Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
642/12.1TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO AUTOMÓVEL
VEÍCULO AUTOMÓVEL
TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
REGISTO AUTOMÓVEL
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
RISCO
NULIDADE DO CONTRATO
ANULABILIDADE
TERCEIRO
TOMADOR
OPONIBILIDADE
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A presunção de titularidade do direito resultante da inscrição no registo automóvel reveste a natureza de presunção juris tantum, sendo ilidível mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2, do CC).

II. A válida celebração do contrato de seguro exige o preenchimento do requisito do interesse (que se entende comumente ser de natureza económica) na cobertura de um determinado risco (art. 43.º, n.º 1, do RJCS).

III. A falta de interesse originária determina a nulidade do contrato nos termos do art. 43.º, n.º 1, do RJCS, vício que, embora não equacionado nos autos, é de conhecimento oficioso (art. 286.º do CC); a falta de interesse superveniente determina a cessação dos efeitos (ineficácia) do contrato nos termos do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21/08.

IV. Suscitando-se a questão de saber se a nulidade do contrato de seguro ao abrigo do art. 41.º, n.º 1, do RJCS, ou a sua ineficácia ao abrigo do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, são oponíveis aos autores, terceiros lesados em relação ao contrato, verifica-se que a interpretação do direito português em conformidade com o DUE (cfr. Acórdão do TJUE de 20-07-2017), impõe que se considere que, num contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel como o dos autos, o requisito legal do interesse, previsto no n.º 1 do art. 43.º do RJCS (e subjacente ao n.º 1 do art. 21.º do DL n.º 291/2007), se encontra derrogado pela possibilidade de o contrato ser celebrado por terceiro, prevista no n.º 2 do art. 6.º do DL n.º 291/2007.

V. Consequentemente, o facto de se constatar existir uma dissociação entre a tomadora do seguro/segurada e aquele ou aqueles cujo interesse é coberto pelo contrato de seguro, podendo relevar nas relações entre as partes contratantes, não permite seja que se declare oficiosamente a nulidade de tal contrato nos termos do art. 43.º, n.º 1, do RJCS, seja que se declare a cessação dos efeitos do mesmo contrato nos termos do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007; razão pela qual não há lugar à aplicação de qualquer dos regimes de oponibilidade aos autores lesados dos meios de defesa da seguradora previstos no art. 22.º do DL n.º 291/2007 e no art. 147.º do RJCS.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório

1. AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Generali - Companhia de Seguros, s.p.a., JJ, KK e Fundo de Garantia Automóvel, pedindo:

- A condenação da 1.ª R., a pagar a quantia global de € 274.755,12, acrescida de juros legais de mora,

- Subsidiariamente, caso se venha a apurar que o invocado contrato de seguro do veículo SH, celebrado com a 1.ª R., não era válido e eficaz à data do sinistro, a condenação dos 2.º, 3.º e 4.º RR. a pagar, solidariamente, a quantia acima mencionada aos AA., acrescida de juros legais de mora.

Para tanto, e em síntese, alegam que são, respectivamente, viúva e filhos de LL, falecido no dia .../.../2009, no estado de casado com a primeira A., vítima de acidente de viação (atropelamento), pelas 21h40m daquele dia, na Avenida ..., freguesia ..., do concelho e comarca ..., tendo sido intervenientes neste acidente o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-SH e o peão, o referido LL, imputando a responsabilidade pelo evento ao condutor do veículo SH.

Posteriormente, no início do julgamento da causa, os AA. vieram ampliar os pedidos que formularam, para as seguintes quantias:

a) Pela perda do direito à vida: €100.000,00,

b) Pelo dano moral sofrido pela A. viúva: € 35.000,00.

Por despacho de fls. 323, foi determinada a apensação a estes autos dos autos de injunção n.º 201706/12...., em que o Centro Hospitalar ... pede o reembolso da quantia global de € 878,00, relativa a cuidados médicos prestados ao malogrado LL em consequência do acidente, pedindo a condenação no pagamento dessa quantia à R. Generali, s.p.a., e, subsidiariamente, para o caso de vir a ser demonstrada a invalidade da apólice, aos RR .... Fundo de Garantia Automóvel, JJ e KK.

Também o Instituto da Segurança Social, I.P., a fls. 151 e ss. (corrigido a fls. 448 e ss.), deduziu pedido contra os RR., pedindo a sua condenação a pagarem-lhe as quantias que desembolsou, e continuará a desembolsar mensalmente, para pagamento de pensão de viuvez à ex-cônjuge do sinistrado LL.

Citados, os RR. contestaram:

- O Fundo de Garantia Automóvel, impugnando a versão do acidente e pugnando pela responsabilidade do peão na produção do mesmo, bem como invocando a existência de contrato de seguro do ramo automóvel válido à data dos factos, celebrado com a co-ré Generali, s.p.a., concluindo pela improcedência da acção quanto a si;

- A Generali - Companhia de Seguros, s.p.a., impugnando também a versão do acidente descrita na petição inicial e pugnando pela responsabilidade do peão na produção do mesmo, invocando ainda a caducidade do contrato de seguro, em consequência de a propriedade do mesmo ter sido transferida para terceiros sem lhe ter sido comunicado tal facto, concluindo pela sua absolvição; e tendo também contestado o pedido de reembolso da segurança social;

- JJ e KK, invocando a sua ilegitimidade pela existência de seguro válido, impugnando a versão do acidente relatada na petição inicial, imputando a responsabilidade da sua produção ao peão e concluindo pela improcedência da acção, tendo, também, contestado o pedido de reembolso da segurança social.

No mesmo articulado de contestação, os RR. JJ e KK requereram ainda a intervenção acessória provocada de MM, mediador de seguros, requerimento que foi admitido.

Citado, o interveniente ofereceu articulado próprio, pugnando pela sua absolvição por desconhecimento dos factos em causa.

Por despacho proferido na audiência prévia de fls. 507 e ss., foi proferido despacho saneador, admitindo-se a correcção do articulado da segurança social, julgando-se as partes legítimas e relegando-se para final o conhecimento da excepção peremptória de caducidade invocada pela Generali, s.p.a..

Por sentença de 06/10/2021 a acção foi julgada parcialmente procedente, sendo:

«- A. absolvidos os autores da excepção peremptória de caducidade invocada pela ré Generali - Companhia de Seguros SPA;

- B. condenada a ré Generali - Companhia de Seguros, s.p.a.,

- a pagar aos autores, na proporção do quinhão hereditário de cada um deles, a quantia de 60.000,00 euros pela perda do direito à vida do seu marido e pai e a quantia de 25.000,00 euros, pelos danos não patrimoniais sofridos pelo referido LL;

- a pagar à autora AA, a quantia de 25.000,00 euros, a título de danos [não] patrimoniais por si sofridos em consequência do óbito do seu marido;

- a pagar a cada um dos autores, filhos do falecido LL, a quantia de 15.000,00 euros, a título de danos [não] patrimoniais por sofridos por cada um deles em consequência do óbito do seu pai, tudo acrescido dos juros de mora à taxa legal desde a citação e até pagamento;

- a pagar ao Instituto da Segurança Social IP, a quantia de 109.988,28 euros, a título de sub-rogação das quantias por aquela pagas à autora viúva, AA;

- a pagar ao Centro Hospitalar ..., a quantia global de 878,00 euros, a título de despesas efectuadas com os tratamentos à vítima, LL;

C. absolvidos os réus JJ, KK, Fundo de Garantia Automóvel e MM, de todos os pedidos contra si formulados pelos autores.».

2. Inconformados, tanto os AA. como a 1.ª R. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 19 de Maio de 2022 foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar,

1. parcialmente procedente a apelação da ré, no tocante à impugnação da matéria de facto, contudo, sem repercussão na de direito e,

2. parcialmente procedente a dos autores, quanto à matéria de facto e, totalmente procedente quanto à matéria de direito, em função do que se condena a ré,

2.1. a pagar-lhes, como pedido, na proporção do quinhão hereditário de cada um, a quantia de €80.000,00, acrescida de juros legais, à taxa legal de 4 %, desde a sentença, pela perda do direito à vida do seu marido e pai, LL;

2.2. a pagar a cada um dos autores, filhos do falecido LL, a quantia de € 20.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a sentença, a título de danos [não] patrimoniais por sofridos por cada um deles em consequência do óbito do seu pai, tudo acrescido dos juros de mora à taxa legal desde a citação e até pagamento;

2.3. a pagar ao autor GG a quantia de € 8.955.12, acrescida de juros de mora, à taxa legal, de 4%, desde a citação, até integral e efectivo pagamento;

3. mantendo-se, tudo o mais constante da decisão recorrida.».


3. Veio a R. interpor recurso de revista, por via excepcional, para o Supremo Tribunal de Justiça.

Em 4 de Outubro de 2022 foi proferido despacho da relatora, que, na parte ora relevante, tem o seguinte teor:

«4. Nos termos do art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, cabe à Formação aí prevista competência exclusiva para apreciar da admissibilidade da revista por via excepcional. Contudo, sendo o recurso de revista unitário, ao abrigo do art. 652.º, n.º 1, do mesmo Código, e tal como determinado pelo Provimento n.º 23/2019 do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, cabe ao relator apurar previamente se ocorre ou não o obstáculo da dupla conforme à admissibilidade da revista por via normal (cfr. art. 671.º, n.º 3, do CPC).

Vejamos.

Ao invocar a admissibilidade da revista na via excepcional, entendeu a Recorrente que se verifica a dupla conformidade entre as decisões das instâncias pelo facto de a questão da caducidade do contrato de seguro dos autos, questão que pretende seja [de] reapreciada por este Supremo Tribunal, ter sido decidida da mesma forma por ambas as instâncias.

Labora a Recorrente no equívoco, que se vem revelando comum, de entender que a dupla conforme se forma em função das questões apreciadas e não, como se afigura correcto, em função das decisões proferidas.

Importa, pois, verificar se ocorre ou não dupla conforme entre as decisões das instâncias. Ora, tendo a sentença da 1.ª instância julgado a acção parcialmente procedente condenando a R. Seguradora a pagar aos AA. parte dos quantitativos indemnizatórios peticionados, e tendo o acórdão da Relação julgado procedente a apelação dos AA., condenando a mesma R. Seguradora a pagar-lhes quantitativos indemnizatórios mais elevados, não existe plena coincidência entre ambas as decisões.

É certo que, de acordo com orientação jurisprudencial que se tem vindo a consolidar neste Supremo Tribunal, o conceito de dupla conforme deverá abranger não apenas as situações de confirmação da decisão da 1.ª instância, sem voto de vencido nem fundamentação essencialmente diferente, mas também as situações em que o acórdão da Relação decidiu em sentido mais favorável ao apelante. Contudo, e como é evidente, [tal] orientação respeita à posição em que se encontra o apelante ou apelantes que foram beneficiados pela decisão da Relação – no caso, os AA. – e não à posição em que se encontra o apelante que foi afectado pela decisão da Relação – no caso, a R. Generali, s.p.a..

5. Não oferecendo dúvidas de que, em relação à R. Generali, s.p.a., não se formou dupla conforme entre as decisões das instâncias (cfr. art. 671.º, n.º 3, do CPC), admite-se por via normal o recurso de revista por interposto pela mesma R..».


4. Formulou a Recorrente as seguintes conclusões recursórias:

«I. A questão, fundamento do recurso, cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, por assumir um carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação às partes envolvidas, é a de saber se a presunção, não ilidida, do registo automóvel, prevista nos artºs 1º, 2º-B, al. b), 5º/1, al. a) e 29º do Código de Registo Automóvel, é comprovativa da alienação de veículo automóvel para efeitos do previsto no artº 21º/1 do DL. 291/07, de 21 de Agosto e, como tal, suficiente para declarar a caducidade do seguro de responsabilidade civil automóvel.

II. Ou, se se preferir, a de saber se, em face da não ilisão da presunção prevista nos artºs 1º, 2º-B, al. b), 5º/1, al. a) e 29º do Código de Registo Automóvel e do previsto no artº 21º/1 do DL. 291/07, de 21 de Agosto, o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel se transmite de anterior para o novo titular do registo de propriedade no registo automóvel ou, pelo contrário, se deverá antes considerar que, naquele caso e por força daqueles preceitos legais, ocorreu alienação de veículo que leva à caducidade do dito contrato.

III. Nos termos do artº 672º/2, alínea a) do CPC, a razão para esta questão ser claramente necessária para uma melhor aplicação do direito prende-se com a necessidade de certeza na validade do seguro de responsabilidade civil automóvel, em face da presunção, não ilidida, do registo automóvel, de que a propriedade do veículo é de quem a tem ali averbada em seu nome, no caso de já não ser o tomador do seguro.

IV. Pode uma seguradora basear-se na presunção, não ilidida, decorrente do registo automóvel para invocar a caducidade do seguro prevista no artº 21º/1 do DL. 291/07, de 21 de Agosto?

V. Os factos, sobre isto, provados nos autos são os seguintes:

“23 – A ré Generali, na qualidade de seguradora e com efeitos de início a 21.01.2005, celebrou um contrato de seguro de «responsabilidade civil automóvel», titulado pela apólice nº ...07 e tendo por objecto seguro o veículo de matrícula ..-..-SH e marca CHRYSLER, modelo Sebring 2.0L, cabrio LX;

24 – Como tomadora desse seguro figurava NN;

25 – Em 31.12.2008 aquele dito veículo foi registado [a sua propriedade] em nome da ré JJ, pela apresentação nº ...34;

4 – À data [do sinistro], o SH encontrava-se registado [a sua propriedade] em nome da ré JJ e era conduzido pelo réu KK;

26 – NN é mãe de OO;

27 – Este OO por sua vez, é pai dos réus JJ e KK;

28 – Vivendo todos em economia comum, é o OO quem trata da gestão dos negócios familiares, nomeadamente comprando e vendendo os automóveis da família, fazendo-os registar formalmente em nome da sociedade de que são sócios, ou de algum dos referidos familiares, independentemente de qual deles tem o seu uso habitual;

29 – Foi o que aconteceu com o automóvel em causa, (i) primeiramente formalizando a sua aquisição por intermédio de leasing, (ii) depois fazendo-o registar formalmente em nome da sua mãe e, (iii) posteriormente, em nome da sua filha, mantendo toda a família a dominialidade prática sobre aquele bem;” (sic).

VI. Em face destes factos a recorrente invocou a não transmissão do contrato de seguro com ela celebrado e a sua caducidade com fundamento na alienação do veículo antes do sinistro dos autos e no previsto no artº 21º/1 do DL. 291/07, de 21 de Agosto, que previa “O contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, salvo se for utilizado pelo tomador do seguro inicial para segurar novo veículo.” (sic), e tudo porque se apurou que em 31.12.2008, muito antes do sinistro dos autos, ocorrido em 22.12.2009, a propriedade do veículo seguro deixou de estar averbada no registo automóvel em nome da sua segurada, NN, e passou a estar averbada em nome de JJ, presumindo-se, por força desse registo, sem que nenhum facto o ilidisse, que a propriedade do veículo é desta última e não já, pois, daqueloutra, para a qual foi, portanto, de alguma forma, alienada.

VII. O tribunal a quo entendeu que não, que não tinha ocorrido qualquer alienação do veículo, nem, como tal, a caducidade do seguro e que este, transmitido para JJ, estava, pois, em vigor na data do acidente, responsabilizando depois em consequência a recorrente.

VIII. Ao julgar, apesar do registo automóvel, não alienado o veículo SH e, como tal, improcedente a excepção de caducidade do contrato de seguro invocada pela recorrente e considerar este último como válido e em vigor na data do sinistro o tribunal a quo fez, pois, salvo o devido respeito, uma errada aplicação do artº 21º/1 do DL. 291/07, de 21 de Agosto, e dos preceitos a seguir indicados, devendo antes concluir-se que a presunção, não ilidida, do registo automóvel, prevista nos artºs 1º, 2º-B, al. b), 5º/1, al. a) e 29º do Código de Registo Automóvel, é comprovativa da alienação de veículo automóvel para efeitos do previsto no artº 21º/1 do DL. 291/07, de 21 de Agosto.

IX. Em conformidade, deverá o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que, reconhecendo aquela alienação, declare procedente a excepção de caducidade do seguro e, em consequência, absolva a recorrente dos pedidos.».


5. Os Recorridos JJ e KK contra-alegaram, concluindo nos termos seguintes:

[excluem-se as conclusões relativas à (in)admissibilidade da revista da R.]

«XIII.  Não lhe assiste qualquer razão à Recorrente no Recurso Excepional interposto, devendo o mesmo ser julgado totalmente improcedente.

XIV. Efectivamente, dos factos provados 14., 21., 24. a 29. resulta, à saciedade, que, tal qual concluiu o Tribunal de 1.ª Instância e confirmou o Tribunal da Relação, no caso sub judice, não se verificou qualquer modificação efectiva na titularidade da propriedade do veículo SH.

XV. Mais, não se verificou, sequer, a vontade ou a realização de qualquer negócio, seja de que natureza for, entre avó e neta, que pudesse ter a virtualidade de fazer caducar o contrato de seguro celebrado.

XVI. O que sucedeu foi, apenas e só, como, igualmente, resulta da Sentença e foi confirmado pelo Acórdão do Tribunal da Relação, por motivos de conveniência, uma alteração, meramente formal, do nome constante do registo automóvel,

XVII. Alterações que foram ocorrendo ao longo do tempo, sem que tivesse sido colocado qualquer óbice, por parte da Ré Generali, que bem sabia desta realidade.

XVIII. Conforme resulta do decidido pelas Instâncias, de forma ininterrupta, o veículo SH manteve-se propriedade do mesmo núcleo familiar, designadamente, do pai dos Recorridos, a testemunha OO, pessoa a quem “sempre coube, na qualidade de gestor dos negócios familiares, geridos em economia comum de todos eles e no qual se incluía a avó dos réus, gerir o património familiar, dele dispondo e, apenas formalmente, distribuindo e alterando a titularidade dos respectivos bens.”.

XIX. Deste modo, e logo por aqui, resulta demonstrado não assistir qualquer razão à Recorrente na sua alegação, devendo, consequentemente, manter-se inalterada a Decisão dos autos, no que respeita à manutenção da validade do contrato de seguro e, em consequência, à absolvição dos Recorridos.

A acrescer,

E sempre sem prescindir,

XX. Determina o art. 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que: Se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente decreto-lei, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior.

XXI. Ora, se a lei faculta um terceiro a possibilidade de celebrar o contrato de seguro e este é válido, nenhum sentido faria não se manter válido o seguro resultante de uma mera alteração do nome constante do registo, como é o caso dos autos, mantendo-se a propriedade do veículo, como sempre, no mesmo restrito grupo familiar e, até mais, na mesma pessoa.

XXII. A instituição da obrigatoriedade do seguro de responsabilidade civil automóvel assenta na necessidade de, perante a consciencialização da incompleta ou deficiente capacidade do responsável pelo ressarcimento, se socializar o risco da ocorrência de danos graves que é associado ao desempenho de actividades potencialmente perigosas ou portadoras de risco para terceiros e de o transferir para a seguradora, entidade com inesgotável superior capacidade financeira relativamente à do potencial responsável pelo ressarcimento.

XXIII. Assume, portanto, tal contrato uma feição de contrato a favor do terceiro lesado.

XXIV. Tal necessidade é, exactamente, acautelada em situações, como a dos autos, em que a realidade factual, tal como bem a expuseram as Doutas Instâncias, impõe que a obrigação de eventual ressarcimento permaneça na esfera jurídica da Recorrente, a seguradora.

XXV. A tal acresce, ainda, a circunstância de a Recorrente nunca ter deixado de cobrar e receber os valores dos prémios do seguro respeitantes ao SH, sendo esta circunstância demonstrativa do posicionamento daquela quanto à manutenção da validade do contrato de seguro.

Ainda a acrescer,

XXVI. Tal qual resulta demonstrado nos autos, no caso sub judice, não houve uma verdadeira negociação ou venda do veículo (ou qualquer outro negócio), tendo-se o mesmo mantido sempre na titularidade das mesmas pessoas, apenas formalmente passando a estar registado em nome de um ou outro membro daquele restrito grupo familiar.

Ora,

XXVII. Dispõe o art. 7.º do Código de Registo Predial, aplicável ao registo automóvel ex vi art. 29.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que: O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

XXVIII. O referido artigo institui uma presunção iuris tantum, ou seja, ilidível mediante prova em contrário.

XXIX. Ora, do que resultou demonstrado nos autos, o registo de propriedade a favor da Recorrida JJ consubstanciou um acto que não correspondeu à realidade factual, já que, a Recorrida nunca chegou a ser a (real) proprietária da viatura SH.

XXX. Mais, não foi realizado qualquer negócio, seja de que natureza for, entre avó e neta, relativamente à viatura SH.

XXXI. A declaração de transmissão da propriedade do SH da avó da Recorrida para a Recorrida é, sem qualquer dúvida, falsa,

XXXII. Sendo, também, incontornável que, o direito a que se reporta o registo pertencia a outra pessoa,

XXXIII. Realidades que importam, necessária e logicamente, a nulidade do registo subsequente, realizado a favor da Recorrida JJ e a consequente elisão da presunção constante do art. 7.º do Código de Registo Predial, aplicável ao registo automóvel ex vi art. 29.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.

XXXIV. Aliás, em abono do vertido, cabe chamar à colação a circunstância de ter sido considerado não provado pelo Tribunal de 1.ª Instância e manteve o Tribunal da Relação: “- Que o veículo automóvel de matrícula SH, em 31.12.2008 ou noutra data, tenha sido vendido ou alienado por NN, na qualidade de proprietária do mesmo, à sua neta JJ;”.

XXXV. Atenta esta, incontornável, realidade, dúvidas não restam de que, a presunção estipulada pelo art. 7.º do CRP, aplicável ex vi artigo 29.º do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro foi, cabalmente, ilidida.

Consequentemente,

XXXVI. Tal qual [como] concluiu o Tribunal de 1.ª Instância e manteve o Tribunal da Relação, o seguro automóvel não caducou, mantendo-se, em consequência, a Ré Generali responsável pelo ressarcimento de danos causados a terceiros lesados.

XXXVII. A tal propósito, o decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29-04-2014, o Aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03-06-2008, e, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13-07-2021.

Face a tudo o exposto,

XXXVIII. Resulta demonstrado que bem andou o Douto Tribunal de 1.ª Instância e manteve o Tribunal da Relação ao considerar provado o facto provado 14.

XXXIX. Nenhuma censura merecendo a Sentença de 1.ª Instância e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no respeitante à manutenção da validade do contrato de seguro celebrado (e sempre pago) e quanto à subsequente exclusiva responsabilidade da Recorrente Generali.

Para além disso,

XL. Considerou o Tribunal de 1.ª Instância e manteve o Tribunal da Relação como não provado: “- Que a alteração do registo do SH não tenha sido do conhecimento da ré Generali, ou que apenas tenha tomado conhecimento do mesmo após o acidente;”.

XLI. Ora, sendo este um facto extintivo do direito invocado, cabia à Recorrente Generali, nos termos do disposto no art. 342.º, n.º 2, do Código Civil, a alegação e, sobretudo, a prova de tal factualidade, o que não sucedeu.

XLII. Deste modo, a Decisão não poderia ser outra que não a vertida na Sentença e no Acórdão sub judice.

XLIII. A tal propósito, essencial se revela o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25-03-2010, que sumariou: “III- Se é verdade recair sobre o titular da apólice a obrigação de avisar a seguradora, no prazo de 24 horas, da alienação do veículo (cfr. n°2 do citado art. 13°), também não é menos verdade que, na falta deste aviso, cabia à ré/apelante alegar a data em que tomou conhecimento da alienação do veículo nos termos do art. 342°, n°2 do C. Civil, o que como vimos igualmente não está demonstrado.”.

Face ao exposto,

XLIV. Também por aqui resulta demonstrado que, bem andaram as Instâncias ao considerar que o contrato de seguro celebrado não caducou, encontrando-se em vigor à data do sinistro, devendo, em consequência, manter-se a Decisão inalterada nesta sede, o que, mui respeitosamente, se requer a V/Exas., Colendos Senhores Juízes Conselheiros.

XLV. Mais cabe, ainda, salientar que, ao contrário do pretendido pela Recorrente, não ficou demonstrado que Recorridos tivessem “uma efectiva e permanente ligação ao veículo” (vide a Jurisprudência citada pela própria Recorrente), pelo que, não ficou, minimamente, beliscada a lógica que encima a necessidade de contratação do seguro, nem a consequente validade do seguro no caso concreto, tendo, aliás, ficado demonstrado, precisamente, o contrário.».


6. Também o Recorrido FGA contra-alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.


7. O mesmo fizeram os AA., requerendo, a final, a ampliação do objecto do recurso nos termos seguintes:

«1. Prevenindo a hipótese de procedência do recurso de apelação interposto pela recorrente seguradora, por mera cautela e dever de patrocínio, entendem os recorridos acautelar o risco de, nesse caso, se poder manter a decisão das Instâncias que absolveu do pedido os réus JJ, KK e Fundo de Garantia Automóvel;

2. Caso venha a ser dado como demonstrado que, em 31.12.2008, ou antes, o ..-..-SH foi alienado por NN, na qualidade de proprietária do mesmo, à ré JJ, e se venha a considerar que em consequência dessa alienação, o contrato de seguro titulado pela apólice ...07 cessou os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, então impõe-se a conclusão de que são os réus JJ, KK e Fundo de Garantia Automóvel, os responsáveis pelo ressarcimento de todos os danos decorrentes do acidente dos autos.

3. A proceder a referida argumentação da recorrente GENERALI SEGUROS, S.A., importa concluir que à data do acidente dos autos – 21.12.2009 – o contrato de seguro em mérito já não garantia os riscos emergentes da circulação do veículo de matrícula ..-..-SH pelo que, nos termos do disposto nos artigos 483º e seguintes do Código Civil e no artigo 62º n.º 1 do DL 291/2007 de 21/08, serão responsáveis pelos danos emergentes do acidente dos autos os réus JJ, KK e Fundo de Garantia Automóvel.

4. Consequentemente, caso a recorrente GENERALI SEGUROS, S.A. venha a ser absolvida do pedido por se considerar que o contrato de seguro que garantia os riscos emergentes da circulação do veículo de matrícula ..-..-SH cessou os seus efeitos em data anterior ao acidente dos autos, então deverão os réus JJ (na qualidade de proprietária do SH), KK (na qualidade de responsável civil por se tratar do condutor do SH) e Fundo de Garantia Automóvel ser condenados a pagar aos aqui recorrentes os montantes fixados nas doutas decisões proferidas pelas instâncias.

5. O que se requer.».



II – Objecto do recurso

Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto a seguinte questão:

- Erro de direito do acórdão recorrido na interpretação e aplicação do regime do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/07, de 21 de Agosto, devendo considerar-se que não foi ilidida a presunção prevista nos arts. 1.º, 2.º-B, alínea b), 5.º, n.º 1, alínea a), e 29.º do Código de Registo Automóvel.

Admitindo-se, ao abrigo do art. 636.º, n.º 1, do CPC, o pedido de ampliação do objecto do recurso apresentado pelos AA., no caso de o recurso da R. seguradora vir a ser julgado procedente, deve apreciar-se o pedido subsidiário:

- Imputação aos RR. JJ, KK e Fundo de Garantia Automóvel da responsabilidade pelos danos causados pelo sinistro dos autos.


III – Fundamentação de facto

Factos dados como provados:

1 - No dia .../Dezembro/2009 faleceu, vítima de acidente de viação, LL, no estado de civil de casado com a aqui primeira autora, AA;

2 - Tendo deixado como únicos e universais herdeiros a aqui demandante AA então de setenta e quatro anos de idade, e os restantes oito autores, filhos de ambos, todos eles, à data, entre os 31 e os 41 anos de idade;

3 - No dia 21 de Dezembro de 2009, pelas 21.40 horas, ocorreu um acidente de viação na Avenida ..., freguesia ..., deste concelho e comarca ..., em que foram intervenientes neste acidente, o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-SH (doravante SH) e o peão LL;

4 - À data, o SH encontrava-se registado em nome da ré JJ e era conduzido pelo réu KK;

5 - O dito acidente objectivou-se num choque entre a viatura e o peão, nas seguintes circunstâncias:

6 - A viatura de matrícula SH seguia pela hemi-faixa de rodagem direita da Avenida ..., atento o sentido de marcha C.../Rotunda ..., a uma velocidade entre os 45 e os 50 km/hora, numa zona que se trata de avenida citadina, num troço da via com várias residências a comunicarem directamente com ela e com várias passadeiras para peões assinaladas no pavimento;

7 - Naquele momento, era noite e chovia abundantemente, não tendo o condutor do SH visibilidade superior a dois ou três metros de distância;

8 - Ao circular da forma descrita, junto ao entroncamento formado entre a Avenida ... e a Rua ..., o veículo SH atropelou o peão LL, o qual se achava, naquele momento, a atravessar a Avenida ..., da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do SH;

9 - O peão LL, foi colhido pelo SH, em momento em que se preparava para concluir a travessia da avenida, a cerca de 1,5 metros do passeio existente do lado direito da via, atento o sentido de marcha C.../Rotunda ..., ocorrendo o embate com a frente desta viatura na parte lateral direita do seu corpo;

10 - Face ao acima referido no nº 9, o condutor do SH não se apercebeu da presença do peão na sua frente, a atravessar a Avenida ... da esquerda para a direita, atento o seu sentido de marcha, e apenas deu conta da sua presença quando do embate;

11 - Mercê do embate, o corpo do peão foi projectado para o ar e colhido pelo pára-brisas do SH ainda em movimento, que estilhaçou no centro e na parte lateral direita;

12 - Após o embate acima descrito e a imobilização do veículo atropelante, o tripulante do SH efectuou uma manobra de marcha-atrás, em ordem a permitir o socorro à vítima, prestado por uma equipa do INEM que entretanto se deslocou ao local;

13 - A via em que ocorreu este acidente configura uma recta com mais de 300 metros de extensão, em piso de alcatrão bem conservado, com visibilidade superior a 300 metros, quando de dia ou com bom tempo, ali estando colocadas várias passagens para peões, assinaladas vertical e horizontalmente, local conhecido do condutor do veículo, por ali passar frequentemente;

14 - A ré Generali, Companhia de Seguros, S.p.A. mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...07, garantia a responsabilidade civil emergente da circulação daquele veículo SH;

15 - Logo após o acidente dos autos, o malogrado peão foi assistido por uma equipa do INEM que imediatamente se deslocou ao local, lhe prestou os primeiros socorros e o transportou para o Hospital ..., no ..., onde entrou politraumatizado às 22.22 horas desse dia;

16 - No sinistro em causa, o LL sofreu lesões na cabeça sob a forma traumatismo craniano, punho esquerdo, tórax, bacia e lesões no membro inferior direito, com factura exposta dos ossos da perna direita;

17 - Atendendo à gravidade das lesões supra referidas e como consequência directa e necessária das mesmas resultantes do acidente, o referido LL faleceu às 01.45 horas dessa madrugada, na sala dos cuidados intensivos do Hospital ...;

18 - No momento do acidente e nos que se lhe seguiram até à sua morte, o LL, sofreu dores e angústias, consciente de que, em consequência do acidente, lhe advieram lesões muito graves e susceptíveis de lhe causar a morte, como veio a suceder;

19 - Até então, o LL gozava de boa saúde, não lhe sendo conhecida qualquer doença, era pessoa independente e activa, com disponibilidade para confraternizar e acompanhar com os seus familiares, esposa, filhos e netos, sendo considerado um esteio da família;

20 - No momento do acidente, dirigia-se a reunião de uma associação, das várias de que era membro;

21 - Com a sua morte, todos os autores sofreram forte abalo psíquico e profundo desgosto pela perda súbita do seu marido e pai;

22 - O malogrado LL havia sido Administrador de …, mas estava reformado, auferindo uma reforma mensal de 1.401,92€;

23 - A ré Generali, na qualidade de seguradora e com efeitos de início a 21.01.2005, celebrou um contrato de seguro de «responsabilidade civil automóvel», titulado pela apólice nº ...07 e tendo por objecto seguro o veículo de matrícula ..-..-SH e marca CHRYSLER, modelo Sebring 2.0L, cabrio LX;

24 - Como tomadora desse seguro figurava NN;

25 - Em 31.12.2008 aquele dito veículo foi registado em nome da ré JJ, pela apresentação nº ...34;

26 - NN é mãe de OO;

27 - Este OO, por sua vez, é pai dos réus JJ e KK;

28 - Vivendo todos em economia comum, é o OO quem trata da gestão dos negócios familiares, nomeadamente comprando e vendendo os automóveis da família, fazendo-os registar formalmente em nome de sociedade de que são sócios, ou de algum dos referidos familiares, independentemente de qual deles tem o seu uso habitual;

29 - Foi o que aconteceu com o automóvel em causa, primeiramente formalizando a sua aquisição por intermédio de leasing, depois fazendo-o registar formalmente em nome da sua mãe e, posteriormente, em nome da sua filha, mantendo toda a família a dominialidade prática sobre aquele bem;

30 - Em consequência do acidente acima descrito, o Centro Hospitalar ..., teve a despesa global da quantia de 878,00 euros, relativa a cuidados médicos prestados ao malogrado LL;

31 - O Instituto da Segurança Social IP, em consequência do óbito do LL e desde essa ocorrência, vem pagando mensalmente à sua viúva uma pensão de viuvez no valor mensal de 849,57 euros, 14 meses por ano, tendo pago, até à data do início do julgamento, a quantia global de 109.988,28 euros.

Factos provados aditados pela Relação

32. Existe uma passadeira para peões na faixa de rodagem do sentido poente-nascente, C...-Rotunda ..., assinalada por sinalização vertical, estando a vítima prostrada no solo, além dela 14,7 metros contados do bordo mais próximo.

33. O peão achava-se, naquele momento, a atravessar a Avenida ..., da esquerda para a direita - atento o sentido de marcha do SH - na zona passadeira para peões assinalada no pavimento da via e por sinalização vertical existente naquele local.

34. O veículo SH circulava com os respectivos faróis fronteiros acesos nos médios.

35. Não obstante terem sido facturadas à autora AA, foi o autor GG quem suportou as despesas com o funeral de seu pai que totalizam € 8.955,12.


Factos dados como não provados:

- Que, antes de proceder à travessia, o peão tenha estancado a sua marcha no separador central em cimento existente no meio da Avenida ... e tivesse olhado previamente para a sua direita a verificar se podia proceder à pretendida travessia em segurança;

- Que o condutor do SH tivesse accionado os mecanismos de travagem da viatura antes do embate;

- Que, desde que atropelou o peão até se imobilizar completamente, o SH ainda tenha percorrido a distância de cerca de 15 metros, não obstante o seu tripulante estar a accionar os mecanismos de travagem da viatura, travando “a fundo”;

- Que todo dinheiro auferido pela malograda vítima como rendimento proveniente da sua reforma, fosse por este entregue à sua mulher (primeira autora) para o governo da casa;

- Que, com a autora e os seus filhos EE e II, a vítima despendesse globalmente cerca de 1.100,00€ por mês;

- Que o veículo automóvel de matrícula SH, em 31.12.2008 ou noutra data, tenha sido vendido ou alienado por NN, na qualidade de proprietária do mesmo, à sua neta JJ;

- Que a alteração do registo do SH não tenha sido do conhecimento da ré Generali, ou que apenas tenha tomado conhecimento do mesmo após o acidente;

- Que a malograda vítima tenha iniciado a travessia da rua sem olhar para a sua direita e trânsito que se processava;

- Que o réu KK tenha adaptado a sua condução às condições atmosféricas que se faziam sentir, seguindo especialmente atento à sua condução;

- Que o mesmo réu KK, no momento do acidente, imprimisse ao automóvel uma velocidade que não ultrapassava os 30/40 km por hora;

- Que o interlocutor da família dos réus KK e JJ sempre tenha sido o mediador MM;

- Que, em Novembro de 2009, OO tenha contactado o mediador MM, relativamente ao contrato de seguro do “SH”, transmitindo-lhe que o estado de saúde de NN se vinha degradando, e que pretendia, por isso, que esta deixasse de constar como a tomadora do seguro do SH e que, em face disso, o mediador MM tenha sugerido que a titularidade do seguro respeitante ao SH se mantivesse como estava, até à data em que viesse a ocorrer a caducidade desse contrato.


IV – Fundamentação de direito

1. Como supra enunciado, invoca a R., ora Recorrente, que o acórdão recorrido padece de erro de direito ao interpretar e aplicar o regime do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/07, de 21 de Agosto, no qual se dispõe que «[o] contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, salvo se for utilizado pelo tomador do seguro inicial para segurar novo veículo», devendo considerar-se não ilidida a presunção de titularidade do direito de propriedade que resulta da inscrição no registo automóvel.

Relevam os seguintes factos provados:

23 - A ré Generali, na qualidade de seguradora e com efeitos de início a 21.01.2005, celebrou um contrato de seguro de «responsabilidade civil automóvel», titulado pela apólice nº ...07 e tendo por objecto seguro o veículo de matrícula ..-..-SH e marca CHRYSLER, modelo Sebring 2.0L, cabrio LX;

24 - Como tomadora desse seguro figurava NN;

25 - Em 31.12.2008 aquele dito veículo foi registado em nome da ré JJ, pela apresentação nº ...34;

26 - NN é mãe de OO;

27 - Este OO, por sua vez, é pai dos réus JJ e KK;

28 - Vivendo todos em economia comum, é o OO quem trata da gestão dos negócios familiares, nomeadamente comprando e vendendo os automóveis da família, fazendo-os registar formalmente em nome de sociedade de que são sócios, ou de algum dos referidos familiares, independentemente de qual deles tem o seu uso habitual;

29 - Foi o que aconteceu com o automóvel em causa, primeiramente formalizando a sua aquisição por intermédio de leasing, depois fazendo-o registar formalmente em nome da sua mãe e, posteriormente, em nome da sua filha, mantendo toda a família a dominialidade prática sobre aquele bem.

Tendo sido dado como não provado:

- Que o veículo automóvel de matrícula SH, em 31.12.2008 ou noutra data, tenha sido vendido ou alienado por NN, na qualidade de proprietária do mesmo, à sua neta JJ.

Com base na factualidade dada como provada e como não provada, pronunciou-se o acórdão recorrido nos seguintes termos: 

«É com efeito, incontestável que o contrato de seguro por ser um contrato intuitu personnae não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, podendo a seguradora, com base nele, demandada, invocar tal facto, a título de excepção, como facto extintivo do direito do demandante.

A alienação do veículo não importa a transmissão do contrato de seguro, antes pelo contrário, implica a sua caducidade.

(…)

Atente-se que o veículo adquirido em sistema de leasing por uma sociedade e durante o contrato passou a ter como locatária, formal, a avó da ré – aqui com a aparente mudança do tomador do seguro.

Posteriormente, findo o contrato, a gestão, encabeçada sempre pelo pai da autora e filho daquela locatária, decidiu, que não havendo valor residual a pagar, o veículo deveria passar, agora, para o nome da filha.

Assim o fez sem que o seguro retratasse essa realidade, é certo.

Estamos, seguramente, não perante uma venda. Nem sequer uma alienação.

Faltam, desde logo, os requisitos de ordem subjectiva, inerentes. A intenção e a vontade de o fazer.

Estamos, apenas e tão só, perante uma a mudança formal.

Findo o período de duração do prazo do contrato de locação financeira, a propriedade em vez de se consolidar na pessoa da locatária, foi registada em nome da neta.

Da avó, locatária, o filho passou o veículo para a neta, proprietária.

É claro que esta mudança sem que a seguradora tivesse tido conhecimento pode importar o agravamento da sua posição contratual, ou o aparente equilibro das prestações, de contrapartidas e de risco, que estiveram inicialmente na base da decisão de contratar.

Só que não é essa vertente jurídica que aqui está em causa.

Apenas e, tão só, está a de saber se o veículo se pode considerar ter sido alienado pela avó à neta, para os efeitos da norma jurídica invocada pela ré como tendo sido violada.

Cremos bem que a resposta não pode deixar de ser negativa.

Apesar da discrepância que passou a existir entre tomador do seguro e presumida responsabilidade pela sua condução, primeiro na locatária e agora na proprietária.

(…)

Nada indicia, sequer, que findo o contrato de leasing, ou antes ou depois, em momento algum, tenha existido alguma alteração na forma de utilização do veículo, alguma mudança entre quem passou a ter a disponibilidade para o conduzir. Ou entre quem o fazia e o passou a fazer.

Não é a aludida operação de cosmética que tem tal virtualidade.

Findo contrato de leasing a propriedade do veículo passou da locadora financeira - não para a locatária – mas para a sua neta, que fazendo inscrever esse direito no registo automóvel passou a beneficiar da presunção dele resultante – a existir esse direito, existe na sua titularidade.

Que, nem se pode dizer que esteja ilidida pelo facto de ser o irmão que o vai a conduzir, consigo como passageira, desde logo.

