Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B274
Nº Convencional: JSTJ00000451
Relator: NASCIMENTO COSTA
Descritores: CLÁUSULA PENAL
PROPORCIONALIDADE
NULIDADE
Nº do Documento: SJ200205280002747
Data do Acordão: 05/28/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6584/01
Data: 06/21/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 812.
DL 446/85 DE 1985/10/25 ARTIGO 19 C.
Sumário : I - A cláusula que estabeleça num ALD, como indemnização, em caso de resolução do contrato com/base na simples mora no pagamento das rendas, a exigência das rendas vincendas tem a natureza de cláusula penal.
II - Recuperado o veículo, a exigência de rendas vincendas e respectivos juros à desproporcionada nos danos a ressarcir.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
I
A (anteriormente ......) instaurou em 10-7-98 acção com processo ordinário contra:
1) B
2) C
3) D
Alega ter celebrado com a 1ª R. aluguer de veículo, sem condutor, por 48 meses.
Que ela não cumpriu as cláusulas estipuladas.
O contrato foi por isso resolvido.
Pede a condenação dos RR. (os restantes RR. intervieram como fiadores e principais pagadores) nas importâncias que indica:
359476 escudos, mais 19352 escudos de juros vencidos até 10-7-98, mais os juros que à taxa legal se vencerem, mais a quantia de 2649979 escudos e os juros que à taxa legal sobre ela se vencerem desde a citação até pagamento.
A fl. 41 contestaram os RR.
Invocaram, além do mais, ilegalidade de algumas cláusulas, por violação do dever de comunicação (DL 220/95 de 31/8).
Por sentença de fl. 240 e seg. o Sr. Juiz aderiu a esse ponto de vista, considerando violados preceitos do DL 446/85 de 25-10.
A acção foi julgada parcialmente procedente, tendo sido condenados os RR. a pagar à A., solidariamente, 179738 escudos, com juros legais desde 15-2-98 até pagamento.
Apelou a A., tendo a Relação de Lisboa, por acórdão de fl. 380 e seg., revogado a sentença, julgando a acção totalmente procedente.
Interpuseram os RR. recurso de revista, tendo concluído como segue a sua ALEGAÇÃO:
1) Ficou provado que a A. violou o dever de informação a que estava vinculada, nunca tendo comunicado o teor das cláusulas gerais do contrato.
2) O acórdão concluiu o contrário pelo facto de a R. ter pago 23 prestações das 47 previstas e pelo facto de a viatura ter sido recuperada.
3) Também se não devia considerar que a carta da alín. L constitui uma declaração de resolução, em violação do estipulado no artº238º do C. Civil (CC) e cláusula 8ª-1.
Deve manter-se o decidido na sentença.
Pugna a A. pela negação da revista.
II
MATÉRIA DE FACTO fixada no acórdão impugnado:

1 - A A. denomina-se actualmente "A" e antes denominava-se "...." (A).
2 - A R. pretendia adquirir o veículo automóvel marca RENAULT, modelo LAGUNA RXE 2.0, com a matrícula GJ, tendo para o efeito contactado E (B).
3 - Como a dita R. não se dispusesse ou não pudesse pagar de pronto o preço do dito veículo, solicitaram à dita E. esta possibilitar-lhes o aluguer do mesmo por um período de quarenta e oito meses, com a colaboração ou intervenção da ora A. para tal (C)
4 - Na sequência do que lhe foi solicitado pela dita E, por ela e em nome da dita R., a A. adquiriu, com destino a dar de aluguer à dita R., o referido veículo automóvel (D).
5 - Por contrato particular - ao diante junto em fotocópia - datado de 29 de Fevereiro de 1996, mas com início em 15 de Março de 1996, a A. deu de aluguer à R. o dito veículo (E).
6 - O prazo de aluguer foi de quarenta e oito meses, sendo mensal a periodicidade dos alugueres, num total de quarenta e oito e do montante de 179738 escudos cada, incluindo já o IVA respectivo, à taxa de 17% (F).
7 - O preço mensal do aluguer de 179738 escudos correspondia a 152622 escudos de aluguer propriamente dito, mais 26116 escudos de IVA (G).
8 - De harmonia com o acordado, a importância de cada um dos referidos alugueres deveria ser pago pela ora R. à A. antecipadamente, até ao dia 15 do mês a que respeitasse, por meio de transferência bancária (H).
9 - Após a celebração do referido contrato, a dita sociedade R. recebeu o veículo referido, que passou a utilizar, veículo que para o efeito a A. propositadamente adquirira (I).
10 - A R., a partir do vigésimo quarto aluguer, inclusive, que se venceu em 15 de Fevereiro de 1998, deixou de pagar os alugueres acordados (J).
11 - A Autora enviou à sociedade Ré, que recebeu, a carta junta a fls. 29 do seguinte teor:

109799
B, Rua ...., BAIRRO DA ASSUNÇÃO 2750
CASCAIS
1998/02/12
Assunto: Pagamentos em atraso Contrato 309238; matr. GJ
Data de referência 1998/02/22
Exmos. Senhores
Constatamos que V.Exas. se encontram em divida para com esta Empresa no montante de:
Débitos em Mora: 718,952.
Juros de Mora. 49,638.
Total: 768,590.
O não pagamento da quantia referida leva-nos a considerar, no prazo de 10 dias a contar da data desta carta, o contrato em referência como RESCINDIDO nos termos das cláusulas 8a. e 9a., o que implica a obrigação de proceder à ENTREGA IMEDIATA do veiculo objecto do contrato nas nossas instalações.
A não restituição do veiculo é considerada como uso do locado contra a vontade da A, incorrendo V. Exas. na prática de 'CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA' previsto e punido no artigo 300. do Código Penal.
Nessa data entregamos o assunto ao nosso advogado para procedimento judicial.
Sem mais
Atentamente
P.S: Se, entretanto, foi liquidada a divida acima mencionada, queiram considerar esta cata sem efeito. (L)

12 - A Autora recuperou o veículo identificado em 16/03/1998 (M).
13 - Por cheque, sacado sobre o Banco ...., emitido a favor da Autora e que esta descontou, com data de 27/03/1998 a sociedade Ré pagou à Autora a quantia mencionada na carta referida na alínea L) (N).
14 - Os Réus C e D subscreveram o documento junto a fls. 32 "Fiança" (O).
15 - A Ré, mesmo após a comunicação referida na alínea L) e o pagamento efectuado e referido na alínea N), continuou a pagar o seguro do veículo até Junho de 1998 (3°).
16 - A Autora, após a recuperação do veículo, vendeu o mesmo por mais de 4000000 escudos (4°).
III
CUMPRE DECIDIR
Em 29-2-96 A. e 1ª R. subscreveram o "contrato de aluguer de veículo sem condutor nº309238" - fl. 27.
Foram fiadores os 2º e 3º RR.
A locatária declarou ter tomado conhecimento e aceite sem reservas as condições gerais e particulares do contrato.
As condições gerais estão no verso do documento (fl. 27v.).
As condições particulares são as do rosto do doc - fl. 27.
Relativamente às condições gerais, importam neste momento as seguintes cláusulas:
3ª-3:
"Em caso de falta ou atraso em qualquer pagamento, e sem prejuízo da rescisão ou possibilidade de rescisão deste contrato, o locatário terá de pagar à locadora juros de mora calculados à taxa máxima legalmente permitida".
Cláusula 8ª:
"1) O incumprimento pelo locatário de qualquer das obrigações por ele assumidas no presente contrato dará lugar à possibilidade da sua resolução pela locadora, tornando-se efectiva essa resolução à data da recepção pelo locatário de comunicação fundamentada nesse sentido.
2) ...
3) A resolução por incumprimento não exime o locatário do pagamento de quaisquer dívidas em mora para com a locadora,... e ainda do pagamento de indemnização à locadora.
4) A indemnização referida no artigo anterior (refere-se aqui certamente o nº anterior) destinada a ressarcir a locadora -que fará sempre suas todas as importâncias até então pagas pelo locatário nos termos deste contrato-dos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento em si do contrato pelo locatário não será nunca inferior a 75% do valor total dos montantes fixos referidos nas condições particulares e na cláusula 3ª nº1 alín.a) deste contrato. Efectuada a rescisão, o locador tem direito à restituição do veículo - cláusula 9ª-1.
Ponderou-se na sentença:
estamos perante um aluguer de longa duração (vulgo "ALD");
a carta enviada pela A. à R. não consubstancia uma resolução do contrato;
que a A. não comunicou aos RR. as cláusulas do contrato nos termos impostos pelo DL 446/85 de 25-10.
Diferente foi o entendimento da Relação:
A A. resolveu de facto o contrato, tal como lhe era permitido pelas cláusulas contratuais;
deve entender-se que foram comunicadas as cláusulas contratuais gerais;
a cláusula penal estabelecida não viola a lei;
a R. não provou a sua desproporcionalidade.
Vejamos antes de mais o que está em causa neste momento.
A A. pediu:
de alugueres vencidos e não pagos até à data da resolução -179738 escudos;
179738 escudos correspondentes ao período decorrido entre a data da resolução e a efectiva recuperação do veículo;
juros moratórios respectivos, à taxa de 15%, que totalizam 19352$60 até 10-7-98;
2649979 escudos e 50 centavos, de indemnização (cláus. 8ª), ou seja, 75% do valor líquido dos alugueres vincendos, incluindo ainda 129870 escudos de despesas que a A. teve de efectuar com a recuperação do veículo.
Discorda-se para já do entendimento sufragado na sentença-de que não teria havido comunicação das cláusulas do contrato, nos termos determinados no art. 5 do DL 446/85.
Sem dúvida que se trata de um contrato de adesão, devendo por isso ser respeitado aquele normativo, bem como o art. 6 (dever de informação).
As partes assinaram o contrato, como se explicou.
Afirmaram ficar cientes do seu teor, incluindo condições particulares e gerais.
As condições particulares (fl. 27) nada têm de especial.
Apenas o preço, condições de pagamento e duração do contrato.
No verso estão as condições particulares (15 cláusulas, das quais neste momento relevam as citadas).
Estão em letra bem legível e a sua compreensão não suscita grandes dificuldades.
Consideramos por isso cumprido o disposto naqueles artigos.
Isto relativamente à 1ª R., única a subscrever o contrato.
Os 2º e 3º RR. assinaram um termo de fiança (fl. 32) genérico em que não é feita qualquer referência ao contrato dos autos.
Relativamente a esses RR. o contrato é ineficaz (isto relativamente às condições gerais) - art. 8 e 9 do DL 446/85 (1).
Eles não podem ser condenados nos mesmos termos, discordando-se por isso das instâncias.
Não suscita dúvidas o devido até à data da resolução do contrato.
Há que analisar, porém a parte restante do pedido.
E desde já afastamos o argumento da A. no sentido de o Tribunal ser obrigado a analisar o caso apenas pela óptica dos RR.
Nos termos do art. 664º do CPC, o juiz é livre na subsunção dos factos ao direito.
Pelo facto de os RR. se terem limitado, equivocadamente, a enquadrar o seu pedido tão só ao abrigo dos art. 5 e 6 do DL 446/85 e de uma pretensa inexistência de declaração de resolução (um e outro argumento afastados, e bem, pela Relação) não se segue que o tribunal fique impedido de fazer justiça.
Aliás, na contestação chamam os RR. já a atenção para a exorbitância de algumas cláusulas.
Assim se decidiu também em acórdão deste Tribunal em que os RR. nem sequer contestaram a acção, o que não impediu se tirasse decisão que ainda citaremos de novo (2).
Vamos transcrever de acórdão recente deste Tribunal subscrito pelos mesmos juízes em hipótese próxima (3):
"O contrato é regido pelo DL 171/79 de 6-6, depois substituído pelo DL 149/95 de 24-6.
A resolução do contrato era relegada para os princípios gerais-artº26º.
Apenas eram afastadas as normas do contrato de locação.
Previram as partes a resolução do contrato com base na simples mora no pagamento das rendas.
O que era permitido - art. 432 n. 1 do CC.
Como se escreveu já em acórdão deste Tribunal de 5-6-97, tirado em hipótese de resolução de contrato de locação financeira por idêntico fundamento (4), encarou-se a exigência das rendas vincendas pela óptica a nosso ver correcta-como cláusula penal prevista no contrato.
Que nada impedia o estabelecimento de cláusula penal para a hipótese de simples mora, escreveu-se.
Terá, porém que ver-se em que medida pode ter sido violado o disposto no DL 446/85 de 25-10, art. 19 c) ) (cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir).
No rec. 376/97 considerou-se desproporcionada cláusula penal idêntica à dos autos.
Operou-se por isso redução do contrato, nos termos do art. 292 do CC, tendo-se ainda em conta o artº812º do mesmo diploma.
Entendemos que se justifica neste processo o mesmo entendimento.
Note-se que a A. recuperou os equipamentos, como o reconhece na alegação perante a Relação (fl. 339), onde informa que tal ocorreu no âmbito de providência cautelar, em 1998.
Consideramos excessiva a exigência de rendas vincendas e respectivos juros.
Finda a transcrição, importa sublinhar que neste caso se não previu a aquisição do veículo pela R.
Deverá por isso falar-se antes de aluguer de longa duração de veículo sem condutor (ALD).
Os princípios expostos são no entanto em grande medida aqui aplicáveis.
Hipótese idêntica à dos autos é precisamente a do acórdão já citado de 15-12-98.
As cláusulas são iguais.
Refere-se inclusive a fixação de indemnização não inferior a 75%.
O aresto cita vários acórdãos deste Tribunal no sentido de ser admissível tal indemnização desde que reduzida a 20%.
Assim se decidiu também.
No caso, houve recuperação do veículo.
Tem-se sempre em conta obviamente o grande risco que corre por conta das empresas que se dedicam a este tipo de negócio.
Nesse processo, os RR. deixaram de pagar a partir do 8º mês.
O veículo foi recuperado pela A. meio ano depois de resolvido o contrato.
Por último, também no ac. de 15-12-98 a A. procurou afastar a consideração da dita cláusula como penal, falando antes de "convenção de agravamento da responsabilidade".
Recusou-se essa qualificação, já que importa a realidade dos factos e não o "nomen juris" atribuído mais ou menos arbitrariamente.
Neste processo, a R. pagou as rendas durante cerca de metade do período de duração do contrato.
O veículo foi recuperado pouco depois da carta de resolução do contrato.
Deveria estar em bom estado, pois a A. vendeu-o de seguida por mais de 4000000 escudos.
Recebera da R. cerca de 4398836 escudos.
Aceita-se aqui a percentagem de 20% adoptada no citado acórdão.
É verdade que nesse caso o veículo voltou à posse do autor mais novo, mas não é menos exacto que na hipótese dos autos a A. recebera já em grande medida o valor real do carro e ainda o vendeu por bom preço.
Nas rendas fixadas já se tem em conta a depreciação do veículo.
Reduzir aquela cláusula a 20% afigura-se razoável.
Em face do exposto, concede-se a revista, decidindo-se como segue:
a) São absolvidos os 2º e 3º RR. do pedido agora em causa.
Mantém-se a condenação já decretada na 1ª instância, com a qual se conformaram.
Aliás, na sentença eles foram condenados como teriam sido em qualquer contrato que não de adesão.
Respondem tão só pelas rendas vencidas.
Não se justifica submeter as condições particulares do contrato ao regime do DL 446/85.
b) É condenada a 1ª R. no pagamento à A. de:
359476 escudos, a que acrescem 19352 escudos de juros, mais os juros legais desde 11-7-98 até pagamento, e ainda a indemnização de 801899060 escudos (672029060 escufos + 129870000 escudos) e juros legais desde a citação até pagamento.
Custas da acção (e dos recursos, isto é, incluídos os recursos) por A. e RR. na seguinte proporção: 1/3 pela A., 2/3 pela R. (os dois RR. respondem solidariamente com a R. por 1/3 das custas devidas por ela).

Lisboa, 28 de Maio de 2002.
Nascimento Costa,
Dionísio Correia,
Quirino Soares.
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(1) neste sentido o acórdâo deste Tribunal de 14-1-98, rec. 872/97.
(2) acórdão de 15-12-98, rec. 1090/98 (Garcia Marques).
(3) acórdão de 11-4-2002, rec. 708/02-7.
(4) acórdão de 5-6-97, rec. 376/97, relatado pelo aqui relator.