Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B881
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: JULGADOS DE PAZ
COMPETÊNCIA
EXCLUSIVIDADE
ALTERNATIVIDADE
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ20070524
Data do Acordão: 05/24/2007
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Referência de Publicação: DR I SÉRIE, Nº142, 25-07-2007, P. 4733
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO ALARGADO
Decisão: A COMPETÊNCIA MATERIAL DOS JULGADOS DE PAZ É ALTERNATIVA AOS TRIBUNAIS JUDICIAIS DE COMPETÊNCIA TERRITORIAL CONCORRENTE
Sumário : No actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções previstas no artº 9º, nº 1, da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, é alternativa relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial concorrente
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
AA intentou, no dia 16 de Janeiro de 2006, no 5º Juízo de Pequena Instância de Lisboa, contra BB Seguros SA, acção declarativa de condenação, com processo sumaríssimo, pedindo a sua condenação no pagamento de € 3 329, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a citação, com fundamento em danos patrimoniais decorrentes de estragos no seu veículo automóvel com a matrícula nº ... produzidos por CC com o veículo automóvel que conduzia, no dia 4 de Agosto de 2005, na Rua Tomás Fonseca, em Lisboa, e no contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado entre a última e a ré.
A ré apresentou contestação, por impugnação, no dia 30 de Janeiro de 2006, o juiz convidou as partes a pronunciarem-se sobre a questão da competência em razão da matéria do respectivo juízo, e o autor pronunciou-se no sentido afirmativo.
O juiz, por sentença proferida no dia 22 de Junho de 2006, declarou o tribunal incompetente para conhecer da acção, com fundamento em a competência para o efeito se inscrever nos julgados de paz, e absolveu a BB Seguros SA da instância.
Agravou o Ministério Público da referida sentença, e a Relação, por acórdão proferido no dia 14 de Dezembro de 2006, por maioria, negou provimento ao recurso.

Interpôs o Ministério Público recurso de agravo para este Tribunal, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o não ter sido consagrada a solução dos projectos de lei que erigiam os julgados de paz em instância exclusiva das acções em causa reforça o entendimento no sentido da sua competência alternativa;
- a definição dos julgados de paz como projectos experimentais e de limitada implantação territorial justifica a manutenção da concorrência entre duas jurisdições;
- a natureza e o modo de funcionamento dos julgados de paz perspectiva-os como meios de resolução alternativa de litígios e não como meios substitutivos;
- os procedimentos previstos na lei são orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual, sobressaindo a mediação dependente do acordo das partes;
- a instauração da acção no tribunal comum significa o desinteresse ab initio na mediação;
- o princípio da dependência da jurisdição - cessação da sua competência, em questões incidentais e de prova pericial – exclui logicamente a imposição de accionamento nos julgados de paz;
- a competência dos julgados de paz para as acções em causa não é exclusiva, mas alternativa, pelo que o juízo de pequena instância cível onde a acção foi proposta é o competente para a sua apreciação;
- a sentença violou os artigos 211º da Constituição, 66º e 101º do Código de Processo Civil e a Lei dos Julgados de Paz.

O Presidente deste Tribunal determinou o julgamento alargado do recurso de agravo, e o Ministério Público emitiu parecer no sentido de o conflito ser resolvido por via de acórdão uniformizador no sentido de que “no actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções enumeradas no artigo 9º, nº 1, da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, nomeadamente as constantes da sua alínea h), é alternativa relativamente aos tribunais judiciais com competência territorial concorrente”.

II
É a seguinte a dinâmica processual que releva essencialmente no recurso:
1. José Tomás intentou, no dia 16 de Janeiro de 2006, no 5º Juízo de Pequena Instância Cível de Lisboa, a presente acção declarativa de condenação, a que atribuiu o valor processual de € 3 329 e a forma de processo sumaríssimo.
2. A causa de pedir são os danos patrimoniais resultantes de estragos num veículo automóvel e as declarações envolventes de um contrato de seguro de responsabilidade civil.
3. O pedido é o de condenação no pagamento de € 3 329 e juros de mora contados desde a citação.

III
A questão essencial decidenda é de saber se o 5º Juízo de Pequena Instância Cível de Lisboa é ou não competente em razão da matéria para conhecer da acção.
Considerando o conteúdo da sentença recorrida e das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- breve referência histórica aos julgados de paz;
- antecedentes preparatórios da actual lei e reflexões oficiais sobre a sua aplicação inicial;
- a posição da doutrina e da jurisprudência dos tribunais superiores sobre a questão;
- síntese do conteúdo do acórdão recorrido;
- a organização e o funcionamento dos tribunais judiciais na Constituição e na lei ordinária;
- a organização e o funcionamento geral dos julgados de paz e a especificidade da respectiva tramitação processual;
- a competência material dos julgados de paz no confronto com a dos tribunais judiciais;
- síntese da solução para o caso decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.
Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos com uma breve referência à história dos julgados de paz.
Inicialmente, eleitos nas freguesias, os juízes de paz tinham funções bifrontes de administração e judiciais.
No quadro da centralização do poder real, os juízes de fora, de nomeação régia, foram substituindo ou integrando na sua dependência os juízes de paz, cuja competência se circunscrevia à dirimência de pequenos conflitos vicinais.
No princípio do século XVI, em 1519, os julgados de paz são investidos na função de conciliação, até que acabaram por desaparecer do nosso ordenamento jurídico durante a dinastia filipina, só vindo a reaparecer na sequência da nossa revolução liberal.
Com efeito, referia-se o artigo 177º da Constituição de 1822 aos juízes de facto, e o artigo 129º da Carta Constitucional de 1826 previu a existência de juízes de paz com competências de índole conciliatória, previsão que foi concretizada na Lei de 15 de Outubro de 1827, estabelecendo a sua eleição pelos munícipes.
O Decreto nº 24, de 16 de Maio de 1832, estabeleceu que os juízes de paz seriam eleitos e que nenhuma demanda seria apresentada aos juízes de direito sem passar por eles.
Também exerciam funções de juiz dos órfãos e relativas a partilhas, heranças, divórcios, dívidas, propriedades e salários, primeiramente na área de cada uma freguesia de tradição concelhia e, mais tarde, num círculo de freguesias.
A Constituição de 1838 manteve o carácter electivo dos juízes de paz, tal como a Carta de Lei de 1840, esta já integrada na chamada Novíssima Reforma Judiciária de 21 de Maio de 1841.
A Novíssima Reforma Judiciária subtraiu-lhes as funções jurisdicionais orfanológicas, continuando a inscrever-se na sua competência a conciliação das partes sob a utilização de todos os meios que a prudência e a equidade lhes sugerissem, mostrando-lhes os males derivados das demandas e abstendo-se de empregar algum meio violento, sob pena de responsabilidade por perdas e danos e abuso do poder (artigos 134º e 135º).
Por força da Carta de Lei de 27 de Junho de 1867, os juízes de paz passaram ser nomeados pelo Governo.
A Constituição de 1911 não se referiu aos juízes de paz, mas continuaram a existir, conforme decorre do Estatuto Judiciário de 1928; e a Constituição de 1933, na sua primeira versão, previu, no artigo 115º, § 2º, a sua existência.
No Estatuto Judiciário de 1944, competia essencialmente aos juízes de paz a prática de vários actos por delegação do juiz de direito e a direcção dos processos de conciliação nos termos do Código de Processo Civil (artigo 89º).
O juiz de paz das sedes dos concelhos era o conservador do registo civil e, nos restantes julgados, era o professor do ensino primário do sexo masculino que exercia na sede da respectiva freguesia.
A Constituição de 1933, em resultado da revisão de 1945, deixou de referir-se aos juízes de paz, mas o Estatuto Judiciário de 1962 previa-os, nas freguesias, como meros auxiliares dos juízes de direito.
A Constituição de 1976, na sua primeira versão, não se referiu aos julgados de paz, mas prescreveu poder a lei criar juízes populares e estabelecer outras formas de participação popular na administração da justiça (artigo 217º, nº 1).
Não obstante, a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 6 de Dezembro de 1977, previu a existência de juízes de paz nas freguesias, eleitos pela assembleia ou plenário, com competência para exercer a conciliação, julgar transgressões e contravenções às posturas da freguesia, preparar e julgar acções de natureza cível de valor não superior à alçada do tribunal de comarca quando envolvessem apenas direitos e interesses de vizinhança e existisse acordo entre as partes em prosseguir com o processo no julgado de paz (artigo 76º).
Na sequência da mencionada lei orgânica, foi publicado o Decreto-Lei nº 539/79, de 31 de Dezembro, que regulou a organização e o funcionamento dos julgados de paz, incluindo a respectiva vertente processual.
A motivação anunciada no exórdio deste diploma quanto à atribuição da competência material dos julgados de paz foi a de experimentalidade e de não obrigatoriedade de acesso, certo que se expressou referir-se: a questões susceptíveis de provocar conflitos e de empenhar os cidadãos em torno de problemas que afectam o seu quotidiano no quadro da mais pequena comunidade institucional – a freguesia – e, consequentemente, por pôr à prova e estimular pedagogicamente a capacidade de intervenção, diálogo e reconciliação.
Os juízes de paz não estavam sujeitos a critérios de legalidade estrita, julgando segundo critérios de equidade, prescrevendo a solução que julgassem mais justa e conveniente com vista a conseguir a harmonia social.
O processo cível era informal, o juiz de paz podia livremente investigar os factos, determinar a realização dos actos e diligências que julgasse convenientes, só era admissível a intervenção de advogado na fase do recurso a interpor para o tribunal da comarca.
Apresentado o requerimento inicial, o juiz de paz convocava as partes e, se o réu aceitasse o pleito no julgado de paz, poderia apresentar a contestação até à audiência ou ao seu início.
Mas o referido regime não chegou a ser implementado, porque a Assembleia da República recusou a ratificação do diploma que o consagrava (Resolução nº 177/80, de 31 de Maio).
Na revisão que ocorreu em 1989, passou a Constituição a expressar que a lei podia institucionalizar instrumentos e formas de composição de conflitos (artigo 202º, nº 4).
Segue-se que o texto da revisão da Constituição ocorrida em 1997 passou a expressar poderem existir, além dos tribunais arbitrais, os julgados de paz (artigo 209º, nº 2).

2.
Atentemos agora nos antecedentes preparatórios da actual lei dos julgados de paz e nas reflexões oficiais sobre a sua aplicação inicial.
Dois anos depois da revisão da Constituição de 1997, em 1999, o Governo de então inscreveu no seu programa a diligência de criação de meios extrajudiciais de resolução de conflitos e a adopção de meios tendentes à mediação e à transacção judicial, para superar o desequilíbrio entre a oferta e a procura dos serviços de justiça.
A ideia era, pois, a da promoção de meios preventivos ou alternativos de composição de litígios por via da mediação, da conciliação e da arbitragem.
No ano seguinte, no dia 20 de Janeiro de 2000, o Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português apresentou na Assembleia da República dois projectos de lei relativos aos julgados de paz, um concernente à alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – n.° 82/VIII – e o outro relativo, além do mais, à sua competência e à tramitação dos respectivos processos – n.° 83/VIII.
O primeiro dos referidos projectos visava a alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais no sentido da inclusão da freguesia na divisão do território para efeitos jurisdicionais, de estabelecer a incompetência dos juízos cíveis e dos juízos de pequena instância cível para julgar determinadas acções cíveis, incluindo as de processo sumaríssimo, que passaria para os julgados de paz, e da prescrição da admissibilidade de recurso das suas decisões, sem qualquer restrição, para os tribunais de comarca.
O segundo projecto expressava, por seu turno, por um lado, que se na área da competência territorial dos julgados de paz coubesse a um tribunal de competência específica o conhecimento das questões relativas ao cumprimento de obrigações pecuniárias, à indemnização por dano ou à entrega de coisas móveis de valor não excedente ao da alçada do tribunal de comarca, o diploma que criasse os julgados de paz determinaria se se mantinha apenas a competência daqueles tribunais, e que, nesse caso, aos julgados de paz só caberia a resolução das restantes matérias elencadas (artigo 5º, nºs 1 e 5).
E, por outro, que os tribunais competentes para a resolução dos litígios que passassem a ser da competência dos julgados de paz mantinham a competência para as causas já interpostas na data da instalação dos últimos (artigo 5º, nº 6).
No relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, emitidos sobre os referidos projectos de lei no dia 7 de Junho de 2000, foi ponderado, por um lado, não fazer sentido que os julgados de paz não tivessem competência para as acções declarativas previstas no Decreto-Lei n.° 269/98, de 1 de Setembro, e ser historicamente duvidosa a consideração de os julgados de paz serem tribunais de 1.ª instância, por virtude de das suas decisões caber recurso para os últimos.
E, por outro, estarem os juízos de pequena instância cível e os julgados de paz em diverso patamar da organização judiciária portuguesa, que isso traduzia a diferença entre uns e outros se os primeiros subsistissem, o que era duvidoso, tal como dúvida ocorria perante a situação de os últimos serem os únicos tribunais cuja competência não constava do diploma próprio que era a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Acrescentou-se, por um lado, que não sendo os julgados de paz tribunais de competência genérica ou juízos de competência especializada ou específica, não se sabia que tribunais seriam no que concerne à sua competência interna em razão da matéria, do valor e da forma de processo, e, por outro, que haveria toda a vantagem na discussão da qualificação dos julgados de paz como tribunais de competência específica ou órgãos fora da jurisdição.
Na discussão na generalidade do segundo dos referidos projectos de lei acentuou-se não serem de classificar os julgados de paz como tribunais de competência especifica e ter o Partido que apresentou o projecto de lei deixado ao executivo a opção de decidir onde devia substituir os últimos pelos primeiros e o processo correspondente às questões da sua competência dever ser simplificado e desburocratizado.
Questionou-se, ademais, se com a criação dos julgados acabariam os juízos de pequena instância cível, e respondeu-se que se o Governo informasse a Assembleia que isso podia ser feito sem convulsões será de se seguir nesse sentido.
Acentuou-se, por um lado, que sendo permitido aos julgados de paz conhecer de casos de extrema complexidade, tal não se mostrava compatível com a simplicidade processual e o regime de competência.
E, por outro, que a Constituição permitia distinguir entre a estrutura dos tribunais judiciais e a figura dos julgados de paz, procurarem-se soluções que permitissem aos cidadãos recuperar a confiança no modo como se administra a justiça e que ela se recuperaria se as instituições pudessem oferecer soluções alternativas de resposta que permitissem acorrer às solicitações dos cidadãos em tempo real.
Numa outra intervenção, desta feita de um membro do Governo, referiu-se que os julgados de paz, a que chamava, a título de ilustração, sorte de câmara para-judiciária, podiam, porventura, além de descongestionarem os tribunais judiciais, oferecer tutela judiciária para certos casos que, pela desproporção dos meios, os próprios cidadãos, afectados pela infracção de alguma norma jurídica, renunciavam a procurar a tutela no sistema tradicional que, por desproporção, não era encontrada (Diário das Sessões, de 12 de Junho de 2000, 1ª Série, nº 77, págs. 3026 a 3029 e 3031 e 3033).
Entretanto, no dia 29 de Janeiro de 2001, foi publicado pelo Ministério da Justiça um documento sob o título “Para uma Nova Repartição de Competências na Justiça – Breve Nota Introdutória”, sob a alegada pretensão de propiciar uma base de trabalho, partindo dos meios processuais previstos no Código de Processo Civil, de modo a identificar os que podiam ser devolvidos para o meio não judicial e a distribuição de competências em razão da matéria e do valor entre os tribunais judiciais e os julgados de paz.
E a discussão do mencionado projecto de lei continuou na Assembleia da República, onde foi afirmado por um deputado, sem qualquer manifestação de divergência por parte dos restantes, por um lado, que os julgados de paz representavam uma instância de julgamento de vizinhança, em larga medida desformalizada, permitindo às partes, numa lógica de muito maior imediação, oralidade e tempestividade, encontrar solução adequada para os seus litígios.
E, por outro, que os julgados de paz, fora dos tribunais judiciais, se traduziam num modo de administração da justiça que apelava mais à responsabilidade das partes do que ao poder soberano do Estado para resolver as causas, e que era a elas que competia decidir se queriam pôr rapidamente termo ao litígio ou arrastá-lo através das formas tradicionais da justiça dos tribunais (Diário da Assembleia da República, 1ª Série, nº 89, de 1 de Junho de 2001, pág. 3510).
Do projecto de alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais nada resultou para a lei, ou seja, não ocorreu a sua alteração. Já o projecto de lei relativo à competência e funcionamento dos julgados de paz e respectiva tramitação processual foi aprovado na generalidade depois da referida discussão.
Todavia, no quadro da discussão parlamentar e dos textos elaborados no âmbito do Ministério da Justiça nada resultou no sentido de se pretender o estabelecimento da competência dos julgados de paz não concorrente com a dos tribunais da ordem judicial.
Depois de baixar à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, esta, no dia 30 de Maio de 2001, aprovou um texto de substituição que se converteu na Lei n.° 78/2001, de 13 de Julho, ora em análise, essencialmente baseada no regime dos juizados especiais brasileiros.
Na legislatura seguinte, cerca de um ano depois da aprovação da referida Lei, a Assembleia da República discutiu o parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre o relatório do Conselho de Acompanhamento dos Julgados de Paz.
Continuavam as dúvidas sobre as competências dos julgados de paz no confronto com as dos tribunais de 1.ª instância, sobretudo com os juízos de pequena instância cível, reflectidas na intervenção de um deputado, que afirmou ser o ponto mais importante o de resolver o conflito de competência que existia entre os julgados de paz e os tribunais de comarca.
Um outro deputado referiu haver tribunais de competência específica que julgavam que a competência em certos casos era deles porque as partes assim o queriam, porque accionavam nos tribunais de comarca em vez de accionarem nos julgados de paz, e que aqueles, enquanto lhes não fosse retirada a competência, tinham que julgar, sem que pudessem decidir ser a competência dos outros.
Afirmou-se, ademais, que nem todas as matérias cujo julgamento devesse obedecer à estrita legalidade podiam ser deixadas aos julgados de paz, porque estes são de jurisdição voluntária, privilegiam a equidade, servem para tentar a composição dos conflitos e que, por isso, se fosse necessário recorrer ao critério de legalidade e de preservação das garantias das partes, essas garantias teriam de ser defendidas por um tribunal judicial (Diário da Assembleia da República, 1ª Série, nº 68, páginas 2 903 a 2907).
3.
Vejamos agora, em breve síntese conclusiva, a posição sobre a questão da doutrina e da jurisprudência dos tribunais superiores.
A maioria dos autores que se pronunciaram sobre esta matéria - designadamente Jaime Octávio Cardona Ferreira, “Meios Alternativos”, Scientia Jurídica, Tomo LI, 2002, nº 293; João Miguel Galhardo Coelho, “Julgados de Paz e Mediação de Conflitos”, Lisboa, 2003; Ana Costa e Marta Pimpão, “Julgados de Paz e Análise do Regime Jurídico, Julgados de Paz e Mediação, Um Novo Conceito de Justiça”, Lisboa, 2002; Joel Timóteo Ramos Pereira, “Julgados de Paz, Organização, Trâmites e Formulários”, Lisboa, 2005; Elizabeth Fernandes, “Um Juiz de Paz para a Paz dos Juízes ?” Cadernos de Direito Privado, nº 15, Setembro de 2006; Lúcia Vargas, “Julgados de Paz e Mediação, Uma Nova Face da Justiça”, Coimbra, 2006; e Mariana França Gouveia, “Regime Processual Experimental Anotado”, Coimbra, 2006 - têm considerado ser exclusiva a referida competência dos julgados de paz para conhecer das acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz.
Alguns, a minoria - designadamente Filipe Lobo D ‘Ávila, “Os Mecanismos de Resolução Alternativa de Litígios à Entrada do Ano de 2007”, Scientia Jurídica, Tomo IV, 2006; Amadeu Morais, “ Julgados de Paz, Uma Ideia Boa, Uma Oportunidade Perdida?”, Jornal Primeiro de Janeiro, Edição de 15 de Novembro de 2004; Salvador da Costa, “A Injunção e as Conexas Acção e Execução”, Coimbra, 2005; e o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, Parecer nº 10/2005, de 21 de Abril, Diário da República, nº 51, II Série, de 2 de Setembro de 2005 - têm entendido no sentido de ser alternativa a referida competência dos julgados de paz.
A jurisprudência das Relações revela a mesma divergência, certo que a Relação do Porto tem entendido, ao que parece unanimemente, no sentido da exclusividade, ao invés da Relação de Lisboa, onde se denota acentuada divisão de posições em termos de paridade.
No Supremo Tribunal de Justiça, tendo apenas em conta os casos em que o tema do recurso era a questão em análise, temos três acórdãos, dois deles no sentido da competência exclusiva e o outro no sentido da competência alternativa.
No acórdão de 3 de Outubro de 2006 considerou-se que a criação dos julgados de paz visou a atribuição aos mesmos de competência material exclusiva, além do mais, por não ser curial o inverso face às nossas dificuldades económicas e ao excesso de processos nos tribunais comuns e até poder levar à sua inutilidade.
No acórdão de 23 de Janeiro de 2007 entendeu-se, por seu turno, no sentido contrário, ou seja, que a competência em razão da matéria para conhecer das acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz é meramente alternativa.
O referido entendimento foi motivado, por um lado, na legislação precedente gorada, nos trabalhos preparatórios da lei, na circunstância de se tratar de tribunais não judiciais, de ser fraca a sua cobertura territorial, de a lei não expressar a sua competência exclusiva nas referidas matérias e de visarem a participação dos interessados na composição dos seus litígios.
E, por outro, não fazer sentido começar por considerar o tribunal judicial incompetente em razão da matéria e, depois, considerá-lo competente pelo mero efeito de incidente processual, de requerimento de prova pericial ou de o valor processual da causa passar a exceder o da alçada do tribunal judicial de primeira instância.
E, finalmente, não relevar na análise o disposto no artigo 66º do Código de Processo Civil e ser de duvidosa conformidade constitucional a interpretação da lei no sentido da exclusividade, por limitar o acesso aos tribunais judiciais, paradigma de órgão de soberania.
Dois dias depois, no acórdão de 25 de Janeiro de 2007 foi decidido no mesmo sentido do primeiro dos mencionados acórdãos, essencialmente com base no normativo transitório do artigo 67º da Lei dos Julgados de Paz, concluindo-se só haver alternatividade no que concerne à mediação, não resultar daquela Lei a natureza experimental dos julgados de paz, não relevar a especificidade da respectiva forma do processo, nem a transmutação para os tribunais da ordem judicial nos casos de dedução de incidentes ou de requerimento de produção de prova pericial

4.
Atentemos agora, em síntese, no conteúdo do acórdão recorrido.
Em quadro de ampla motivação, o acórdão recorrido procura rebater a maioria dos argumentos de quem tem entendido em sentido contrário àquele que nele foi seguido.
Refere a não proibição da lei de que a competência em razão da matéria seja atribuída a diversos tribunais, mas que para isso tem de haver norma a estabelecer claramente esse tipo de competência alternativa.
Depois, afirma que a intenção do legislador, face aos princípios em que assentam os julgados de paz e aos efeitos com eles pretendidos, incluindo o da retirada dos tribunais judiciais das acções de parco valor e de grande simplicidade, aponta no sentido da obrigatoriedade da sua jurisdição, e que esta também decorre do artigo 67º da Lei dos Julgados de Paz, sob pena da sua inutilidade.
Desvaloriza o argumento da escassa cobertura do território nacional com julgados de paz com a circunstância de também decorrer da lei a maior ou menor extensão da competência dos tribunais judiciais conforme existam ou não tribunais especializados ou outras entidades jurisdicionais.
Afasta o princípio da reserva de jurisdição pretensamente atribuída aos tribunais judiciais por virtude de os julgados de paz dela partilharem, por as suas decisões terem o valor de sentença proferida pelo tribunal da 1ª instância e serem impugnáveis por via de recurso.
Desvaloriza a falta de previsão na Lei dos Julgados de Paz da sua competência exclusiva expressa nos projectos de lei que a antecederam com o fundamento na sua desnecessidade, por só a previsão de competência alternativa ser necessária por se tratar de especialidade.
Rebate o argumento da transmutação por virtude de incidentes processuais, requerimento de prova pericial e aumento do valor processual da causa com a afirmação de que isso também ocorre em relação a processos afectos aos conservadores do registo civil e do registo predial.
Argumenta, ademais, que a atribuição de idêntica competência aos julgados de paz e aos tribunais judiciais não combinar bem com o princípio geral da separação das ordens jurisdicionais consagrada nos artigos 211º da Constituição e 66º do Código de Processo Civil.
Exclui o entendimento em contrário extraído dos princípios constantes no artigo 2º da Lei dos Julgados de Paz sob o argumento de que, a ser a competência dos julgados de paz alternativa, à míngua de critério legal, ninguém garantiria que processos complexos não fossem instaurados nos julgados de paz e que outros mais simples não fossem instaurados nos juízos de pequena instância cível.
Afasta o argumento da existência de julgados com competência territorial na área de municípios limítrofes e da inconveniência de os cidadãos a eles terem de recorrer, apesar da grande distância a percorrer e de disporem de mais próximos tribunais da ordem judicial na sua comarca, sob a afirmação de que na hipótese de a sua competência ser alternativa nada poder impedir que as pessoas tivessem de recorrer, com os mesmos inconvenientes, aos julgados de paz.
Rematou com a afirmação de que se a competência dos julgados de paz fosse alternativa ela só funcionaria a favor do autor, ao invés do que ocorre na arbitragem voluntária, e que faria então todo o sentido que a opção pudesse ser tomada por acordo das partes.

5.
Vejamos agora, em tanto quanto releva no caso vertente, as normas relativas à organização e ao funcionamento dos tribunais judiciais da Constituição e da lei ordinária.
A Constituição prescreve, por um lado, a propósito da função jurisdicional, que a lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (artigo 202º, nº 4).
E, por outro, no que concerne à organização dos tribunais, que, para além do Tribunal Constitucional, existem o Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância, o Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais e o Tribunal de Contas (artigo 209º, nº 1).
E, finalmente, que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e que exercem a jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, e que na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas (artigo 211º, nºs 1 e 2).
A referência à jurisdição nas áreas não atribuídas a outras ordens judiciais a que se reporta o nº 1 do artigo 211º da Constituição exclui os julgados de paz, certo que estes não se integram em qualquer das ordens de tribunais nela previstas.
A organização dos tribunais judiciais de primeira e de segunda instância, na qual se incluem os tribunais marítimos, consta da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro).
A referida lei, repetindo preceito constitucional, estabelece que a todos é assegurado o acesso aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (artigo 7º, nº 1).
A regra da competência dos tribunais da ordem judicial, medida da sua jurisdição, inspirada pelo chamado princípio da residualidade, é a de que são da sua competência as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional (18º, n.º 1).
As ordens jurisdicionais a que este normativo se reporta são, prima facie, aquelas a que se reporta o artigo 209º, nº 1, da Constituição, ou seja, a constitucional, a administrativa e a de controle das contas do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público.
A propósito da lei reguladora da competência, estabelece-se que esta se fixa no momento em que a acção é proposta, serem irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa (artigo 22º).
Prescreve-se, ademais, que nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal competente para outro, salvo nos casos especialmente previstos na lei (artigo 23º).
Os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca, um ou mais, podendo ser de competência especializada e de competência específica (artigos 62º e 64º, nº 1).
Os tribunais de competência genérica preparam e julgam as causas não atribuídas a outro tribunal, os tribunais de competência especializada preparam e julgam as causas relativas às matérias previstas na lei, independentemente da estrutura do processo aplicável, e os órgãos jurisdicionais de competência específica preparam e julgam as causas legalmente determinadas pela espécie da acção ou a forma de processo concernente (artigos 77º, nº 1, alínea a), 78º a 92º, e 96º a 102º-A).
A lei prevê ainda a existência de juízos de competência especializada cível, a quem compete a preparação e o julgamento de processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais (artigos 93º e 94º).
No conjunto dos órgãos jurisdicionais cíveis de competência específica incluem-se as varas cíveis e mistas, os juízos cíveis, os juízos de pequena instância cível e os juízos de execução (artigo 96º, nºs 1, alíneas a), c) e) e g, e 2).
Aos juízos cíveis compete preparar e julgar os processos de natureza cível que não sejam da competência das varas cíveis nem dos juízos de pequena instância cível (artigo 99º).
Aos juízos de pequena instância cível compete, por seu turno, preparar e julgar as causas cíveis a que corresponda a forma de processo sumaríssimo e as não previstas no Código de Processo Civil a que corresponda processo especial e cuja decisão não seja susceptível de recurso ordinário (artigo 101º).
Os outros tribunais a que se reporta o artigo 94º não são os julgados de paz, a restrição do artigo 99º também não os engloba, e o 101º não exclui da competência dos juízos de pequena instância civil qualquer acção cível.
A regra, salvo o caso da existência de juízos de execução, é no sentido de que a qualquer dos referidos tribunais, varas ou juízos compete executar as suas próprias decisões (artigos 102º-A e 103º).
No caso de o valor da causa não ultrapassar o da alçada do tribunal de comarca - € 3 740,98 - e a acção se destinar ao cumprimento de obrigações pecuniárias, à indemnização por dano e à entrega de coisas móveis, se não houver procedimento especial, o processo adequado é o sumaríssimo (artigos 462º do Código de Processo Civil e 24º, nº 1, da Lei 3/99, de 13 de Janeiro).
As referidas acções declarativas são susceptíveis de competir aos juízos de pequena instância cível, onde os houver, ou, não os havendo, aos tribunais de competência genérica ou aos juízos de competência especializada cível, conforme os casos.
Tendo em conta o que decorre das referidas normas de organização e funcionamento dos tribunais judiciais, os tribunais da ordem judicial inscrevem na sua competência material quaisquer acções cíveis, independentemente de o respectivo valor processual da causa exceder ou não o da alçada do tribunal da primeira instância.

6.
Atentemos agora na organização e o funcionamento geral dos julgados de paz e na especificidade da respectiva tramitação processual.
A Constituição estabelece poderem existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz (artigo 209.°, nº 2).
Os tribunais marítimos integram a ordem dos tribunais judiciais, a organização e o funcionamento dos tribunais arbitrais consta na Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, e a organização e funcionamento dos julgados de paz consta na Lei nº 78/2001, de 13 de Julho.
Os julgados de paz têm vindo a ser sucessivamente criados pelos Decretos-Leis nºs 9/2004, de 9 de Janeiro, 329/2001, de 20 de Dezembro, e 225/2005, de 28 de Dezembro, e o regime do serviço de mediação consta na Portaria nº 1112/2005, de 28 de Outubro.
O primeiro dos referidos diplomas criou, por exemplo, os Julgados de Paz do Agrupamento dos Concelhos de Santa Marta de Penaguião, Alijó, Murça, Peso da Régua, Sabrosa e Vila Real, do Agrupamento dos Concelhos de Tarouca, Armamar, Castro Daire, Lamego, Moimenta da Beira e Resende, abrangentes de todas as freguesias destes concelhos, que foram instalados e estão sedeados em Santa Marta de Penaguião e Tarouca, respectivamente.
A actuação dos julgados de paz está vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados e estimular a justa composição de litígios por acordo das partes, e os seus procedimentos concebidos e orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual (artigo 2).
Os juízes, não togados, são funcionários públicos qualificados, portanto sem o estatuto de magistrado.
Os julgados de paz podem ser concelhios, de agrupamentos de concelhos contíguos, de freguesia ou de agrupamentos de freguesias contíguas do mesmo concelho, têm sede no concelho ou na freguesia para que são exclusivamente criados, ou, no caso de agrupamentos de concelhos ou de freguesias, são sedeados no concelho ou na freguesia que, para o efeito, seja designado no diploma da sua criação (artigo 4º, nºs 1 e 2).
A sua competência quanto ao respectivo objecto não abrange as acções executivas, cingindo-se às acções declarativas cujo valor não exceda a alçada do tribunal de primeira instância, ou seja, se o seu valor não exceder € 3 740,98 (artigos 6.°, n.° 1 e 8.°).
No que concerne à circunstância de os julgados de paz não terem competência para executar as suas decisões, ocorre uma situação de paralelismo com os tribunais arbitrais (artigo 30º da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto).
Inscrevem-se na sua competência em razão da matéria, por exemplo, as acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que tenham por objecto prestações pecuniárias e seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva, as acções de entrega de coisas móveis, as acções respeitantes à responsabilidade civil contratual e extracontratual e as acções relativas ao incumprimento contratual, excepto as relativas a contratos de trabalho ou de arrendamento rural (artigo 9.°, n.° 1, alíneas a), b), h) e i)).
Neles não podem litigar as pessoas colectivas, incluindo as sociedades, por via de acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações pecuniárias de que sejam credoras a título originário ou derivado (artigos 9º, nº 1, alínea a) e 37º).
As partes têm que comparecer pessoalmente em juízo, o requerimento inicial e a contestação podem ser apresentados verbalmente, só pode haver inicialmente o litisconsórcio, a coligação e a cumulação de pedidos, não é admitida a citação edital e há pré-mediação se alguma das partes não tiver afastado essa possibilidade, podendo seguir-se a fase da mediação se essa for a sua vontade (artigos 39º, 43º, nº 2, 44º, 46º, nº 2, 47º, nº 1 e 49º, nº 1).
Frustrada a mediação - modalidade extrajudicial de resolução de litígios privada, não contenciosa - por desistência da mesma, falta de comparência das partes ou de acordo, o processo passa para a fase de audiência de julgamento (49º, nº 2 a 56º).
Se alguma das partes suscitar nas referidas acções algum incidente processual, o juiz de paz remete o processo para o tribunal judicial competente, para que lá siga os seus termos, aproveitando-se os actos processuais já praticados, o mesmo acontecendo quando alguma das partes requerer a produção de prova pericial (artigos 41.° e 59º, nº 3).
Admite-se excepcionalmente nos julgados de paz a reconvenção para propiciar ao réu a obtenção da compensação ou a efectivação do direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; mas, face ao limite da sua competência em razão do valor, susceptibiliza-se mais uma causa de cessação da sua competência (artigos 7º, 8º e 48º).
Se o autor, regularmente notificado, não comparecer no dia da audiência de julgamento nem justificar a falta no prazo de três dias, considera-se ter desistido do pedido (artigo 58º, nº 1).
Se o réu, regularmente citado, não comparecer no julgado, não apresentar contestação escrita nem justificar a falta no prazo de três dias, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor (artigo 58º, nº 2).
As decisões dos juízes de paz têm o valor de sentença proferida pelos tribunais de primeira instância e delas há recurso para estes últimos tribunais se as acções tiverem valor superior a metade do valor da alçada do tribunal de primeira instância (artigos 61.° e 62.°, n.° 1).
Decorre, assim, da organização e funcionamento dos julgados de paz que eles se não integram na estrutura dos tribunais judiciais.
Ademais, verifica-se que entre as normas de competência em razão da matéria constantes no artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz e as normas de competência em razão da matéria constantes na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais ocorre uma situação que, grosso modo, pode ser qualificada de conflito de competência.

7.
Vejamos agora, a questão fulcral da competência material dos julgados no confronto com a dos tribunais judiciais.
A competência de um tribunal é a medida da sua jurisdição ou nexo lógico entre ele e determinada causa; a incompetência, por seu turno, é a falta de poder legal do tribunal para o julgamento de determinada causa.
A medida da sua jurisdição resulta de critérios legais atributivos da competência, do que decorre a sua legitimidade de julgamento em concreto, implicando a falta de tal atribuição, conforme os casos, abstraindo da preterição do tribunal arbitral, a incompetência relativa e a absoluta, nesta se incluindo a relativa à matéria.
A atribuição da competência em razão da matéria às categorias de tribunais situados no mesmo plano assenta, em regra, no princípio da especialização com vista a proporcionar a maior eficácia da justiça.
Os julgados de paz e os tribunais da ordem judicial, uns e outros com a natureza de órgãos jurisdicionais, estão numa relação de paralelismo mitigado, na medida em que das decisões dos primeiros pode haver recurso para os últimos.
O quadro legal próximo, designadamente a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e a Lei dos Julgados de Paz, não contém norma expressa que nos permita a resolução da questão que tem sido veiculada pela expressão competência alternativa ou exclusiva dos julgados de paz.
Com efeito, debalde se procura em qualquer dos referidos diplomas algum segmento normativo revelador da exclusividade ou não da competência em razão da matéria dos julgados de paz para conhecer das causas a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz.
Daí que se não possa pretender captar o sentido prevalente da lei quanto à questão em análise apenas a partir da leitura da Lei dos Julgados de Paz e da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, antes devendo considerar-se todo o conjunto normativo de conexão pertinente, a que acima se fez referência.
É no fundo a concretização do princípio jurídico que traduz a ideia de que a cada caso concreto não basta aplicar a norma que se pensa particularmente adequada para o efeito, mas o ordenamento jurídico global em si e na envolvência da cultura e da ciência jurídica que lhe subjazem.
Assim, a partir da letra da lei, elemento referencial imprescindível, iremos tentar captar o seu sentido prevalente, considerando a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias do tempo em que ela foi elaborada e as da actualidade, em quadro de presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9º do Código Civil).
Nesta tarefa não se exclui o contributo histórico da frustrada experiência legislativa anterior à Lei dos Julgados de Paz, dos trabalhos preparatórios desta última Lei nem da omissão do legislador, na alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais bastante posterior ao desencadear da controvérsia, de operar qualquer clarificação.
Partimos da premissa, extraída da própria Lei dos Julgados de Paz, ao consagrar a transmutação de acções dos julgados de paz para os tribunais da ordem judicial, no sentido de que a exclusividade não é um corolário necessário das normas sobre a competência material dos tribunais.
E temos por anómala a solução legal de as decisões dos julgados de paz serem sindicadas em via de recurso por tribunais da primeira instância da ordem judicial, apesar de se não integram nessa ordem, ou seja, na hierarquia dos tribunais que a envolve.
Inicialmente, no quadro dos projectos de lei apresentados na Assembleia da Republica pelo Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, a ideia era a de atribuir aos julgados de paz uma específica parcela material de competência jurisdicional, concomitantemente retirada aos tribunais da ordem judicial por via da alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Com efeito, resulta dos trabalhos preparatórios que a delimitação da competência material dos julgados de paz dependia da alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais no sentido da perda da correspondente competência pelos tribunais de primeira instância, incluindo os juízos de competência específica.
Todavia, a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais não foi objecto da projectada alteração, a lei não estabeleceu a competência material dos julgados de paz por via da redução da competência material dos tribunais e judiciais e ficou colocado conflito de leis de competência material jurisdicional em análise a que acima já se fez referência.
Mas a opção pela não alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais implicou, necessariamente, que o objectivo de atribuir competência exclusiva aos julgados de paz para conhecer das matérias a que se reportava o artigo 5.° do mencionado projecto de lei tivesse ficado absolutamente comprometido, para o bem ou para o mal.
E na feitura da Lei dos Julgados de Paz não se atentou na referida circunstância, certo que se avançou para a sua publicação sem ponderar que, por via dela se ia potenciar o referido conflito.
E agora, conjugando o que se prescreve na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e na Lei de Organização e Funcionamento dos Julgados de Paz, exactamente porque a primeira não foi alterada de modo a conformar-se com a última, o que se configura, prima facie é a competência material concorrencial dos órgãos judiciais da jurisdição cível e dos julgados de paz.
É isso, aliás, que resulta das normas dos artigos 77º, nº 1, alínea a), 94º, 99º e 101º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 9º da Lei dos Julgados de Paz, e 462º do Código de Processo Civil, relativas aos tribunais
de competência genérica, aos juízos de competência especializada cível
aos juízos de pequena instância cível.
Não obstante o que decorre das referidas normas da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, acima analisadas, em regra com base na exclusiva análise das normas da Lei dos Julgados de Paz, tem vindo a concluir-se, conforme acima se referiu, no sentido da exclusiva a competência jurisdicional material dos julgados de paz para conhecer das acções declarativas a que se reporta o artigo 9º da última das referidas leis.
É claro que esta afirmação de exclusividade, mesmo ao abrigo da Lei dos Julgados de Paz não é correcta, desde logo porque ela mesma prescreve a competência concorrencial dos julgados de paz e dos tribunais da ordem judicial quando no decurso da tramitação dos processos nos primeiros se suscitar algum incidente ou neles for requerida prova pericial.
Assim, os tribunais da ordem judicial são afinal competentes para conhecer das referidas acções, o mesmo é dizer que os julgados de paz não são exclusivamente competentes para delas conhecer.
Confrontados com esta realidade, mas sem ponderarem a fragilidade da argumentação no sentido da competência exclusiva em razão da matéria dos julgados conhecerem das acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz, alguns autores caracterizam essa competência em termos de semi-exclusividade ou de exclusividade condicional, sob o argumento de que tal competência exclusiva apenas se cinge ao início das referidas acções.
Ora, os julgados de paz são tribunais constitucionalmente previstos como sendo de existência eventual não integrados em qualquer das ordens de tribunais previstas no artigo 209º, nº 1, da Constituição, incluindo a dos tribunais judiciais, ou seja, não se inserem na categoria propriamente dita dos tribunais de primeira instância.
Por isso, a lei traça-lhe a vocação para a participação cívica dos interessados e de estímulo à justa composição dos litígios em quadro de acordo, de harmonia com a ideia que envolveu a sua criação de constituírem uma via alternativa de resolução de conflitos, com activa intervenção de mediadores, em termos de propiciarem o descongestionamento dos tribunais da ordem judicial.
Mas nem da lei, nem na ideia que presidiu à sua criação, ou seja, a de propiciarem o referido descongestionamento, se pode extrair algum argumento relevante no sentido da sua competência material inicial exclusiva para as acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz, certo que a sua mera competência material inicial alternativa para o efeito também é susceptível, porventura em menor grau, de propiciar a consecução do mesmo desiderato.
Resulta do ordenamento jurídico de referência que os julgados de paz foram instituídos sob a ideia de um projecto experimental, com escassa implantação territorial, susceptibilidade de abrangência de uma pluralidade de municípios, com sede em um deles, sem competência executiva e possibilidade de os processos, mesmo antes da fase do recurso, transitarem deles para continuarem a sua tramitação nos tribunais da ordem judicial.
Este resultado de transmutação, processual expresso na Lei dos Julgados de Paz, a que acima se fez referência, tendo em conta que o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, só permite a inferência de que a lei não exclui a concorrência de competência material, quanto às mencionadas acções, entre os julgados de paz e os tribunais judiciais ou os órgãos jurisdicionais nestes integrados.
Seria incompreensível que a lei estabelecesse que as pessoas sem interesse na mediação tivessem de intentar alguma das acções a que se refere o extenso elenco do artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz em julgados de paz sedeados em pontos do território consideravelmente distantes dos tribunais da respectiva comarca, no quadro de um processo com menores garantias de defesa, sem possibilidade de neles discutir a matéria relativa aos incidentes nem de produzir a prova pericial, esta não raro indispensável no âmbito das acções cujo objecto seja a averiguação da responsabilidade civil extracontratual.
E ocorreria uma situação de desigualdade no acesso à justiça a favor das pessoas sem condições objectivas de serem utentes dos julgados de paz e contra aquelas com essas condições.
Ademais, resultaria incongruente que os tribunais da ordem judicial tivessem competência para conhecer das mencionadas acções a partir de determinada vicissitude processual meramente eventual e não a tivessem para conhecer delas inicialmente.
Acresce, neste quadro de incongruência, para o caso de as pessoas serem forçadas a accionar nos julgados de paz por virtude da lei de competência material que nesse sentido estabelecesse, elas facilmente frustrariam essa imperatividade por mero efeito da sua vontade de implementar algum incidente, de requerer a produção de prova pericial ou de deduzir algum pedido reconvencional.
A exclusão do accionamento nos julgados de paz relativamente a acções que tenham por objecto prestações pecuniárias cujo credor originário seja ou tenha sido uma pessoa colectiva inscrever-se-ia no quadro da mesma incongruência se a competência material dos julgados de paz para conhecer das acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz fosse exclusiva, no sentido que tem vindo a ser dado a esta expressão.
Sabe-se que a referida proibição de accionamento nos julgados de paz por parte das pessoas colectivas lato sensu foi motivada pela ideia de não congestionar o funcionamento dos julgados de paz com os chamados procedimentos de massa.
Se, porventura, a solução da lei fosse no sentido da competência material exclusiva dos julgados de paz para conhecer das acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz, soaria a incompreensível a circunstância de as pessoas singulares terem de intentar as acções de maior complexidade nos julgados de paz e as pessoas colectivas poder intentar as de menor complexidade, designadamente as apelidadas de cobrança de dívida, nos tribunais da ordem judicial.
Na realidade, o que é mais conforme com a estrutura finalística dos julgados de paz, sobretudo com a sua vertente de participação cívica dos interessados e estímulo à justa composição dos litígios por acordo das partes, em quadro de justiça participada, mais célere e mais barata, é a solução de o accionamento neles depender da vontade optativa dos interessados, naturalmente de quem toma a iniciativa do respectivo accionamento.
Os artigos 18º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 66º do Código de Processo Civil, que expressam serem da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, não permitem a conclusão de que a competência dos julgados de paz para conhecer das acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz não concorre com as dos tribunais da ordem judicial.
Com efeito, os referidos normativos são bastante anteriores à criação dos actuais julgados de paz, pelo que, como é natural, não podiam ser pensados em função da delimitação da competência material quanto às referidas acções entre eles e os tribunais da ordem judicial.
A interpretação actualista dos referidos artigos, face à existência actual de julgados de paz, também não pode implicar a sua aplicação na situação vertente, visto que eles não se integram em qualquer das ordens de tribunais previstas no artigo 209º, nº 1, da Constituição – constitucional, judicial, administrativa ou de contas.
Acresce que a estatuição dos artigos 18º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 66º do Código de Processo Civil pressupõe, como é natural, a inexistência de normas atributivas da competência aos tribunais da ordem judicial, o que não acontece no caso espécie, conforme acima já se fez detalhada referência.
Com efeito, conforme acima se referiu, a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais atribui competência em razão da matéria aos tribunais ou órgãos jurisdicionais da ordem judicial para conhecerem de qualquer das acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz.
À interpretação da lei com o referido sentido não obsta o disposto no artigo 67º da Lei dos Julgados de Paz, que tem servido para alicerçar a referida solução de competência material exclusiva dos julgados de paz para conhecer das acções a que se reporta o artigo 9º daquela Lei.
Conforme acima se deixou transcrito, o artigo 67º da Lei dos Julgados de Paz expressa que as acções pendentes à data da criação e instalação dos julgados de paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas.
A estrutura literal e finalística deste normativo não permite, como é natural, que dele se extraia, por via implícita, uma norma sobre a competência material exclusiva dos julgados de paz, além do mais porque para o efeito só pode servir disposição expressa da lei.
A poder atribuir-se a este normativo algum sentido útil, só poderia ser o de que as partes nas aludidas acções, pendentes nos tribunais da ordem judicial aquando da instalação dos julgados de paz, não podiam optar pela sua transmutação para os julgados de paz, ou seja, o de que, proposta alguma das referidas acções no tribunal judicial, não era possível a opção das partes pela sua continuação nos julgados de paz.
Todavia, o conteúdo deste artigo não pode ser compreendido se não se tiver em conta idêntico texto que constava do projecto de lei tendente à redução da competência em razão da matéria e do valor dos tribunais da ordem judicial e à atribuição correspondente aos julgados de paz.
É claro que o referido normativo só faria sentido no contexto da Lei dos Julgados de Paz se o mencionado projecto de lei, nessa parte, tivesse sido convertido em lei, mas não o foi, certo que se deixou inalterada a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, alteração que constituía um dos seus pressupostos necessários.
Assim, como não foi aprovado o referido projecto de lei, estruturado em paralela conexão lógica com o concernente à organização e funcionamento dos tribunais judiciais, não perderam os tribunais competência em razão da matéria para conhecer das causas a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz, nem os julgados de paz, tal como foram instituídos, a adquiriram.
8.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.
Os julgados de paz actuais só na sua vertente de mediação se assemelham aos julgados de paz de pretérito.
A evolução dos trabalhos preparatórios da Lei dos Julgados de Paz revela a intenção de instituir um meio alternativo à via judicial para a resolução dos pequenos diferendos da vida quotidiana, com procedimentos simplificados e informais, em quadro de justiça de proximidade, economicamente acessível e de disponibilização de instrumentos de mediação.
Os julgados de paz não são tribunais judiciais, posicionando-se fora do patamar da organização judiciária portuguesa tal como ela resulta da Constituição e da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Entre os julgados de paz e os tribunais da ordem judicial da primeira instância não há qualquer relação de limitação de competência, porque o nexo é de paralelismo e de concorrência.
Os julgados de paz são órgãos jurisdicionais de resolução alternativa de litígios e, consequentemente, não sucederam na competência dos tribunais da ordem judicial, nem são seus substitutos, integrando-se na categoria de tribunais de resolução de conflitos de existência facultativa.
As pessoas, podem accionar, quanto às acções previstas no artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz, salvo as pessoas colectivas relativamente a exigência de prestações pecuniárias, nos julgados de paz ou nos tribunais da primeira instância da ordem judicial, designadamente nos de competência genérica, nos juízos de competência especializada cível, nos juízos cíveis ou nos juízos de pequena instância cível, conforme os casos.
O accionamento numa das referidas ordens de tribunais exclui a possibilidade de accionamento na outra, sem prejuízo da transmutação das acções dos julgados de paz para os tribunais da ordem judicial.
Ao decidir como decidiu, a Relação infringiu o disposto nos artigos 9º da Lei dos Julgados de Paz, 101º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 101º, 288º, nº 1, alínea a), 494º, alínea a) e 495º do Código de Processo Civil.
Procede, por isso, o recurso, com a consequência de ser revogado o acórdão recorrido e de ser definido o sentido decisório que deve servir para a uniformização da jurisprudência.
Vencida no recurso, seria a agravada BB Seguros SA responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código das Custas Judiciais).
Todavia, como ela não deu causa nem expressamente aderiu à decisão recorrida, nem a acompanhou, beneficia da isenção subjectiva de custas legalmente prevista (artigo 2º, nº 1, alínea o), do Código das Custas Judiciais).


IV
Pelo exposto, dando provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido e a sentença proferida no tribunal da primeira instância e uniformiza-se a jurisprudência contraditória quanto à competência exclusiva ou alternativa dos julgados de paz nos termos seguintes:
«No actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções previstas no artigo 9º, nº 1, da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, é alternativa relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial concorrente.»

Supremo Tribunal de Justiça, 24 de Maio de 2007

Salvador da Costa (relator)

Adjuntos:
Manuel Duarte Soares (*)
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Faria Antunes
Sebastião Póvoas
Afonso Correia
Moreira Alves
Ribeiro de Almeida
Ferreira de Sousa
Nuno Cameira
Alves Velho
Moreira Camilo
Armindo Luís
Pires da Rosa
Bettencourt de Faria
Sousa Leite
Salreta Pereira (**)
Custódio Montes
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos
João Bernardo
Urbano Dias
João Camilo
Paulo Sá
Mota Miranda
Alberto Sobrinho
Oliveira Rocha
Maria dos Prazeres Beleza (***)
Gil Roque
Oliveira Vasconcelos
Fonseca Ramos
Santos Bernardino

Procurador Geral Adjunto:
Pereira da Costa
_______________________
(*) vencido por entender que os julgados de paz têm competência exclusiva
(**) vencido nos termos da declaração apresentada pela senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza
(***) vencida nos termos da declaração que junto:
Declaração de voto

Votei vencida, em síntese, pelas seguintes razões:
1. Não creio que seja possível encontrar na Lei nº 78/2001, de 13 de Julho (Organização, Competência e Funcionamento dos Julgados de Paz) qualquer sinal de que o legislador pretendeu criar tribunais cuja jurisdição esteja dependente de vontade dos interessados (seja só do autor da acção, seja de ambas as partes); o que é o mesmo que dizer, neste contexto, que não vejo, nem no seu texto, nem na sua história, nem na sua razão de ser, qualquer indicação de que a competência material que lhes foi atribuída seja concorrente com a dos tribunais judiciais:
– Não resulta do texto. Contrariamente ao que se passava com o Decreto-Lei nº 539/79, de 31 de Dezembro, nenhum preceito exige tal vontade (o artigo 16º, nº 2 deste Decreto-Lei definia como condição de intervenção dos julgados de paz então criados que “as partes estejam de acordo em fazê-las seguir nos julgado de paz”); é sintomático que a Lei nº 78/2001 apenas tenha exigido acordo das partes para o recurso à mediação (cfr. artigos 35º, nº 1, 49º, nº 1 e 51º, nº 1 da Lei nº 78/2001).
É incompatível com o artigo 67º, que dispõe que “as acções pendentes á data da criação e instalação dos julgados de paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas”. Este preceito apenas aplica aos julgados de paz a regra geral relativamente à aplicação no tempo das leis sobre competência, constante do artigo 22º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e de Funcionamento dos Tribunais Judiciais), segundo a qual a competência se afere pela lei em vigor à data da propositura da acção.
– Não resulta do seu silêncio. Não é prática, nas sucessivas leis que têm alterado a organização judiciária, nomeadamente criando tribunais novos, esclarecer que a competência destes novos tribunais exclui a daqueles que, não fora tal lei, continuariam a ser competentes para as causas que passam a ser-lhes atribuídas. O que sucede, como se sabe, é que a competência dos tribunais de competência residual varia em função da especialização existente em cada momento. E isto é verdade, quer dentro dos tribunais judiciais, quer no relacionamento entre ordens de tribunais, dada a competência residual daqueles; pense-se, por exemplo, numa lei que venha alargar a competência global dos tribunais administrativos.
Não tem aqui, pois, relevância a circunstância de os julgados de paz se não integrarem na ordem dos tribunais judiciais.
– Não resulta da história legislativa. Contrariamente ao que se afirma no acórdão, não se pode retirar da não inclusão de uma norma que esclareça que a competência é exclusiva, bem como da não aprovação de qualquer alteração à Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, como esteve proposto, nenhum significado; a lógica do sistema encarrega-se de harmonizar as competências.
– Não resulta da razão de ser da criação dos julgados de paz, que foi a de descongestionamento dos tribunais judiciais.
– Finalmente, também não é imposta pela Constituição, que se limita a prever a possibilidade de a lei ordinária criar julgados de paz, não fornecendo qualquer indicação relevante para a questão agora em causa.
2. O acórdão parte expressamente da premissa de que a exclusividade “não é corolário necessário das normas sobre competência dos tribunais”, premissa que retira da “transmutação de acções dos julgados de paz para os tribunais da ordem judicial”, prevista nos artigos 41º e 59º, nº 3 da Lei nº 78/2001.
Segundo estes preceitos, os processos devem ser remetidos para o tribunal judicial competente quando for suscitado, por qualquer das partes, um incidente, ou quando for requerida prova pericial.
Em meu entender, este regime não permite de forma alguma concluir pela concorrência de competências. Não é inédito que um tribunal inicialmente (exclusivamente) competente quando a acção foi proposta deixe de o ser por vicissitudes do próprio processo, que determinam que passe outro tribunal a ser (exclusivamente) competente para o julgar. Assim tem sucedido entre nós, por exemplo, quando o tribunal perde a competência por se ter alterado o valor da causa (nomeadamente, porque houve reconvenção), ou quando o processo corria num tribunal e tinha de passar para outro por ser requerida a intervenção do colectivo.
Não me parece argumento a eventualidade de uma parte poder suscitar um incidente apenas para provocar a alteração do tribunal; a possibilidade de utilização indevida de uma lei não é argumento para a interpretar.
3. O acórdão considera ainda incongruente com a exclusividade da competência o afastamento, em certos casos, da competência dos julgados de paz quando é parte uma pessoa colectiva.
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que essa exclusão apenas existe para a hipótese prevista da al. a) do nº 1 do artigo 9º, ou seja, para a apreciação de “acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações” cujo objecto seja uma “prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva”, podendo as pessoas colectivas ser partes em todos os outros casos de competência dos julgados de paz.
Em segundo lugar, sabe-se qual foi a razão de ser desta exclusão: deixar fora dos novos tribunais certas acções de cobrança que, pelo seu número, os tornariam com grande probabilidade, rapidamente, ineficazes, e nas quais, aliás, é legítimo não esperar grande utilidade da existência dos serviços de mediação. A maior ou menor complexidade das causas (que, aliás, pode variar muito dentro do mesmo tipo de causas) não é argumento que permita esquecer a razão de ser desta exclusão.
4. O acórdão considera ainda que é mais consentânea com a finalidade da criação dos julgados de paz e com a sua organização interna a não exclusividade da sua competência. Não discuto que os julgados de paz foram criados com o objectivo de fomentar a participação dos interessados e a resolução dos litígios por acordo; não creio é que daí se possa retirar qualquer conclusão quanto à questão da competência.
Em primeiro lugar, porque o recurso à mediação é facultativo, e depende do acordo de ambas as partes.
Em segundo lugar, porque a lei de processo civil, por exemplo, determina por diversas vezes que se proceda a tentativas de conciliação, sem que haja qualquer incongruência com a circunstâncias de as causas correrem em tribunais judiciais.
O que de todo não posso aceitar é que, dentro da perspectiva de que a intervenção dos julgados de paz é facultativa, se admita que a mesma fique dependente da vontade exclusiva do autor, não se exigindo acordo do réu, por violação do princípio da igualdade no acesso à justiça.
5. Também não encontro qualquer anomalia na previsão de, verificadas certas condições, haver recurso para os tribunais judiciais de primeira instância. Parece-me, aliás, mais adequado que o recurso seja interposto para estes tribunais, tendo em conta o valor máximo das causas que os julgados de paz podem julgar; quanto a passarem para a ordem dos tribunais judiciais, não é inédito, basta pensar nos recursos interpostos de decisões de tribunais arbitrais.
6. Finalmente, considero que, não tendo suporte na lei (literal, sistematica e teleologicamente interpretada, naturalmente) a conclusão de que a competência material dos julgados de paz não exclui a dos tribunais judiciais a quem incumbiria julgar as causas que a lei lhes atribui, ela implicaria um julgamento de inconstitucionalidade das normas contidas no artigo 9º da Lei nº 78/2001 quando interpretadas no sentido de que atribuem competências exclusivas aos julgados de paz, nomeadamente por violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais, ou do princípio da igualdade, conjugados ou não (artigos 20º e 13º da Constituição).
Poder-se-iam utilizar vários argumentos para chegar a essa conclusão, que eu apenas exemplifico sem que, com isso, os esteja a subscrever: a circunstância de serem compostos por juízes não integrados na magistratura judicial, com todas as implicações que daí possam decorrer; as regras de processo aplicáveis, eventualmente demasiado simplificadoras (note-se, não tão diferentes do actual ou do passado processo sumaríssimo, ou da acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias prevista no Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro); a quebra da igualdade entre os que seriam obrigados a litigar nos julgados de paz e aqueles que o não seriam, por não existir um julgado de paz competente (o que colocaria, por exemplo, a questão de saber se é aceitável a existência de diferentes graus de especialização dos tribunais judiciais nas diversas circunscrições, ou da aprovação de regimes experimentais aplicáveis apenas em certas zonas); ou da inconsistência do nexo relevante para determinar a competência dos julgados de paz (mas a verdade é que as regras de competência territorial são semelhantes às que constam do Código de Processo Civil).

7. Teria, pois, negado provimento ao recurso, e concluído no sentido de que os julgados de paz, na respectiva área de jurisdição, são exclusivamente competentes em razão da matéria para conhecer das acções previstas no artigo 9º da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho.