Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1734
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: DANO MORTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA PARA O TRABALHO HABITUAL
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO OBRIGATÓRIO
PRÉMIO
Nº do Documento: SJ200707050017346
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
1 – O objectivo essencial do aumento continuado e regular dos prémios de seguro que tem ocorrido em Portugal no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil por acidentes de viação não é o de garantir às companhias seguradoras a obtenção de lucros desproporcionados, mas antes o de, em primeira linha, assegurar aos lesados indemnizações adequadas.
2 – Não vigora no nosso ordenamento jurídico nenhuma norma positiva ou princípio jurídico que no âmbito dos danos não patrimoniais impeça a atribuição duma compensação ao lesado sobrevivente superior ao máximo daquela que habitualmente tem sido atribuída pelo Supremo Tribunal de Justiça para indemnizar o dano da morte (entre 50 e 60 mil euros).
3 – Isso pode suceder quando, tendo em conta o art.º 496º, nº 1, do Código Civil, a perda da qualidade de vida do lesado atinja um patamar excepcionalmente elevado, expresso nas dores, sofrimentos físicos e morais e limitações de vária natureza a que tiver ficado sujeito para o resto da vida em consequência do acto lesivo.
4 – É justo atribuir uma indemnização de 85 mil euros por danos morais ao lesado que, bombeiro de profissão, ficou aos 42 anos de idade definitivamente impossibilitado de exercer essa actividade por causa dum acidente de viação de que não foi culpado e cujas consequências foram, entre outras de gravidade paralela, deixar-lhe o braço esquerdo de todo inutilizado (dependurado, preso por uma cinta) até ao final dos seus dias, impossibilitando-lhe a realização, sozinho, de tarefas como vestir-se e lavar-se, e tornar-lhe o andar notoriamente claudicante por virtude da fractura duma rótula.
5 – Provando-se que as perdas salariais do lesado ascenderam, respectivamente, a 4.350.800$00 (actividade de bombeiro) e 780.000$00 (actividade de pedreiro, desenvolvida nas folgas semanais), a indemnização por danos patrimoniais futuros decorrentes duma incapacidade permanente geral global de 60% deve ser fixada em 92 mil contos (ou 458.894,70 euros), a que acrescem 50 mil euros por ter passado a necessitar do apoio diário de terceira pessoa na realização de certas tarefas essenciais e por, futuramente, ter que sujeitar-se a acompanhamento médico frequente e a trata­mentos regulares.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Alegando que foi vítima de um acidente de viação causado por veículo segurado na ré e por culpa exclusiva do respectivo condutor, AA propôs contra a Companhia de Seguros P...P..., SA, uma acção ordinária, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 100.000.000$00, acrescida de 3.000.000$00 relativos à desvalorização da moeda, e ainda todos os tratamentos e cirurgias que se mostrem necessárias, bem como os danos morais e outras despesas.
Contestando, a ré aceitou a responsabilidade do seu segurado pelas consequências do acidente, assumindo-a nos termos da apólice em vigor, mas considerou exagerados os pedidos formulados, entendendo que o autor estaria também a ser indemnizado pelo seguro de acidentes de trabalho da sua entidade patronal.
Em articulado próprio a Companhia de Seguros Império, cuja intervenção como associada da autora foi por esta requerida, alegou que foi um acidente de trabalho aquele que vitimou o autor e que, tendo ele ficado incapacitado de forma permanente, já pagara até então 1.828.006$00 a título de indemnização por incapacidades temporárias, honorários médicos, medicamentos, assistência hospitalar, fisioterapia, transportes, alimentação e alojamento do autor, assistindo-lhe o direito de receber esta importância dos responsáveis pelo acidente.
A ré e a interveniente transigiram no que toca às suas responsabilidades (fls 230) - a interveniente enquanto seguradora do ramo de trabalho e a ré do ramo automóvel - tendo o autor optado pela indemnização relativa ao acidente de viação. Extinguiu-se, assim, a instância quanto à interveniente, subsistindo para julgar o pedido do autor contra a ré, cuja denominação é agora a de Companhia de Seguros A...P..., SA.
Discutida a causa, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente proce­dente, condenou a ré a pagar ao autor as quantias de 15 mil contos (ou 74.819,68 €), a título de danos de natureza não patrimonial sofridos e futuros; 300 contos (ou 1.496,39 €), a título de danos patrimoniais; e 80 mil contos (ou 399.038,32 €), a título de danos futuros/perda da capacidade de ganho, tudo com juros legais de mora desde a citação.
Apelaram a ré e, subordinadamente, o autor.
Concedendo provimento parcial a ambos os recursos a Relação de Coimbra, por acórdão de 30.5.06 aclarado sob reclamação do autor em 31.10.06, revogou em parte a sentença, condenando a ré a pagar ao autor 50.000,00 € por danos morais (sofridos e futuros); 1496,39 € por danos patrimoniais directos; 325.000,00 € por danos patrimoniais futuros (perda da capacidade de ganho); e ainda – sic – “no pagamento ao autor da indemnização pelos danos futuros (materiais e morais) consequente a tratamentos e cirurgias que face às sequelas das lesões provocadas pelo acidente se mostrem necessárias à melhoria da qualidade de vida do autor, cujo montante se relega para decisão ulterior”.
Deste acórdão recorreram de novo ambas as partes, agora para o STJ, sendo o autor a título subordinado; e concluindo as suas alegações sustentam que os valores das parcelas indemnizatórias fixadas pela 2ª instância devem ser alterados – no caso do autor para mais e no caso da ré, naturalmente, para menos.
Tudo visto, cumpre decidir.
II. Analisaremos conjuntamente as duas revistas, uma vez que os problemas suscitados numa e noutra são praticamente coincidentes. Nesta fase do processo apenas se discute o valor das indemnizações a arbitrar, designadamente por danos morais e por danos futuros decorrentes da perda da capacidade de ganho. Não chegou a colocar-se a questão da culpa, pois a ré aceitou ab initio que ela cabe por inteiro ao seu segurado; e o valor dos danos patrimoniais directos (assim lhes chama o acórdão recorrido) também já se encontra definitivamente fixado: como atrás se referiu, são 1.496,39 €.
Tendo em conta o que antecede, passamos a destacar, de entre os factos definitivamente assentes, apenas os que interessam à solução dos recursos. São os seguintes:
1) Em consequência do embate, ocorrido em 27.6.98, e dadas as lesões sofridas, o autor foi transportado aos serviços de Urgência do Hospital da Universidade de Coimbra, onde deu entrada como politraumatizado.
2) Neste Hospital foram-lhe diagnosticadas as seguintes lesões:
a) Fractura esquilorosa distal dos ossos do antebraço esquerdo articular; b) Fractura do 3°, 4° e 5° matacárpicos esquerdos; c) Fractura da rótula esquerda grau 1; d) Lesão do plexo braquial esquerdo, C7-C8-D1 à esquerda.
3) Face à gravidade das lesões sofridas o autor foi internado no serviço de Ortopedia 1 dos HUC.
4) No dia 28.6.98 foi submetido a cirurgia às fracturas do punho e da rótula com a seguinte terapêutica cirúrgica:
a) Osteotaxis da fractura esquirolosa do punho, com minifixadores AO e fixação per­cutânea Dom 2 fios K.
b) Patelectomia total, com cilindro gessado.
5) Foi submetido a RX ao joelho esquerdo, ao punho esquerdo e à mão esquerda.
6) Teve alta para a residência do serviço de Ortopedia em 14.7.98.
7) Iniciou programa de fisioterapia a partir de 23.7.98, programa que ainda hoje se mantém.
8) Foram-lhe retirados os fixadores externos do punho a 13.8.98 e feita imobilização gessada.
9) Foi submetido a nova cirurgia (microcirurgia) em 8.9.98 — neurólise plexo braquial com exérese de neuromas.
10) Em virtude das lesões sofridas em consequência do acidente o autor ficou a sofrer duma incapacidade permanente geral global de 60% e está impossibilitado para sempre de exercer a sua profissional de bombeiro.
11) O autor, que nasceu em 7.3.56, na ocasião do acidente era Bombeiro Sapador, escalão 7, índice 185, auferindo as seguintes remunerações mensais:
a) remuneração base: 181.600$00; b) horas extras: 60.000$00/média; c) subsídio de refeição: 9.000$00; d) suplemento S.F. Segurança: 26.400$00; e) subsídio de turno 45.000$00; f) subsídio Familiar Crianças e Jovens 5.900$00.
12) Assim, auferia por mês a remuneração global de 327.900$00 (e não 328.300$00, como se refere por erro de cálculo).
13) Por outro lado, usufruía de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal 208.000$00, correspondente à soma da remuneração base e do suplemento S.F. Segurança.
14) O autor tem anos de serviço, tendo merecido as melhores notas de avaliação pelo seu desempenho, com mais de 8 anos na categoria com a classificação de Bom ou mesmo superior.
15) Em Janeiro de 1998 foi condecorado com a medalha de cobre por 5 anos de bom e exemplar comportamento no exercício das suas funções.
16) Em Março de 1998 foi condecorado com a medalha de prata por 15 anos de bom e exemplar comportamento.
17) As lesões sofridas pelo autor impediram-no de participar no concurso aludido no ponto 18º designadamente dada a manifesta impossibilidade do autor de realizar as provas físicas.
18) O autor tinha legítimas e fundadas expectativas de vir a ser promovido a cabo em 1999, na sequência do aludido concurso, passando ao escalão 7, índice de remunera­ção 200.
19) Volvidos 3 anos na categoria de cabo o autor seria, não fossem as lesões sofridas, promovido a sub-chefe, com o índice de remuneração 220, ou pelo menos promovido ao escalão 8, índice de remuneração 215.
20) O autor trabalhava por turnos, fazendo turnos de 12 horas, mesmo de 24 horas seguidas.
21) Conseguia 2 a 3 dias livres por semana, para se dedicar à actividade de pedreiro.
22) Na ocasião do acidente, enquanto pedreiro, o autor auferia a remuneração de 10.000$00/dia.
23) Em tal actividade o autor deixou de auferir o rendimento correspondente aos dias referidos no ponto 21º.
24) O autor não movimenta o membro superior esquerdo, englobando dedos, mão, braço, antebraço, e também o ombro.
25) Não tem qualquer sensibilidade no membro superior esquerdo, englobando dedos, mão, braço, antebraço, e também o ombro.
26) O autor por si não segura o membro superior esquerdo, englobando dedos, mão, braço, antebraço, e também o ombro, o qual, sem protecção, fica dependurado do corpo.
27) O autor necessita e usa diariamente uma cinta que segura e protege o membro superior esquerdo junto ao corpo.
28) A lesão que determina o actual estado do autor não é susceptível de recuperação.
29) O autor está impossibilitado de realizar sozinho inúmeras tarefas da vida diária e corrente que habitualmente fazia, designadamente vestir, efectuar a sua higiene diária, transportar pesos.
30) Está muito limitado na realização de muitas outras tarefas das mais elementares, tais como comer, acariciar os filhos, andar e tudo o que de alguma forma exija a utilização de membros superiores, sensibilidade dos dedos, mão ou braço.
31) Precisa diariamente de uma terceira pessoa para o ajudar à realização das tarefas diárias que por si não pode realizar, tais como vestir, calçar, lavar, colocar a cinta, etc.
32) O autor sofreu lesões que implicam e implicarão no futuro acompanhamento médico frequente, bem como tratamentos regulares.
33) Em consequência das lesões sofridas, suportou o autor fortes dores e um profundo abalo moral.
34) O autor vive momentos de angústia.
35) Claudica na marcha de forma visível e notória, face às lesões sofridas no membro inferior esquerdo.
36) Sofre de artroses que deteriorarão a sua qualidade de vida.
37) Apresenta um braço dependurado, sem qualquer reacção ao estimulo exterior e sem sensibilidade.
38) Fazia desporto, pertencendo à equipa de voleibol dos Bombeiros Municipais de Coimbra.
39) Em consequência do acidente deixou de poder praticar qualquer desporto.
40) Numa escala de 0 a 7, é de 7 o “quantum doloris” e de 5 o prejuízo estético do autor.
***
a) Uma das questões que se debate nesta fase do processo é a dos danos morais, registando-se, em termos práticos, uma acentuada divergência de posições relativamente à indemnização que deve ser atribuída: o autor reclama 250 mil euros; a sentença concedeu-lhe 74.819,68 euros; e a Relação, com a concordância, neste aspecto, da ré, atribuiu-lhe 50 mil euros.
É um problema que já tivemos ocasião de apreciar inúmeras vezes, de modo reiterado e uniforme, pelo que repetiremos agora, com as devidas adaptações ao circunstancia­lismo concreto do caso sub judice, as considerações então feitas Designadamente, na Revª 2897/04, de 19.10.04, na Decisão Sumária 1470.06, de 23.5.06, e na Revª 2873/06, de 7.11.06, entre outras..
No caso em exame não se coloca em dúvida que os danos morais existem, assumindo gravidade bastante para justificar a fixação duma indemnização que compense o autor; basta olhar como um mínimo de atenção para os factos apurados para assim se concluir; por isso não há razão para encetar um discurso teórico e doutrinário tendente a fundamentar, em abstracto, a sua concessão; não é essa, de resto, a função dos tribunais. Assim, determinando a lei que a indemnização atenda aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, e que o tribunal recorra à equidade na sua fixação em concreto - art.º 496º, nº 1, do CC - cabe agora ao Supremo Tribunal, como tribunal de revista, controlar o mérito do juízo equitativo a que a Relação procedeu. Dito doutra forma: compete-lhe verificar se as circunstâncias específicas que individualizam o caso ajuizado, tornando-o, nesse sentido, único e irrepetível, foram sopesadas adequadamente, levando ao estabelecimento duma compensação justa. Ora, há alguns aspectos que a propósito deste assunto devem ser postos em relevo. E não obstante a natureza do juízo a formular – um juízo equitativo, necessariamente atento às particularidades do caso concreto, como se referiu – estamos em crer que são ponderações que valem, que devem influenciar (mais ou menos) a generalidade dos julgamentos a proferir em matéria de danos não patrimoniais.
Passamos a enunciá-los.
Primeiro: definitivamente ultrapassado o tempo das indemnizações insignificantes, excessivamente baixas, verifica-se que os tribunais estão hoje sensibilizados para a quantificação credível dos danos não patrimoniais – credível para o lesado e credível para a sociedade, respeitando a dignidade e o primado dos valores do ser, como acon­tece com a integridade física e a saúde, que o Estado garante a todos os cidadãos (art.ºs 9º, b), e 25º, nº 1, da Constitui­ção; cfr, neste exacto sentido, o acordão deste Tribunal de 20.2.01- Revista nº 204/01-6ª); e este “movimento” contra indemnizações meramente simbólicas não deixa de estar relacionado muito directamente, além do mais, com o aumento continuado e regular dos prémios de seguro que tem ocorrido no nosso país por imposição das directivas comunitárias, aumento esse cujo objectivo fulcral (pelo menos no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil por acidentes de viação) não é o de garantir às companhias seguradoras lucros desproporcionados, mas antes o de, em primeira linha, assegurar aos lesados indemnizações adequadas.
Segundo: As indemnizações adequadas passam com cada vez maior frequência por uma valorização mais acentuada dos bens da personalidade física, espiritual e moral atingidos pelo facto danoso, bens estes que, incindivelmente ligados à afirmação pessoal, social e profissional do indivíduo, “valem” hoje mais do que ontem; e assim, à medida que com o progresso económico e social e a globalização crescem e se tornam mais próximos toda a sorte de riscos – riscos de acidentes os mais diversos, mas também, concomitantemente, riscos de lesão do núcleo de direitos que integram o último reduto da liberdade individual, - os tribunais tendem a interpretar extensivamente as normas que tutelam os direitos de personalidade, parti­cularmente a do art.º 70º do Código Civil.
Terceiro: É necessário, em todo o caso, agir cautelosamente; e o Supremo Tribunal, nesta matéria, tem uma responsabilidade acrescida, dada a função que lhe está cometida de contribuir para a uniformização da jurisprudência; não é conveniente, por isso, alterar de forma brusca os critérios de valoração dos prejuízos; não deve perder-se de vista a realidade económica e social do país; e é vantajoso que o trajecto no sentido duma progressiva actualização das indemnizações se faça de forma gra­dual, sem rupturas e sem desconsiderar (muito pelo contrário) as decisões precedentes acerca de casos seme­lhantes. Isto porque os tribunais não podem nem devem contribuir para alimentar a noção de que neste domínio as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. A justiça tem ínsita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade; é tudo isto que no seu conjunto origina o sentimento de segurança, componente essencial duma sociedade assente em bases sólidas (ma das quais é justamente a do primado do direito). Ora, de certo modo os tribunais são os primeiros responsáveis e sobretudo os principais garantes da afirmação de tais valores: cabe-lhes contrariar com firmeza a ideia de que os factos danosos geradores de responsabilidade civil, muitas vezes tragédias pessoais e familiares de enorme dimensão material e moral, possam ser transformados em negócios altamente rendosos para pessoas menos escrupulosas.
Quarto: A indemnização prevista no art.º 496º, nº 1, do CC, mais do que uma indemnização, é uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objectivo que lhe preside é o de pro­porcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos e não o de o recolocar “matematica­mente” na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e, nessa exacta medida, irreparáveis, é uma reparação indirecta).
Quinto: Os componentes mais importantes do dano não patrimonial, de har­mo­nia com a síntese feita num acórdão deste Tribunal de 15.1.02 (Revª 4048/01-2ª) são os seguintes: o “dano estético” - que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; o “prejuízo de afirmação social” - dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissio­nal, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica); o prejuízo da “saúde geral e da longevidade” - em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valo­riza os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida; e o “pretium juventutis” - que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida; e o “pretium doloris” - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária.
No caso em exame, é inegável a extensão e a gravidade dos danos não patrimoniais do autor, eloquentemente espelhada nos factos apurados. Os diversos componentes do dano moral a que acabámos de fazer referência atingem na situação ajuizada patama­res elevados, de modo tal que, atendendo à sua relativa excepcionalidade, não deve recear-se a atribuição duma compensação que exceda o limite máximo da valorização habitualmente atribuída pelo Supremo Tribunal ao dano da morte, que tem oscilado entre os 50 e os 60 mil euros. Nada obriga, aliás, a que essa fronteira nunca seja ultrapassada, certo que o artº 496º, nº 1, elege como único critério de aferição a gravidade do dano, conceito eminentemente indeterminado que cabe ao tribunal preencher valorativamente caso a caso No sentido exposto, cfr. os acórdãos deste STJ de 13.5.04 (Revª 1185/04-2ª) e de 13.11.03 (Revª 2961/03-7ª) . E se a vida é o bem jurídico mais valioso, devendo valorar-se a sua perda, obviamente, em termos proporcionados a tal importância, a mesma ordem de razões justifica que se conceda a compensação devida àqueles que, não a perdendo embora, por inteira culpa alheia ficam de um momento para o outro, e até ao final dos seus dias, privados da qualidade mínima a que qualquer pessoa, pelos simples facto de o ser, tem pleno direito. Com maior ou menor dificuldade, consoante os casos, a perda da vida é sempre passível de avaliação em concreto para o efeito prático de se atribuir uma indemnização, fazendo-se corresponder a esse dano um certo e determinado valor em concreto – um valor máximo, se nos é lícito exprimir assim. Já a perda da sua qualidade, quando são graves ou muito graves as lesões sofridas no corpo e no espírito do lesado que sobrevive, torna tudo muito mais difícil, delicado e contingente, pois há a noção de que nenhum dinheiro, por muito que seja, é capaz de compensar certas dores físicas e morais irreversíveis. No caso presente, justamente, impressiona sobremaneira o facto de o autor, na força da vida, ter ficado definitivamente impossibilitado de exercer a sua profissão de bombeiro, na qual, pelo que ficou provado, punha tanto brio e empenho; o facto de ter ficado com o braço esquerdo totalmente inutilizado - literalmente, dependurado, seguro por uma cinta – sem qualquer hipótese de recuperação; o facto de claudicar notoriamente em consequência da fractura da rótula; o facto de estar impossibilitado de realizar sozinho tarefas tão simples como vestir-se e lavar-se todos os dias, necessitando para o efeito do auxílio de terceira pessoa, o que, quer se queira, quer não, é sempre motivo de maior ou menor constrangimento e sentimento de humilhação; o facto de, noutras actividades normais do dia a dia, como alimentar-se e andar, se encontrar também extremamente limitado; o facto de ter sofrido dores muito fortes e um grande abalo moral, abalo este (e consequente desgosto) que o acompanhará o resto da sua vida, face, sobretudo, à irreversibilidade da lesão no braço esquerdo; o facto de, sendo um desportista até ao dia do acidente sofrido, nunca mais poder praticar voleibol, que era o seu desporto favorito; o facto de sofrer de artroses e de estar sujeito, agora e no futuro, a acompanhamento médico frequente e a tratamentos regulares às lesões sofridas, bem como a dores muito fortes, que, aliás, logo começaram quando foi sujeito após o acidente a duas intervenções cirúrgicas, a segunda delas cerca de três meses após o acidente (note-se que o quantum doloris foi fixado pelo IML no grau máximo e o dano estético, não menos relevante, perto disso); por fim, o facto de todo este este quadro de graves sofrimentos físicos e morais perdurar desde a data do acidente, nada fazendo prever, antes pelo contrário, que o tempo venha a suavizá-lo, o que amplamente justifica os momentos de angústia por que o autor passa e, seguramente, continuará a passar. Tudo somado, temos que para ele – vitimado ainda relativamente jovem (aos 42 anos) por um acidente de viação para o qual em nada con­tribuiu – o corpo transformou-se num fardo muito duro de suportar, com a agravante de nenhuma esperança de alívio poder alimentar; e a sua vida, consequentemente, perdeu parte considerável do atractivo, do aliciante, do interesse, do encanto que com toda a legitimidade dela poderia esperar.
Assim, sopesando todos os elementos de facto à luz das ideias e princípios que se destacaram, decide-se fixar em 85 mil euros a indemnização devida por danos não patrimoniais.
b) O outro problema suscitado nas duas revistas é o da indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes da perda da capacidade de ganho, relativamente ao qual se registam de igual modo acentuadas divergências: a sentença arbitrou 339.038,32 €; a Relação 325.000,00 €; o autor pretende 1.004.296,00 €; e a ré, por seu turno, sustenta que a indemnização justa não deve exceder 225.000,00 €.
Trata-se duma questão também suscitada com enorme frequência, que este Tribunal (e, designadamente, este colectivo de juízes) já resolveu em numerosos casos aqui trazidos. Vamos recuperar, por isso, parte das consi­derações feitas a propósito do assunto num acórdão recentemente publicado, adaptando-as, claro está, às particularidades da situação ajuizada (revista nº 499/07, de 22.3.07):
“Já por diversas vezes nos pronunciámos sobre o critério a seguir nesta mat­ria, resumindo numas tantas notas os factores atendíveis, segundo a jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal, quando o lesado morre ou fica a padecer duma determinada incapacidade parcial permanente. Dissemos então que o problema diz respeito à indemnização devida ao lesado pelos danos futuros, danos estes a que a lei manda atender desde que sejam previsíveis (art.º 564º, nº 2, do CC). Trata-se duma quantificação difícil de fazer, pois tem que fundar-se em dados sempre contingentes, tais como a idade, o tempo de vida (activa e física) e a evolução do salário do lesado, bem como da taxa de juro. Daí que, como já referimos em inúmeros acórdãos deste Supremo Tribunal (cfr. nota A título de exemplo, citamos os acórdãos proferidos nos recursos de revista, todos da 6ª secção do STJ, de 1283/03, 3011/03, 4282/03, 2897/04, 305/05 e 3072/05, de 27.5.03, 20.11.03, 19.2.04, 19.10.04, 7.4.05 e 15.11.05, cujo relator foi o mesmo do presente, e 1564/03, 3441/03, 207/04 e 298/05, em que o aqui relator interveio como 2º adjunto.) a jurisprudência nacional tenha vindo a fazer um grande esforço de clarificação na matéria, visando o esta­belecimento de critérios de apreciação e de cálculo dos danos que reduzam ao mínimo a margem de arbítrio e de subjectivismo dos magistrados, por forma a que as decisões, convencendo as partes devido ao seu mérito intrínseco, contribuam para uma maior certeza na aplicação do direito e para a redução da litigiosidade a proporções mais razoáveis. Assim, assentou-se de forma bastante generalizada nas seguintes ideias (cfr, por último, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 10.2.98 e 25.6.02, na CJ Ano VI, I, 66, e Ano X, II, 128, ambos fazendo um ponto da situação muito completo):
1ª) A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendi­mento que a vítima não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida;
2ª) No cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equidade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso normal das coisas, é razoável;
3ª) As tabelas financeiras por vezes utilizadas para apurar a indemnização têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade;
4ª) Deve ser proporcionalmente deduzida no cômputo da indemnização a importância que o próprio lesado gastaria consigo mesmo ao longo da vida (em média, para despesas de sobrevivência, um terço dos proventos auferidos), consideração esta que somente vale no caso de morte;
5ª) Deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros; logo, haverá que considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia;
6ª) Deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida activa da vítima, a esperança média de vida, uma vez que, como é óbvio, as necessidades básicas do lesado não cessam no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma (em Portugal, no momento presente, a esperança média de vida dos homens já é de sensivelmente 73 anos, e tem tendência para aumentar; e a das mulheres chegou aos oitenta)”.
No caso presente, o resultado a que o autor chega mostra-se claramente “inflacionado” pela circunstância de ter usado como essencial base de cálculo as tabelas finan­ceiras a que atrás nos referimos como devendo constituir apenas um entre os vários elementos atendíveis para o efeito, e com valor meramente indicativo.
De qualquer modo é de atender, separadamente, às perdas de ganho decorrentes da impossibilidade definitiva do exercício da profissão de bombeiro e do trabalho enquanto pedreiro, neste último caso porque ficou demonstrado que o lesado dedicava a esse trabalho dois a três dias por semana (as folgas que conseguia por fazer turnos de 12 ou 24 horas seguidas como bombeiro municipal), auferindo a remuneração de 10 contos por dia. E é justo fazer assentar o cálculo desse segmento da indemnização na base de um dia e meio por semana, por ser previsível que, segundo o curso normal das coisas, e com o decorrer do tempo (avanço da idade), o trabalho por turnos iria tornar-se mais esporádico e menos intenso, deixando menos horas livres, consequente­mente, para a actividade de pedreiro. Considerando que a vida activa do autor se prolongaria, teoricamente, por mais 23 anos, e que as perdas salariais anuais, vistos os factos provados, ascenderiam, respectivamente, a 4.350.800$00 (actividade de bombeiro) e 780.000$00 (actividade de pedreiro), obtemos um valor que, ponderados todos os restantes factores atrás mencionados, ascende a 92 mil contos (458.894,70 €), depois de deduzido o equivalente a 20% do total, que corresponde, num cálculo ainda e sempre equitativo, ao benefício derivado da recepção antecipada da totalidade do capital.
Também é justo considerar-se como dano futuro indemnizável, no quadro do artº 564º, nº 2, o que decorre do facto de o autor necessitar agora do apoio diário de ter­ceiras pessoas para a realização de certas tarefas que não consegue levar a cabo sozi­nho, tudo por causa das sequelas físicas motivadas pelo acidente, e, bem assim, de ter que no futuro sujeitar-se a acompanhamento médico frequente e a tratamentos regulares (factos 29 a 32). O acórdão recorrido decidiu valorar o dano consequente à diminuição da capacidade de auto-suficiência recorrendo exclusivamente ao critério da equidade. Mas não parece irrealista fazer intervir no cálculo deste segmento da indemnização, em função, precisamente, do juízo equitativo a formular, o valor do salário mínimo nacional (que, presentemente, ascende a 403,00 euros – art.º 1º do DL nº 2/07, de 3/1/07), já que é previsível a necessidade de, cedo ou tarde, o autor ter que contratar alguém para o auxiliar nas tarefas diárias para que ficou parcial ou totalmente incapacitado Neste sentido cfr. o acórdão do STJ de 21.2.06 (Revª 170/06).. Tudo sopesado, considera-se que a indem­nização adequada a este título, em termos equitativos, é a de 50 mil euros.
c) Resta apreciar a questão decorrente da condenação, decretada pelo acórdão recorrido no “pagamento ao autor da indemnização pelos danos futuros (materiais e morais) consequente a tratamentos e cirurgias que face às sequelas das lesões provocadas pelo acidente se mostrem necessárias à melhoria da qualidade de vida do autor, cujo montante se relega para decisão ulterior”.
A ré insurge-se contra este segmento da decisão da 2ª instância, e a nosso ver com razão.
Quanto aos danos morais futuros há que dizer, desde logo, que eles estão por definição contemplados na indemnização líquida já arbitrada a esse propósito, como, aliás, não pode deixar de ser, vista a natureza essencialmente compensatória (e não propriamente indemnizatória) que a sua reparação assume, consoante atrás se explicou. Acresce que não se vê como seria possível em termos práticos, dada, justamente, a natureza intrínseca da indemnização de que estamos a falar, proceder no futuro à sua concretização em termos quantitativos mediante a aplicação da norma que rege na matéria, que é a do artº 566º, nº 2. Por isso é que, realisticamente – e fazendo aplica­ção, ao cabo e ao resto, da regra do nº 3 do mesmo artigo, - fixámos a indemnização de 85 mil euros a este título levando já em consideração os danos morais futuros, danos cujo valor exacto, na terminologia da lei, é de impossível averiguação, legitimando, por consequência, um julgamento equitativo dentro dos limites tidos por provados.
O mesmo é de dizer, mutatis mutandis, quanto à indemnização correspondente a despesas futuras que o autor terá de suportar em virtude das lesões sofridas, que implicarão acompanhamento médico frequente, bem como tratamentos regulares. Remeter a sua liquidação para execução de sentença é abrir a porta à perpetuação do presente litígio, sem qualquer vantagem visível para as partes, designadamente para o lesado. Por outro lado, e decisivamente, afigura-se que este dano, nos termos um tanto difusos em que se apresenta os resultantes do facto nº 32 não tem a necessária autonomia relativamente àquele que integra a diminuição da capacidade de ganho resultante da incapacidade de que o autor ficou afectado; daí que tenhamos optado por levá-lo em conta no cômputo da indemnização parcelar de 50 mil euros atrás referida, incluindo-o no juízo equitativo que determinou o estabelecimento desse montante.

III. Nos termos expostos acorda-se em conceder provimento parcial a ambos os recursos. Assim, revoga-se em parte o acórdão recorrido e condena-se a ré a pagar ao autor a indemnização total de 595.391,09 euros (equivalente à soma soma das seguintes parcelas: 85.000+458.894,70+50.000 +1496,39=595.391,09 €), com o acrés­cimo de juros de mora à taxa legal desde a citação até ao efectivo reem­bolso.
Custas pelos recorrentes, aqui e nas instâncias, na proporção de vencido.

Lisboa, 5 de Julho de 2007

Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira