Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
44/1999.E2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÂO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
UTILIDADE PÚBLICA
REQUISITOS
ATRAVESSADOURO
DOMÍNIO PÚBLICO
Data do Acordão: 09/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL / DIREITOS REAIS / CAMINHOS PÚBLICOS
Doutrina: Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado III, 2.ª ed., pág. 282;
M. Henrique Mesquita, RLJ, anos 134.º e 135.º, págs. 366 e 62;
Marcelo Caetano, «Manual de Direito Administrativo», tomo II, 9.ª ed., 1980, págs. 922-923;
Rui Pinto Duarte, «Caminhos Públicos - Comentários de Jurisprudência», in Cadernos de Direito Privado, n.º 13, Janeiro/Março de 2006, pág. 3 e ss.
Legislação Nacional: CPC: 663.º, 722.º, N.º 2, 729.º, N.º 2
NCPC2013: ARTS. 611.º, N.º 2, 674.º, N.º 3, 682.º, N.º 2,
CC: ART. 1383.º, 1384.º,
Jurisprudência Nacional: AC. STJ 16-12-2010, PROC. N.º 414/06.2TBPBL.C1.S1.
AC. STJ 05-05-2009, PROC. N.º 08B1170;
AC. STJ 28-05-2009, PROC. N.º 08B2450;
AC. STJ 13-03-2008, PROC. N.º 08A542;
AC. STJ 10-11-1993, BMJ 431-300;
AC. STJ 10-04-2003, PROC. N.º 4714/02.2;
ASSENTO DE 19-04-1989;
AC. 15-06-2000, PROC. N.º 084192;
AC. STJ 18-05-2006, PROC. N.º 06B1468;
AC. STJ 08-05-2007, PROC. N.º 07A981;
AC. STJ 13-01-2004, PROC. N.º 03A3433;
AC. STJ 07-12-1994, PROC. N.º 085611;
AC. STJ DE 26-02-2002, PROC. N.º 02A2995;
AC. STJ 18-05-2006, PROC. N.º 06B1468;
AC. STJ 08-05-2007, PROC. N.º 07A981;
AC. STJ 13-03-2008, PROC. N.º 08A542;
AC. STJ 28-05-2009, PROC. N.º 08B2450;
AC. STJ 10-12-2009, PROC. N.º 897/04.5TBPTM.E1.S1;
AC. STJ 21-01-2014, PROC. N.º 6662/09.6TBVFR.P1.S2;
AC. 14-02-2012, PROC. N.º 295/05.0TBOFR.C1.S1.;
AC. R.P. DE 04-06-2013, PROC. N.º 690/09.9TBCHV.P1.
Sumário :
I - Para efeitos de se considerar o uso imemorial de um caminho, em ordem a classificá-lo como público, o que releva é o tempo que decorrido à data da propositura da acção, e não à data das alegações de recurso, por a isso se opor o regime de relevância de factos supervenientes (art. 661.º, n.º 2, do NCPC (2013)).

II - A integração do caminho no domínio público encontra a sua justificação na sua afectação a uma utilidade pública, que deve revelar-se na satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, por contraponto aos atravessadouros que se destinam, apenas e tão só, a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância.

III - O tempo de memória útil das pessoas – isto é, de memória que pode fundamentar um juízo de prova, em tribunal – não coincide manifestamente com o tempo médio de vida do ser humano, sendo que é o tempo de memória útil que deve relevar para determinar se a memória das pessoas vivas recorda o início da utilização directa ou indirectamente.

IV - Considera-se imemorial, para efeitos de classificação de um caminho como público, o uso de um caminho que ocorre há mais de 60 anos.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA e mulher, BB, instauraram uma acção contra CC e DD e o Município de Setúbal, pedindo que lhes fosse restituída a posse do caminho que identificam, que lhes fosse reconhecido “o direito de vedação e tapagem do seu prédio rústico” e que os réus fossem “condenados a absterem-se de usar o caminho particular dos AA e de praticarem todos os demais actos que configurem violação do direito de propriedade de que são titulares os AA como legítimos donos e possuidores do terreno”. Quanto ao segundo réu, pediu ainda a sua condenação “a repor o caminho na sua configuração original, antes das obras por ele levadas a cabo e [a] reconstituir o pilarete por ele demolido”.

Em síntese, alegaram que a ré vem utilizando abusivamente um caminho particular integrado no prédio de que são proprietários, para chegar a uma casa que construiu num terreno de sua propriedade, situado a sul do prédio dos autores; e que o réu Município de Setúbal, alegando tratar-se de um caminho público, invadiu abusivamente o seu terreno, abriu “um caminho com a largura de 3 metros” e demoliu um pilarete existente na sua propriedade.

CC e DD contestou, sustentando, nomeadamente, a ineptidão da petição inicial e tratar-se de uma serventia, “por onde sempre transitaram, desde há mais de 50 (…) anos, camiões de toda a tonelagem”. Em reconvenção, pediram o pagamento de uma indemnização de 6.000.000$00, pelos danos decorrentes, “designadamente, [d] a impossibilidade (…) de usar a servidão da sua propriedade, durante 6 (…) meses” e a condenação dos autores como litigantes de má fé.

O Município de Setúbal também contestou. Em particular, invocou a incompetência dos tribunais judiciais “para conhecer o pedido dos AA relativo à aferição de responsabilidade e condenação da Câmara Municipal à reposição do caminho e pilaretes do portão” e sustentou a natureza pública do caminho em discussão. Em reconvenção, pediu a condenação dos autores no reconhecimento de que “o caminho que sai da E.N…. e atravessa a sua propriedade até à Igreja de S Pedro de … é público, pelo que não têm direito a vedá-lo ou tapá-lo”.

Os autores responderam à reconvenção deduzida pela ré CC e DD e ao pedido de condenação por litigância de má fé, sustentando a respectiva improcedência, e também à contestação do réu Município de Setúbal.

No despacho saneador foram indeferidas as excepções de ineptidão e de incompetência.

A acção e a reconvenção da ré CC e DD foram julgadas improcedentes pela sentença de fls. 806, que julgou procedente a reconvenção do Município de Setúbal; mas esta sentença veio a ficar sem efeito, em consequência da anulação do processado, determinada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora de fls. 1051.

Repetidos os actos devidos, veio a ser proferida a sentença de fls. 1149, julgando procedente a acção e “condenando os RR. CC e DD, e Município de Setúbal a restituir aos AA. AA e BB a posse do caminho identificado nos autos e a reconhecer-lhes o direito de vedação e tapagem do seu prédio, abstendo-se de praticar actos que violem esse direito. Condena-se ainda o R. Município de Setúbal a repor o dito caminho na configuração anterior à sua intervenção no mesmo e a reconstruir o pilarete por si demolido” e “improcedentes os pedidos reconvencionais formulados pelos RR.”.

O tribunal, dando como assente “que o caminho se destina a satisfazer interesses colectivos relevantes, porque utilizado para aceder à capela pelos habitantes de Aldeia …, capela que é a única dessa localidade e local onde se realiza a festa anual da mesma, sendo certo que os habitantes da mesma atribuem importância a tal capela”, entendeu que a prova da utilização “há mais de 60 anos” impede que o caminho reúna “os requisitos necessários para que se possa qualificar de público” e obriga a tê-lo como um mero atravessadouro e a reconhecer o direito invocado pelos autores.

A sentença foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora de fls. 1326, por não ter “ficado provado o uso do caminho desde tempos imemoriais (cfr. respostas restritivas aos artºs 58º, 66º e 67º da BI)”, por não se poder ter como imemorial um uso que existe apenas “há mais de 60 anos”.


2. O Município de Setúbal recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça; e o recurso veio a ser admitido na sequência da reclamação deduzida contra o despacho de não admissão de fls. 1512, pela decisão deste Supremo Tribunal de fls. 59 do apenso.

Nas alegações que apresentou, o recorrente formulou as seguintes conclusões:

«a) A única questão em que o recorrente sustenta a sua inconformação com o douto acórdão recorrido, restringe-se à qualificação, em face da factualidade dada como assente, do uso público que vem sendo dado ao caminho como "imemorial".

b) Conforme tem vindo a ser reconhecido pela jurisprudência, o uso "imemorial" é aquele cuja origem não é atingível pela memória dos viventes, ou seja, as situações cujo início se perca no tempo e ultrapasse a memória das pessoas vivas.

c) No presente caso, deu-se como provado que o uso público do caminho remonta "há mais de 60 anos", o que, à data do julgamento corresponde a "há mais de 73 anos", ou seja, no limite da memória possível das pessoas vivas.

d) A referência à expressão "há mais de", só por si já significa uma impossibilidade de determinar em concreto a origem de um determinado facto, situação ou acontecimento, o que, também só por si, tendo em conta que se indica um período de tempo próximo do limite da memória possível, já significa que tal origem está para além da memória dos homens, isto é, que é, nos termos da jurisprudência unânime, "imemorial".

e) Por outro lado, conforme foi dado como provado, tal caminho constituía o único acesso directo, para veículos de 4 rodas, para quem se deslocasse à igreja e ligava a Estrada Nacional N° … à Capela de São Pedro de ….

f) Sendo a via de circulação, que hoje constitui a Estrada Nacional N° …, de origem "imemorial" e remontando notoriamente a construção da Capela em causa nos autos aos sécs. XVIII ou XIX, tendo, assim, também uma origem "imemorial", forçoso é concluir que o caminho, sendo a exclusiva ligação para veículos de 4 rodas daquelas duas realidades "imemoriais", "imemorial" terá de ser considerado.

g) Desse modo, concorrendo também no caminho em causa o requisito de imemorialidade do seu uso público', ter-se-ia de lhe ser atribuída e reconhecida a natureza jurídica de caminho público.

h) Ao assim não decidir o douto acórdão recorrido, e ao atribuir ao caminho em causa uma natureza de mera atravessadouro, fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artºs 1383° e 1384° do Código Civil e do acórdão uniformizador da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19/04/89, devendo por tal, ser revogado.»


Os recorridos foram notificados da interposição de recurso; mas só vieram a juntar contra-alegações depois de julgada a reclamação deduzida contra a não admissão do recurso.

É certo que, de acordo com o regime aplicável, as contra-alegações deveriam ter sido apresentadas dentro do prazo previsto no nº 5 do artigo 638º do Código de Processo Civil; no entanto, tendo em conta as divergências verificadas no processo, precisamente quanto à determinação de qual o regime aplicável, e à luz do princípio que informa o artigo 3º da Lei nº 41/2913, de 26 de Junho, admitem-se as contra-alegações, que apenas em 26 de Junho de 2014 deram entrada no Tribunal da Relação de Évora.

Nas contra-alegações, os autores voltaram a sustentar a intempestividade do recurso de revista, apesar de ter sido deferida a reclamação, como se viu já, por decisão da qual os autores não reclamaram e que, portanto, se consolidou (cfr. nº 4 do artigo 643º do Código de Processo Civil). Está pois resolvida a questão da tempestividade do recurso de revista. Apenas se acrescenta que o nº 6 do artigo 638º do Código de Processo Civil pressupõe que as contra-alegações foram apresentadas antes da decisão sobre a admissibilidade do recurso, o que, aqui, não sucedeu e observa-se de novo que a decisão recorrida, na revista, é o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14 de Novembro de 2013; é, portanto, posterior à entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, cujo regime se lhe aplica (salvo quanto à dupla conforme).

Quanto à questão de fundo, os recorridos observam que o objecto do recurso “resume-se ao conceito de imemorabilidade do caminho, como requisito para a verificação da sua dominialidade, fundamentando as suas alegações, essencialmente, no acórdão do STJ de 13.01.2004, proferido no Recurso de Revista nº 3433/03 (…)”; mas que “quer o sumário, quer a matéria dada como provada, quer os fundamentos de direito dele constantes sobre o conceito de ‘imemorabilidade’ são contrários aos afirmados pelo Recorrente…”.

Recordam ainda que o entendimento ali expresso tem sido “seguido unanimemente pela jurisprudência do STJ", “no entendimento que a qualificação de um caminho ou de um terreno como público terá de fundamentar-se na verificação conjugada de dois pressupostos, ou seja, no seu uso directo e imediato pelo público e a imemorabilidade desse uso, ou seja, que o [uso] é tão antigo que o seu início se perdeu na memória dos vivos”; que, no caso presente, se trata de um caminho que “existe há mais de 60 anos (tendo em conta a data da entrada em juízo da acção), não tendo sido dado por provado «que o caminho existe há mais de 100 anos, desde tempos imemoriais» (conforme respostas restritivas aos artigos 58º. 66 e 67º da BI), pelo que não se verifica o requisito da imemorabilidade do caminho”, razão pela qual “o caminho que atravessava a propriedade dos Recorridos constituiu mero atravessadouro”, abolido pelo Código Civil quando entrou em vigor. Concluíram que deve ser mantido o acórdão recorrido.


3. Vem provado o seguinte:

«1 – Os AA. são donos de um prédio rústico denominado “Casal do …”, sito na Aldeia …, freguesia de …, Setúbal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob a ficha nº … e inscrito na respectiva matriz cadastral sob o artº 18º da Secção F.

2 – A titularidade do direito de propriedade do prédio supra descrito adveio aos AA. por partilha da herança deixada por morte dos pais do A. marido, como resulta da inscrição ….

3 – Os pais do A. marido adquiriram a titularidade do prédio rústico supra identificado, por escritura de compra e venda celebrada em 4/12/1953.

4 – O caminho em causa nos autos, que está entre a Estrada Nacional … e a casa e armazém dos AA., tem o comprimento de cerca de 300 (trezentos) metros.

5 – E, até ao extremo sul da mesma propriedade, tem o comprimento de 400 (quatrocentos) metros.

6 – A sul da propriedade dos AA., situa-se um terreno rústico, de que é titular a 1ª Ré, denominado Casal de … ou Casal da …, à Aldeia …, freguesia de …, concelho de Setúbal, constituído por uma capela e terreno de pinhal, mato e terra de semeadura, confrontando do norte com os ora AA., de nascente com EE, de poente com herdeiros de FF e de sul com herdeiros de GG e DD, inscrito na matriz sob o artº 71º da Secção I e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob os nºs …/…, restante do ... do B-… e sob parte dos … e ..., ambos do B-….

7 – Neste prédio da 1ª Ré existe uma capela, denominada de “Capela de …”, onde se celebra a missa dominical.

8 – E anualmente, durante dois fins de semana do mês de Junho celebra-se uma festividade da Aldeia …, freguesia de ….

9 – Tal capela dista da extrema sul do prédio dos AA., cerca de trezentos metros.

10 – Em 11/07/1983, a 1ª Ré requereu a aprovação de um projecto de moradia, cuja licença de obras foi concedida em 7/09/1987, pelo alvará nº …, que incidiu sobre o projecto …/….

11 – Tal obra ficou implantada a norte da capela de …, distando da mesma escassos metros e a cerca de 200 metros da extrema sul da propriedade dos AA.

12 – E, pelo caminho referido nos autos, durante o Inverno e diariamente, na época estival, são frequentes as idas e vindas da 1ª Ré e de seus amigos, a qualquer hora do dia e da noite.

13 – Para se locomover, a 1ª Ré utiliza “jeeps” e carros velozes.

14 – A festa da Aldeia … é de carácter religioso e ocorre durante dois fins de semana de Junho, com bailes aos sábados e domingos até de madrugada.

15 – Os AA. procederam ao arroteamento da área sul do seu terreno, inclusive no local em que se encontrava o caminho em causa nos autos – cerca de 100 (cem) metros de comprimento desde as casas dos AA. até à propriedade da 1ª Ré.

16 – Em Março de 1999, os AA. foram notificados de despacho de HH, vereadora da Câmara Municipal de Setúbal, no qual, considerando que estes haviam colocado um portão confinante com a E.N. … e suprimido um caminho existente na sua propriedade, que constituiria “serventia pública que serve de acesso à Capela de …”, ordenou a respectiva notificação para repor o referido caminho no seu estado original, bem como para proceder à demolição do portão construído.

17 – A capela referida em 7 é a única da Aldeia ….

18 – É nela que, todos os domingos, se celebra a missa na Aldeia ….

19 – É nela que ocorrem, todos os anos, as festas do Padroeiro da Aldeia …, São ….

20 – Festa participada pelo povo, que assiste e participa nos espectáculos realizados, nomeadamente de folclore.

21 – E, para isso, há um terreiro e palco junto à capela.

22 – A E.N. … é a única que faz a ligação Lisboa/Setúbal, à capela.

23 – O caminho referido em 4 e 5 era de terra batida.

24 – Existia um caminho desde o armazém dos AA. até à extrema sul da sua propriedade, também de terra batida.

25 – Para acesso à dita capela existe, pelo lado poente do prédio rústico da 1ª Ré uma estrada municipal que atravessa a Aldeia … e termina num acesso de terra batida.

26 – Esse caminho é usado pelos habitantes da Aldeia … para acederem à capela mas apenas permite o acesso a pé, de motociclo ou de bicicleta.

27 – Esse caminho, entre o fim da estrada municipal da Aldeia … e a extrema da propriedade da 1ª Ré, tem de comprimento cerca de 10 metros.

28 – E sempre existiu naquele lugar.

29 – A entrada principal da capela encontra-se orientada a poente e o início do caminho encontra-se cerca de 40 metros à frente dessa entrada.

30 – Os dois prédios onerados com essa passagem encontram-se vedados.

31 – O caminho ficou aberto mas só permite a passagem a pé, de motociclo ou de bicicleta, por ter, em parte dele, uma largura de 0,80 a 0,90 cm.

32 – Existe um caminho (encontra-se traçado a verde no mapa de fls. 51) que parte da Estrada da … e que dá acesso à propriedade da Ré, passando por terreno de terceiro e, no seu início e no local onde passa uma ribeira só permite a passagem de veículos altos do tipo “todo o terreno”.

33 – Existe um caminho, com uma extensão apreciável (assinalado a roxo no mapa de fls. 51), que passa por uma propriedade de uma irmã da 1ª Ré.

34 – A 1ª Ré, familiares e amigos desta passam pela propriedade dos AA. para acederem à propriedade daquela.

35 – Após a construção da sua casa, a 1ª Ré, familiares e amigos desta utilizam o caminho (que passa pela propriedade dos AA.) mais vezes.

36 – O que provoca poeira.

37 – E projecta água para as bermas, quando está encharcado.

37 – O caminho referido no ponto 32 era usado para aceder à capela e à festa anual por habitantes da Aldeia ….

38 – Desde, pelo menos, o fim dos anos 70, durante as semanas que antecedem a festa anual da Aldeia … e nos dois fins de semana de festa, a população da Aldeia … atravessa a propriedade dos AA. como se fosse deles a qualquer hora.

39 – Durante a festa anual, acima referida, os habitantes da Aldeia … conduzem veículos automóveis por esse caminho.

40 – Também durante essa festa, as pessoas estacionam os seus carros e motociclos junto da casa dos AA. e em cima dos passeios semeados.

41 – Urinam, discutem e falam alto, altas horas da noite, como se de um terreno baldio se tratasse.

42 – Além do referido no ponto 15, os AA. pretenderam colocar um portão para vedar o acesso à sua propriedade a todos os estranhos.

43 – Em 30/04/1999, pelas 11 horas, o Município invadiu a propriedade dos AA.

44 – Equipado com camiões e uma escavadora.

45 – E procedeu ao alargamento de um caminho, antes estreitado pelos AA., para a largura de 3 metros, de norte para sul, em direcção à capela propriedade da 1ª Ré, a partir do armazém.

46 – E procedeu à demolição do pilarete existente do lado direito da entrada da propriedade dos AA., ficando o do lado esquerdo.

47 – Os AA. encontram-se impedidos de tapar e vedar a sua propriedade dos lados sul e norte.

48 – Há mais de 60 anos (tendo em conta a data da propositura da acção) o referido caminho (que passa pela propriedade dos AA. em direcção à da 1ª Ré), sempre permitiu a passagem a veículos de quatro rodas (no início, carros de bois e mulas, e mais tarde tractores e outros veículos automóveis).

49 – Actualmente o caminho referido no ponto 25 tem uma parte em terra batida e uma parte asfaltada.

50 – Parte desse caminho tem uma largura de 0,80 a 0,90 cm.

51 – A parte em que estreita o caminho está entre vedações de malha assentes em muretes de alvenaria.

52 – Não podem passar veículos de quatro rodas.

53 – O início do caminho referido no ponto 25 encontra-se cerca de 40 metros à frente da entrada da capela e daí até à capela o terreno forma uma elevação íngreme e em mau estado.

54 – O caminho referido no ponto 32 dista da propriedade da 1ª Ré cerca de 2 Km.

55 – E passa pelo meio da Serra da ….

56 – O caminho referido no ponto 4 existe há mais de 60 anos (tendo em conta a data de entrada em juízo da acção).

57 – Por esse caminho têm passado os Srs. Padres nos seus automóveis, desde há dezenas de anos para celebrarem a missa.

58 – E também os fiéis sempre por ali passaram nos seus automóveis para rezarem.

59 – A festa da Aldeia … tem tradição que se perde no tempo, tendo sido interrompida a sua realização durante a guerra colonial.

60 – O caminho em causa (referido no ponto 4) é utilizado para os habitantes da Aldeia … e outros irem à festa e por pessoas que vão à missa, na capela existente no terreno da 1ª Ré e tal acontece há mais de 60 anos, tendo em conta a data da propositura da acção.

61 – O que os AA. bem sabem.

62 – A Câmara Municipal, a pedido da Junta de Freguesia arranjava o caminho na altura das festas, o que ocorreu, pelo menos, desde o fim dos anos 80 até 1999.

63 – Devido aos factos referidos em 15, as pessoas que pretendiam aceder ao terreno da Ré e à capela aí existente foram impedidos de passar pelo caminho terreno dos AA.

64 – O caminho referido no ponto 32 nem sempre é transitável.

65 – O povo da Aldeia … atribui importância à capela.

66 – Da E.N. … não há outro caminho directo para quem se quer deslocar à Igreja de carro ou outro veículo de quatro rodas.

67 – A Igreja faz parte da identidade e alma desse povo.

 

4. Está apenas em causa saber se a matéria de facto provada, no que respeita ao tempo de utilização pública do caminho dos autos, é suficiente para o considerar como um caminho público.

Antes de entrar na análise dessa questão cumpre, no entanto, observar o seguinte:

– Nas alegações de recurso, o recorrente recorda que, à data da sentença, já não decorriam apenas mais de 60 anos de utilização pública do caminho, mas sim mais de 73 anos. No entanto, esse decurso do tempo não pode ser considerado para o efeito de, por si só, permitir considerar como imemorial um uso que o não seria à data da propositura da acção, por a tanto se opor o regime de relevância de factos supervenientes (nº 2 do actual artigo 611º, correspondente ao artigo 663º do Código de Processo Civil anterior). O que conta (substantivamente) para o efeito é o momento em que os autores propõem a acção;

– E também não podem ser consideradas as ilações de facto que o recorrente aponta nas mesmas alegações, e que sintetiza nas conclusões e) e f), por estar fora do âmbito do recurso de revista a respectiva formulação ou o seu controlo. Como este Supremo Tribunal tem repetidamente afirmado, o recurso de revista não comporta alterações da decisão sobre matéria de facto, salvo nos casos excepcionais que hoje se encontram previstos no nº 3 do artigo 674º e no nº 2 do artigo 682º do Código de Processo Civil. Como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Dezembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 414/06.2TBPBL.C1.S1, a propósito dos preceitos equivalentes do Código de Processo Civil anterior,  o nº 2 do artigo 722º e o nº 2 do artigo 729º, “destes preceitos decorre, nomeadamente, que está vedado ao Supremo Tribunal da Justiça o recurso a presunções judiciais para dar como assentes factos deduzidos dos que ficaram provados (cfr., por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 5 de Maio de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B1170)”;

– porque o momento relevante é o da propositura da acção, e porque as contas feitas pelos recorridos não respeitam o sentido da prova – se o que ficou demonstrado foi que o uso tem mais de 60 anos, não é legítimo dizer que, à data da entrada em vigor do Código Civil “o caminho em causa nos autos existia apenas há 28 anos” (contra-alegações, conclusão 14ª) –, não pode concluir-se que o existia então um atravessadouro e que o mesmo foi abolido pelo artigo 1383º do Código Civil.


5. Seguindo de perto e transcrevendo parte do que se escreveu já no acórdão deste Supremo Tribunal de 28 de Maio de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2450, e que corresponde à jurisprudência corrente, no Assento deste Supremo Tribunal de 19 de Abril de 1989 (Diário da República, I, de 2 de Junho de 1989), hoje com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência, decidiu-se que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.”

Tratava-se então de saber se, para que os caminhos sejam havido como públicos, bastava que estivessem “no uso directo e imediato do público” ou se era ainda necessário, cumulativamente, que, “além de se encontrarem no uso directo e imediato do publico, tenham sido administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público”. Escreveu-se então: “(…) entende-se que, quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente. É suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público. Assim, um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção. (…) esta orientação é a que melhor se adapta às realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos, e assim se obstar a apropriação de coisas públicas por particulares, com sobreposição do interesse público por interesses privados. Basta, portanto, para a qualificação de um caminho como caminho público o facto de certa faixa de terreno estar afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação.”

Como se sabe, o assento de 1989 deparou-se com o problema de saber como qualificar um caminho que “desde tempos imemoriais” é utilizado pelo público em geral, “em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, reimp. Da 2ª ed., Coimbra, 1987, pág. 282): se como caminho público (integrado, portanto, no domínio público de uma pessoa colectiva de direito público, seja o Estado, seja uma autarquia), se como atravessadouro (e, portanto, integrado em propriedade particular). A alternativa pode ser decisiva, desde logo porque “os atravessadouros (…) desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões” foram (de novo, na realidade, como se dá conta no citado Código Civil Anotado, pág. 280 segs.) considerados abolidos pelo artigo 1383º do Código Civil (que, todavia, ressalvou os casos abrangidos pelo artigo 1384º).

Igualmente se sabe que o Supremo Tribunal de Justiça sentiu já por diversas vezes a necessidade de fazer uma interpretação restritiva dos termos em que o assento decidiu, exigindo, para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Março de 2008, (disponível em www.dgsi.pt como proc. 08A542) “a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância (cf. os Acórdãos do STJ de 10 de Novembro de 1993 – BMJ 431-300 e “inter alia” de 10 de Abril de 2003 – P.º 4714/02-2.ª), numa clara adesão aos critérios do destino – na subespécie de uso público – e do carácter – na vertente de afectação”. No mesmo sentido, podem ver-se, por exemplo, os acórdãos deste mesmo Supremo Tribunal de 10 de Novembro de 1993, www.dgsi.pt como proc. nº 084192, 15 de Junho de 2000, anotado por M. Henrique Mesquita em Revista de Legislação e de Jurisprudência, anos 134º e 135º, págs. 366 e 62, respectivamente), de 18 de Maio de 2006, www.dgsi.pt, proc. 06B1468, ou de 8 de Maio de 2007, www.dgsi.pt, proc. 07A981. Considera-se, aliás, que este entendimento se encontra subjacente à solução adoptada no assento, como resulta da transcrição feita ­(“serão públicas [as coisas] se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente.”

Assim se observou expressamente, por exemplo, nos acórdãos de 13 de Janeiro de 2004 (parte transcrita no acórdão de 14 de Outubro de 2004 (www.dgsi.pt, proc. 04B2576): “Nem outra coisa se compreenderia: é que o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais”).

E não pode, naturalmente, deixar de ser assim, desde logo porque só por esta forma está materialmente justificada a integração do caminho no domínio público, por afectação à utilidade pública (através da “prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública”, como escreve Marcelo Caetano, em Manual de Direito Administrativo, tomo II, reimp. da 9ªed., Coimbra, 1980, págs. 922-923). Essa afectação à utilidade pública deve revelar-se na “satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância”, não sendo suficiente que “se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, [hipótese em que] os caminhos devem classificar-se de atravessadouros” (Acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Novembro de 1993, já citado).

Ora ambas as instâncias têm como assente que o caminho se encontra “no uso directo e imediato do público” (Assento de 19 de Abril de 1989) e que “o caminho se destina a satisfazer interesses colectivos relevantes, porque utilizado para aceder à capela pelos habitantes da Aldeia …, capela essa que é a única dessa localidade onde se realiza a festa anual da mesma, sendo certo que os habitantes da mesma atribuem importância a tal capela” (cfr. sentença, fls.1157 e acórdão recorrido, fls. 1337).

A razão da improcedência, também em ambas as instâncias, foi antes a de que entenderam que a prova não permite considerar preenchida a exigência de que essa utilização pública ocorra desde tempos imemoriais, uma vez que uma utilização “há mais de 60 anos” não equivale a uma utilização cujo início “já não está na memória dos homens” (acórdão recorrido, fl. 1137).


6. Não está sequer em discussão que é condição de dominialidade o uso público imemorial, nem que isso significa um uso que perdura desde tempos já não alcançados pela memória das pessoas vivas, directa ou indirectamente, por tradição oral dos seus antecessores, o que tem sido uniformemente afirmado pela Jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr, apenas a título de exemplo, os acórdãos de 7 de Dezembro de 1994, com sumário em www.dgsi.pt, proc. 085611, de 26 de Fevereiro de 2002, www.dgsi.pt, proc. 02A2995, de 18 de Maio de 2006, proc. nº 06B1468, de 8 de Maio de 2007, www.dgsi.pt, proc. 07A981, de 13 de Março de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 08A542, de 28 de Maio de 2009, www.dgsi.pt, proc. 08B2450, ed 10 de Dezembro de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 897/04.5TBPTM.E1.S1, ou de 21 de Janeiro de 2014, www.dgsi.pt, proc. 6662/09.6TBVFR.P1.S2) e pela doutrina (também a mero título de exemplo, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado cit., vol. cit., pág. 283, ou Rui Pnto Duarte, Caminhos Públicos, Comentários de Jurisprudência, in Cadernos de Direito Privado, nº 13, Janeiro/Março de 2006, pág. 3 e segs.).

O que se discute é antes saber se preenche o conceito de uso imemorial uma utilização que, segundo vem provado, perdura “há mais de 60 anos” – cfr. decisão de facto, pontos 48 e 56 a 60.

Para as instâncias, o conceito de tempos imemoriais deva ser interpretado no sentido de só relevar um tempo superior ao “tempo médio de vida da pessoa humana”, sob pena de se não poder dizer que o início da utilização “desapareceu da memória dos vivos” (sentença, fls. 1158 e acórdão recorrido, fls. 1338, que a transcreve).

Mas não se considera adequada tal medida: o tempo de memória útil das pessoas – isto é, de memória que pode fundamentar um juízo de prova, em tribunal – não coincide manifestamente com o tempo médio de vida do ser humano; e é o tempo de memória útil que deve relevar para determinar se a memória das pessoas vivas recorda o início da utilização, directa ou indirectamente.

Esta afirmação não implica, naturalmente, que só possam ser consideradas provas que dependam da memória (maxime, prova testemunhal); antes significa que o resultado da prova (de quaisquer meios de prova relevantes, e das ilações de facto que deles se retirem) deve permitir concluir que a utilização pública perdura para lá do período de memória útil do ser humano.

Nem tão pouco impede que se considere imemorial a circunstância de, por exemplo por prova documental, ser possível apurar o início da utilização pública do caminho, desde que esse momento ultrapasse esse tempo de memória útil do ser humano. Como expressamente observam Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado cit., vol. cit., pág., em análise da doutrina que citam, “é imemorial a posse, se os vivos não sabem quando começou; não o sabem por observação directa, nem o sabem pelas informações que lhes chegaram dos seus antecessores. A existência, portanto. De um documento que revele o início da posse não destrói, só por si, a sua natureza imemorial”.

Aliás, o Supremo Tribunal de Justiça, que afirma uniformemente que o uso tem de ser imemorial, tem considerado preenchido esse requisito em casos em que apenas vem provado um uso de há mais de 50 ou 60 anos. Citam-se os seguintes exemplos:

– O acórdão de 8 de Maio de 2007, www.dgsi.pt, proc. nº 07A981, expressamente citado pelo acórdão recorrido, com a transcrição de que “tempo imemorial é um período tão antigo que já não está na memória directa ou indirecta – por tradição oral dos seus antecessores – dos homens, que, por isso, não pode situar a sua origem”, considera uso imemorial do adro da igreja uma utilização traduzida em actos que ocorreram há mais de 50 anos;

– No acórdão de 13 de Janeiro de 2004, www.dgsi.pt, proc. 03A3433, escreveu-se: «É certo que na descrição daqueles factos são utilizadas as expressões "desde tempos que excedem a memória dos vivos, ou, pelo menos, desde há mais de 50 anos seguidos", quanto ao caminho de pé e carro; "desde tempos que excedem a memória dos vivos, e, pelo menos, durante mais de 50 anos", quanto ao caminho de pé; e "desde sempre ou, pelo menos, desde há 50 anos", quanto à parcela de terreno. Trata-se de expressões que poderiam suscitar dúvidas, levando a que não se soubesse se o início da utilização dos caminhos e da parcela de terreno teve lugar há cerca de cinquenta anos ou em momento desconhecido por ser muito mais antigo. No entanto, tais dúvidas desaparecem se se tiver em conta que não se trata de expressões incompatíveis mas, pelo contrário, perfeitamente conciliáveis, cujo significado normal é simplesmente o de que as pessoas se lembram da utilização dos caminhos e do terreno pelo público pelo menos desde há 50 ou mais anos, sabendo porém que essa utilização começou antes mas não recordando o seu início por este já ter saído da memória dos vivos devido à sua antiguidade; os 50 anos constituem apenas o limite mínimo do tempo da utilização pública que os vivos recordam, mas não um limite máximo, que é ignorado, por ser desconhecido, como se provou, o momento do início dessa utilização pública. Só esse pode ser o significado lógico das expressões utilizadas, apontando em consequência para que o uso pelo público tem tido lugar desde tempos imemoriais»;

– No acórdão de 14 de Fevereiro de 2012, proc. nº 295/04.OTBOFR.C1.S1, com sumário em www.st.pt, no qual se pode ler “II. Tempo imemorial é aquele tão antigo que o seu início se perdeu na memória dos vivos”, considerou-se como de uso imemorial um caminho que “existe há mais de 50 anos”.

É esta jurisprudência que aqui se reitera e que conduz a que seja considerado de uso público imemorial um caminho que, há mais de 60 anos, se encontra no uso directo e imediato do público. Discorda-se, portanto, da solução adoptada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Junho de 2013, www.dgsi.pt, proc. 690/09.9TBCHV.P1, citado pelo acórdão recorrido, que teve como insuficiente a prova de que a utilização do caminho então em causa “se faz há mais de 80 anos”.


7. Merecem uma palavra referência as afirmações feitas pelos recorridos, nas contra-alegações, sobre o sentido da decisão contida no acórdão de 13 de Janeiro de 2004, proc. 03A3433, acima citado, no qual dizem que o recorrente essencialmente fundamentou as suas alegações, e que, inexplicavelmente, o deturpam no ponto essencial em discussão: o tempo exigido para que um uso possa ser havido como imemorial.

Segundo escrevem na conclusão 6ª, “quer o sumário de tal acórdão, quer a matéria dada por provada, quer os fundamentos de direito dele constantes sobre o conceito de ‘imemorabilidade’ são contrários aos afirmados pela Recorrente”.

 No entanto, ao transcreverem de forma truncada parte da matéria de facto provada, alteram-na, tirando depois conclusões desconformes com o sentido de imemorabilidade adoptado no acórdão, que atrás se referiu. Escrevem assim:

“b) Foram dados por provados os seguintes factos:

1º - No Bairro de …, situado na freguesia de …, concelho de Porto de Mós, existe uma Capela dedicada ao santo padroeiro, …;

2º - Desde tempos que excedem a memória dos vivos, ou, pelo menos, desde há mais de 50 anos seguidos, que os habitantes do Bairro …, Eiras da …, … e …, bem como o público em geral, se deslocam à Capela de … utilizando um caminho situado entre o moinho e o marco de triangulação cadastral TC 058 nº 204.02, vindo de Sul, e que se estende para Norte até à Capela, (...) sendo que essa utilização deixou de se fazer desde há cerca de 20 anos”.

Concluem, um pouco adiante, que “no acórdão proferido pelo STJ de 13-01-2004, tratava-se de um caminho que tinha sido usado por mais de 50 anos seguidos, desde tempos que os vivos já não se lembravam, e que tinha deixado de ser usado há mais de 20 anos. No presente caso estamos perante um caminho que ‘existe há mais de 50 anos (tendo em conta a data da entrada em juízo da acção), não tendo sido dado por provado que ‘o caminho existe há mais de 100 anos desde tempos imemoriais’ (Cfr. respostas dadas aos artigos 58º, 66º e 67º da BI). Não se verifica pois, aqui mio requisito da imemorabilidade do caminho, conforme jurisprudência assente do STJ, a saber (…)”.

O que realmente foi dado como provado, no referido acórdão de 13 de Janeiro de 2004, como se pode ler em www.dgsi.pt, foi que


1º - No Bairro de …, situado na freguesia de …, concelho de …, existe uma Capela dedicada ao santo padroeiro, …;

2º - Desde tempos que excedem a memória dos vivos, ou, pelo menos, desde há mais de 50 anos seguidos, que os habitantes do Bairro de …, …, … e …, bem como o público em geral, se deslocam à Capela de … utilizando um caminho situado entre o moinho e o marco de triangulação cadastral TC 058 n.º 204,02, vindo de Sul, e que se estende para Norte até à Capela;

3º - O qual tem leito próprio, visível e determinado, constituindo uma faixa de terreno calcada pela passagem de pessoas, animais e viaturas, sendo que actualmente tal leito é parte integrante de uma faixa de terreno triangular, vulgarmente designada de "largo";

4º - O leito do caminho tinha uma largura de cerca de 2 a 3 metros, em todo o seu percurso, permitindo a passagem de veículos de tracção animal (carros de bois e carroças), e, actualmente, apresenta a configuração referida no n.º 3º;

(…)

9º - Para além daquele caminho, também desde tempos que excedem a memória dos vivos e, pelo menos, durante mais de 50 anos, que os habitantes do Bairro …, bem como o público em geral, vinham utilizando um caminho de pé que provinha das …, se desenvolvia no sentido Norte - Sul, e passava por trás da Capela (lado Nascente desta) em direcção aos moinhos do …, sendo que essa utilização deixou de se fazer desde há cerca de 20 anos;

10º - O qual se desenvolvia ao longo de um muro de pedra que definia a estrema Poente do terreno (artigo rústico 463) pertencente à ré H e terrenos adjacentes;

11º - O qual tem leito próprio, visível e determinado, constituído por uma faixa de terreno calcada pela passagem de pessoas;

12º - O qual apresentava uma largura, em todo o percurso, que permite apenas a circulação de pessoas e animais;


Trata-se, portanto, de dois caminhos diferentes; mas relativamente a ambos o acórdão concluiu tratar-se de caminhos públicos de uso imemorial.

8. Nestes termos, concede-se provimento à revista e, consequentemente, decide-se:

a) Revogar o acórdão recorrido, julgando improcedente a acção e procedente a reconvenção do Município de Setúbal;

b) Condenar os autores AA e BB a reconhecer que o caminho que sai da E.N…. e atravessa a sua propriedade até à Igreja de … é um caminho público.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 18 de setembro de 2014

Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego