Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3241/15.2T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
REQUISITOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
IDENTIDADE DE FACTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 12/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJETO DO RECURSO.
Sumário :
I- A admissibilidade do recurso de revista, restrita e atípica, previsto no art. 14º, 1, do CIRE exige uma oposição de julgados em que as decisões em confronto se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo a oposição jurisprudencial (frontal e expressa, por regra) uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, sendo que, nesse contexto, a questão fundamental de direito (ou questões fundamentais) em que assenta(m) a alegada divergência sobre a aplicação de determinada solução legal assume(m) um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso.
II- Não há oposição relevante se, relativamente às questões fundamentais de direito elencadas, incidentes sobre a interpretação dos arts. 243º, 1, a), e 239º, 1, c), aplicáveis por força do art. 244º, 2, do CIRE, ao instituto da recusa da exoneração do passivo restante, os acórdãos em confronto estão no essencial em sintonia quanto aos seus requisitos de aplicação (também no que respeita à distinção em face do regime do art. 246º do CIRE: revogação da exoneração) e que, se assim houvesse dissenso, justificasse resultados decisórios distintos numa e noutra das decisões alegadamente em colisão.
III- Não há ainda oposição relevante se se verifica que as situações fáctico-materiais litigiosas não são de tal modo equiparáveis que proporcionem uma contraditória aplicação do regime legal a que tais factos se subsumem, nomeadamente no que respeita à conduta do insolvente beneficiado com a exoneração do passivo restante durante o “período da cessão” e à percentagem e relevo distintos do montante (em incumprimento) não cedido em face do montante global em dívida e do consequente impacto no interesse de satisfação dos credores da insolvência.
IV- O regime restritivo e atípico da revista admitida no art. 14º, 1, do CIRE afasta e exclui a revista excepcional configurada ao abrigo do art. 672º do CPC.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 3241/15.2T8GMR.G1.S1
Revista – Tribunal recorrido: Relação de Guimarães, ... Secção


Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO

A) Na sequência da declaração de insolvência de AA (sentença proferida em 16/6/2015), e do solicitado no requerimento de apresentação à insolvência, o Juiz ... da ... Secção do Juízo de Comércio, Instância Central, de ... proferiu decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando-se que se considerava cedido ao fiduciário todos os rendimentos que adviessem a qualquer título ao devedor, com exclusão (a) dos constantes da al. a) do art. 239º, 3, do CIRE, e (b) de qualquer salário ou rendimento que auferisse ou viesse a auferir, desde que superior ao montante de € 570.  

B) Foi proferido despacho de encerramento do processo de insolvência, nos termos do art. 230º, 1, e), do CIRE, assim como de consignação do carácter fortuito da insolvência, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 233º, 6, do CIRE.

C) Foi proferido (17/4/2020) despacho de alteração do rendimento indisponível para o correspondente ao montante do salário mínimo nacional (€ 635); depois (15/5/2020), um outro despacho fixou o montante que a insolvente poderia dispor em “um salário mínimo nacional, acrescido de 1/4”.

D) Foi proferida em 14/12/2021 decisão de recusa do procedimento de exoneração do passivo restante, tendo em conta a retenção e falta de entrega de montante do rendimento disponível atinente ao período da cessão e subsequente preenchimento com negligência grave do art. 239º, 4, c), do CIRE, de acordo com o previsto nos arts. 244º, 2, e 243º, 1, a), sempre do CIRE, com a seguinte fundamentação:

“Temos por certo que o juiz deve recusar sempre a exoneração se o devedor não fornecer as informações que comprovem o cumprimento das obrigações no prazo que lhe é exigido, ou faltar sem justo motivo a audiência para prestar informações (art. 243.º, 3, 2ª parte).
É de realçar que o CIRE não estabelece consequências para a cessação antecipada da exoneração, o que Luís Carvalho Fernandes em “A Exoneração do Passivo Restante na Insolvência das Pessoas Singulares no Direito Português, in “Colectânea de Estudos sobre a Insolvência”, Lisboa, Quid Juris, 2009, p. 290, considera a omissão do legislador infeliz. Esse Autor sustenta que se deve aplicar por analogia o art. 246.º, 4 (revogação da exoneração) e reconstituir-se todos os créditos ainda não pagos.

Dispõe o artigo 239º n.º 4 do CIRE ex vi art. Art 241º n.º 1 al. a) do CIRE:

4 Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.

Em conclusão, somos a considerar no caso concreto, resulta flagrante a falta de entrega da quantia referida [ 1.643,34 a título de rendimento disponível], a qual é significativa para os créditos da insolvente e permitiria o ressarcimento de parte deles, principalmente quando o total dos créditos reclamados é de 7.257,33 €.
A insolvente, desde o início do período de cessão que foi alertada para os montantes que havia de entregar e não declarou os subsídios de férias e natal ao senhor Fiduciário, que só chegou ao montante em falta, depois de ter consultado directamente a sua remuneração na Segurança Social. É certo que o montante que lhe havia sido fixado era inferior ao salário mínimo nacional, mas a insolvente só muito após ter iniciado o incumprimento é que requereu a sua alteração, a que imediatamente atendeu o Tribunal.
E depois de muitos requerimentos sobre o incumprimento apresentados pelo patrono da insolvente e de muitos esclarecimentos do Tribunal e do senhor Fiduciário sobre a contagem do montante em falta, finalmente, esta prontificou-se a proceder ao pagamento em prestações. Destas liquidou uma primeira prestação de €100 e duas seguidas de €50.
Tendo sido alertada pelo Tribunal de que aproximando-se o final do período da cessão não teria forma de pagar a quantia em dívida, podendo se desejasse solicitar prorrogação do mesmo, a insolvente não anuindo a esta proposta, solicitou a dispensa da entrega desse montante face a várias vicissitudes que lhe ocorreram e que compreendemos, nomeadamente problemas de saúde.
Esse pedido foi indeferido pelo Tribunal e a insolvente, nem mais uma prestação de €1, pagou.
Verifica-se assim pelo menos negligência grave senão dolo na conduta da insolvente que não pode desconhecer as irregularidades da sua conduta, notificada que foi para a mesma várias vezes e com esta se conformou.
Sabendo como sabia, do montante que lhe havia sido fixado e das regras que lhe tinham sido comunicadas, não podia simplesmente, decidir deixar de proceder a qualquer entrega, entendendo não ter rendimentos suficientes para as suas necessidades e do agregado, sem ter solicitado a alteração do montante fixado, como rendimento disponível (o que só veio a efectuar a sugestão do Tribunal decorridos 3 anos).
Havendo alterações supervenientes durante o período da cessão, estas são analisadas pelo Tribunal e só após a decisão que vier a ser proferida é que o montante se altera, situação aliás análoga às pensões de alimentos a filhos menores, em que um pai ou mãe obrigados ao pagamento de uma determinada pensão, não podem por si decidir, se é altura de alterar o montante, porque as suas circunstâncias da vida se alteraram.
(…)
No caso dos autos, o que se discute concretamente é saber se ocorrem os fundamentos para a recusa da exoneração decretada pelo Tribunal a quo no termo do período da cessão, à luz do preceituado no artigo 244º, n.º 2, do CIRE.
Nesta matéria, preceitua o n.º 1 do artigo 244º, do CIRE, que “Não tendo havido lugar a cessão antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.”
Por seu turno, quanto à recusa da exoneração, preceitua o n.º 2 do mesmo normativo que “A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.”
Assim, à luz do já referido e analisado artigo anterior (artigo 243º, n.º 1 al. a), do CIRE), a recusa da exoneração do passivo restante depende, em primeiro lugar, de requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, ou do fiduciário [não podendo ser decretada oficiosamente], em segundo lugar, da verificação de um elemento objectivo, qual seja a violação pelo insolvente de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, desde que dessa violação decorra prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, e, ainda, um elemento subjectivo, qual seja o dolo ou a negligência grave do devedor/insolvente no incumprimento das suas obrigações.
(…)
No caso concreto, além do fiduciário ter suscitado várias vezes o incidente de recusa, o mesmo nunca chegou a ser aberto, em virtude de quando ouvida a insolvente, a mesma prontificou-se e iniciou, plano de pagamento prestacional relativamente à quantia em dívida.
E na apreciação final, não obstante a quantia em dívida, o Fiduciário entendeu não ter existido dolo nem negligência, pelo que não se opunha à concessão da exoneração do passivo restante.
Foi o Ministério Público, enquanto credor, que suscitou o incumprimento e a recusa da concessão da exoneração, em virtude do comportamento da insolvente que consta dos factos.
(…)
Ora este Tribunal sopesados os factos, entende estar preenchida a alínea c) do n.º 4 do artigo 239º, do CIRE.
Este último normativo reza o seguinte: “Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.” No caso dos autos, em razão do valor fixado no despacho inicial (que não foi objecto de impugnação), a insolvente estava obrigada a entregar imediatamente ao fiduciário a parte do seu rendimento mensal que excedesse o rendimento indisponível fixado (excluído da cessão), ou seja, a insolvente teria que proceder à entrega ao fiduciário de todos os rendimentos mensais por si auferidos que excedessem o equivalente a 570€, pois que foi esta a quantia que, conforme consta do despacho inicial, foi fixada como a bastante para ocorrer às suas despesas essenciais e imprescindíveis a uma vida condigna e que, repete-se, não foi posta em causa.
Diga-se que a insolvente não coloca em questão que, de facto, durante os cinco anos de cessão, reteve indevidamente a quantia total de €1.643,34, quantia que, assim, deveria ter entregue, de imediato, ao fiduciário, ou seja, em cada um dos meses em que recebeu para além do valor fixado, nomeadamente aquando do recebimento dos subsídios de natal e férias.
Quanto ao prejuízo, que deste incumprimento decorre para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, temo-lo por indiscutido, pois que a não entrega de tal valor (que é relevante atentos os montantes em dívida, chegando para pagar os créditos tributários e parcialmente os créditos do outro credor reclamante) prejudica a massa insolvente e a satisfação daqueles créditos à custa da massa.
Sendo assim, face à conduta gravemente negligente assumida pela insolvente ao nível do incumprimento do dever consignado no artigo 239º, n.º 4, alínea c), do CIRE, estando em causa a retenção de um valor significativo (nestes autos, por reclamados apenas €7.257,33), não tendo a insolvente, mesmo quando confrontada com esse incumprimento, proposto o seu pagamento faseado, após o período da cessão, nem tendo realizado durante esse período os pagamentos a que se comprometeu por mais de uma vez, cremos não ter o Tribunal outra hipótese, apesar de compreendermos a difícil situação financeira e de saúde que terá ocorrido na sua vida no final deste período de cessão, que decidir pela recusa da exoneração do passivo restante.
Se atempadamente e nos anos atinentes a insolvente tivesse entregue, como era sua obrigação as quantias devidas, não deixando acumular o seu incumprimento, para nível que para si, tornou incomportável o pagamento ainda que faseado, não se teria colocado nesta situação, violando o compromisso que tinha assumido durante estes 5 anos.”

E) Inconformada, a devedora insolvente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG), que, identificando como objecto averiguar “se não há lugar à recusa da exoneração do passivo restante”, proferiu acórdão em 15/6/2022 que julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
 
F) Novamente sem se resignar, veio novamente o devedor insolvente interpor recurso de revista baseada no art. 14º, 1, do CIRE, tendo por fundamento oposição jurisprudencial com o Ac. de igual modo proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) em 20/2/2020, processo n.º 3842/11.8TBGMR.G1, sendo atravessado ulteriormente nos autos nota de certificação de trânsito em julgado, ocorrido em 25/3/2020 (requerimento sob ref.ª CITIUS...).

A Recorrente apresentou, a finalizar as suas alegações de revista, as seguintes Conclusões:

1ª – A recorrente não se conforma com o douto Acórdão recorrido que não lhe concedeu a exoneração do passivo restante, entendendo que aquele faz uma interpretação não conforme ao disposto nos artigos 239º, nº 4 alínea c), 243º, ns. 1, alínea a) e 3 e 244º todos dos CIRE.
2ª – No nosso modesto entendimento, o Acórdão recorrido errou ao considerar que A exoneração do passivo restante é de recusar, verificados que sejam os requisitos previstos nos termos conjugados dos arts. 244º, 243º, 1, a) e 239º, 4, al. c), do CIRE, ainda que o montante das obrigações não cumpridas ascenda à quantia [de] 1.643,34€ e as dívidas da insolvência no montante global de 7.257,33 €, pois ainda que se entendesse que a recorrente incorreu numa negligência grave e que a pequena dimensão de prejuízo poderia preencher a previsão normativa do art. 243º/1-a) do CIRE, ex vi do art. 244º/2 do CIRE, não poderia julgar-se proporcional admitir-se a recusa da exoneração do passivo restante, mediante a conjugação da globalidade dos factos e da posição dos credores.
3ª – Desde logo, não há violação dolosa nem negligente por parte da insolvente no eventual incumprimento das regras para a concessão da exoneração, pelo que o Tribunal a quo fez uma interpretação desconforme aquelas normas.
4ª – Em primeiro lugar, não releva uma qualquer negligência, mas apenas uma negligência grave ou grosseira, isto é, «uma negligência de grau essencialmente aumentado ou intensificado, portanto, uma violação particularmente qualificada dos deveres de cuidado ou diligência presentes no caso», o que não sucede nos autos, face ao quadro fático apurado.
5ª – Em segundo, «não é suficiente um qualquer prejuízo, como sucede, por exemplo, para a cessação antecipada do procedimento de exoneração: deve tratar-se de um prejuízo relevante (arts. 243 b) e 246 nº 1, in fine, do CIRE), o que também não sucede no caso.
6ª – Com efeito, no caso concreto, certo é que a insolvente – apesar de provadas as dificuldades financeiras patentes para quem aufere apenas o salário mínimo nacional, tendo uma filha a cargo e problemas de saúde – ainda pediu ao tribunal que lhe fosse dada a possibilidade de pagar o montante apurado em prestações, tendo chegado até a pagar algumas delas.
7ª – Porém, face à impossibilidade de continuar a pagar as prestações, o Acórdão recorrido desconsiderou as razões invocadas pela insolvente para justificar essa impossibilidade, nomeadamente (cfr. referência ...58 de 28-10-2021): que a insolvente prestou todas as informações pedidas quer pelo Tribunal quer pelo Fiduciário; explicou detalhadamente nos autos a sua situação económica difícil que a impossibilitou de entregar a quantia em dívida de € 1.643,34; aliás, como a insolvente teve oportunidade de alegar no requerimento de 08-02-2021, REFª: ...71 e já antes pelo requerimento REFª ...13, de 05-11-2020, ela não dispõe de capacidade financeira para liquidar aquela quantia; esteve incapacitada para o trabalho durante várias semanas, na sequência de uma intervenção cirúrgica a que foi submetida; permaneceu de baixa médica (cfr. docs. ... e ... juntos com o requerimento REFª ...13, de 05-11-2020); auferindo apenas a quantia mensal de € 127,80 – cfr. doc.... junto àquele requerimento; vive em casa arrendada, paga a renda mensal de € 231,17 – cfr. doc. ... junto com o requerimento de 08-02-2021; tem ainda que pagar o consumo de energia elétrica no valor médio de € 98,66/mês – cfr. doc. ... junto com requerimento REFª ...13, de 05- 11-2020); paga ainda o consumo de água no valor de € 33,67, como está assente nos autos; além destas despesas fixas, a insolvente tem ainda que se alimentar, vestir e calçar, sendo que a filha que vive com ela, embora maior, ainda permanece sem conseguir encontrar emprego, difícil nos próximos tempos face à atual situação pandemia e consequente crise económica que o país atravessa; a insolvente vive unicamente dos rendimentos provenientes do trabalho, do montante do salário mínimo nacional, não consegue amealhar poupanças, pois o parco salário que aufere é todo utilizado para as despesas com o agregado familiar, acima citadas e, por vezes, nem sequer é suficiente, contando com o bom senso do dono do supermercado e da mercearia, que lhe permitem prolongar no tempo o pagamento dos bens e produtos essenciais; a insolvente é pessoa que não possui bens próprios e é notório que vive atualmente com muitas dificuldades; sendo manifesta e objetivamente impossível à insolvente proceder à entrega do montante alegado em falta.
8ª – Inexiste pois o pressuposto de violação dolosa ou negligente da parte da insolvente no cumprimento das obrigações a que estava sujeita durante o período de exoneração do passivo restante. Ao contrário do doutamente decidido no Acórdão recorrido, não é exata a conclusão de que a recorrente incumpriu, muito menos de forma voluntária e consciente, a obrigação estabelecida no artigo 239º, nº 4, alínea c) do CIRE. Consequentemente, decidiu mal pela não concessão da exoneração do passivo restante do recorrente.

9ª – Por outro lado, não se mostra apurado que o comportamento da insolvente tenha sido voluntariamente encetado, isto é, que tenha querido violar as imposições que lhe foram cominadas e consequentemente a Lei; de outro, que igualmente o tenha feito, voluntária e conscientemente, com a intenção de prejudicar os credores, nem de onde se possa extrair tal conclusão.
10ª – Acresce que, apesar de expressamente notificados para o efeito, apenas o Ministério Público em representação da Fazenda – e mais nenhum credor - se pronunciou sobre o pedido de exoneração do passivo restante, sendo que o crédito reclamado deste é de apenas € 148.33.
11ª – Por outro lado, o Fiduciário corroborou da posição da insolvente, pois basta ler o seu relatório na parte em que concluí o seguinte: “… a recusa da exoneração pressupõe a existência de dolo ou grave negligência e prejuízo na satisfação dos créditos sobre a insolvência, o que na opinião do signatário não se verifica, uma vez que a insolvente, mesmo com o valor indisponível fixado abaixo do salário mínimo nacional, se esforçou para efetuar a entrega de parte do rendimento disponível”.

12º – Resulta pois, do quadro fáctico elencado, que o alegado incumprimento da insolvente tem subjacente uma situação económica débil da própria, agravada pelo facto de padecer de doença, conforme alegado e reconhecido pelo tribunal a quo no despacho que indeferiu a exoneração e que a Relação não questionou.
13º – Aliás, resulta do senso comum que a quantia mensal equivalente ao salário mínimo nacional, sendo o único rendimento da recorrente, é insuficiente para fazer face às despesas de alimentação, de saúde, renda, água, luz de qualquer agregado familiar. Tal rendimento nem sequer salvaguarda o sustento minimamente digno da recorrente consagrado no consignado art. 239, nº 3, al. b), i do CIRE.
14ª – Do exposto, no caso concreto, considerando pois a) a não oposição do senhor Fiduciário; b) a não oposição dos credores, à exceção do Ministério Público em representação da Fazenda em que reclama um crédito de € 148,33 e, por isso, c) a falta de significado económico do prejuízo; d) a atuação da insolvente não é dolosa nem negligente; e) o facto do excesso de rendimento recebido ter decorrido dos subsídios de natal e de férias, como invoca o Fiduciário no Relatório, matéria que não é pacífica na jurisprudência; f) o rendimento não entregue não satisfaria qualquer proporção dos créditos reclamados; g) os pagamentos parciais de € 50,00 que a insolvente ainda efetuou no passado; h) o parco rendimento da insolvente, equivalente ao salário mínimo nacional; i) as despesas comprovadas de renda da casa, telecomunicações, luz, e as presumidas de alimentação, vestuário e calçado e, finalmente, as decorrentes de ter uma filha a seu cargo, a recorrente entende que, no caso, reúne as condições legais para que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante, violando o Acórdão recorrido o disposto nos artigos 239º, 4, c, 244º e 243º do CIRE.

15ª – Dito de outro modo, se se entender que a insolvente incumpriu determinados deveres, ao não entregar ao fiduciário parte do seu rendimento, o apontado incumprimento não é suscetível de gerar, a se, a revogação da exoneração do passivo restante, porquanto esta pressuporia um comportamento doloso daquela, que tivesse sido causa de um dano relevante para os seus credores, e o nexo de imputação deste à conduta daquele, o que manifestamente se não encontra demonstrado.
16ª – A ponderação global dos factos provados (no contexto e com as consequências provadas) e da posição dos credores implicaria sempre que se considerasse a recusa final da exoneração do passivo liminarmente admitida uma decisão com efeitos gravemente desproporcionais perante a totalidade dos direitos em ponderação: o valor do rendimento não entregue é pequeno; a insolvente manteve-se como assalariada e a receber o rendimento mínimo garantido; é pessoa doente; tem uma filha a seu cargo; a omissão de entrega do rendimento causou um prejuízo insignificante aos credores e não causou qualquer outro prejuízo aos demais credores; os credores não tomaram qualquer iniciativa processual para desencadear a recusa antecipada da exoneração do passivo restante, nos termos do art. 243º/2 do CIRE (para o qual tinham apenas o prazo de 1 ano desde o conhecimento dos factos), nem pediram ou defenderam a recusa da exoneração no final do prazo do período de cessação, nos termos do art. 244º/2 do CIRE; apenas o Ministério Público o fez, mas o seu crédito nem sequer é extinto pela exoneração.
17ª – Assim, procedendo o presente recurso, deve ser revogado o Acórdão proferido e concedida a exoneração do passivo à insolvente/recorrente.”

O Ministério Público apresentou contra-alegações, sustentando a inadmissibilidade da revista por falta dos pressupostos relativos ao preenchimento do art. 14º, 1, do CIRE, em especial quanto à diferença da apreciação factual em cada um dos acórdãos em confronto.

G) Foi proferido despacho pelo aqui Relator no âmbito de aplicação e para os efeitos do art. 655º, 1, do CPC, ex vi art. 679º, do CPC e 17º, 1, do CIRE, uma vez verificado que, relativamente à interpretação do art. 243º, 1, a), do CIRE, aplicável por força do art. 244º, 2,  ao instituto da recusa da exoneração do passivo restante, não se vislumbraria oposição entre os acórdãos em confronto que permitisse o conhecimento do objecto do recurso à luz do exigido como condição de admissibilidade recursiva pelo art. 14º, 1, do CIRE.
           
A Recorrente respondeu e, com a reiteração dos seus argumentos, em especial para a subsistência de oposição jurisprudencial à luz da diferente consideração das “exigências de adequação e de proporcionalidade”, pugnou pela admissibilidade do recurso; subsidiariamente, requereu a admissão do recurso como revista excepcional tendo por fundamento o art. 672º, 1, b), do CPC.

H) O valor da causa foi fixado em € 30.001, 00, por força do despacho proferido em 24/3/2022 (ref.ª CITIUS...), transitado em julgado.


Foram consignados e obtidos os vistos legais por meios electrónicos nos termos do art. 657º, 2, ex vi art. 679º, do CPC.

Cumpre apreciar e decidir, começando pela questão da admissibilidade do recurso à luz do regime do art. 14º, 1, do CIRE.


II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO


Questão prévia da admissibilidade do recurso

A) A revista da Insolvente e aqui Recorrente visa a revogação do acórdão recorrido, que inverta a decisão de recusa do procedimento de exoneração do passivo restante, no âmbito deste incidente do processo de insolvência (arts. 235º e ss, 244º, 2, do CIRE). Este incidente, sendo tramitado endogenamente nos próprios autos de insolvência, rege-se pelo especial regime de recursos previsto no artigo 14º, 1, do CIRE, com aplicação restrita e, por isso, delimitadora da susceptibilidade do recurso de revista do acórdão recorrido.

Determina esta norma do CIRE que:
«No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme».
Daqui resulta que o recorrente tem o ónus específico de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários, sob pena de não inadmissibilidade do recurso do acórdão recorrido e apreciação do seu mérito.
Para existência da indispensável oposição jurisprudencial, as decisões entendem-se como divergentes se se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, sendo que, nesse contexto, a questão fundamental (ou questões fundamentais) de direito em que assenta(m) a alegada divergência assume(m) um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso[1].
Assim, para que o STJ seja chamado a pronunciar-se, orientando a jurisprudência em tais tipos de processos, é necessário concluir, previamente, que existe uma oposição (frontal e expressa, por regra) de entendimentos nos acórdãos em confronto sobre a aplicação de determinada solução legal, sendo que – reitere-se – tal divergência se projecta decisivamente no modo como os casos foram decididos.

B) Vistas as Conclusões precedentes, a Recorrente alega, incidindo sobre a interpretação dos arts. 244º, 2, 243º, 1, a), e 239º, 4, c), do CIRE, que o acórdão recorrido estaria em oposição com o acórdão fundamento, em face da ponderação global dos factos e da posição concreta dos credores, em referência à falta de entrega pelo devedor insolvente de um certo montante objecto de cessão do rendimento disponível no âmbito de exoneração do passivo restante, quanto:
— à existência de dolo e negligência grave ou grosseira por parte da insolvente no incumprimento da entrega devida durante o período da cessão;
à existência de prejuízo com significado económico, de acordo com exigências de adequação e proporcionalidade, na retenção dos montantes a ceder ao fiduciário para a satisfação dos credores da insolvência.
Vejamos.

C) No acórdão recorrido, foi considerada relevante a seguinte factualidade para a decisão:

“1. Em 29.9.2015 proferiu-se despacho liminar quanto à exoneração do passivo restante fixando-se em €570 o montante disponível.

2. Os autos foram encerrados em 4.1.2016 tendo sido dado início ao período de cessão de rendimentos.

3. No 1º relatório apresentado em 8.5.2017 o senhor Fiduciário teve de requerer informações que não lhe haviam sido prestadas pela insolvente atempadamente.

4. Apresentou relatório complementar em 10.10.2017 referindo que esta teria de entregar €175,23, por ser o montante apurado, tendo tal quantia sido transferida em 27.11.2017 pela insolvente.

5. Em 7.1.2019, na data da apresentação do relatório anual nos termos do art. 240º do CIRE não foi prestada informação pelo mandatário nem pela insolvente, tendo o senhor Fiduciário solicitado a intervenção do Tribunal.

6. Em 14.02.2019 o Fiduciário veio informar os autos que face à ausência de informação consultou a Segurança Social tendo aí verificado que a insolvente devia ter cedido, relativamente aos anos de 2016 a 2019 a quantia de €1.472,86, pelo que atendendo ao valor cedido, encontra-se em falta a quantia de €1297,62. Suscitou que fosse levantado o incidente de recusa antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante.

7. O MP apresentou requerimento nesse sentido, em 18.2.2019 com a referência ...74, caso não fosse pago o montante em falta.

8. Devidamente notificada a insolvente, em vários requerimentos enviados, insistiu que não havia incumprimento uma vez que os subsídios de férias e natal auferidos e que não havia declarado, eram inferiores ao SMN.

9. Contudo o Tribunal decidiu essa questão em 27.5.2019, consoante despacho que lhe ordenou a entrega da quantia em falta.

10. Foi novamente confirmado nos termos do seguinte despacho:
Veio o senhor fiduciário requerer que seja aclarado o seguinte:
- Se os valores auferidos a título de subsídios de natal e de férias deverão ser contabilizados ou excluídos da cessão de rendimento;
- Se devemos considerar para efeitos de rendimento indisponível, o valor fixado em 29/09/2015 de 570,00 ou atualizá-lo para o salário mínimo nacional atual.
Notifique-se o fiduciário e a insolvente que as quantias objeto de cessão, devem ser contabilizadas da seguinte forma:
- Os subsídios de Natal e Férias devem ser contabilizados somados ao rendimento mensal e divididos por 12 meses.
- Caso o valor exceda o montante fixado, será contabilizado como montante a ceder;
- Os montantes devem sempre ser calculados de acordo com o valor fixado de €570, pois foi essa quantia fixada e não o salário mínimo nacional;
- O valor deve ser sempre contabilizado pelo montante líquido;
Foi fixado em 2015, aquando do despacho proferido o montante mensal de €570, acima do qual deveriam ser cedidos os rendimentos;
no relatório de 2017 foi consignado pelo senhor fiduciário que:
Porém, foi determinado no despacho inicial de exoneração que se considera cedido ao fiduciário todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com exclusão (…) de qualquer salário ou rendimento que aufira ou venha a auferir, desde que superior ao montante de €570 mensais. (obviamente cedendo o remanescente na contabilização anual).
Desse modo, para cálculo do rendimento disponível será utilizada uma base anual, isto é, a insolvente terá que ceder o excedente a 6.840,00 [= 570,00 x 12];
E tendo auferido um vencimento anual de 7.015,23 €, excluindo as ajudas de custo, o rendimento a ceder é de 175,23 €;
Assim em 2017 foi necessário notificar a insolvente para proceder à entrega da quantia necessária (referente a 2016), não o tendo efetuado voluntariamente;
Em 2019 foi necessário novamente notificar a insolvente para prestar as necessárias informações.
Da consulta relativa aos rendimentos de 2017 e 2018 resulta que a insolvente auferiu valores passiveis de cessão de rendimento no total de 1.472,85 tendo efetuado a entrega referente ao valor disponível auferido no primeiro ano de cessão (175,23 €), encontrando-se em falta o montante de 1.297,62 €.
Face aos recibos juntos, retira-se que dos montantes dos subsídios de natal e férias, ainda que juntos aos montantes resultantes dos salários existem verbas que sobram, conforme calculado pelo senhor A.I.
Notifique-se conforme requerido pelo MP, a insolvente para proceder ao depósito da quantia em falta de 1.297,62 €, com a cominação de que não o fazendo em 10 dias (ou requerendo e iniciando de imediato pagamento prestacional que se admitiria, diluído em 10 meses), será aberto o incidente de recusa antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante.
Notifique igualmente o fiduciário e credores deste despacho.
..., 25 de junho de 2019

11. A insolvente em 11.7.2019 apresentou requerimento solicitando o pagamento em prestações até ao final do período de cessão.

12. Em despacho de 16.7.2019 a Mmª Juiz de Turno consignou que:
Requerimento ref.ª ...29:
Nos termos do despacho que antecede foi determinado que a devedora deveria proceder ao pagamento da quantia em falta, admitindo-se o pagamento em 10 prestações com início imediato.
A devedora veio invocar dificuldades no pagamento imediato das referidas 10 prestações, no entanto, haverá que conciliar os interesses do processo, pelo que deverá a devedora proceder pelo menos ao pagamento da primeira prestação até final de agosto de 2019, comprovando-o nos autos e diligenciar com o Exmo. Fiduciário o plano de pagamentos que permita o seu cumprimento até final de 2020, juntando-o aos autos.

13. Em 9.8.2019 a insolvente juntou comprovativo do pagamento da primeira prestação quanto ao montante em falta.
14. Em 18.2.2020 no relatório anual apresentado consignou o senhor Fiduciário que:

Em suma, a insolvente auferiu, no quarto ano, valores passiveis de cessão no total de 875,48 tendo efetuado a entrega de 329,76 €, faltando por isso entregar 545,72 encontrando-se em falta o montante global de 1.843,34 €.

15. Em 26.2.2020 foi proferido o seguinte despacho:

Ouça-se a insolvente e os credores, para que esta informe a forma e prazo que pretende entregar o montante em falta, que é significativo, uma vez que mantendo o incumprimento poderá e deverá ser suscitado o incidente de recusa da exoneração do passivo restante. O facto de o valor fixado, à data ter sido inferior ao salário mínimo nacional, em nada altera este pressuposto, uma vez que nunca foi suscitado, como poderia, qualquer alteração ao mesmo.

16. Em 10.3.2020 foi suscitado o incidente de alteração do montante disponível, para 1 SMN e meio.

17. Tal requerimento foi apreciado e em 15 de maio de 2020 decidido que:
 
“Nestes termos e neste momento, defere-se parcialmente o pedido de alteração do rendimento disponível, fixando em um salário mínimo nacional acrescido de ¼ o rendimento que a insolvente poderá dispor.”.

18. Em 17.9.2020 face ao pedido de esclarecimento o senhor Fiduciário indicou qual o montante em falta, face a 3 entregas efetuadas pela insolvente:

“Desse modo, encontra-se em falta o montante de 1.643,34 [1.843,34 - 200,00 €], uma vez que a alteração do rendimento disponível, apenas surte efeitos a partir de junho de 2020.”.

19. A insolvente novamente voltou a efetuar requerimentos suscitando esclarecimentos quanto ao valor em dívida e data a partir da qual deveria ser contabilizada a alteração do rendimento (como se desconhecesse os efeitos legais) tendo sido proferido despacho em 22.10.2020:

“Notifique a insolvente de que o cálculo do senhor Administrador/Fiduciário encontra-se correto, uma vez que a alteração do rendimento disponível apenas se contabiliza do trânsito em julgado, dessa decisão. Aliás tal decisão se retirava dos nossos despachos anteriores, bem como decorre da lei.
Assim deverá em 10 dias, informar como pretende pagar o montante apurado, sob pena de ser aberto o incidente de recusa antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante.”

20. Em 5.11.2020 respondeu a insolvente arguindo dificuldades relacionadas com uma baixa “Se digne autorizar a insolvente a pagar o montante apurado até ao fim do período da cessão, logo que as condições pessoais e financeiras o permitam.”.

21. Em 10.11.2020 o Tribunal proferiu o seguinte despacho:

“Visto o requerimento que antecede e atendendo a que o final do período de cessão ocorrerá no inicio do próximo ano, não resta à insolvente muito tempo para o pretendido ressarcimento, a não ser que expressamente consigne continuar a pagar findo o mesmo, atrasando-se a decisão final da exoneração em conformidade.
Se neste momento findasse o prazo ou em fevereiro como está estabelecido e nenhum pagamento do valor em falta, fosse efetuado, apesar de decorridos os 5 anos da cessão, a exoneração ser-lhe-ia recusada.
Assim deverá apresentar em 10 dias, uma proposta concreta de pagamento faseado do montante em falta, atendendo ao que supra deixamos assinalado.”

22. Em resposta em 8.2.2021 a insolvente apresentou requerimento suscitando:

“Requer-se a V. Exa que, ouvidos os credores, se digne dispensar a insolvente de entregar ao Fiduciário a quantia em falta de 1.643,34 a título de rendimento disponível.”

23. No último relatório apresentado o Fiduciário concluiu [25.02.2021]:

“Encontrando-se terminado o período de cessão, requer seja proferida decisão relativamente à concessão da exoneração do passivo restante ao devedor, nos termos do art. 244º CIRE. No que diz respeito ao cumprimento das obrigações que impendem sobre a devedora, é certo que incumpriu nomeadamente com a alínea c) do 4 do artigo 239º do CIRE. De todo o modo, a recusa da exoneração pressupõe a existência de dolo ou grave negligência, e prejuízo na satisfação dos créditos sobre a insolvência, o que na opinião do signatário não se verifica, uma vez que a insolvente, mesmo com o valor indisponível fixado abaixo do salário mínimo nacional, se esforçou para efetuar a entrega de parte do rendimento disponível”.

24. Em 22.6.2021 este Tribunal decidiu da questão quanto à dispensa da entrega:

“Não obstante o parecer do senhor Fiduciário e a ausência de pronúncia dos credores, este Tribunal não considera provado que a insolvente cumpriu com a obrigação de entrega de rendimento ao fiduciário.
Isto porque o montante em falta de €1.643,34, que agora informa não poder dispor, terá sido gerado ao longo de vários anos, em que podia e devia ter entregue, mas não o fez.
E também não solicita como alguns insolventes o fazem, uma prorrogação do prazo da cessão de rendimentos (embora seja discutível se pode ocorrer) de forma a que possam entregar mais alguma quantia (que refira-se, é devida), por menor que seja, de forma a abater à divida que possui para a massa insolvente.
Assim, este Tribunal não crê dispor da prerrogativa de dispensar a entrega dos rendimentos em falta, os quais pertencem à massa insolvente, sendo que qualquer decisão nesse sentido, violaria a nossa decisão anterior, que fixou tal montante e que como tal determinou a obrigatoriedade da sua entrega.”

25. A insolvente apresentou requerimento nos seguintes termos [10.04.2021]:

“2º - o Relatório Anual do Fiduciário refere que se encontra em falta a entrega da quantia de 1.643,34 a título de rendimento disponível; Porém,
3º- Conforme também alegado nos autos pelo requerimento REFª ...13, de 05-11-2020, a insolvente não dispõe de capacidade financeira para liquidar aquela quantia
- A insolvente esteve incapacitada para o trabalho durante várias semanas, na sequência de uma intervenção cirúrgica a que foi submetida;
- Tendo permanecido de baixa médica (cfr. docs. ... e ... juntos com o requerimento REFª ...13, de 05-11-2020);
- Auferindo apenas a quantia mensal de 127,80 cfr. doc.... junto àquele requerimento.
- Como se disse, a insolvente vive em casa arrendada, paga a renda mensal de 231,17 cfr. doc. ... junto com o requerimento de 08-02-2021.
- Tem ainda que pagar o consumo de energia elétrica no valor médio de 98,66/mês cfr. doc. ... junto com requerimento REFª ...13, de 05- 11-2020);
- Paga ainda o consumo de água no valor de 33,67, como está assente nos autos.
10º - Além destas despesas fixas, a insolvente tem ainda que se alimentar, vestir e calçar,
11º - Sendo que a filha que vive com ela, embora maior, ainda permanece sem conseguir encontrar emprego, difícil nos próximos tempos face à atual situação pandemia e consequente crise económica que o país atravessa;
12º - Por outro lado, resulta dos autos que a insolvente vive unicamente dos rendimentos provenientes do trabalho, do montante do salário mínimo nacional,
13º - Pelo que não consegue amealhar poupanças, pois o parco salário que aufere é todo utilizado para as despesas com o agregado familiar, acima citadas e, por vezes, nem sequer é suficiente, contando com o bom senso do dono do supermercado e da mercearia que lhe permitem prolongar no tempo o pagamento dos bens e produtos essenciais. Por outro lado
14º - A insolvente é pessoa que não possui bens próprios e é notório que vive atualmente com muitas dificuldades;
15º - Do que se disse, resulta que é manifesta e objetivamente impossível à insolvente proceder à entrega do montante alegado em falta;
16º - Pelo supra exposto, a insolvente requereu no requerimento REFª ...71, de 08-02-2021, que, ouvidos os credores, se digne dispensar a insolvente de entregar ao Fiduciário a quantia em falta de 1.643,34 a título de rendimento disponível.
17º - Ouvidos o senhor Fiduciário e os credores, estes nada opuseram ao requerido pela insolvente cfr. douto despacho de V. Exa de 10-02-2021 REFª: ...73.
Assim, por tudo o supra exposto,
18º - Considerando: a) a não oposição do senhor Fiduciário; b) a não oposição dos credores; que c) a atuação da insolvente não é dolosa nem negligente; d) a falta de significado económico do prejuízo; e) o facto do excesso de rendimento recebido ter decorrido dos subsídios de natal e de férias, como invoca o Fiduciário no Relatório, matéria que não é pacífica na jurisprudência; f) o rendimento não entregue não satisfaria qualquer proporção dos créditos reclamados; g) os pagamentos parciais de 50,00 que a insolvente ainda efetuou no passado; h) o parco rendimento da insolvente, equivalente ao salário mínimo nacional; i) as despesas comprovadas de renda da casa, telecomunicações, luz, e as presumidas de alimentação, vestuário e calçado e, finalmente, as decorrentes de ter um filha a seu cargo,
19 º - A insolvente requer a V. Exa que:
a) se digne dispensar a insolvente de entregar ao Fiduciário a quantia em falta de 1.643,34 a título de rendimento disponível;
b) se digne proferir despacho final que lhe conceda a exoneração do passivo restante”.

26. O Tribunal pronunciou-se nos seguintes termos [22.06.2021]:

“Ora atingido o final do período da cessão de rendimentos, a conduta da insolvente refletida na ausência da entrega de €1.643,34, que permitiria o pagamento parcial de alguns dos créditos, terá de ser avaliada em termos do cumprimento ou não (culposo) das suas obrigações, aquando da audição nos termos do art. 244º do CIRE
Desta forma e atendendo às supra invocadas razões, este Tribunal não dispensa a insolvente da entrega de qualquer quantitativo que tenha vindo a ser apurado para ser cedido.
Ouçam-se os credores (uma vez que a insolvente e o senhor A.I se pronunciaram) sobre o não cumprimento culposo ou negligente das obrigações da insolvente, bem como todos, sobre uma eventual prorrogação do período de cessão.”.

27. O credor Ministério Publico apresentou em 24.9.2021 requerimento nos termos do art. 244º do CIRE:

“Tendo sido admitido liminarmente a exoneração do passivo restante, durante o período de cessão, ou o(s) devedor(es) cumprem as obrigações impostas e é-lhes concedida a exoneração do passivo restante ou não cumprem tais obrigações e é recusada tal exoneração.
Durante o período de cessão o Devedor Insolvente fica obrigado a entregar imediatamente ao Sr.(a) Fiduciário(a), quando, por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão (art. 239º 4 c) do CIRE).
A entrega dos rendimentos ao fiduciário que excedem o rendimento indisponível deve ser feita de imediato, ou seja, mensalmente, logo após o seu recebimento, e não num momento posterior, nomeadamente no final da cessão, dando-se ao devedor uma última oportunidade para liquidar valores em dívida que acumulou ao longo dos 5 anos que durou a cessão (Neste sentido, cfr. Ac. da Relação de Guimarães de 28/02/2019 e o citado Ac. da Relação do Porto de 29/04/2021, disponível em www.dgsi.pt).
O(s) devedor(es), não procedeu à entrega do rendimento disponível ao fiduciário, estando em dívida de 1.643,34.
Contudo, como resulta dos autos tal montante foi gerado ao longo dos anos, aliás desde logo no ano de 2016 e depois 2017 e 2018 sendo que a devedora não procedeu ao pagamento tempestivo dos montantes a ceder, levando à acumulação do montante em dívida, sendo certo que também não forneceu informações solicitadas.
O ora alegado para a justificação do não pagamento da quantia disponível não cedida, terá ocorrido após os momentos em que deveria proceder a tal pagamento.
Requereu o pagamento em prestações, mas não cumpriu, não obstante, ter sido alterado no último ano o montante do rendimento indisponível
Esta oportunidade de obter um fresh start deve ser concedida, portanto, como vem sendo salientado pela doutrina e pela jurisprudência, ao devedor insolvente que tenha agido de boa fé, que tenha uma conduta recta e cumpridora, não no período anterior ao da apresentação à insolvência, mas também no período posterior àquele, sobretudo nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo (cfr. arts. 238.º 1 e 239.º, nº. 4 do CIRE).
Será de considerar se que inicialmente e até à alteração o montante do rendimento indisponível foi fixado em €570,00, sendo que a insolvente ainda procedeu ao depósito da quantia de 200,00, em prestações, manifestando, assim, vontade de proceder ao pagamento da quantia não cedida.
*****
Quanto ao prazo de cessão, perfilhamos o entendimento de que tal prazo é fixo.
Conforme referem Carvalho Fernandes e João Labareda Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, anotado, vol II, pag.193 –, em anotação ao artº 239º, “decorre do preceito em anotação (…) que o prazo é fixo, não dependendo, portanto, do prudente arbítrio do juiz.
E em anotação ao art. 244º referem os mesmos autores que “preenchido o período de cessão por não ter havido cessação antecipada do correspondente procedimento, o juiz, nos dez dias subsequentes, deve proferir um despacho decidindo pela concessão ou não da exoneração do passivo restante.
“O 2 determina que o juiz decidirá no sentido de recusar a exoneração pelos mesmos fundamentos e nos mesmos termos em que podia determinar a cessação antecipada do procedimento.
Não releva pois para a decisão a proferir o montante dos créditos sobre a insolvência que tenha sido satisfeito.
O prazo de 5 anos previsto na lei para a cessão de rendimentos ao fiduciário é um prazo fixo e imperativo que não depende da vontade do juiz nem das circunstâncias do processo, devendo ser respeitado.
Decidiu-se neste sentido no Ac desta Relação de Guimarães, de 08/11/2018 (disponível em www.dgsi.pt) de que “O período de cessão é, imperativamente, de cinco anos, e, como estabelece o n.º 2 do art.239.º, tem o seu termo inicial no momento imediatamente subsequente ao “do encerramento do processo de insolvência” e de que “com a exoneração do passivo restante, o devedor liberta-se definitivamente de todas as dívidas, que se extinguem ao fim de cinco anos, seja qual for o montante que fique por liquidar.”
A falta de entrega dos rendimentos disponíveis poderá determinar, no entanto na decisão final a proferir, nos termos do art. 244º do CIRE –, a não concessão da exoneração do passivo restante ao devedor.”

28. A insolvente respondeu em 28.10.2021 nos seguintes termos:

“1º - A douta promoção do Ministério Público padece de vários equívocos que aqui cumpre esclarecer;
- Desde logo, não é verdade que a insolvente não tenha fornecido ao processo as informações solicitadas;
- Pelo contrário, consultado o histórico dos autos, verifica-se que a insolvente prestou todas as informações pedidas quer pelo Tribunal quer pelo Fiduciário;
- Nomeadamente, explicou detalhadamente nos autos a sua situação económica difícil que a impossibilitou de entregar a quantia em dívida de 1.643,34;
- Com efeito, como a insolvente teve oportunidade de alegar no requerimento de 08-02-2021, REFª: ...71 e antes pelo requerimento REFª ...13, de 05-11-2020, a insolvente não dispõe de capacidade financeira para liquidar aquela quantia;
- As razões invocadas foram detalhadamente e com prova documental devidamente esclarecidas, nomeadamente que:
a) esteve incapacitada para o trabalho durante várias semanas, na sequência de uma intervenção cirúrgica a que foi submetida;
b) permaneceu de baixa médica (cfr. docs. ... e ... juntos com o requerimento REFª ...13, de 05-11-2020);
c) auferindo apenas a quantia mensal de 127,80 cfr. doc.... junto àquele requerimento;
d) a insolvente vive em casa arrendada, paga a renda mensal de 231,17 cfr. doc. ... junto com o requerimento de 08-02-2021;
e) tem ainda que pagar o consumo de energia elétrica no valor médio de 98,66/mês cfr. doc. ... junto com requerimento REFª ...13, de 05- 11-2020);
f) paga ainda o consumo de água no valor de 33,67, como está assente nos autos;
g) além destas despesas fixas, a insolvente tem ainda que se alimentar, vestir e calçar,
h) sendo que a filha que vive com ela, embora maior, ainda permanece sem conseguir encontrar emprego, difícil nos próximos tempos face à atual situação pandemia e consequente crise económica que o país atravessa;
i) a insolvente vive unicamente dos rendimentos provenientes do trabalho, do montante do salário mínimo nacional,
j) não consegue amealhar poupanças, pois o parco salário que aufere é todo utilizado para as despesas com o agregado familiar, acima citadas e, por vezes, nem sequer é suficiente, contando com o bom senso do dono do supermercado e da mercearia, que lhe permitem prolongar no tempo o pagamento dos bens e produtos essenciais;
- Resulta, pois dos autos, que a insolvente é pessoa que não possui bens próprios e é notório que vive atualmente com muitas dificuldades;
- Sendo manifesta e objetivamente impossível à insolvente proceder à entrega do montante alegado em falta;
- Aliás, o Fiduciário corroborou da posição da insolvente, pois basta ler o seu relatório na parte em que concluí o seguinte: “… a recusa da exoneração pressupõe a existência de dolo ou grave negligencia e prejuízo na satisfação dos créditos sobre a insolvência, o que na opinião do signatário não se verifica, uma vez que a insolvente, mesmo com o valor indisponível fixado abaixo do salário mínimo nacional, se esforçou para efetuar a entrega de parte do rendimento disponível”;
10º - Por outro lado, ouvidos sobre o pedido de dispensa de entrega daquela quantia de 1.643,34, os credores não deduziram qualquer oposição a essa dispensa;
11º - Finalmente, sendo certo que os Acórdãos elencados na douta promoção sustentam a tese do Ministério Público, também encontramos na jurisprudência decisões manifestamente opostas a essa e que estão em consonância com a posição da insolvente, como, por exemplo, o Acórdão da Relação de Guimarães de 21-02-2020, proferido no processo 3842/11.8TBGMR.G1, em que é relatora a Ex.ma Sra. Dra. Juiz Dra. Alexandra Maria Viana Parente Lopes, disponível em www.dgsi.pt;
12º - Assim, por tudo o supra exposto, Considerando: a) a não oposição do senhor Fiduciário; b) a não oposição dos credores; que c) a atuação da insolvente não é dolosa nem negligente; d) a falta de significado económico do prejuízo; e) o facto do excesso de rendimento recebido ter decorrido dos subsídios de natal e de férias, como invoca o Fiduciário no Relatório, matéria que não é pacífica na jurisprudência; f) o rendimento não entregue não satisfaria qualquer proporção dos créditos reclamados; g) os pagamentos parciais de 50,00 que a insolvente ainda efetuou no passado; h) o parco rendimento da insolvente, equivalente ao salário mínimo nacional; i) as despesas comprovadas de renda da casa, telecomunicações, luz, e as presumidas de alimentação, vestuário e calçado e, finalmente, as decorrentes de ter uma filha a seu cargo,
13 º - A insolvente entende que, no caso, reúne as condições legais para que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante, o que se reitera.”.”

E fundamentou-se assim a decisão, na parcela relevante:
 
“A argumentação do tribunal a quo não deixa de se revelar proporcional e por isso adequada a situação factual bastante para atribuir sob a forma cognitiva e volitiva a omissão assacada à devedora, pelo que, esta, demonstrada efetivamente.
A ponderação a formar sobre a limitação da dívida sobre a insolvência há-de ser conjugada com as dívidas da própria massa insolvente (art. 172º e 232º), e, se se quiser extrair ilações a favor da recorrente nessa sequência, no entanto, em seu detrimento, haverá de atender que a obrigação em falta não deixa de representar mais de ¼ daquelas dívidas.
(…)
 Quanto à questão da inexistência da conduta negligente, tão pouco de violação dolosa, o mais que a recorrente poderia referir é que da factualidade se demonstrava, o que não acontece, alguma circunstância que afastaria a ilicitude da sua conduta, por si ou por se estar em erro sobre a matéria de facto (sobre o comportamento omissivo e censurável).     
Com efeito, no caso concreto é incontornável o elemento intencional da conduta da recorrente. A factualidade descai para uma vontade concreta dirigida para o não cumprimento com prejuízo para as entidades credoras.
Daí, carecer de valor o argumento de que “não se mostra apurado que o comportamento da insolvente tenha sido voluntariamente encetado, isto é, que tenha querido violar as imposições que lhe foram cominadas e consequentemente a Lei”.
(…)
E quanto ao prejuízo para os credores, também conta argumentar que os valores em questão e a imobilização do capital que poderia vencer juros ou ao menos ser mobilizado ou reinvestido, não deixam qualquer margem para dúvidas sobre a conclusão nesse sentido, sendo deslocado ao caso apelar não só ao “critério quantitativo, portanto, em função do quantum do pagamento dos créditos sobre a insolvência” e a qualquer desproporção dos efeitos da recusa da exoneração face ao mesmo, como também de que no caso não é inevitável que para haver prejuízo para os credores “necessário se torna a verificação de comportamentos que impossibilitem, dificultem ou diminuam a possibilidade de os credores obterem a satisfação dos seus créditos, como sejam uma diminuição do património, uma oneração do mesmo ou comportamentos geradores de novas dívidas a acrescer àquelas que integravam o passivo que o devedor não conseguia satisfazer.” ou que“deve tratar-se de um prejuízo relevante”.
Além do mais não estamos do domínio do art. 246º (Revogação da exoneração – 1 - A exoneração do passivo restante é revogada provando-se que o devedor incorreu em alguma das situações previstas nas alíneas b) e seguintes do n.º 1 do artigo 238.º, ou violou dolosamente as suas obrigações durante o período da cessão, e por algum desses motivos tenha prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência.)
A decisão final da exoneração funda-se nos termos do art. 244º, se bem que a mesma nesta parte até foi mais exigente nos requisitos quanto à caracterização do prejuízo que no caso não exige qualquer qualificação (…).
Portanto, lavra-se sempre em equívoco quando se alega que “não é suficiente um qualquer prejuízo, como sucede, por exemplo, para a cessação antecipada do procedimento de exoneração: deve tratar-se de um prejuízo relevante (arts. 243 b) e 246 1, in fine, do CIRE). Realmente, ao passo que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração se reclama que da violação dolosa ou negligente de qualquer obrigação do insolvente resulte simplesmente um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre aquele, para a revogação da exoneração a lei é, no tocante ao dano resultante da conduta dolosa do insolvente para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, nitidamente mais exigente: esse prejuízo deve ser relevante.” ou “Em segundo, «não é suficiente um qualquer prejuízo, como sucede, por exemplo, para a cessação antecipada do procedimento de exoneração: deve tratar-se de um prejuízo relevante (arts. 243 b) e 246 1, in fine, do CIRE), o que também não sucede no caso.”.
De qualquer forma, pelo sobredito, sempre não faz sentido alegar que o valor das obrigações por cumprir influi como grau diminuto do ilícito e da culpa por falta de significado económico.
(…)
E como questão nova não vem agora a propósito a discussão sobre se o rendimento disponível fixado à recorrente “sequer salvaguarda o sustento minimamente digno da recorrente consagrado no consignado art. 239, 3, al. b), i do CIRE”.
Por fim, diremos, para além do que já referimos, que a não inclusão dos subsídios de natal e de férias na contabilização da parte a ceder ao fiduciário em princípio só é de admitir se apenas com o montante desses subsídios se lograr atingir a parte que não deve ser cedida, como de resto revela o último relatório do fiduciário de 25.02.2021 em que já em plena aplicação do despacho de 10.03.2020 se alterou o rendimento disponível para 1,25 RMMG (…).
Ademais, como consta no acórdão deste tribunal de 28.02.2019 (544/13.4TBGMR.G1; www.dgsi.pt) “o parecer do fiduciário, no sentido de que deveria ser concedido ao devedor a exoneração do passivo restante, não vincula o juiz, que tem o poder decisório de recusar a concessão.”.

D) No acórdão fundamento do TRG, encontramos a seguinte argumentação tendente a, invertendo o julgado em 1.ª instância, basear o não preenchimento dos requisitos de que dependia a decisão de recusa da exoneração do procedimento de exoneração do passivo restante:

“A sentença recorrida recusou a exoneração de passivo do devedor, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 244º do CIRE, em referência aos arts. 239º/4-c) e 243º/1-a) e 3 do CIRE, com fundamento que o devedor, ao não entregar o rendimento indicado no então provado facto 4, violou dolosamente, ou pelo menos violou com grave negligência, a sua obrigação, prejudicando a satisfação dos créditos sobre a insolvência na medida desse não pagamento do valor de € 4 361, 66, entendendo «não podendo considerar-se, face à situação socioeconómica do devedor plasmada nos factos provados, que este estivesse impedido de proceder à entrega ao Sr. Fiduciário do montante em questão», nomeadamente em face do despacho de 15.01.2018 e do seu desinteresse «em, posteriormente, concretizar o pagamento, ainda que parcial, de tais montantes».
O recorrente pediu a reapreciação de direito desta decisão recorrida, considerando: que não omitiu o dever de entrega de rendimentos, em face dos pressupostos e do alcance da decisão vigente; que, ainda que tivesse incumprido, não o fez com dolo ou negligência grave, nem estaria provado qualquer prejuízo relevante para os credores; que os credores não se pronunciaram sobre os requerimentos e sobre a audição sobre o desfecho final do processo de exoneração do passivo.
Importa, assim, proceder à reapreciação pedida, em face dos fundamentos da decisão, dos factos provados na versão referida em III-2.2.7 supra e do regime de direito aplicável.

3.1.
Com o despacho de admissão liminar da exoneração do passivo restante, e no período de 5 anos da cessão de rendimentos, o insolvente fica, de facto, obrigado, como contrapartida do benefício da exoneração do passivo, nos termos do art. 239º/2 e 4 do CIRE: a ceder o rendimento mensal disponível (na parte que exceder aquele fixado como rendimento indisponível, nos termos do art.239º/3 do CIRE); a deveres colaterais de transparência e lisura, de prestação de informações (sobre os seus rendimentos, mudanças de morada e de emprego), de trabalho, de relacionamento com os credores (não podendo fazer pagamentos a não ser através do fiduciário, nem criar privilégios em favor de algum). Como refere Ana Prata, Jorge Morais e Rui Simões «Durante o período da cessão de rendimento disponível, exige-se do devedor um comportamento exemplar, revelador da sua boa-fé face ao processo de insolvência em geral e aos credores em particular» (in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Almedina, 2013, nota 7 ao art.239º, pág. 666).
Esta exoneração do passivo restante concedida liminarmente pode, no entanto, vir a ser recusada após este despacho liminar: por violação grave dos deveres impostos no art.239º/4 do CIRE, com dolo ou negligência grave e com prejuízo para a satisfação dos créditos da insolvência (art.243º/1-a) do CIRE); se se verificar alguma das circunstâncias que pudessem ter determinado o indeferimento liminar do pedido de exoneração, após o despacho inicial ou com verificação superveniente (art.243º/1-b) do CIRE); se no incidente de qualificação da insolvência se tiver concluído pela existência da culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência (art.243º/1-c) do CIRE).
Esta recusa [de] exoneração pode ocorrer: quer por via antecipada, nos termos do art. 243º/1 e 2 do CIRE (a requerimento do qualquer um dos credores, do administrador ou do fiduciário que tiver função de fiscalização, no prazo de um ano desde a ocorrência dos factos ou da data em que poderia ter tido conhecimento dos mesmos), quer no final do período de cessão de 5 anos, nos termos do art. 244º/1 e 2 do CIRE (após a audição do devedor, do fiduciário ou dos devedores), caso em que Ana Prata, Jorge Morais e Rui Simões, referem, também «neste momento final, no sentido de uma decisão de não concessão, apenas relevam os factos já constantes do processo, podendo o juiz decidir oficiosamente com base nesses elementos, ou em factos trazidos pelo fiduciário ou pelos credores, que tenham sido conhecidos por estes há menos de um ano, desde que seja imediatamente oferecida toda a prova, sem necessidade de diligências adicionais (artigo 243.º, n.º2).» (in ob. citada, nota 3 ao art.244º, pág.676).

3.2.
Assim, neste quadro geral do direito, e mediante os factos provados, importa apreciar: se ocorreu a inobservância ilícita de entrega de rendimentos, prevista no art.239º/2 e 3-c) do CIRE em relação ao ano de 2014; se esta falta de entrega ocorreu por dolo ou negligência grave; se esta conduta ilícita e culposa do insolvente causou um prejuízo aos credores; se a globalidade dos fatores permite recusar a exoneração do passivo restante ao abrigo de exigências de adequação e de proporcionalidade.

3.2.1.
Numa primeira abordagem, importa apreciar qual o valor de rendimento indisponível e o valor de rendimento disponível vigente, em face: do despacho liminar de exoneração do passivo de fevereiro de 2012 e do despacho subsequente de março de 2012, referidos em 3.1) e 3.2) de III- 2.2.7 supra; dos factos provados em 4.3) indicados em III- 2.2.7 supra.
Por um lado, verifica-se que, apesar no despacho de fevereiro de 2012 ter fixado o rendimento indisponível acima do qual deveriam ser entregues os rendimentos ao fiduciário em três salários mínimos nacionais, o despacho subsequente de março de 2012 (proferido após o convite realizado ao insolvente a alegar e provar despesas e rendimentos e da declaração deste de estar desempregado e aguardar a concessão de subsídio de desemprego) fixou o rendimento disponível naquele que ultrapassasse o rendimento mínimo nacional (salário mínimo nacional), no valor de € 485, 00 nessa data de 2012, a vigorar desde a altura em que se alterasse a circunstância de facto atendida no despacho (de falta de rendimentos do devedor, a aguardar concessão do pedido se subsídio de desemprego). Não tendo este despacho sido impugnado por recurso de apelação, deve ser este o despacho atendido.
Por outro lado, este despacho de março de 2014, ao fazer depender a obrigação de entrega de rendimento superior à retribuição nacional mínima garantida depois de alteração de circunstâncias (de inexistência de rendimentos), refere-se obrigatoriamente a qualquer receção de rendimentos, desde que estes ultrapassassem o valor da retribuição mínima garantida, independentemente da durabilidade do trabalho que tenha determinado que o insolvente recebesse rendimento superior a esse valor.
 A retribuição nacional mínima garantida vigente no ano de 2014 foi: de € 485, 00 entre janeiro e setembro de 2014, nos termos dos arts.1º e 3º do Decreto-Lei n.º 143/2010, de 31 de dezembro; de € 505, 00 entre outubro e dezembro de 2014, de acordo com os arts.2º e 4º do Decreto-Lei n.º 144/2014, de 30 de setembro.
Nos termos dos arts. 3º e 4º da Lei n.º 11/2013, de 28 de janeiro, mantida em vigor até 31.12.2014 pelo art. 257º da Lei do Orçamento do Estado nº83-C/2013, de 31 de dezembro, publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 253, em 2014 era devido, também: 50% do subsídio de Natal pago em duodécimos; o subsídio de férias.
O valor indisponível em benefício do insolvente no ano de 2014, achar-se-á, neste quadro: desde março de 2014, em que passou a vigorar a sua obrigação de entregar rendimentos depois do trânsito em julgado do despacho de encerramento do processo de insolvência de 6.2.2014 (notificado por atos de 07.02.2014, com notificação presumida a 10.02.2014, estando transitado o despacho a 25.02.2014); na globalidade dos 10 meses de 2014.
Desta forma, nos 10 meses de 2014 em ponderação julga-se indisponível o valor de € 5 599, 57, correspondente: ao valor de € 3 395, 00, por 7 meses de salário, de março a setembro de 2014, no valor mensal de € 485, 00; ao valor de € 1 515, 00, por 3 meses de salário de € 505, 00, de outubro a dezembro de 2014; ao valor de € 485, 00 de subsídio de férias; ao valor de € 204, 57, a título de ½ do subsídio de Natal, achado pela ponderação 1/12 em 7 meses de salário de € 485, 00 (€ 485, 00: 12= € 40, 41; € 40, 41* 7 meses =€ 282, 91; € 282, 91* 2= € 141, 45) e 1/12 de 3 meses salário de € 505, 00 (€ 505, 00: 12= € 42, 08; € 42, 08 *3 = € 126, 24; € 126, 24: 2= € 63, 12).

3.2.2.
Numa segunda ordem de abordagem, importa apurar qual o valor que excedeu o rendimento indisponível e que, nessa medida, deveria ter sido entregue ao fiduciário como rendimento disponível, em face: dos rendimentos líquidos auferidos pelo insolvente em 2014 (a achar mediante os factos provados em 4.1)-a) e b) e 4.3), indicados em III- 2.2.7 supra); do valor indisponível referido em III- 3.2.1. supra.
Por um lado, e como se referiu em 3.2.1. supra, apenas se atenderão aos rendimentos auferidos pelo requerido desde março de 2014, após o trânsito em julgado do despacho de encerramento da insolvência proferido a 6.2.2014.
Por outro lado, atender-se-ão aos rendimentos líquidos efetivamente disponíveis pelo insolvente (após deduzidos os impostos e as contribuições à Segurança Social), quer provados, quer presumidos, em relação aos meses de março a dezembro de 2014. Desta forma:

a) Em relação ao rendimento anual de pensões de invalidez de € 3 614, 50, deve deduzir-se o valor das pensões de janeiro e de fevereiro de 2014, pagas no valor mensal de € 328, 50 cada uma. Assim, alcança-se, em 10 meses, o valor global de pensões de € 2 957, 50.


b) Em relação ao rendimento anual de trabalho desempenhado de janeiro a maio de 2014, no valor global bruto de € 9 183, 12:

 
b1)
Deve subtrair-se ao valor bruto de € 9 183, 12, pelo menos, o valor global de € 3 198, 31, provado como valor mínimo recebido nos meses de janeiro e fevereiro de 2014. Assim, alcança-se como valor bruto a atender o valor máximo de € 5 984, 81.
b2) Deve achar-se o valor proporcional dos impostos e da segurança social pagos em relação aos 5 meses de trabalho entre janeiro e maio de 2014, no que se refere aos 3 meses atendidos de março a maio de 2014. Assim, alcança-se o valor de € 1 592, 97 (€ 1 628, 00 + € 103, 00+ € 923, 96= € 2 654, 96; € 2 654, 96: 5 = € 530, 99; € 530, 99 * 3 meses = € 1 592, 97).
b3) Após, deve subtrair-se ao rendimento bruto atendido de b1) supra o valor dos impostos correspondentes achado em b2). Assim, alcança-se, como valor global de rendimento líquido auferido desde março de 2014, o valor não superior a € 4 391, 84 (€ 5 984, 81 - € 1 592, 97= € 4 391, 84) (valor este passível de ser inferior, uma vez que não se apurou os meses em que foram feitos os pagamentos de € 783, 50, que não se exclui que pudessem tivessem ocorrido, total ou parcialmente, em janeiro e fevereiro de 2014).
Assim, verifica-se que o insolvente dispôs entre março e dezembro de 2014 de global líquido não superior ao valor de € 7 349, 34, decorrente da soma dos valores de a) e b3) supra.
Por fim, subtraído ao valor de € 7 349, 34 o valor indisponível de € 5 599, 57, verifica-se que o insolvente recebeu apenas, de março a dezembro de 2014, como excedente do rendimento indisponível, valor não superior ao de € 1 749, 77 (em face do referido em b3) supra, parte final).

3.2.3.
Numa terceira ordem de abordagem, importa apreciar se a falta de entrega ao fiduciário de valor referido em 3.2.2. pode ser imputada ao insolvente a título de dolo (direto, necessário ou eventual) ou negligência grave.
Apreciados os atos processuais relatados em I supra e os factos provados na versão de III-2.2.7 supra, considera-se que estes não são suficientes para imputar ao insolvente a conduta apreciada em 3.2.2. a título de dolo ou de negligência grave ou grosseira.
Por um lado, a falta de entrega imediata de rendimentos disponíveis em 2014, ainda que se possa imputar ao insolvente a título negligente (por ter omitido diligência de cuidado na observância do dever de contabilização dos seus rendimentos de 2014 e de entrega do excesso em relação ao valor indisponível fixado, ação que poderia ter observado), não pode ser imputada ao insolvente a título de conduta doloso ou gravemente negligente, tendo em conta: a sucessão dos dois despachos que fixaram o rendimento disponível em 2012 e com conteúdo não totalmente claro quanto aos termos da vigência (despachos estes apreciados em 3.2.1. supra); a dilação de dois anos entre as datas de prolação desses despachos de fixação de rendimento de 2012 e a data em que foi encerrado o processo de insolvência em 2014 (data desde o qual se iniciaria o período de cessão de rendimentos); o benefício pelo insolvente desde 2012 apenas de uma pensão de invalidez, em valor inferior ao valor do rendimento nacional em 1/3, situação excecionada apenas pelo curto período de receção de rendimentos de trabalho entre janeiro e maio de 2014, no qual apenas 3 meses estiveram abrangidos pela obrigação da cessão de rendimentos, no início do período de cessão; a dificuldade de fazer a liquidação imediata dos valores do excesso em relação ao rendimento indisponível, numa ponderação mais alargada da globalidade de rendimentos de 2014 do insolvente e do rendimento global que nesse período pudesse ser atendido como indisponível.
Por outro lado, não é possível imputar ao insolvente qualquer dolo ou negligência na falta de entrega dos rendimentos desde a altura em que foi notificado para pagar o valor indicado pelo fiduciário neste processo, tendo em conta: que pediu o pagamento do valor em prestações, requerimento que foi denegado apenas em 2018 e sem que o despacho lhe fosse notificado; que, em fevereiro de 2019, quando foi notificado do despacho que considerou o requerimento decidido e lhe foi concedido o prazo de 10 dias para a proceder ao pagamento de uma só vez, não se encontra provado que recebesse rendimentos superiores à pensão de invalidez (ou tivesse recebido em todo o período após junho de 2014), sendo que o valor da pensão (valor inferior ao rendimento nacional mínimo garantido na proporção de 1/3) não permite reconhecer que tivesse tido possibilidade de fazer o pagamento integral, imediato e de uma só vez da quantia que foi notificado para pagar em 2019 (quantia essa irregular e em valor superior ao dobro do valor reconhecido como disponível neste acórdão).

3.2.4.
Numa quarta abordagem, importa apreciar, ainda que assim não se tivesse entendido em 3.2.3., se a falta de entrega do rendimento referido em 3.2.2. supra causou prejuízo aos credores.
Este prejuízo exigido pelo art.243º/1-a) do CIRE, ex vi do art.244º/2 do CIRE para que seja possível recusar a exoneração do passivo ao insolvente, não está definido pela via qualificada da relevância exigida expressamente no art.246º do CIRE para a revogação da concessão da exoneração do passivo restante, que tiver sido concedida por decisão transitada em julgado após o período de 5 anos.
No entanto, este prejuízo não pode ser um prejuízo diminuto ou sem significado económico para os credores, grau este a ponderar, nomeadamente, em face do valor dos créditos não satisfeitos e do valor da inobservância (neste caso, do rendimento não cedido).
Ora, apreciando os créditos indicados em 2) e os pagamentos feitos com o produto da liquidação do património do devedor referidos em 3.3) do ponto III-2.2.7 supra, verifica-se que não foram satisfeitos créditos, pelo menos: no valor de € 125 098, 62 em relação ao Banco ..., graduado em primeiro lugar; no valor de € 166 489, 34 em relação aos demais credores com ordem de pagamento subsequente.
O valor não entregue pelo insolvente em relação aos rendimentos de trabalho de março a maio de 2014, indicado em 3.2.2. supra: apenas poderia ter pago 1, 39% do valor de capital dos créditos do primeiro credor; não poderia ter pago qualquer valor dos créditos dos restantes credores.
Este prejuízo causado com a falta de entrega dos rendimentos – diminuto e sem significado económico elementar para o credor graduado em primeiro lugar – não é suficiente para preencher a previsão normativa que permite a recusa de exoneração do passivo restante do art.243º/1-a) do CIRE, ex vi do art.244º/2 do CIRE.

3.2.5.
Por último, ainda que se entendesse que o insolvente incorreu numa negligência grave e que a pequena dimensão de prejuízo poderia preencher a previsão normativa do art.243º/1-a) do CIRE, ex vi do art.244º/2 do CIRE, não poderia julgar-se proporcional admitir-se a recusa da exoneração do passivo restante, mediante a conjugação da globalidade dos factos e da posição dos credores.
De facto, a ponderação global dos factos provados (no contexto e com as consequências provadas) e da posição dos credores implicaria sempre que se considerasse a recusa final da exoneração do passivo liminarmente admitida uma decisão com efeitos gravemente desproporcionais perante a totalidade dos direitos em ponderação: o valor do rendimento não entregue é pequeno e respeitou apenas a três meses de trabalho do período inicial da cessão de 5 anos; nos 57 meses subsequentes dos 60 meses do período de cessão, o insolvente manteve-se reformado por invalidez e a receber uma pensão no valor de 2/3 do rendimento mínimo garantido; a omissão de entrega do rendimento causou um prejuízo insignificante de 1, 39% ao credor graduado em primeiro lugar e não causou qualquer outro prejuízo aos demais credores; os credores, desde o conhecimento em 2016 do valor dos rendimentos auferidos pelo insolvente em 2014, não tomaram qualquer iniciativa processual para desencadear a recusa antecipada da exoneração do passivo restante, nos termos do art.243º/2 do CIRE (para o qual tinham apenas o prazo de 1 ano desde o conhecimento dos factos), nem pediram ou defenderam a recusa da exoneração no final do prazo do período de cessação em 2019, nos termos do art.244º/2 do CIRE.”

Foi considerada a seguinte factualidade provada, depois de reapreciada, modificada, aditada, ampliada e reordenada:

“1) No presente processo de insolvência de BB, por sentença de 26.10.2011 foi declarada a sua insolvência, na sequência da sua apresentação para o efeito.


2) Em processos apensos a este processo referido em 1) supra:


2.1) No incidente de qualificação da insolvência nº3842/11.... por sentença de 27.01.2012, transitada em julgado, foi declarada a insolvência como fortuita.


2.2) No processo de reclamação de créditos nº3842/11...., por sentença de 13.02.2012, transitada em julgado:


2.2.1) Foram considerados reconhecidos os seguintes créditos:

«1) Crédito reclamado pelo Banco Espírito Santo, S.A., no valor de € 214.652,92, crédito este garantido por hipotecas constituídas em 14.02.2007 (fls. 8 e 9 do apenso E);

2) Crédito reclamado pelo Banco Espírito Santo, S.A., no valor de € 3.976,81;

3) Crédito reclamado por BPN – Banco Português de Negócios, S.A., no valor de € 24.552,32;

4) Crédito reclamado por Caixa Económica Montepio Geral, no valor de € 38.180,74;

5) Crédito reclamado por Caixa Económica Montepio Geral, no valor de € 379,78, relativo a juros vencidos após a declaração de insolvência.

6) Crédito reclamado por Cofidis S.A., no valor de € 16.968,20;

7) Crédito reclamado por ISS IP - Centro Distrital de ...;

8) Crédito reclamado por “J..., Ldª”, no valor de € 47.763,00;

9) Crédito reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional no valor de € 28.878,09, sendo € 518,65 reportados a créditos vencidos nos 12 meses que precederam o início do processo de insolvência;

10) Crédito reclamado por S... S.A., no valor de € 5.785,40.»

2.2.2) Foi determinada a seguinte graduação:

«a) em primeiro lugar, o crédito reclamado por Banco Espírito Santo, S.A., no valor de € 214.652,92;

b) em segundo lugar, o crédito de € 518,65 reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional, mencionado em 9);

c) em terceiro lugar, os demais créditos reclamados, com excepção do crédito referido em 5), procedendo-se a rateio entre eles, na proporção do respectivo montante, caso seja necessário;

d) em quarto lugar, crédito referido em 5).»

3) No presente processo de insolvência referido em 1) supra:


3.1) Por despacho de 22.02.2012 foi decidido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restantes, com a seguinte parte decisória:

«Nestes termos, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 239.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, do CIRE:
a) Admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante;

b) Determino que, durante o período de cessão (correspondente ao prazo de cinco anos posteriores ao encerramento do presente processo), o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir, que exceder três vezes o salário mínimo nacional, se considere cedido ao fiduciário a seguir designado, e que aquela fique obrigada aos deveres enunciados no n.º 2, do citado artigo 239.º;

c) Como fiduciário, nomeio o Ex.mo Sr. Dr. CC, que exerce nestes autos as funções como Administrador da Insolvência.

Notifique, publicite e registe (cfr. artigos 247.º, 240.º, n.º 2, 230.º, n.º 2, e 38.º, do CIRE), sendo ainda o insolvente para, no prazo de 10 dias, explicitar e documentar os seus rendimentos actuais e despesas do próprio e respectivo agregado familiar, com vista à fixação do rendimento disponível.».


3.2) Por despacho de 12.03.2012, após informação pelo insolvente que estava desempregado a aguardar a concessão de subsídio de desemprego, foi decidido:

«Fls. 188: Do exposto no expediente mencionado em epígrafe, o insolvente não aufere, na actualidade, qualquer rendimento.

Não obstante, desde já determino que, alterando-se a sua situação económica (o que deve ser comunicado ao Sr. AI), o montante superior à remuneração mínima garantia fixada em € 485,00 pelo Decreto-Lei n.º 5/2010, de 15/01, deve considerar-se rendimento disponível e, como tal, deve ser cedido ao fiduciário já designado.»

3.3) Foram pagas entre setembro e dezembro de 2013, com o produto da venda do bem aprendido e juros no valor global de € 100 201, 24, as custas de € 4 156, 20, a remuneração do administrador e o valor de € 89 554, 30 ao credor Banco Espírito Santo.


3.4) O processo de insolvência foi encerrado ao abrigo do disposto no artigo 230º, n.º 1, alínea a), do CIRE, por despacho datado de 06.02.2014.


3.5) Por requerimento que deu entrada nos autos em 07.12.2017, o devedor requereu o pagamento do montante do rendimento disponível que, à data, se encontrava em débito, em prestações mensais e sucessivas, no montante de € 50,00, cada uma.


3.6) A 15.01.2018 foi decidido:

«Ref.ª ...61: Indefere-se o requerido, na medida em que o plano de pagamentos em prestações proposto pelo insolvente se prolonga para além do termo do período da cessão (artigo 239º, n.º 2, do CIRE)

De qualquer forma, não se vislumbrando razões que obstem a que o montante em dívida seja liquidado, em prestações ou por inteiro, até ao termo do período da cessão, desde já se autoriza o insolvente a liquidar tal montante até essa data


3.7) A 16.01.2018: foram remetidas notificações a 4 mandatários e ao fiduciário do despacho de 15.01.2018; não foi remetida notificação à Dra. DD, única mandatária do insolvente constituída a 6.12.2017 e beneficiária do substabelecimento sem reserva junto aos autos desde 07.12.2017.

 

3.8) A 20.02.2019, mediante a invocação do insolvente de 30.01.2019 que o seu requerimento de pagamento prestacional não foi apreciado, foi proferido o seguinte despacho:
«
Ref.ª ...21: Ao contrário do alegado pelo insolvente, o requerimento em questão, destinado a obter autorização para proceder à liquidação do montante em débito em prestações, já foi objecto de despacho judicial, o qual lhe foi devidamente notificado.

Deste modo, nada há a ordenar quanto ao agora requerido.

Notifique.

*

Concedo ao insolvente o prazo adicional de 10 dias para proceder ao pagamento do montante em dívida, aludido nos relatórios juntos aos autos pelo Sr. Fiduciário.

Notifique


3.9) A 21.02.2019 foi remetida notificação eletrónica do despacho de 20.02.2019 à Dra. C. P. referida em 3.7) supra.

 
4) O insolvente:


4.1) No ano 2014:

a) Auferiu o rendimento anual bruto de € 12 796, 62, integrado pelos valores: de € 3 613, 50 de pensão de invalidez; de € 9 183, 12 de rendimento de trabalho entre janeiro e maio de 2014 (valor que corresponde: a quantias de salário base, de subsídio de refeição e subsídios de férias e de Natal no valor global de € 3 198, 31 quanto a janeiro e fevereiro de 2014 e no valor global de € 5 201, 31 quanto a março, abril e maio de 2014; à quantia de € 783, 50 de acréscimos ao salário base pagos em meses não apurados).

b) Foram deduzidos imediatamente nos rendimentos de trabalho de € 9 183, 12 referidos em a) supra: a retenção de impostos na fonte de € 1 628, 00 e de € 103, 00 de sobretaxa; as contribuições à Segurança Social de € 923, 96.


4.2) Não entregou ao fiduciário quaisquer rendimentos de 2014, nesse ano ou após.


4.3) O insolvente encontra-se reformado por invalidez relativa desde 22.06.2012, recebendo uma pensão de reforma: no valor mensal de € 303, 23 (sem duodécimos), de 2012 a 2015; no valor mensal global de € 328, 50 de janeiro de 2014 até maio de 2015 (com duodécimo integrado de € 25, 27); no valor mensal global de € 338, 00 entre agosto de 2015 e janeiro de 2016 (com duodécimo integrado de € 26, 00); no valor mensal global de € 339, 35 desde fevereiro de 2016 (com duodécimo integrado de € 26, 10); no valor mensal global de € 336, 37 em 2017 (com duodécimo do subsídio de Natal integrado de € 13, 12).”


5) No Certificado de Registo Criminal do devedor nada consta.”

Ficando ainda como não provado quanto ao insolvente:

“b. sobrevivendo este, por vezes, graças a ajuda de amigos e familiares.”

E) Verifica-se que, relativamente às questões fundamentais de direito elencadas, incidentes sobre a interpretação dos arts. 243º, 1, a), e 239º, 4, c), aplicáveis por força do art. 244º, 2, do CIRE, no que toca ao instituto da recusa da exoneração do passivo restante, não há oposição relevante que se retire dos fundamentos dos acórdãos em confronto quanto aos seus requisitos de aplicação (também no que respeita à distinção em face do regime do art. 246º do CIRE: revogação da exoneração, nomeadamente para efeitos de qualificação do prejuízo) e que, se assim fosse e houvesse dissenso, justificasse resultados decisórios distintos numa e noutra das decisões em confronto.
Chegam, é certo, a decisões distintas: o acórdão recorrido julgou estarem preenchidos esses mesmos pressupostos legais, decidindo que não se consideravam desproporcionados os efeitos da recusa em face do montante indevidamente retido e o prejuízo causado aos credores; o acórdão fundamento, sindicando com autonomia cada um deles, não julgou estarem preenchidos os pressupostos da censura subjectiva e do prejuízo causado aos credores da insolvência, decidindo que os efeitos da recusa seriam desproporcionados em face do montante indevidamente retido e a posição dos credores.
Porém, vistos com rigor, esses resultados decisórios não se justificam por qualquer oposição de entendimento quanto às questões alegadamente em contradição, antes a um diverso juízo da subsunção dos factos assentes aos requisitos da normatividade legal aplicada. Isto é, não se vê que haja contradição no entendimento sobre o regime jurídico aplicável (ainda que muito mais desenvolvido e segmentado no acórdão fundamento); ao invés, detecta-se uma sintonia no essencial do posicionamento jurídico que desembocou em julgamentos diversos em função da realidade fáctica provada que ao tribunal cabia subsumir.

F) Ademais, verifica-se que as situações fáctico-materiais litigiosas não são de tal modo equiparáveis que proporcionem uma contraditória aplicação do regime legal a que tais factos se referem em cada um dos processos em confronto.
Nomeadamente, isso é evidente e manifesto quanto a:

(i) diferente conduta do insolvente beneficiado com a exoneração do passivo restante durante o “período da cessão”: incumprimento reiterado de retenção indevida dos montantes objecto de cessão, mesmo no plano de prestações deferido, e não declaração dos subsídios de Férias e Natal ao fiduciário (acórdão recorrido) vs comportamento perante o incumprimento em face da dificuldade de identificação do rendimento (in)disponível considerando a tramitação processual e a alteração dos rendimentos usufruídos para efeitos da cessão, em particular devido à situação de invalidez (acórdão fundamento);

(ii) percentagem e relevo distintos do montante (em incumprimento) não cedido em face do montante global da dívida e do consequente impacto no interesse de satisfação dos credores da insolvência.

Concluiu-se, por isso, que não há similitude no núcleo do substracto factual que seja de equiparar para este efeito, antes subsiste uma dissemelhança significativa das situações de facto subjacentes às decisões em confronto, que justifica com razoabilidade a divergência quanto ao resultado obtido na interpretação dos requisitos da (no fundamental, o art. 243º, 1, a), do CIRE) disposição legal convocada no mesmo contexto normativo.

G) Em suma[2]: não se preenche o requisito da semelhança das situações de facto, nem se preenche o requisito da dissemelhança entre os resultados da interpretação das disposições legais relevantes, tendo os acórdãos interpretado e aplicado com coincidência a mesma normatividade legal.
Resulta do analisado que, sem prejuízo do inconformismo da Recorrente quanto à solução do acórdão recorrido proferido pela Relação, não ocorre, como condição prévia para a admissibilidade do recurso, a oposição de julgados (pelo menos com este acórdão indicado como fundamento recursivo) indispensável para ser conhecida a revista no âmbito do art. 14º, 1, do CIRE. E sem esta condição estar verificada, não se pode aceitar uma reapreciação em último grau de jurisdição através de uma revista que deve ser admitida com particular exigência, no âmbito de um regime prima facie de irrecorribilidade.

H) Por último, não pode esta decisão ser suprida com a admissibilidade de uma revista excepcional, que vem requerida subsidiariamente pela Recorrente aquando da pronúncia feita a partir do despacho proferido no âmbito do art. 655º.
Por um lado, como é consensual nesta 6.ª Secção, o regime restritivo e atípico da revista admitida no art. 14º, 1, do CIRE afasta e exclui a impugnação recursiva ao abrigo do art. 672º do CPC, enquanto modalidade de revista apta a superar o obstáculo da dupla conformidade decisória (art. 671º, 3, do CPC, não aplicável quando se convoca o art. 14º, 1, do CIRE).
Por outro lado, mesmo que assim não fosse, a resposta a esse despacho do art. 655º do CPC não é meio processual legítimo para esse efeito de configuração da modalidade da revista, perante o requerimento anterior de interposição de recurso e seus fundamentos normativos (insusceptível de aproveitamento processual), e afigura-se manifestamente extemporâneo à luz do regime e prazo do recurso (arts. 637º, 1 e 2, 639º, 1, 638º, 1, 672º, 1 e 2, CPC) – pelo que nunca seria de aceitar tal requerimento, ficando sempre prejudicada a apreciação da respectiva admissibilidade.


III. DECISÃO

Em conformidade, não sendo admissível a revista, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso.

Custas da revista pela Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.

STJ/Lisboa, 20 de Dezembro de 2022

Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).




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[1] V., mais recentemente, os Acs. desta Secção do STJ de 26/5/2021, processo n.º 2543/19.3T8VNF.G1.S1, Rel. HENRIQUE ARAÚJO, in www.dgsi.pt, e de 12/1/2022, processo n.º 1324/16.0T8AMT.P1.S1, Rel. RICARDO COSTA, sumariado in www.stj.pt (https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/03/sum_acor_civel_jan.pdf).)
[2] Seguindo o Ac. do STJ de 4/7/2019, processo n.º 3774/17.6T8AVR.P1.S2, Rel. CATARINA SERRA, in www.dgsi.pt.