo nas opções de compra e na fixação do preço comercial.

O facto de a A. exercer a actividade de compra e venda de veículos não permite afirmar que todo e qualquer veículo que lhe fosse apresentado fosse pela mesma adquirido para revenda. E não permite seguramente afirmar que a A. adquiriria o veículo se soubesse que, afinal, o mesmo já tinha mais de 146.000 Kms, pagando pelo mesmo um preço inferior.

A matéria de facto apenas revela que a A. estava legitimamente convencida de que o veículo tinha uma quilometragem inferior à real e foi por isso que acedeu a entregar ao R. a quantia de € 28.000,00.

A verificação da essencialidade ou não do erro sobre o objecto negocial não pode constituir um mero exercício retórico, jamais devendo perder-se de vista as concretas circunstâncias que rodeiam cada contrato e as implicações futuras do erro no contexto da actividade exercida pelo comprador do veículo com um dos seus elementos essenciais viciado.

Enfim, a A. propôs-se adquirir um veículo que, aparentando ter 82.000 Kms, foi valorizado em € 28.000,00, quanto, afinal, teria cerca de 148.000 Kms e o seu valor comercial não ultrapassaria cerca de € 17.500,00, sendo, por isso, essencial o erro em que incorreu, essencialidade que o R., se porventura não conhecia, não poderia deixar de conhecer, uma vez que exercia a actividade precisamente na mesma área em que a A. o fazia.


2.8. Para se integrar a pretensão do A. na figura do erro sobre o objecto do contrato nem sequer se mostra necessário recorrer aos factos que foram fixados na outra acção em que a ora A. foi R. e em que o ora R. foi chamado a intervir acessoriamente.

Ainda assim, ao invés do que foi referido no acórdão recorrido, nada obstaria a que, se necessário fosse, se valorassem alguns desses factos, pois que foram considerados provados no âmbito de uma acção em que o ora R. interveio e na qual foi proferida sentença que constitui quanto a si caso julgado, nos termos do art. 323º, nº 4, do CPC.

A intervenção acessória do ora R. na outra acção foi provocada para o vincular ao caso julgado que aí fosse formado, sendo certo que alguns dos factos atinentes à anulação do outro contrato de compra e venda também teriam conexão com o pedido de indemnização que na presente acção foi cumulado com o pedido de anulação. Por isso, os factos que relevassem para o reconhecimento do direito de indemnização também poderiam ser aproveitados para a pretensão anulatória formulada na ressente acção, desde que se reportassem a elementos relevantes para o objecto desta outra pretensão (Lebre de Freitas, CPC anot., vol. I, 3ª ed., pág. 636).

De todo o modo, como se disse, a matéria de facto apurada na presente acção revela, por si, o preenchimento dos pressupostos do direito potestativo de anulação com base no erro que efectivamente traduz, em termos jurídicos, o vício que efectuou o contrato de compra e venda.


2.9. A anulação implica para o R. a obrigação de restituir o preço, a que acrescerão juros de mora desde a data da citação.


IV – Face ao exposto, acorda-se em:

a) Anular o acórdão da Relação, na parte em que se absteve de reapreciar a impugnação da decisão da matéria de facto relativamente aos pontos III a VIII enunciados na apelação, determinando-se essa reapreciação e a reapreciação do pedido de indemnização respeitante aos danos morais;

b) Revogar o acórdão da Relação na parte restante, declarando-se anulado o contrato de compra e venda do veículo automóvel de matrícula …-…-ZF celebrado entre o R. e a A. e, sem embargo da entrega do veículo por parte da A. ao R., condena-se o R. a pagar à A. a quantia de € 28.000,00, com juros de mora desde a data da citação.

Custas da revista e da anterior apelação a cargo da R. e da A., na proporção de 90% e de 10%, respectivamente.

Notifique.

Lisboa, 28-4-16


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo