Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6414/16.7T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: DESCOBERTO BANCÁRIO
ALEGAÇÃO DE FACTOS
REMISSÃO PARA O TEOR DE DOCUMENTOS
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVOGADO O ACÓRDÃO DA RELAÇÃO E BAIXA A ESTA DOS AUTOS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, Vol. II, p. 353 ; Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. I, 2.ª ed., p. 201.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, 636.º E 640.º.
CPC/1961: - ARTIGO 646.º, N.º 4.
Sumário :
I. A remissão para o teor de documentos juntos com a petição inicial pode servir para complementar a alegação de factos que sustentam o pedido.

II. Assim ocorre numa ação baseada num alegado contrato de descoberto em conta ou de descoberto bancário de que resultou um crédito final a favor da instituição financeira, não sendo obrigatório que na petição inicial se reproduzam todas as operações que mediaram entre a outorga de tal contrato e o seu encerramento e que a documentação junta revela.

III. Impugnando os RR. a matéria de facto que a 1ª instância considerou provada e não provada em termos que podem projetar-se na integração jurídica, a Relação não está dispensada de proceder à sua apreciação a pretexto de que não foram alegados na petição inicial todos os factos correspondentes à operação de descoberto bancário.

Decisão Texto Integral:

I - CAIXA AA, S.A., instaurou ação contra BB e CC, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 193.203,66, acrescida de juros à taxa de 22,5% ao ano desde 21-12-16, até integral pagamento.

Alegou, a concessão aos RR. de um crédito, sob a forma de descoberto em conta, a partir de Janeiro de 2002, que teve origem, entre outros, em descontos/recâmbios de várias letras e livranças, e que, em Setembro de 2002, atingia o valor de € 86.394,64.

Na data da interposição da ação, era de € 193.203,66 a dívida dos RR. para com a A., incluindo capital, juros (no montante de € 99.177,45), imposto de selo (no montante de € 7.368,59) e comissões (no montante de € 262,98).

Os RR. contestaram alegando que não acordaram qualquer descoberto em conta e que apenas existiu entre as partes um contrato de abertura de crédito, iniciado em Novembro de 1997 e solvido em Janeiro de 2006. Acresce que a A. juntou documentos que nada têm a ver com os contestantes.

Ademais, com exceção das livranças juntas, a R. BB não foi interveniente, nem subscritora nos demais títulos, sendo alheia às operações que fundamentam o crédito em discussão nos autos.

Invocaram ainda os RR. a prescrição do direito de crédito invocado pela A. (nos termos do art. 482º do CC), por entenderem que a ação proposta se configura como um enriquecimento sem causa.

Alegaram ainda a exceção de caducidade do direito de ação cambiária por a A. não ter apresentado as letras atempadamente a pagamento, além de que também não apresentou as letras a protesto por falta de pagamento.

Consideram finalmente que a A. litiga com abuso de direito.

A A. respondeu.

Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação condenou os RR. no pagamento à A. do capital de € 86.394,64, acrescida dos juros de mora aplicáveis às operações bancárias, devidos desde o dia 21-12-11, e do respetivo imposto de selo.

O RR. interpuseram recurso de apelação no qual, além do mais, impugnaram a decisão da matéria de facto.

A Relação, com um voto de vencido e sem ter apreciado a impugnação da decisão de facto, revogou a sentença e absolveu os RR. do pedido.

A A. interpôs recurso de revista no qual se opõe ao acórdão da Relação, considerando que a matéria de facto apurada pela 1ª instância é suficiente para dela extrair a existência de um contrato de descoberto bancário e o crédito que pela sentença foi reconhecido.

Os RR. contra-alegaram opondo-se à pretensão da A. Além disso, em sede do que apelidaram de ampliação do objeto do recurso, consideraram que se vier a ser reconhecida razão à A., o processo deve ser remetido para a Relação para apreciação das questões que foram suscitadas no precedente recurso de apelação, com destaque para a impugnação da decisão da matéria de facto.

Cumpre decidir.


II – Factos que a 1ª instância considerou provados:

1. A A. é sucessora por incorporação do BANCO DD, S.A., nos direitos e obrigações deste (art. 1º da petição);

2. A A. desenvolve a atividade bancária (art. 3º da petição);

3. No âmbito da sua atividade e a solicitação dos RR., a A. concedeu-lhes um crédito sob a forma de descoberto, na conta de depósitos à ordem de que eram titulares, aberta na agência de … do Banco DD, com o nº 2…0/70…6 que atualmente, por ter sido objeto de renumeração interna, tem o nº 21…30 (art. 4º da petição e art. 52º da resposta);

4. Tal conta foi aberta pelos RR. no Banco DD, em data anterior à fusão mencionada em 1., que, em concreto não foi possível apurar, mas situada há mais de 20 anos e podia ser movimentada por qualquer dos seus titulares, por se tratar de conta solidária (arts. 8º e 9º da contestação e art. 8º da resposta);

5. No dia 18-2-02, a conta mencionada no artigo anterior apresentava um descoberto de € 1.019,61 (art. 5º da petição);

6. Tal descoberto teve origem em, além do mais descontos/recâmbios de várias letras e livranças, operações estas efetuadas por vontade de ambos os RR. (arts. 1º e 9º da petição);

7. Desde 18-2-02 até 16-9-02 o saldo negativo da conta mencionada aumentou de € 1.019,61 para € 86.394,64 (art. 10º da petição);

8. A agência da A. de … enviou aos RR. as cartas cujas cópias constam de fls. 13 e 14,vº, datadas de 4-4-05 e de 15-5-06, nas quais além do mais aí exarado, solicita o pagamento do saldo devedor da conta DO 21…30, solicitação que também lhes foi efetuada por funcionários da agência de … aos RR. (art. 11º da petição e art. 23º da contestação);

9. Os RR. não liquidaram o saldo devedor de € 86.394,64, relativo a capital que se mantinha em dívida em 21-12-16, embora conhecessem, pelo menos desde os contactos mencionados no artigo anterior, a existência do descoberto em conta em causa nestes autos, expressamente mencionado nas cartas que lhes foram enviadas em 4-4-05 e 15-5-06 (art. 12º da petição e arts. 31º, 32º, 35º e 60º da resposta);

10. Em 26-11-97, entre os RR. e o Banco DD foi celebrado um contrato de abertura de crédito em conta corrente, até ao limite de 5.000.000$00 (correspondente a € 24.990,89) para apoio a tesouraria, contrato esse que veio a ser renovado e renegociado através de documento particular celebrado em 29-2-00, pelo prazo de três anos, prorrogável automaticamente por iguais períodos, nos termos e com o teor constante de fls. 119 a 120 dos autos, aí se prevendo, designadamente que “(…) todos os pagamentos, quer de capital, quer dos juros, quer das comissões ou de outras despesas serão efetuados por débito na nossa conta DO nº 4…76” (arts. 19º, 20º e 21º da contestação e arts. 51º e 53º da resposta);

11. As obrigações emergentes para os RR. do contrato mencionado em 10. foram por eles integralmente liquidadas em 25-1-06 no âmbito da ação executiva instaurada pela A. no Trib. Jud. de … e que correu os seus termos sob o nº 15/06.5T… (arts. 22º, 25º, 82º, 86º, 87º e 88º da contestação);

12. Tal execução foi instaurada pela A. contra os RR. em 23-12-05 por estes não terem regularizado a situação de incumprimento decorrente do contrato mencionado em 10., aí reclamando dos executados o pagamento da quantia de € 33.205,95 (art. 24º da contestação);

13. A celebração do contrato mencionado em 10. decorreu de dificuldades temporárias de tesouraria por parte dos RR. (art. 70º da contestação);

14. Na carta mencionada, datada de 4-4-05, foi solicitada aos RR. a regularização quer da operação nº 21…30 relativa ao descoberto em discussão nestes autos e ainda a regularização da operação 20…19 referente ao contrato de abertura de crédito mencionado em 10. (arts. 38º e 57º da resposta);

15. Em 1-1-02 vigoravam entre a A. e os RR. os acordos mencionados em 3., 4. e 10. (art. 49º da resposta).


III – Decidindo:

1. No precedente recurso de apelação os RR. focaram-se essencialmente na impugnação da decisão da matéria de facto, pretendendo que a Relação alterasse diversos pontos que a 1ª instância considerara provados e não provados.

A Relação, depois de algumas observações genéricas acerca de tal pretensão, passou de imediato para a apreciação da matéria de direito por julgar que a dita impugnação da decisão de facto é inútil para o desfecho da causa e do recurso (fls. 739, vº).