Estamos perante um veículo que vai circulando de mão em mão, no seio dos membros da família, no seio das sociedades que a envolvem, sem que haja necessariamente, por isso, efectiva mudança acerca da sua utilização.

O veículo existe para ser utilizado por quem dele necessitar, naquele universo.

As formalidades, o iter, as vicissitudes porque passa a cada momento, ficam-se a dever à gestão da frota que o pai, economista, vai decidindo, a cada momento ser mais vantajoso.

É claro como sugere a ré, que se tal se pode aceitar no seio familiar, do agregado mais próximo, pode-se colocar a questão de saber se abrange, por exemplo, o sobrinho que passou a viver no agregado, enquanto veio para a cidade estudar. Ou a tia, viúva, que depois de reformada, passa longas temporadas no seio da família.

O que não pode significar e, não significa, contudo, que, como defende o FGA, a alienação, de que fala a norma, apenas se verifique em relação a terceiros, fora do restrito número dos membros de uma família.».

Insurge-se a Recorrente contra este entendimento, alegando que o acórdão recorrido fez uma errada aplicação do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, uma vez que se «apurou que em 31.12.2008, muito antes do sinistro dos autos, ocorrido em 22.12.2009, a propriedade do veículo seguro deixou de estar averbada no registo automóvel em nome da sua segurada, NN, e passou a estar averbada em nome de JJ, presumindo-se, por força desse registo, sem que nenhum facto o ilidisse, que a propriedade do veículo é desta última e não já, pois, daqueloutra, para a qual foi, portanto, de alguma forma, alienada.».

A este propósito, invoca o Recorrido Fundo de Garantia Automóvel que, na medida em que «a prova da alienação de um bem móvel não é legalmente vinculada, sendo, ao invés, matéria que deve ser livremente apreciada (...). Para que a decisão recorrida seja revogada e substituída por uma que satisfaça as pretensões da Recorrente, o Supremo Tribunal teria forçosamente de alterar a matéria de facto fixada pelas instâncias e considerar que se deu a alienação do veículo SH, o que não é possível.».

Insurgem-se também os RR. JJ e KK, invocando, entre outros argumentos, que «[d]etermina o art. 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que: Se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente decreto-lei, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior.»; «Ora, se a lei faculta um terceiro a possibilidade de celebrar o contrato de seguro e este é válido, nenhum sentido faria não se manter válido o seguro resultante de uma mera alteração do nome constante do registo, como é o caso dos autos, mantendo-se a propriedade do veículo, como sempre, no mesmo restrito grupo familiar e, até mais, na mesma pessoa.».

Vejamos.

Afigura-se que aquilo que está em causa nos presentes autos é, essencialmente, determinar se a prova feita permite ou não afastar a aplicação do regime da cessação dos efeitos do contrato de seguro, previsto no n.º 1 do art. 21.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, o que constitui questão de direito.

Complementarmente está também em causa verificar se, ao dar como não provado que «[q]ue o veículo automóvel (...) tenha sido vendido ou alienado por NN, na qualidade de proprietária do mesmo, à sua neta JJ», desrespeitaram as instâncias a presunção de titularidade do direito de propriedade (art. 7.º do Código de Registo Predial, aplicável ex vi art. 29.º do Código de Registo Automóvel) que resulta de o dito automóvel estar registado em nome da segunda. O que é igualmente questão de direito.

Conclui-se, assim, que o objecto do presente recurso cabe no âmbito da competência deste Supremo Tribunal (art. 682.º, n.º 1, do CPC).


2. Refira-se, antes de mais, que a presunção resultante da inscrição no registo automóvel reveste a natureza de presunção juris tantum, sendo ilidível mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2, do Código Civil), prova que, no caso dos autos, foi realizada. Cfr., neste sentido, a título exemplificativo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 03-07-2014 (proc. n.º 915/12.3TBFLG.G1.S1) e de 15-04-2015 (proc. n.º 1203/12.0TBVFR.P1.S1), cujos sumários estão disponíveis em www.stj.pt.

Quanto à invocada subsunção do caso sub judice à previsão do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, comecemos por recordar o teor da norma em causa:

«O contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, salvo se for utilizado pelo tomador do seguro inicial para segurar novo veículo.».

Justifica-se convocar também os seguintes preceitos do mesmo diploma legal:

Artigo 4.º

«Obrigação de seguro

1 - Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.

(…).».

Artigo 6.º

«Sujeitos da obrigação de segurar

1 - A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário.

2 - Se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente decreto-lei, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior.

(…).».

Do conteúdo das normas legais supra transcritas, que, nesta matéria, vêm na continuidade do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel instituído pelo Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, resulta o entendimento doutrinário comum (cfr., entre outros, Adriano Garção Soares/Maria José Rangel de Mesquita, Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel Anotado e Comentado, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 117; Filipe Albuquerque Matos, «Contrato de Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel», in Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio Brito de Almeida Costa, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2002, pág. 614, nota 29; Maria Manuela Chichorro, O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, págs. 38 a 40) segundo o qual, no direito português, o sobredito seguro obrigatório reveste natureza pessoal.

Assinale-se que esta qualificação não significa, porém, que, no nosso direito, o seguro seja um seguro do condutor, sem ligação com um concreto veículo automóvel, como sucede em alguns outros direitos. Com efeito, no direito nacional, o seguro refere-se a um certo e determinado veículo e, simultaneamente, a obrigação da sua celebração cabe a quem tem o domínio jurídico sobre o mesmo veículo (cfr. o supra transcrito do n.º 1 do art. 6.º do DL n.º 291/2007).   

Como é evidente, tanto a conexão entre o seguro e o veículo, por um lado, com a conexão entre o seguro e o tomador do seguro/segurado, por outro lado, revestem particular importância para efeitos da delimitação e avaliação do risco coberto pelo seguro.


3. Aqui chegados, importa recordar que a válida celebração do contrato de seguro exige o preenchimento do requisito do interesse (que se entende comumente ser de natureza económica) na cobertura de um determinado risco. Assim se compreende, que, precisamente sob a epígrafe Interesse, o n.º 1 do art. 43.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril), em vigor à data dos factos dos presentes autos, disponha o seguinte:

«O segurado deve ter um interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato.».

Pela mesma ordem de razões se compreende que o n.º 1 do art. 21.º do DL n.º 291/2007, cuja aplicação ao caso sub judice está em discussão, disponha que o contrato de seguro cessa os seus efeitos com a alienação do veículo. Sendo que, neste contexto, a ratio da norma não se situa no acto de alienação (venda, doação ou outro) propriamente dito, mas nas vicissitudes que levam a que o risco coberto pelo contrato sofra alterações. O que se reveste da máxima relevância, uma vez que o risco é elemento do tipo do contrato de seguro (cfr. o art. 1.º do RJCS, no qual se dispõe que «[p]or efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem (...)»).

Deste modo, no caso sub judice, não releva apenas que não tenha sido feita prova de que «o veículo automóvel de matrícula SH (...) tenha sido vendido ou alienado por NN, na qualidade de proprietária do mesmo, à sua neta JJ».[1] Releva também que, ao ilidir a presunção de titularidade do direito resultante de, à data do sinistro, o veículo se encontrar registado em nome da dita JJ, tenha sido feita prova de que «[v]ivendo todos em economia comum, é o OO quem trata da gestão dos negócios familiares, nomeadamente comprando e vendendo os automóveis da família, fazendo-os registar formalmente em nome de sociedade de que são sócios, ou de algum dos referidos familiares, independentemente de qual deles tem o seu uso habitual; Foi o que aconteceu com o automóvel em causa, primeiramente formalizando a sua aquisição por intermédio de leasing, depois fazendo-o registar formalmente em nome da sua mãe e, posteriormente, em nome da sua filha, mantendo toda a família a dominialidade prática sobre aquele bem.».

Com efeito, a prova feita que aponta no sentido de o verdadeiro proprietário do veículo automóvel não ser nem a avó nem a neta, mas antes OO (filho da primeira e pai da segunda); ou que, em alternativa, aponta no sentido de o veículo estar sujeito a uma dominialidade familiar algo difusa permite pôr em causa que o seguro dos autos corresponda a um interesse (de natureza económica) da pessoa que figura (cfr. a fls. 618 o documento contratual junto com a contestação da 1.ª R.) como tomadora do seguro e segurada, NN.

A falta de interesse de índole originária, isto é, a falta de interesse da tomadora do seguro aquando da celebração/renovação do contrato em nome de NN, determina a nulidade nos termos do art. 43.º, n.º 1, do RJCS, vício que, embora não equacionado nos autos, é de conhecimento oficioso (cfr. art. 286.º do Código Civil). A falta de interesse de índole superveniente determina a cessação dos efeitos (ineficácia) do contrato nos termos do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007.

Perante a factualidade dada como provada poderia ainda convocar-se, em abstracto, a figura das falsas declarações no momento da celebração do contrato, mas a anulabilidade, que é a cominação para tal prevista (cfr. art. 25.º do RJCS), não foi oportunamente invocada pela R. seguradora nem é de conhecimento oficioso (cfr. arts. 287.º, n.º 1, do CC, e 573.º do CPC).


4. Se as conclusões formuladas se afiguram correctas, não pode, porém, deixar de se questionar qual será, afinal, a função da faculdade prevista no n.º 2 do art. 6.º do DL n.º 291/2007, acima transcrito. Na verdade, a disposição em causa («Se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente decreto-lei, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior), não é facilmente conjugável com o sistema de seguro assente nos pressupostos supra descritos.

Mais importante ainda, perante tais conclusões, surge a dúvida – legitimamente enunciada pelos RR. JJ e KK («se a lei faculta um terceiro a possibilidade de celebrar o contrato de seguro e este é válido, nenhum sentido faria não se manter válido o seguro») – de saber se a cominação da nulidade do contrato de seguro ao abrigo do art. 41.º, n.º 1 do RJCS – ou da sua ineficácia ao abrigo do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007 – será oponível aos AA., terceiros lesados em relação ao contrato.

Vejamos.

Prescreve o art. 22.º do DL n.º 291/2007 o seguinte:

«Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente decreto-lei, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do n.º 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do acidente.».

Prevê-se, pois, a oponibilidade aos lesados, quer da nulidade do contrato, quer da cessação dos seus efeitos nos termos do n.º 1 do art. 21.º do mesmo diploma legal.

Conclusão esta cuja compatibilidade com o Direito da União Europeia em matéria de seguro automóvel obrigatório não pode deixar de ser questionada, atendendo às evidentes consequências de desprotecção para as vítimas de acidentes de viação que a mesma acarreta.

Esta foi a ratio que esteve na origem do pedido de decisão prejudicial (reenvio prejudicial) formulado por este Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do Processo n.º 40/10.1TVPRT.P1.S1, que veio a culminar no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 20 de Julho de 2017, proferido no Processo C‑287/16.

Cumpre considerar a resposta dada pelo TJUE.

Porém, antes de prosseguir, assinale-se que, ainda que a questão formulada no processo de reenvio assentasse no regime de direito português anterior ao regime actualmente vigente, se constata que:

(i) As normas dos arts. 4.º, 6.º, 21.º e 22.º do DL n.º 291/2007 são idênticas, respectivamente, às normas dos arts. 1.º, 2.º, 13.º e 14.º do DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro;

(ii) A norma do art. 43.º do RJCS corresponde essencialmente à norma do art. 428.º do Código Comercial.

Assinale-se também que – ainda que, no processo que deu origem ao Acórdão do TJUE de 20-07-2017, estivesse em causa apenas a compatibilidade da oponibilidade aos lesados da nulidade do contrato ao lesado, enquanto nos presentes autos está em causa a oponibilidade aos lesados quer da nulidade quer da ineficácia do contrato de seguro – certo é que, no essencial, o problema da compatibilidade com o DUE é essencialmente o mesmo, encontrando-se, aliás, como vimos, ambas as situações de oponibilidade previstas na mesma norma legal (art. 22.º do DL n.º 291/2007), correspondente ao art. 14.º do DL n.º 522/85.

Feitos estes esclarecimentos, consideremos a fundamentação do Acórdão do TJUE de 20-07-2017, que, pela sua importância, se transcreve na parte relevante:

«Quanto à questão prejudicial

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva, o artigo 2.°, n.° 1, da Segunda Diretiva e o artigo 1.° da Terceira Diretiva devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.

Importa recordar que o objetivo da Primeira e da Segunda Diretiva, como resulta do seu preâmbulo, é, por um lado, assegurar a livre circulação tanto dos veículos com estacionamento habitual no território da União Europeia como das pessoas que neles viajam e, por outro, garantir que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C‑300/10, EU:C:2012:656, n.° 26 e jurisprudência referida).

Para estes efeitos, o artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva, tal como precisado e completado pela Segunda e Terceira Diretivas, impõe aos Estados‑Membros que assegurem que a responsabilidade civil relativa à circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro e precisa, nomeadamente, os tipos de danos e os terceiros lesados que esse seguro deve cobrir (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.° 28).

No que respeita aos direitos reconhecidos aos terceiros lesados, o artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva opõe‑se a que a companhia de seguros da responsabilidade civil automóvel possa invocar disposições legais ou cláusulas contratuais para recusar indemnizar os terceiros lesados de um acidente causado por um veículo segurado (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.° 33 e jurisprudência referida).

O Tribunal de Justiça declarou também que o artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da Segunda Diretiva mais não faz do que recordar esta obrigação no que respeita às disposições legais ou às cláusulas contratuais de uma apólice de seguro referida neste artigo que excluam da cobertura do seguro de responsabilidade civil automóvel os danos causados aos terceiros lesados em virtude da utilização ou da condução do veículo segurado por pessoas não autorizadas a conduzi‑lo, por pessoas sem carta de condução ou por pessoas que não cumpram as obrigações legais de ordem técnica relativamente ao estado e à segurança do referido veículo (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.° 34 e jurisprudência referida).

É certo que, em derrogação a essa obrigação, o artigo 2.°, n.° 1, segundo parágrafo, da Segunda Diretiva prevê que certos lesados poderão não ser indemnizados pela companhia de seguros, tendo em conta a situação que eles próprios tenham criado, a saber, as pessoas que por sua livre vontade se encontravam no veículo causador do sinistro, quando a seguradora prove que sabiam que esse veículo tinha sido furtado. Todavia, e como o Tribunal de Justiça já declarou, o artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da Segunda Diretiva não pode ser derrogado a não ser nesta situação específica (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.° 35).

Por conseguinte, há que considerar que a circunstância de a companhia de seguros ter celebrado esse contrato com base em omissões ou em falsas declarações do tomador do seguro não é suscetível de lhe permitir invocar disposições legais sobre a nulidade do contrato e de a opor ao terceiro lesado para se exonerar da sua obrigação, decorrente do artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva, de o indemnizar por um acidente causado pelo veículo segurado.

O mesmo se pode dizer da circunstância de o tomador do seguro não ser o condutor habitual do veículo.

Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que a circunstância de um veículo ser conduzido por uma pessoa não designada na apólice de seguro desse veículo, tendo especialmente em conta o objetivo de proteção dos lesados de acidentes de circulação prosseguido pela Primeira, Segunda e Terceira Diretivas, não permite considerar que tal veículo não está segurado nos termos do artigo 1.°, n.° 4, terceiro parágrafo, da Segunda Diretiva (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.° 40).

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga também o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se, no caso de um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em vigor e para se subtrair à sua obrigação de indemnizar os terceiros lesados de um acidente causado pelo veículo segurado, uma companhia de seguros tem o direito de invocar uma disposição legal, como o artigo 428.°, § 1.°, do Código Comercial português, que prevê a nulidade de um contrato de seguro, se aquele por quem ou em nome de quem o seguro é feito não tiver interesse económico na celebração desse contrato.

Há que salientar que tal questão diz respeito aos requisitos legais de validade do contrato de seguro, que não são regidos pelo direito da União, mas sim pelo direito dos Estados‑Membros.

No entanto, estes últimos têm a obrigação de garantir que a responsabilidade civil aplicável de acordo com o seu direito nacional esteja coberta por um seguro conforme com as disposições das três diretivas supramencionadas.

Decorre igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os Estados‑Membros devem exercer as suas competências neste domínio, no respeito do direito da União, e que as disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas do seu efeito útil (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C‑300/10, EU:C:2012:656, n.os 30 e 31 e jurisprudência referida).

Ora, como a Comissão Europeia salientou, o direito à indemnização dos lesados do acidente é suscetível de se encontrar afetado pelas condições de validade do contrato de seguro, como as cláusulas gerais previstas no artigo 248.°, § 1.°, e no artigo 249.°, primeiro parágrafo, do Código Comercial português. Assim, tais disposições podem determinar que os terceiros lesados não sejam indemnizados e, por conseguinte, prejudicar o efeito útil das referidas diretivas.

Esta constatação não pode ser posta em causa pela possibilidade de o Fundo de Garantia Automóvel pagar uma indemnização ao lesado. Com efeito, a intervenção do organismo referido no artigo 1.°, n.° 4, da Segunda Diretiva foi concebida como uma medida de último recurso, prevista unicamente para o caso de os danos serem causados por um veículo relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de seguro referida no artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva, isto é, um veículo relativamente ao qual não há contrato de seguro. Essa restrição explica‑se pelo facto de esta disposição, tal como foi recordado no n.° 23 do presente acórdão, obrigar os Estados‑Membros a assegurarem que, sem prejuízo das derrogações previstas no artigo 4.° daquela diretiva, todos os proprietários ou detentores de um veículo com estacionamento habitual no seu território celebrem um contrato com uma companhia de seguros, de modo a garantir, dentro dos limites definidos pelo direito da União, a sua responsabilidade civil resultante do referido veículo (v., neste sentido, acórdão de 11 de julho de 2013, Csonka e o., C‑409/11, EU:C:2013:512, n.os 30 e 31).

Ora, como foi recordado no n.° 29 do presente acórdão, a circunstância de um veículo ser conduzido por uma pessoa não designada na apólice de seguro desse veículo não permite considerar que este não está segurado nos termos do artigo 1.°, n.° 4, terceiro parágrafo, da Segunda Diretiva.

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva e o artigo 2.°, n.° 1, da Segunda Diretiva devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.». [negritos nossos]

Com estes fundamentos, proferiu o TJUE a seguinte decisão:

«O artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, e o artigo 2.°, n.° 1, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.». [negrito nosso]


5. De forma a respeitar o princípio ínsito no n.º 3 do art. 3.º do CPC, foi exarado despacho da relatora com o seguinte teor:

«Independentemente da resposta que vier a ser dada à questão objecto do recurso da Ré (caducidade do contrato de seguro por força do disposto no art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto), configura-se como possível ser aplicável à situação dos autos a orientação definida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, no seu Acórdão de 20 de Julho de 2017, proferido no Processo de Reenvio Prejudicial C‑287/16, no sentido de a oponibilidade a terceiro lesado da nulidade do contrato de seguro, prevista no direito português, ser incompatível com o efeito útil das Directivas sobre Seguro Automóvel Obrigatório.

Notifique as partes para, querendo, no prazo de quinze dias, se pronunciarem sobre a referida possibilidade.».


5.1. Os RR. JJ e KK, assim como o R. FGA, vieram pronunciar-se no sentido de ser aplicável ao caso sub judice a orientação definida pelo Acórdão do TJUE de 20-07-2017, proferido no processo C-287/16.


5.2. Por sua vez, a R. Generali veio pronunciar-se em termos que, pela sua relevância, se transcrevem na íntegra:

«1. Salvo o devido respeito a orientação definida pelo acórdão do TJUE invocado no sobredito despacho não será de aplicar à questão em discussão nos presentes autos.

2. Ali discutia-se a oponibilidade a terceiro lesado da nulidade do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, por vício prévio à ocorrência do sinistro, prevista no artº 22º do DL. 291/07, de 21 de Agosto.

3. Aqui discute-se a oponibilidade a terceiro lesado da caducidade do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, por alienação do veículo seguro prévia à ocorrência do sinistro, prevista no artº 21º/1 do DL. 291/07, de 21 de Agosto e assente numa característica essencial, e incontroversa, do contrato de seguro, a sua pessoalidade, não desmentida por nenhuma directiva comunitária sobre o seguro automóvel.

Se, porém, assim se não entender,

4. O que aqui apenas se admite como mera hipótese, que se não concede, sempre então se dirá que é certo que o artº 22 do DL. 291/07, entrado em vigor em 21.10.2007, sob a epígrafe Oponibilidade de excepções aos lesados, prevê o seguinte: “Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente decreto-lei, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do acidente.” (sic)

22. No entanto, também é seguro: - que o artº 24º da LCS, entrado em vigor em 01.01.2009, prevê o seguinte: “1- O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador. 2- O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.” (sic)

23. Que o artº 25 da mesma LCS, sob a epígrafe Omissões ou inexactidões dolosas, estipula o seguinte: “1- Em caso de incumprimento doloso do dever referido no nº 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro. 2- … 3- O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no nº 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.” (sic)

24. Que o artº 147º do mesmo diploma legal, integrado na parte especial do mesmo, na secção I dos seguros de responsabilidade civil, na subsecção II, com as disposições especiais do seguro obrigatório, como é o seguro em discussão nos autos (cf. artº 1º 291/07), prevê o seguinte: “1- O segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro. 2- Para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador, a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato.” (sic).

25. E que o artº 2º da LCS, sob a epígrafe Regimes Especiais, consagra o seguinte: “As normas estabelecidas no presente regime aplicam-se aos contratos de seguro com regimes especiais constantes de outros diplomas, desde que não sejam incompatíveis com esses regimes.” (sic).

26. O sobredito regime da LCS, maxime o previsto nos citados artºs 24º/1 e 2, 25º/1 e 3 e 147º, por previsto em lei, com o mesmo valor normativo, posterior, e lei especial e de aplicação não excluída também aos contratos de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, revogou, pois, tacitamente o previsto no artº 22º do DL. 291/07, admitindo agora como meios de defesa oponíveis, pela seguradora, ao lesado, (i) os derivados do contrato, nomeadamente a invalidade deste, ou (ii) de facto do tomador de seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro, fixando como vício contratual para os casos de declarações dolosas a anulabilidade e estabelecendo como consequência, para o caso, de sinistro ocorrido antes da seguradora ter tido conhecimento do incumprimento, por declaração dolosa, a não cobertura do sinistro pela seguradora.

27. É, pois, este regime actual e já não apenas o do artº 22º do DL. 291/07, o conhecido pelas directivas comunitárias e pelo acórdão do TJUE invocado, que seria aplicável à situação sub juditio e, de resto, a todos os casos similares.

28. Como, de resto, assim o defende JOSÉ VASQUES, em anotação ao artº 147º na Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2011, 2ª ed., p. 494: “Importa desde logo salientar que, pese embora o paralelismo do artigo que vem de se produzir e do sob anotação, prevalece, naturalmente, na conjugação de ambos, a determinação legal de que as normas estabelecidas no presente regime aplicam-se aos contratos de seguro com regimes especiais constantes de outros diplomas, desde que não sejam incompatíveis com esses regimes (art. 2º). § O artigo sob anotação estabelece, de forma relativamente imperativa quanto aos riscos de massa (art. 13º, e art. 2º, nº 6, do RGAS), os meios de defesa que o segurador pode opor aos lesados, circunscrevendo-os aos ocorridos anteriormente ao sinistro e derivados: a) Do contrato de seguro, nomeadamente a invalidade (v.g. a nulidade resultante da inexistência de interesse (art. 43º) ou de risco (art. 44º), as condições contratuais (arts. 37º e 34º, nº 3) e a cessação do contrato, incluindo-se nesta última, pelo menos, a caducidade, a revogação, a denuncia e a revogação (art. 105º); ou b) De facto do tomador do seguro ou do segurado (v.g. a falta de pagamento do prémio (art. 61º, nº 2)). A taxatividade – o segurador apenas pode – dos tipos de meios de defesa oponíveis aos lesado deixa ao intérprete a tarefa da sua concretização; os meios a que alude o número 2 são meramente exemplificativos, referindo-se a lei a outros meios de defesa que podem ser opostos aos lesados, designadamente a falta do consentimento do segurador para o reconhecimento, por parte do segurado, do direito do lesado, ou do pagamento da indemnização que a este seja facultado (art. 140º, nº 7). § Apesar de inserido nas disposições especiais do seguro obrigatório de responsabilidade civil, o artigo sob anotação é igualmente aplicável ao seguro facultativo de responsabilidade civil.” (sic, sublinhado nosso)

29. E assim também o defende LUIS POÇAS, in O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, Coimbra, 2013, p. 695 a 698: “VII. Todo o debate a que vimos aludindo2 ganhou nova actualidade com a LCS. Na verdade, sendo os seguros obrigatórios de responsabilidade civil automóvel e de acidentes de trabalho regulados em legislação especial – diplomas que não foram abrangidos pela norma revogatória do artigo 6º do DL 72/2008, de 16 de Abril – importa aferir da articulação entre o regime geral da LCS e aqueles regimes especiais. Sobre esta matéria, esclarece o artigo 2º da LCS que as normas constantes neste diploma se aplicam aos contratos de seguro com regimes especiais estabelecidos em outros diplomas, desde que não sejam incompatíveis com esses regimes. Se a solução é pacífica – e sempre decorreria, de resto, da normal relação entre regra geral e regra especial - importa ter presente que, para além da disciplina do regime geral do contrato de seguro, a LCS contém, na sua parte especial, mais precisamente, na secção consagrada ao seguro de responsabilidade civil, disposições especiais de seguro obrigatório (artigos 146º a 148º). Ora, é precisamente sobre a articulação de incompatibilidade entre elas, que importa concentrar a nossa análise. Perante o problema suscitado, e atendendo à referida ratio do artigo 2º, pensamos que a pretensão de aplicação do preceito não abrange as mencionadas situações, devendo o mesmo ser interpretado restritivamente no sentido de se referir apenas à relação entre regras gerais e regras especiais. Quanto à relação entre as regras especiais previstas na LCS e as previstas em diplomas autónomos, impõe-se o princípio segundo o qual, ocupando ambas o mesmo nível na hierarquia das fontes e verificando-se uma incompatibilidade entre elas, prevalece a regra posterior (fenómeno de revogação tácita). § Ora, relativamente aos seguros obrigatórios, a LCS consagra, designadamente um regime de inoponibilidades (artigo 147º, com a epígrafe meios de defesa). Nos termos do respectivo nº 1, o segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro, esclarecendo o nº 2 que, para efeito do número precedente, são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador, a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato. A interpretação do referido preceito, que se afigura incontroversa, está, porém, longe de reunir consenso. Desde logo, no preâmbulo do DL 72/2008 prometia-se que, “relativamente a meios de defesa, como regime geral dos seguros obrigatórios de responsabilidade civil, é introduzida uma solução similar à constante do artigo 22º da LSORCA, relativo ao seguro automóvel, sob a epígrafe “Oponibilidade de excepções aos lesados”. Assim, entende Margarida Lima Rego que a LCS veio generalizar aos seguros obrigatórios de responsabilidade civil o que já resultaria, segundo a autora, do regime da LSORCA: “a cessação ou alteração do contrato posterior ao sinistro deixa de poder se oposta ao lesado, qualquer que seja a sua natureza, tão-pouco lhe podendo ser oposta, pelo segurador, a violação de deveres ou ónus por parte do tomador e/ou do segurado”. § Cremos, porém, que não há qualquer base legal para este entendimento, que é desmentido pelo teor claro do preceito, revelador de uma diferença literal e de substância face ao artigo 22º, e superando as imprecisões, ambiguidades e contradições que rodeavam aquele artigo, a que já fizemos referência. O que a leitura da disposição revela é, aliás, bem o inverso: uma clara aproximação ao teor do artigo 449º do CC e um distanciamento evidente da fórmula confusa do artigo 22º da LSORCA. Assim, como resulta da primeira parte do nº 1 do artigo 147º da LCS, as omissões ou inexactidões do tomador são, desde logo, oponíveis ao terceiro lesado porque resultantes do contrato e não de uma relação estranha ao mesmo. Mas essa oponibilidade surge reforçada pela segunda parte do nº 1, com a referência ao facto anterior do tomador do seguro (a violação do dever pré-contratual de declaração do risco). Se, nesta fase, alguma dúvida subsistisse, esta seria definitivamente afastada pelo nº 2 do mesmo artigo, que expressamente refere ser oponível a invalidade – quer se trate de nulidade, quer de anulabilidade (designadamente a resultante da prática de omissões ou inexactidões dolosas em sede de declaração inicial do risco) – do contrato, e não a prévia invocação da mesma. § Poder-se-á, por outro lado, suscitar a questão da oponibilidade ao terceiro lesado das soluções decorrentes do nº 4 do artigo 26º (omissões ou inexactidões negligentes). É certo que a letra do nº 2 do artigo 147º não comporta expressamente este entendimento. Porém, este preceito terá de ser analisado com maior cautela. É que o mesmo não tem autonomia relativamente ao número que o precede, limitando-se a exemplificar situações decorrentes da regra do nº 1 (para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis…). A solução haverá de extrair-se, pois, da regra do nº 1, que claramente afirma a oponibilidade de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro.

Tal é inquestionavelmente o caso do incumprimento (ainda que meramente negligente) do dever de declaração inicial do risco. Face ao exposto, pensamos que, quer a redução proporcional da prestação do segurador, quer a recusa de cobertura do sinistro (com a inerente cessação do contrato), consagradas, respectivamente, nas alíneas a) e b) do nº 4 do artigo 26º são oponíveis ao terceiro lesado. A cessação do contrato encontra-se, aliás, expressamente prevista entre os meios de defesa oponíveis (nº 2 do artigo 147º). A redução proporcional, por seu turno, implicará uma relação de complementaridade com o FGA. § Em suma – e não obstante algumas vozes críticas quanto à bondade da solução adoptada – a LCS resolve em definitivo o diferendo sobre os meios de defesa oponíveis pelo segurador ao terceiro lesado.” (sic, sublinhados nossos)

30. Como ainda o defende MARIA MANUELA RAMALHO SOUSA CHICHORRO, in O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Coimbra, 2010, p. 203: “A recusa em indemnizar por parte do segurador pode fundar-se na existência de exclusões legalmente consagradas do âmbito do seguro obrigatório ou de anulabilidades associadas ao risco. Perante omissões ou inexactidões dolosas e a ocorrência de um sinistro antes de o segurador tomar conhecimento do incumprimento do dever de declaração do risco ou no prazo de três meses subsequente a esse conhecimento, o segurador não é obrigado a garanti-lo. (…) Seria incongruente que a lei produção de todos os efeitos do contrato, tal como haviam sido visados pelo inadimplente, mesmo em presença de tais declarações. O que está em causa é o risco que o segurador aceitou cobrir e que, perante circunstâncias diferentes que não lhe foram comunicadas, não pôde contratar em condições diversas ou simplesmente recusar contratar.” (sic)

31. A solução dada pelo artº 25º/3 da LCS é independente do vício que a declaração dolosa provoca no contrato, o de nulidade ou anulabilidade. Sabendo dessa discussão ou dicotomia e optando o nº 1 daquele preceito pelo vício da anulabilidade, aquela solução é nova e vai para além dela, prevendo, independentemente da mesma, a consequência da declaração dolosa para o segurador, que é a de não estar obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso do dever de declaração do risco.

32. A orientação do invocado acórdão do TJUE pura e simplesmente não conhece do supra exposto, traduzindo-se numa recusa da aplicação do previsto no nº 3 do artº 25º da LCS, que nem sequer menciona, sem, ainda para mais, nenhuma necessidade que se prenda à protecção do terceiro lesado de boa fé, cujo direito de indemnização, em caso de falta ou invalidade do seguro deverá ser satisfeito pelo Fundo de Garantia Automóvel.

34. Não deverá, como tal, ser seguida a orientação do sobredito acórdão, por todos os motivos acima expostos, como se requer.».


5.3. Importa considerar as objecções à aplicação ao caso da orientação definida pelo Acórdão do TJUE de 20-07-2017, proferido no processo C-287/16, suscitadas pela R. Generali e que podem ser assim elencadas:

a) No Acórdão do TJUE de 20-07-2017 discutia-se a oponibilidade a terceiro lesado da nulidade do contrato de seguro por vício prévio à ocorrência do sinistro, prevista no art. 22.º do DL n.º 291/2007, enquanto no caso sub judice se discute a oponibilidade a terceiro lesado da caducidade do contrato de seguro por alienação do veículo seguro prévia à ocorrência do sinistro, caducidade essa prevista no art. 21.º, n.º 1, do mesmo DL n.º 291/2007;

b) Na hipótese de assim não se entender, e ainda que admitindo que o regime do art. 22.º do DL n.º 291/2007 não prevê a oponibilidade ao lesado da anulabilidade do contrato, é necessário ter presente que:

(i) em resultado da aplicação conjugada do regime dos arts. 24.º, n.ºs 1 e 2, 25.º, n.º 1 e 3, e 147.º do RJCS (também denominado como Lei do Contrato de Seguro (LCS)), aplicável ao contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em virtude da previsão do art. 2.º do mesmo RJCS, se deve entender que – num caso de declarações dolosas (art. 24.º do RJCS), como o dos autos – a lei determina a anulabilidade do contrato (art. 25.º do RJCS), a qual é oponível ao lesado, uma vez que o art. 147.º do RJCS o prevê, ao permitir opor ao lesado a invalidade sem distinguir entre o vício da nulidade e o da anulabilidade;

(ii) devendo, por isso, entender-se que o regime do art. 22.º do DL n.º 291/2007 foi, na parte relativa à não oponibilidade da anulabilidade do contrato, tacitamente revogado pelo regime do art. 147.º do RJCS.

Entende enfim a R. seguradora, ora Recorrente, que «[é], pois, este regime actual e já não apenas o do artº 22º do DL. 291/07, o conhecido pelas directivas comunitárias e pelo acórdão do TJUE invocado, que seria aplicável à situação sub juditio e, de resto, a todos os casos similares.». Sendo este o entendimento da doutrina da especialidade que a R. Generali cita extensamente. Concluindo que «[a] orientação do invocado acórdão do TJUE pura e simplesmente não conhece do supra exposto, traduzindo-se numa recusa da aplicação do previsto no nº 3 do artº 25º da LCS, que nem sequer menciona, sem, ainda para mais, nenhuma necessidade que se prenda à protecção do terceiro lesado de boa fé, cujo direito de indemnização, em caso de falta ou invalidade do seguro deverá ser satisfeito pelo Fundo de Garantia Automóvel.».

Quid iuris?

A primeira objecção da Recorrente (alegação de que, no Acórdão do TJUE de 20-07-2017, se discutia a oponibilidade ao lesado da nulidade do contrato de seguro, enquanto no caso sub judice se discute a oponibilidade ao lesado da caducidade do dito contrato) carece inteiramente de razão: por um lado, porque, como se demonstrou supra, no ponto 4. do presente acórdão, no caso dos autos, é convocável a cominação da nulidade do contrato prevista no n.º 1 do art. 43.º do RGCS; por outro lado, porque é de reiterar o supra afirmado: ainda que, no processo que deu origem ao Acórdão do TJUE de 20-07-2017, estivesse em causa apenas a compatibilidade da oponibilidade aos lesados da nulidade do contrato, enquanto nos presentes autos está em causa a oponibilidade aos lesados quer da nulidade quer da ineficácia do contrato de seguro, certo é que, no essencial, o problema da compatibilidade com o DUE é essencialmente o mesmo, encontrando-se, aliás, como vimos, ambas as situações de oponibilidade previstas na mesma norma legal (art. 22.º do DL n.º 291/2007, correspondente ao art. 14.º do DL n.º 522/85) expressamente considerada no referido Acórdão do TJUE.

Quanto à segunda objecção (alegação da oponibilidade ao lesado da anulabilidade do contrato com fundamento em declarações dolosas do tomador do seguro), a sua procedência dependeria de a anulabilidade do contrato ter sido atempadamente deduzida pela R. seguradora (cfr. art. 287.º, n.º 1, do Código Civil). Ora, estando em causa a invocação de excepção fundada em factos alegados na contestação apresentada pelos 2.º e 3.º RR., cumpria que tal dedução tivesse sido feita dentro dos prazos legais previstos para a defesa superveniente (cfr. arts. 573.º, n.º 2, e 588.º, n.º 2, do CPC, conjugados com a previsão do art. 149.º, n.º 1, do mesmo Código). Não tendo a anulabilidade sido atempadamente invocada, precludiu a faculdade dessa invocação.

Acresce que, diversamente do invocado pela R. seguradora, a possibilidade de os lesados virem a ser indemnizados pelo Fundo de Garantia Automóvel não torna irrelevante que, em primeira linha, se assegure o funcionamento do mecanismo do seguro automóvel obrigatório. Na verdade, nas palavras do Acórdão do TJUE de 20-07-2017, que vimos convocando, «(...) a intervenção do organismo referido no artigo 1.°, n.° 4, da Segunda Diretiva foi concebida como uma medida de último recurso, prevista unicamente para o caso de os danos serem causados por um veículo relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de seguro referida no artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva, isto é, um veículo relativamente ao qual não há contrato de seguro».

Decorre destas considerações do TJUE que a exigência do Direito da União Europeia quanto à instituição, pelos Estados-membros, de um organismo com a natureza e funções do Fundo de Garantia Automóvel visa única e exclusivamente a tutela do interesse das vítimas de acidentes de viação e não, ainda que indirectamente, a tutela do interesse da seguradora ou seguradoras dos veículos envolvidos.

Conclui-se, assim, pela aplicação ao caso dos autos da orientação definida pelo Acórdão do TJUE de 20-07-2017, proferido no Processo C-287/16.


6.  Consequentemente, e tal como se entendeu a respeito de normas equivalentes do regime anterior ao DL n.º 291/2007 (no acórdão deste Supremo Tribunal de 02-11-2017, proferido no Processo n.º 40/10.1TVPRT.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt, no âmbito do qual foi formulado o pedido de decisão prejudicial que vimos referindo), perante aquela decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, a interpretação do direito português em conformidade com o Direito da União Europeia, impõe que se considere que, num contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel como o dos autos, o requisito legal do interesse, previsto no n.º 1 do art. 43.º do RJCS, e subjacente ao n.º 1 do art. 21.º do DL n.º 291/2007, se encontra derrogado pela possibilidade de o contrato ser celebrado por terceiro, prevista no n.º 2 do art. 6.º do DL n.º 291/2007.

Consequentemente, o facto de, como no caso dos autos, se constatar existir uma dissociação entre a tomadora do seguro/segurada (no caso, NN) e aquele ou aqueles cujo interesse é coberto pelo contrato de seguro (o membro ou membros da família da tomadora do seguro, que é/são proprietários do veículo), podendo relevar nas relações entre as partes contratantes, não permite – em conformidade com a orientação interpretativa imposta pelo respeito pelo efeito útil das Directivas Comunitárias em matéria de seguro automóvel obrigatório – seja que se declare oficiosamente a nulidade de tal contrato nos termos do art. 43.º, n.º 1, do RJCS, seja que se declare a cessação dos efeitos do mesmo contrato nos termos do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007. Razão pela qual não há lugar à aplicação de qualquer dos regimes de oponibilidade aos AA. lesados dos meios de defesa da seguradora previstos no art. 22.º do DL n.º 291/2007 e no art. 147.º do RJCS.


7. Tendo-se concluído pela improcedência do recurso da R. seguradora, ainda que com fundamento distinto daquele que foi considerado pelo tribunal a quo, fica prejudicada a apreciação do pedido subsidiário formulado pelos AA. e invocado por estes em sede de ampliação do objecto do presente recurso de revista, sem necessidade de se tomar posição sobre a correcção deste enquadramento processual.


V – Decisão

Pelo exposto, com fundamento na interpretação do direito nacional em conformidade com o Direito da União Europeia, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 19 de Janeiro de 2023


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

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[1] Assinale-se que é precisamente a falta de prova da alienação do veículo que distingue o caso dos autos de casos anteriores apreciados por este Supremo Tribunal (na vigência da norma do art. 13.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31.12, correspondente à norma do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21.08), nos quais, considerando-se provado um acto de alienação do veículo, se declarou a cessação dos efeitos do contrato de seguro. Cfr. os acórdãos de 16-05-2002 (proc. n.º 1007/02), de 24-10-2006 (proc. n.º 3021/06), de 09-01-2007 (n.º 4434/0603-11-2009), de 29-04-2010 (proc. n.º 191/07.0TBCBR.C1.S2), todos disponíveis em www.dgsi.pt, e ainda os acórdãos de 03-11-2009 (proc. n.º 905/06.5TBPTG.S1) e de 29-04-2010 (proc. n.º 191/07.0TBCBR.C1.S2), não publicados. Já no acórdão de 10-07-2007 (proc. n.º 4395/06), não publicado, entendeu-se não aplicar o regime do referido art. 13.º do DL n.º 522/85, com fundamento na desconsideração da personalidade colectiva da sociedade adquirente do veículo automóvel.