Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | FONSECA RAMOS | ||
Descritores: | COMPRA E VENDA MATÉRIA DE FACTO AGENTE INTERMEDIÁRIO TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO INTERPRETAÇÃO NULIDADE DE ACÓRDÃO FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO | ||
Data do Acordão: | 12/20/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - 236.º, Nº.1, REGULAMENTO DO CONTRATO DE AGÊNCIA OU REPRESENTAÇÃO COMERCIAL, APROVADO PELO DL N.º 178/86, DE 03-07: - ARTIGO 21.º. | ||
Sumário : | I. Questionando a Recorrente, a quem é imputada a falta de pagamento do preço num contrato de compra e venda celebrado com a Autora, pelo facto do Tribunal da Relação, em reapreciação da matéria de facto, ter considerado que o fez através de agente de Autora, saber se o Acórdão o fez com o sentido normativo que tem a figura do agente no contexto do contrato de agência, não constitui questão de facto mas de direito. II. A palavra agente não foi usada no sentido de agente comercial – art. 21º do DL. 178/86, de 3.7, como aquele que tem a “obrigação de promover a realização de contratos por conta do principal, com durabilidade e autonomia, mediante determinada remuneração, designada comissão, bem como prestar-lhe todos os elementos necessários ao desenvolvimento da sua actividade”, mas sim com o significado de intermediário, não carecendo da prova dos factos que definem o agente no contrato de agência. III. Esta interpretação seria a que faria um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, a recorrente, – art. 236º, nº1, do Código Civil – tendo em conta o contexto das relações negociais havidas com vista à satisfação da encomenda da Ré. IV. A palavra “agente”, usada na acepção de intermediário, no contexto da acção, não envolve qualificação jurídica que demande a subsunção factual pretendida pela Ré compradora, não assumindo cariz normativo-conclusivo, pelo que não existe insuficiência da matéria de facto para se terem considerado provados os factos aditados pelo Tribunal da Relação. V. A palavra “agente”, na acepção de intermediário, tem na linguagem comum um significado que não é necessariamente o do conceito normativo, onde a Recorrente a pretende inelutavelmente colocar. Palavras há que podem significar conceitos jurídicos e, ao mesmo tempo, na linguagem de profanos, serem tomadas na acepção comum, sem que a polissemia as possa confundir: relevante é o contexto em que é usada, mesmo se se trata de uma sentença, para discernir o alcance significativo. VI. Provado que a Ré, através de um intermediário da Autora, contratou com ela o fornecimento de um serviço, “no exercício da actividade comercial de ambas, a Ré encomendou à Autora em Setembro de 2008, 26.500 (vinte e seis mil e quinhentos) quilos de mosto concentrado rectificado”, tendo recebido a competente factura no valor de € 35 704,77, não tendo sido pago o preço, na data do vencimento, incumpriu o contrato de compra e venda celebrado. | ||
Decisão Texto Integral: | Proc.396/13.4TBALR.E1.S1 R- 635[1] Revista
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA de nacionalidade espanhola, com sede em ..., s/n, Apartado …, ... ..., ..., Espanha, instaurou contra:
BB, S.A.,, acção declarativa com processo ordinário.
Alegou, em resumo, haver vendido à Ré, em Setembro de 2008, 26.500 kg de mosto concentrado rectificado, ao preço de € 1,36070 por kg, num total de € 35.704,77, cuja factura emitiu e remeteu à Ré em 30/09/2008 e esta não pagou.
Concluiu pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 48.793,73, acrescida de juros de mora vincendos sobre a quantia de € 35.704,77, à taxa comercial desde a data da petição inicial e até efectivo pagamento.
Contestou a Ré, defendendo que não celebrou qualquer negócio com a Autora e que encomendou e pagou a CC, gerente das sociedades DD e EE, os 26.500 kg de mosto concentrado, cujo pagamento a Autora reclama.
Concluiu pela improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador que afirmou a regularidade e validade da instância, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
*** Foi proferida sentença em cujo dispositivo, designadamente, se consignou:
“Pelo exposto, e tudo ponderado, o Tribunal decide julgar totalmente improcedente a presente acção e, consequentemente absolver a Ré, BB, S.A., da totalidade do peticionado.”
*** Inconformada, a Autora recorreu para o Tribunal da Relação de Évora que, por Acórdão de 6.3.2017 – fls. 315 a 323 –, tendo alterado a matéria de facto, julgou o recurso procedente, revogando a decisão apelada, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de € 35 704,77, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa comercial desde 30.10.2008, até integral pagamento.
*** Inconformada, a Ré recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:
A) Entendeu o Venerando Tribunal da Relação de Évora julgar procedente a impugnação da matéria de facto, dando por provados dois novos factos (ainda que interdependentes), que aditou àquela, designadamente:
No exercício da actividade comercial de ambas, a Ré encomendou à Autora, em Setembro de 2008, 26.500 (vinte e seis mil e quinhentos) quilos de mosto concentrado rectificado).Esta encomenda foi efectuada pela Ré à Autora por intermédio do agente da Autora em Portugal.
a) Com tal aditamento ficou então assente a seguinte factualidade:
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização de mostos concentrados, nomeadamente mostos concentrados rectificados.
2. A Ré é uma sociedade comercial que se dedicava à comercialização de vinhos.
3. A Autora procedeu à concentração do seu mosto nas suas próprias instalações e em seguida fê-lo rectificar em empresa que utiliza para o efeito para onde providenciou o transporte do produto, tendo posteriormente providenciado pelo transporte do produto para a sede da Ré em 17/09/2008.
4. A Ré recebeu o produto, não tendo apresentado qualquer reclamação relativamente ao mesmo. 5. A 30/09/2008 a Autora remeteu à Ré a factura n.º ... relativa ao produto entregue e com o preço de € 35.704,77 (trinta e cinco mil setecentos e quatro euros e setenta e sete cêntimos). 6. A Autora remeteu carta registada à Ré datada de 05/02/2013 interpelando-a para que procedesse ao pagamento da respectiva factura. 7. A Ré negou ser devedora à Autora do montante da referida factura. 8. A Autora fez constar da declaração recapitulativa de operações intracomunitárias o fornecimento que fez à Ré. 9. No exercício da actividade comercial de ambas, a Ré encomendou à Autora em Setembro de 2008, 26.500 (vinte e seis mil e quinhentos) quilos de mosto concentrado rectificado. 10. Esta encomenda foi efectuada pela Ré à Autora por intermédio do agente da Autora em Portugal. Ficando como não provados os seguintes factos:
“c) O preço ajustado entre Autor e Réu foi de € 1,36070 por quilo na base de 65° Brix. e) A Ré integrou a referida factura da Autora na sua contabilidade, quer para efeitos de IVA, quer de IRC, como compradora”.
C) Com base em tal matéria de facto, entendeu o Venerando Tribunal da Relação de Évora, revogar a douta sentença da 1.ª instância e substitui-la por douto acórdão condenando a aqui recorrente no pedido.
D) Entende a recorrente que o douto acórdão recorrido viola as regras de apreciação da matéria de facto (artigos 607º e 615º do Código de Processo Civil), e, subsidiariamente, que se verifica insuficiência da matéria de facto para a condenação.
E) O douto acórdão ao ter considerado provado que a “…encomenda foi efectuada pela Ré à Autora por intermédio do agente da Autor em Portugal”, dá como provado um conceito e, simultaneamente, uma conclusão – agente – que carece de elementos de facto para se poder afirmar a sua verificação.
F) Entendeu o Venerando Tribunal da Relação de Évora que, da instrução da causa havia resultado provado que “9. No exercício da actividade comercial de ambas, a Ré encomendou à Autora em Setembro de 2008 26.500 (vinte e seis mil e quinhentos) quilos de mosto concentrado rectificado. E que “10. Esta encomenda foi efectuada pela Réu à Autor por intermédio do agente da Autor em Portugal”.
G) A qualificação como “agente” configura uma verdadeira questão de direito e uma conclusão que se há-de retirar da verificação de um acervo factual que teria que ser alegado e provado.
H) O que não sucedeu.
I) “Agente” é aquele que, a coberto de um contrato de agência (regulado no Dec. Lei n.º 178/86 de 03/07, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 118/93 de 13/04) “Assume, em carácter não eventual (estável) e sem vínculos de dependência (autónomo). A obrigação de promover à conta da outra parte (agenciado, proponente, principal, comitente, empresário ou mandante) a celebração de contratos, numa zona determinada (ou, ainda, em um círculo de clientes), mediante retribuição.”
J) Contrato de agência, atenta a definição fixada pelo art.1º, nº1, do citado Dec. Lei n.º 178/86, consiste no contrato “… pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta da outra a celebração de contratos, de modo autónomo e mediante retribuição, podendo ser-lhe atribuída certa zona ou determinado círculo de clientes.”
K) Sendo que sob o agente impende – de acordo com o ponto 5. do preâmbulo do referido Dec. Lei – o dever de informação da sua qualidade, dever esse que deve ser cumprido através de vários actos materiais que divulgam a qualidade de agente, como por exemplo: aposição de reclamos no veículo, distribuição de cartões, etc. e destina-se à protecção dos terceiros que com ele e nessa qualidade negoceiam estando tais obrigações desenvolvidas no art. 21º do citado Dec. Lei nº 178/86, de 03 de Julho.
L) A expressão “agente” traduz-se numa expressão de natureza conclusiva e jurídica de cariz conceptual pois quer significar, de forma basilar, aquele que actua ao abrigo de um contrato de agência, e que pratica actos tos conformes a esse mesmo contrato.
M) E integra-se no thema decidendum, no próprio objecto da acção, precisamente pela forma como a mesma está estruturada: a recorrida alega ter celebrado com a recorrente um contrato de compra e venda através do seu agente e esta última nega ter adquirido o que quer que fosse àquela Autor, directamente ou por intermédio do seu agente.
N) Ao dar como provado que a encomenda “…foi efectuada pela Ré à Autora por intermédio do agente da Autor em Portugal.”, sem que se encontre provado qualquer facto que permita concluir pela existência dum contrato de agência ou de um agente, o douto Acórdão em apreço não só trata radicalmente do objecto da acção, como também integra nos factos provados algo que não é facto mas sim conceito de natureza jurídica e de alcance conclusivo.
O) Tal conclusão, retirada sem fundamento factual pelo Venerando Tribunal a quo, deverá considerar-se como não escrita.
P) A Ré, recorrente, admitiu/confessou que adquiriu à pessoa física – a testemunha CC – ou à sociedade de que este era gerente, os produtos em causa, como já havia feito em várias ocasiões anteriormente, mas que não o fez na qualidade de “agente” da Autora, razão pela qual a definição da qualidade em que esse mesmo protagonista actuou encerrava, no fundo, o próprio objecto do litígio.
Q) Nenhum facto consta como provado quanto a essa qualidade de agente ou sequer da existência de qualquer contrato de agência.
R) Por tal razão, entende a recorrente, não poderia o Venerando Tribunal a quo ter imediatamente concluído, como concluiu, que o negócio havia sido feito “…por intermédio do agente da Autora em Portugal.”, tanto mais que, a montante, haveria de dar-se por assente factos, ou pelo menos facto, que comprovassem essa actividade.
S) A matéria cujo aditamento o Venerando Tribunal ordenou encontra-se interligada e interdependente.
T) Atento o douto Acórdão recorrido, a encomenda feita pela Ré à Autora foi-o “por intermédio do agente da Autora em Portugal”.
U) Esta última conclusão, porque de conteúdo técnico-jurídico e porque configura, no fundo, o thema decidendum, deverá julgar-se “como não escrita” e, por consequência, uma vez que o facto relativo à encomenda depende, exclusivamente, daquele primeiro, deverá igualmente ter-se este por não escrito.
V) Pois, abolindo-se o “agente” que protagonizou a encomenda, esta perde a sua razão de existir.
W) Só assim fará sentido a aplicação do direito e a justiça material que a questão reclama.
X) Devem os “factos” cujo aditamento o Venerando Tribunal da Relação de Évora ordenou, ser julgados como não escritos.
Sem conceder, mas subsidiariamente.
Y) Persiste como não provado o seguinte facto: “O preço ajustado entre Autora e Ré foi de € 1,36070 por quilo na base de 65° Brix.”,
Z) Nem, tão pouco, foi dado por assente qualquer outro preço acordado para a invocada compra e venda.
AA) Atento o disposto no art. 874º do Cód. Civil “Compra e Venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”.
BB) São elementos do contrato de compra e venda a coisa ou direito a transmitir, o preço e o acordo de vontades.
CC) Dos autos não resulta provado qualquer preço acordado entre recorrente e recorrida.
DD) Pelo contrário, resulta não provado que o preço fosse o que serviu de base ao acórdão condenatório.
EE) Ao revogar a douta sentença da 1ª instância, substituindo-a por douto Acórdão condenando a ora recorrente no valor da factura, acrescido de juros, violou o Venerando Tribunal a quo o disposto no art.874º do Cód. Civil uma vez que não ficou provado qualquer preço previamente acordado, mormente o que consta da factura junta aos autos.
FF) Acresce que o douto Acórdão recorrido não fundamenta – nem o poderia fazer já que não existem quaisquer factos assentes nesse sentido – a sua convicção quanto à fixação do valor de € 35.704,77.
GG) Nunca o valor da condenação poderia coincidir com esse outro sob pena de contradição entre o dispositivo e a condensação, nomeadamente, com os factos não provados.
HH) O que importa a nulidade da sentença atento o disposto no art. 615º,n.º1, als. b) e c) do Código de Processo Civil.
II) Atento o disposto no art.342º do Código Civil, impendia sob a Autora, recorrida, o ónus da prova relativamente ao invocado contrato de agência e de, a coberto deste, ter celebrado um contrato de compra e venda com a Réu, recorrente.
JJ) Tal ónus não foi pela recorrida cumprido e não consta na matéria assente qualquer factualidade que permita concluir da existência desse contrato de agência e, bem assim, da celebração do alegado contrato de compra e venda com a recorrente, nomeadamente pela falta do elemento preço.
Nestes termos, e nos mais concedendo-se a Revista, e, em consequência, revogando-se o douto Acórdão recorrido repristinando-se a sentença da primeira instância, farão Vªs Exªs, Senhores Juízes Conselheiros, a costumada Justiça.
A Autora contra-alegou, suscitando a questão prévia da inadmissibilidade do recurso por versar sobre matéria de facto o que exorbita o âmbito do recurso de revista.
***
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização de mostos concentrados, nomeadamente mostos concentrados rectificados.
2. A Ré é uma sociedade comercial que se dedicava à comercialização de vinhos.
3. A Autora procedeu à concentração do seu mosto nas suas próprias instalações e em seguida fê-lo rectificar em empresa que utiliza para o efeito para onde providenciou o transporte do produto, tendo posteriormente providenciado pelo transporte do produto para a sede da R. em 17/09/2008.
4. A Ré recebeu o produto, não tendo apresentado qualquer reclamação relativamente ao mesmo.
5. A 30/09/2008 a Autora remeteu à Ré a factura nº ... relativa ao produto entregue e com o preço e valor de 35.704,77€ (trinta e cinco mil setecentos e quatro euros e setenta e sete cêntimos).
6. A Autora remeteu carta registada à R. datada de 05/02/2013 interpelando-a para que procedesse ao pagamento da referida factura.
7. A Ré negou ser devedora à Autora do montante da referida factura.
8. A Autora fez constar da declaração recapitulativa de operações intracomunitárias o fornecimento que fez à Ré.
9. No exercício da actividade comercial de ambas, a Ré encomendou à Autora em Setembro de 2008, 26.500 (vinte e seis mil quinhentos) quilos de mosto concentrado rectificado.
10. Esta encomenda foi efectuada pela Réu à Autor por intermédio do agente da Autor em Portugal
B) Matéria de facto não provada
A) No exercício da actividade comercial de ambas, a Ré encomendou à Autora, em Setembro de 2008, 26.500 (vinte e seis mil e quinhentos) quilos de mosto concentrado rectificado.
B) Esta encomenda foi efectuada pela Ré à Autora por intermédio do agente da Autora em Portugal.
C) O preço ajustado entre Autora e Ré foi de € 1.36070 por quilo na base de 65º Brix.
D) A Ré integrou a referida factura da Autora na sua contabilidade, quer para efeitos de I.V.A., quer de I.R.C., como compradora.
Fundamentação:
Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber: - se devem, considerar-se não escritos os factos provados 9. e 10. que o Tribunal da Relação considerou provados, em sede de reapreciação da matéria de facto, no contexto da apelação da Ré;
- se o Acórdão e nulo por omissão de fundamentação de facto e de direito e ainda por os fundamentos estarem em oposição.
Vejamos:
Antes, e perante a argumentação da Autora/recorrida de que o recurso é inadmissível por versar sobre o julgamento da matéria de facto pela Relação, e não caber ao Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, senão excepcionalmente, essa competência, diremos o seguinte.
A revogação da sentença recorrida e a condenação da Ré no pedido, sem dúvida que resulta do julgamento que a Relação fez da matéria de facto, aditando, ao acervo factual provado, os pontos 9. e 10.
A recorrente alega que o Tribunal errou ao considerar, sem factos, que a Ré encomendou à Autora 26 500 kg de mosto concentrado rectificado e que tal encomenda foi efectuada pela Ré à Autora “por intermédio do agente da Autora em Portugal”.
Insurge-se a Recorrente pelo facto de o Tribunal da Relação ter considerado que a encomenda da Ré se fez através da pessoa do agente da Autora, questionando que o considerar-se alguém como “agente” é conclusivo, já que a palavra agente é um conceito normativo relacionado com o contrato de agência.
A Autora sustenta que este fundamento do recurso visa o julgamento pelo Supremo Tribunal de Justiça da matéria de facto, fora dos casos excepcionais em que este Tribunal tem essa competência e, por tal, o recurso é inadmissível.
Salvo o devido respeito discordamos.
Nos termos do art. 674º, nº3, do Código de Processo Civil – “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”
No caso, o que a recorrente questiona é se a Relação, ao usar o termo “agente”, o faz com o sentido normativo que tem a figura do agente no contexto do contrato de agência.
Nessa perspectiva não se trata de apreciar se houve erro na fixação da prova em sede de recurso de apelação: se assim fosse assistiria razão à recorrida e o recurso não cabia no âmbito do recurso de revista, que se prende com a aplicação da lei aos factos apurados nas instâncias, salvo aquela excepção, e não poderia ser admitido.
Mas não é essa questão.
Sem dúvida que o Tribunal, no ponto 10., considerou provado que a encomenda (compra) feita pela Ré à Autora o foi através do seu agente em Portugal.
A Ré pretende que se considere não escrita a palavra agente uma vez que não está provada qualquer factualidade que revele que lidou com alguém que se apresentasse como agente da Autora, ou seja, a Recorrente entende o vocábulo na estrita acepção normativa o que implicaria a prova do conceito de agente como agente, no contexto de um contrato de agência, tal como regulado no DL. 178/86, de 3.7.
Analisando a fundamentação do Acórdão, decorre que se considerou provado que a Ré mantinha relações comerciais com CC, que promovia a venda de produtos da Autora e que era gerente das sociedades “DD” e “EE”, com quem a Ré se relacionava, considerando:
“Neste contexto, não é, para nós, verosímil que a Ré se houvesse convencido que o pagamento do mosto seria feito às empresas de CC, como termina por resultar do depoimento da testemunha FF e de todo incompreensível que a Ré, após 30.09.2008, data em que recebeu a factura da Autora (ponto 5 dos factos provados) se haja remetido a um total silêncio; de facto, se a Ré acaso estava convencida que o pagamento desta factura deveria ser feita a CC e nada devia à Autora, impunham as boas práticas comerciais que do facto informasse a Autora, o que só veio a acontecer mais de três anos volvidos, mais concretamente em 6/1/2012 (doc. de fls. 34), uma vez que não ignorava que o mosto havia sido fornecido directamente pela Autora […]. […] Em conclusão, da conjugação dos depoimentos de FF e CC, resulta que a Ré, por intermédio de CC, comprou à Autora o concentrado de mosto rectificado que esta lhe forneceu”.
Em bom rigor, o que o Acórdão deveria ter considerado, salvo o devido respeito, era que o referido CC foi intermediário na negociação entre a Ré e a Autora no negócio de compra e venda do mosto concentrado rectificado.
A palavra “agente” não está usada no sentido de agente comercial – art. 21º do DL. 178/86, de 3.7, como aquele que tem a “obrigação de promover a realização de contratos por conta do principal, com durabilidade e autonomia, mediante determinada remuneração, designada comissão, bem como prestar-lhe todos os elementos necessários ao desenvolvimento da sua actividade”, mas sim de intermediário não carecendo da prova dos requisitos que definem o agente no contrato de agência.
Esta interpretação seria a que faria um declaratário normal colocado na posição do real declaratário – art. 236º, nº1, do Código Civil – tendo em conta o contexto das relações negociais havidas com vista à satisfação da encomenda da Ré.
A convicção dos Julgadores, no Tribunal da Relação, foi justamente a que a Ré não lidou, negocial e directamente com a Autora, mas com aquele CC na veste de intermediário. O termo “agente” foi usado na acepção de intermediário e, como tal, no contexto da acção, não envolve qualificação jurídica que demande subsunção factual pretendida pela recorrida: nesta perspectiva não assume cariz normativo-conclusivo, pelo que não existe insuficiência da matéria de facto para se terem considerado provados os factos aditados pelo Tribunal da Relação.
A palavra “agente” foi usada na acepção de intermediário, tendo, na linguagem comum, um significado que não é necessariamente o do conceito normativo, onde a Recorrente a pretende inelutavelmente colocar.
Palavras há que podem significar complexos conceitos jurídicos e, ao mesmo tempo, na linguagem de profanos, serem tidas na acepção comum, sem que a polissemia as possa confundir: relevante é o contexto em que é usada, mesmo se se trata de uma sentença, discernir o alcance significativo.
Repetimos que teria sido mais correcto considerar, em vez da palavra “agente”, a palavra “intermediário”, pois foi este o sentido com que se pretendeu considerar a actuação do referido CC, como claramente resulta do excerto que citámos da fundamentação: “Em conclusão, da conjugação dos depoimentos de FF e CC, resulta que a Ré, por intermédio de CC, comprou à Autora o concentrado de mosto rectificado que esta lhe forneceu”.
Finalmente, considera a Recorrente que a decisão é nula por falta de fundamentação art. 615º, nº1, b) do Código de Processo Civil, e por contradição entre os fundamentos e a decisão – al. c) do preceito
Os vícios geradores da nulidade da decisão, na tese da recorrente, resultam do Tribunal não ter fundamentado, factualmente, porque considerou que a Ré agiu através de um agente da Autora para fazer a compra a que se refere a factura cujo pagamento peticiona e, ainda, porque o Tribunal da Relação, ao manter os factos não provados, advindos da sentença apelada, incorre agora em contradição.
Quanto à primeira causa de nulidade – omissão de fundamentação – não ocorre. Como é jurisprudência pacífica apenas a falta total e absoluta de fundamentação é geradora de nulidade, já não assim quando existe fundamentação ainda que avara ou pouco convincente.
No que se refere à alegada nulidade por contradição factual, diremos que apenas pode existir contradição entre factos provados: a contradição entre factos provados e não provados, dado que estes é como e se não tivessem sido alegados, é uma impossibilidade processual.
Nem se diga que não se provou um elemento essencial do contrato de compra e venda – arts. 874º e 879º do Código Civil – no caso o preço.
Importa afirmar que o Tribunal considerou que o preço era o da factura remetida à Ré, em 30.9.2008, no valor de € 35 704,77 – facto provado 5.
O não se ter provado o que consta c) dos factos não provados, ou seja que “o preço ajustado entre Autora e Ré foi de € 1,36070 por quilo no base de 65° Brix”, não envolve qualquer contradição.
Pelo quanto dissemos o Acórdão recorrido não merece censura.
Decisão:
Nega-se a revista.
Custas aqui e nas Instâncias pela Ré.
Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Dezembro de 2017
Fonseca Ramos (Relator) Ana Paula Boularot Pinto de Almeida
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