2. Discorda-se desta opção, como discordou a A. nas alegações do recurso de revista.

A 1ª instância considerou provado na sentença, além do mais, que foi concedido aos RR. “um crédito sob a forma de descoberto”, cujo valor variável se mostrava visível através do saldo periódico da conta de depósitos, apresentando, em dada altura, um “saldo negativo da conta”, no valor de “€ 86.394,64”. Acrescentou ainda que tal descoberto “teve origem em, além do mais, descontos/recâmbios de várias letras e livranças, operações estas efetuadas por vontade de ambos os RR.”. Foi aquele valor que serviu de base à sua condenação final.

Neste contexto, as divergências manifestadas pelos RR. relativamente a tal sentença, acentuando o alegado erro no julgamento da matéria de facto, de modo algum dispensavam a prévia apreciação da respetiva impugnação nos pontos que foram postos em causa.

Para infirmar a solução que a Relação, com um voto de vencido, declarou, surge com especial evidência o facto de que, uma vez finalizada a fase dos articulados, a 1ª instância não considerou, no despacho saneador, que houvesse ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, nem tal vício foi invocado pelos RR. que, ao invés, se defenderam por via de outras exceções e por impugnação.

A 1ª instância considerou regular a instância também relativamente à causa de pedir, de tal modo que, identificados que foram os temas de prova, foi realizado o julgamento, após o qual foram inscritos na sentença factos que considerou provados e não provados.

Neste contexto, nem sequer se mostra necessário qualificar como essenciais ou instrumentais os factos que foram considerados provados pela 1ª instância, pois, de uma forma ou de outra, passaram a constar da sentença e foram submetidos à subsequente aplicação das normas, embora tenham merecido a oposição dos RR. na precedente impugnação que introduziram através do recurso de apelação.


3. O que podemos desde já adiantar é que, sem embargo das modificações que porventura venham a ser introduzidas na decisão da matéria de facto, fruto da apreciação da impugnação que contra a mesma foi dirigida pelos RR., no exercício de uma tarefa que é da exclusiva competência da Relação, não se pode confirmar que tudo quanto dela consta neste momento constitua pura matéria de direito, como acabou por asseverar a Relação.

Tal afirmação tem subjacente o uso de um critério formal que já nem sequer encontra a sustentação que dantes poderia ter a cobertura do nº 4 do art. 646º do CPC de 1961. A solução encontrada pela Relação contraria ainda as correntes jurisprudenciais e doutrinais que renegam o estabelecimento de uma linha de demarcação rígida entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito e que atribuem relevo aos aspetos de ordem material em detrimento da supremacia de aspetos formais que emergem da hipervalorização do direito adjetivo em face do direito material.

Não vamos de novo reavivar uma jurisprudência de pendor formalista que com muita frequência deixava em segundo plano princípios e razões de justiça material, quando, como sucede em casos como o presente, a matéria que a 1ª instância considerou provada revela, sem dúvida alguma, uma certa realidade que é compreensível e que importa integrar juridicamente, embora tal apenas deva ocorrer depois de apreciada a impugnação que foi apresentada pelos RR.

No estado em que se encontra a matéria de facto não existem motivos para dispensar aquela tarefa e passar de imediato à integração jurídica, como fez a Relação, pois que, no mínimo, dever-se-ia considerar que a descrição que foi feita pela 1ª instância comporta segmentos que apresentam simultaneamente um significado jurídico e material que mereceria a integração jurídica adequada.

Ademais, quer a alegação das partes, quer a circunscrição da realidade operada pela 1ª instância são inseparáveis dos documentos que pela A. foram apresentados e que, podendo constituir uma extensão da petição inicial, poderão naturalmente constituir também uma extensão daquilo que o tribunal de 1ª instância considerou como factos provados.

Assim já era considerado por Alberto dos Reis (CPC anot., vol. II, p. 353) e a evolução legislativa e do pensamento jurídico, a par das modificações que também ocorrem na sociedade e da acentuação dos fatores de economia, celeridade e eficácia dos procedimentos processuais, interpelam os tribunais judiciais a cooperar também na melhoria dos resultados.

Preenchidos os pressupostos essenciais de natureza formal, devem ser canalizadas as energias para os aspetos de ordem material, refletindo a jurisprudência numerosos casos em que, em situações semelhantes à dos presentes autos, tal tem sido concretizado através da adoção de uma pré-compreensão que é radicalmente oposta àquela que prevaleceu no acórdão recorrido.

Assim o era quando entrou em vigor a reforma processual de 1995/96, nos termos que o ora relator deixou sintetizados em Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2ª ed., p. 201, nota 353, e a posterior evolução do sistema processual civil que envolveu a publicação de um novo CPC apenas vem acentuar ainda mais a necessidade de dar primazia a aspetos materiais.


4. Ora, sem necessidade de introduzir outros apoios que podem ser encontrados facilmente na doutrina e jurisprudência mais recentes, resulta evidente que, em situações como a presente (relação bancária que perdurou no tempo, com diversas operações), não se justifica de modo algum exigir do autor, quando elabora a petição inicial, que reproduza cada uma das múltiplas operações que foram contabilizadas no âmbito de um alegado contrato de descoberto bancário. Pelo contrário, não existem obstáculos legais a que a alegação feita na petição inicial seja complementada com o que emerge dos documentos que foram apresentados para ilustrar cada uma das alegações.

Também não é caso para sobrevalorizar, desde logo, nesta altura, uma distinção que a Relação pretendeu fazer entre um alegado contrato de descoberto bancário e um outro relacionamento contratual que corresponderia a um contrato de desconto bancário, para daí extrair as conclusões que logo foram retiradas. Ainda menos para considerar dispensável ou inútil a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto relativamente a concretos pontos que sintetizam o que ocorreu num largo período de duração daquele relacionamento.

Verifica-se, aliás, que ao dar prevalência a aspetos jurídicos, com a assunção de conclusões que por ora se mostra desnecessário rebater, a Relação passou ao largo das divergências que foram manifestadas pelos RR. relativamente ao que a 1ª instância inseriu no segmento da “matéria de facto” provada e não provada, invertendo de modo evidente a ordem de prioridades que foi exposta pelos RR. nas suas alegações no anterior recurso de apelação.

Com efeito, lidas as alegações e as respetivas conclusões, verifica-se que as principais objeções apresentadas pelos RR. contra a sentença da 1ª instância foram dirigidas ao elenco de factos provados e, em menor grau, ao elenco de factos considerados não provados. Já relativamente à matéria de direito, ou seja, às conclusões que foram extraídas dos factos apurados, os RR. apelantes praticamente se limitaram, a negar a existência de qualquer crédito (conclusões QQQ) e ss. do recurso de apelação), fundando a sua pretensão no sentido da improcedência da ação essencialmente na pretendida modificação de segmentos da matéria de facto provada e não provada que procuraram obter e que a Relação, no entanto, considerou dispensável ou mesmo inútil.

Neste contexto, impõe-se a revogação do acórdão recorrido para que a Relação proceda, como deveria ter procedido já, à apreciação da impugnação da matéria de facto deduzida pelos RR., incluindo as nulidades que relativamente a tal matéria foram expostas no precedente recurso de apelação, após o que se seguirá a integração jurídica dos factos que forem definitivamente fixados, sem que sobre essa matéria tenhamos de antecipar desde já qualquer solução.


5. Deste modo fica acautelada também a posição assumida pelos RR. nas contra-alegações.

Os RR, na pressuposição da procedência da revista, aludiram à ampliação do objeto do recurso, nos termos do art. 636º do CPC, para justificarem a ordem de remessa dos autos à Relação.

Porém, o caso nem sequer justifica o uso de tal instrumento, na medida em que o que se constata é que a Relação considerou que ficavam prejudicadas quer as nulidades que foram arguidas, nos termos do art. 615º do CPC, quer as questões de facto que foram suscitadas ao abrigo do art. 640º do CPC.

Uma vez que, como referimos, esse acórdão da Relação é revogado, tal implica que deva ser retomada a apreciação do objeto da apelação, a começar pelos aspetos que foram indicados incluindo naturalmente a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pelos RR. apelantes e que a Relação considerou prejudicada.


IV – Face ao exposto, acorda-se em revogar o acórdão recorrido, determinando a remessa dos autos à Relação a fim de que nesta seja apreciado o objeto do recurso de apelação, com destaque para a arguição de nulidades e apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto.

Custas da revista a cargo dos RR.

Notifique.


Lisboa, 7-11-19


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo