Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2387/20.0T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DO RECORRENTE
MEIOS DE PROVA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I – A natureza da exigência legal prevista na al. b) do n.º1 do art.º 640.º do CPCiv, também em conjugação com a norma da al.a) do n.º2 do mesmo artigo, impõe a indicação precisa dos meios de prova que deveriam levar à pretendida modificação dos factos concretamente impugnados e a especificação, no recurso, das concretas razões trazidas à análise probatória por esses referidos meios de prova.

II - Impondo-se a análise do recorrido à luz de princípios de proporcionalidade ou adequação, será apenas de evitar o acolhimento da pretensão recursória que se traduza numa total reapreciação da prova pela 2.ª instância ou (o seu equivalente) que se traduza em recurso genérico, em matéria de indicação das passagens da gravação, no caso de provas gravadas.

III – Se a indicação das passagens da gravação relevantes não é precisa (indica-se apenas a totalidade do depoimento), mas a imprecisão é compensada de duas formas: pelo destaque, a negrito, dos pontos que se entendem salientar e pela transcrição mais abreviada, constante das conclusões, e se, observados os requisitos legais, não apenas os Recorrentes indicaram as passagens da gravação relevantes, como também procederam à transcrição das partes importantes do depoimento, que tinham antes destacado no corpo das alegações, cumprirá fazer baixar o processo à Relação, para que seja julgado o recurso em matéria de facto.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Referências

AA instaurou a presente acção com processo de declaração e forma comum contra BB e mulher CC, e DD, formulando os seguintes pedidos:

1 - Declarar-se a ineficácia perante a A. das transmissões dos prédios mistos referenciados nos arts 7º e 8º desta petição formalizadas pelas escrituras de doação ali referenciadas,

2 - bem como o direito da A. à restituição dos referidos prédios aos doadores, ora 1ºs R.R., na medida do seu interesse e a executá-los no património do 2º R., para pagamento do seu crédito de E. 155.195,25 e ainda a praticar todos os actos de conservação da garantia patrimonial sobre eles, de forma a obter a satisfação integral do seu crédito, no âmbito do processo de execução falado no art. 2º desta petição;

Subsidiariamente,

3 - declarar-se a nulidade, por simulação absoluta, dos contratos de doação referenciados nos art. 7º e 8º da petição,

4 - e, em consequência, restituir-se aos respectivos patrimónios dos 1º R.R. os referenciados prédios,

5 - e ordenar-se o cancelamento de todos os actos de inscrição matricial e de aquisição no registo predial favor do 2º R., referenciados nos arts. 7º e 8º (in fine) desta petição, com as legais consequências.

Alegou ter intentado acção judicial em 22.06.2008, na qual foi proferida sentença, transitada em julgado, que condenou os 1ºs. Réus a procederem à reparação/eliminação dos defeitos existentes no prédio urbano da Autora, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., contemplando a verificação da estrutura do mesmo, a drenagem e impermeabilização dos pavimentos e a eliminação de pontes e reforço do isolamento térmico.

Como os Réus não procederam a nenhuma das obras em que foram condenados, a autora instaurou contra eles, em 20.03.2018, execução para prestação de facto por outrem, que, com o nº 1527/18...., corre termos pelo Tribunal da Comarca ..., Juízo de Execução ... - Juiz ..., na qual foram deduzidos embargos de executado, os quais foram liminarmente indeferidos por sentença transitada em julgado, tendo sido determinado, por despacho de 03.06.2019, uma avaliação do custo das obras necessárias à reparação/eliminação dos defeitos existentes no prédio da autora, a qual foi realizada, avaliando aquele custo em € 155.195,25, após o que foi proferido despacho em 18.03.2020, transitado em julgado, no qual se determinou que, tendo por referência o valor apurado de € 155.195,25, a execução prosseguisse nos termos do nº 2 do art. 870º do CPC.

Mais alegou que as doações feitas pelos 1ºs Réus ao 2º Réu ocorreram em 2018, tendo todos eles conhecimento da existência da aludida acção judicial, da sentença e do crédito da autora sobre os 1ºs Réus, bem como que, com a realização de tais negócios, subtraíam os prédios doados do património dos 1ºs Réus, ficando a autora impossibilitada de cobrar e obter o seu crédito, pois tanto em 2007-2008, como em 2018, eram aqueles imóveis os únicos bens que integravam o património dos 1ºs Réus, como todos eles sabiam e tinham conhecimento, sendo que aqueles Réus não têm quaisquer outros bens, nomeadamente prédios, direitos, saldos de contas bancárias, para além de veículos automóveis com mais de 15 anos e do direito de usufruto sobre os prédios doados, que possibilitem à autora obter a satisfação integral do seu crédito.

Só teve conhecimento das referenciadas doações em 18.09.2020, por nesta data ter sido notificada pelo Agente de Execução da pesquisa de bens para tal efeito.

Os Réus contestaram, impugnando parte da factualidade alegada pela autora e concluindo pela improcedência da ação.


As Decisões Judiciais

Foi proferida sentença em 1.ª instância, que julgou a acção totalmente procedente e, em consequência:

A) declarou a ineficácia, em relação à Autora, AA, do seguinte:

a) do acto de doação efectuado no dia 3 de outubro de 2018, no Cartório Notarial ..., sito na Rua ... em ... do “prédio misto, com a área total de três mil e seiscentos metros quadrados, sito em ..., na Rua ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número quatro mil cento e quarenta e quatro da freguesia ..., onde se encontra registada a aquisição a seu favor pela apresentação sete, de vinte e cinco de setembro de dois mil e dois, prédio esse que se compõe de: a) Parte urbana: casa térrea de habitação, com sessenta e cinco metros quadrados, com um logradouro com trezentos e setenta e cinco metros quadrados, inscrita na matriz da freguesia ... sob o artigo ...20, do qual foi pedida a actualização, com o valor patrimonial de €9.600,00; b) Parte rústica: terreno de cultura arvense, vinha, pomar de laranjeiras e leito de curso de água, com três mil e duzentos metros quadrados, inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo ...01 da secção AB (que teve origem no 40-AB da mesma freguesia com o valor patrimonial de € 630,12”, atribuindo “ao bem doado o valor igual ao patrimonial correspondente, ou seja o de €. 6.138,12, com registo de aquisição a favor do 2º R. pela Ap. ...99 de 2018/10/10.

b) Do acto de doação efectuado no dia 6 de Dezembro de 2018 no Cartório Notarial ..., sito na Rua ..., ..., em ..., do “prédio misto sito na Quinta ..., freguesia ..., concelho ..., com a área total de mil seiscentos e trinta e três metros quadrados, composto por terreno e cultura arvense em parte do qual se encontram implantadas as seguintes construções: a) casa de rés do chão destinada a habitação, com a área de cinquenta e oito virgula vinte sete metros quadrados, inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...98, com o valor patrimonial de 15.617,36€, a que atribui igual valor, e, b) casa de rés do chão destinada a habitação, com a área de cento e três virgula cinquenta metros, inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...53, com o valor patrimonial de 29.493,74€, a que atribui igual valor, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número três mil novecentos e quarenta, da freguesia ..., com aquisição registada a seu favor como bem próprio, nos termos da apresentação cinco de vinte e sete de Outubro de dois mil e quatro. A parte rústica inscrita na respectiva matriz cadastral sob parte do artigo ...0 da secção AG, pendente de resolução, a que atribui o valor de quinhentos euros”.

B) Reconheceu à Autora o direito de o executar no património dos obrigados à restituição e de praticar todos os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

Tendo os Réus recorrido de apelação, a Relação veio a pronunciar-se, confirmando a decisão recorrida.


Inconformados ainda os Réus, pretendem agora interpor recurso de revista, que classificam como de revista excepcional.

Não foram apresentadas contra-alegações de revista.


São as seguintes as conclusões de alegação:

1.º- A Autora, AA, intentou contra os Réus, na Comarca ..., acção declarativa com processo comum, com os fundamentos constantes da sua Petição Inicial, cujo conteúdo aqui se reproduz.

2.º - Por douta sentença, foi a acção considerada totalmente procedente, por provada.

3.º - Inconformados, os Réus interpuseram recurso de apelação para o Venerando Tribunal da Relação de Évora, nos termos constantes da suas alegações recursivas e conclusões, cujo conteúdo aqui se reproduz.

4.º - Por douto acórdão daquele Tribunal superior, foi julgada improcedente a apelação e confirmada a sentença recorrida.

Dos pressupostos/requisitos do recurso de revista excepcional

5.º - No entendimento dos Recorrentes, o Tribunal da Relação tratou inadequadamente a alegada matéria de facto, não conhecendo dela e, por isso, decidiu-se pela imediata rejeição do recurso.

6.º - Por se tratar de impugnação da decisão da matéria de facto, entendemos que se trata de uma questão que, pela relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito.

7.º - E de particular relevância social.

8.º - Por isso, a Sapiente Formação deste Alto Pretório, prevista no n.º 3 do art. 672.º do C.P.Civil, decidirá no sentido de admissibilidade da Revista Excepcional.

9.º - O presente recurso de Revista Excepcional vem do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, sendo interposto ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do já citado art. 672.º.

10.º - No Acórdão do Tribunal da Relação recorrido, a quo, a fls. 13, escreveu-se: “ (…) No caso dos autos, considerando o corpo das Alegações e as suas Conclusões, pode afirmar-se que os Recorrentes não cumpriram integralmente os ónus impostos pelo artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do CPC. (…) ”

“Tendo os Recorrentes indicado os concretos pontos da matéria de facto que consideram incorrectamente julgados, não sofre dúvida que os mesmos cumpriram o ónus imposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º.

E o mesmo se diga quanto à alínea c) do mesmo preceito legal, ou seja, quanto à decisão que no entender dos Recorrentes deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, ainda que não o tenham feito da forma mais adequada.

Já o mesmo, porém, não sucedeu quanto aos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa [alínea b), do n.º 1, do referido artigo 640.º].”

11.º - E a fls. 15 do mesmo Acórdão escreveu-se: “Em suma, a inobservância por parte dos Recorrentes dos aludidos ónus determina a imediata rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto, pelo que nenhuma alteração será feita à decisão sobre tal matéria proferida pela 1.ª instância.”.

12.º - Entendemos que, sempre com o devido respeito por opinião diversa, de acordo com as Conclusões reproduzidas, o Tribunal recorrido não tem razão.

13.º - E isto porque os Recorrentes indicaram com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, procedendo à transcrição dos excertos que consideraram relevantes.

14.º - Cumprindo, por isso, o ónus imposto pela alínea b), do n.º 1 do referido art. 640.º do CPC.

15.º - Decidindo assim, o Tribunal da Relação a quo cometeu erro notório na apreciação da prova,

16.º - Erro que deve ser apreciado por este Alto Tribunal.

17.º - Os Recorrentes não se conformam com a douta decisão sobre a matéria de facto e, por isso, impugnam a decisão relativa à matéria de facto.

18.º- E isto porque os Recorrentes deram estrito cumprimento ao que vem disposto no art. 640.º do C.P. Civil:

- Indicaram os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados (n.º 1, alínea a));

- Indicaram os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da Recorrida (n.º 1, alínea b));

- Indicaram a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (n.º 1, alínea c));

- Indicaram as passagens da gravação relativas ao recurso e procederam à junção aos autos da gravação (n.º 2, alínea a)).

19.º - Mas o Tribunal da Relação não admitiu a impugnação e, por isso, procedeu à imediata rejeição do Recurso no tocante à impugnação da matéria de facto.

20.º - Entendemos que o Tribunal da Relação não tem razão, ao decidir assim, tendo cometido um erro notório na apreciação da prova.

21.º - Assim, o presente Recurso, quanto à impugnação da matéria de facto, não devia ter sido rejeitado pelo Tribunal da Relação.

22.º - O Tribunal da Relação ofendeu o disposto no art. 640.º, n.º 1, alínea b) do C.P. Civil, por ter rejeitado parcialmente a matéria de facto.

23.º - No caso de se entender que não se verifica Dupla Conforme, deverá o presente recurso ser recebido como Revista Normal.

24.º - Tal como, a título de exemplo, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, afastar a Dupla Conforme:

- Proc. Revista 9209/19.2T8SNT.L1.S1 – 7.ª Secção, despacho de 21/02/2022, Juiz Conselheiro Tibério Nunes da Silva;

- Ac. do STJ de 17/12/2019, Proc. 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, Rel. Juiz Conselheira Maria da Graça Trigo;

- Ac. do STJ de 18/01/2020, Proc. 701/19.0T8EVR.E1.S1, Rel. Juiz Conselheira Maria João Vaz Tomé;

- Ac. do STJ de 18/01/2022, Proc. 243/18.0T8PFR.P1.S1, Rel. Juiz Conselheira Maria Clara Sotto Mayor,

Todos publicados em www.dgsi.pt.

25.º - Por não se ter julgado assim, violou-se o disposto no art. 640.º, n.º 1, alínea b) do C.P. Civil.


Factos Apurados

1. Por sentença de 11/3/2016 e transitada em julgado a 22/9/2017 proferida no âmbito do processo nº 871/08.... que correu termos pelo Tribunal da Comarca ..., ... – Instância Central – Secção Cível – J..., intentado pela ora A. contra os ora 1ºs R.R. e outro a 2/6/2008, foram os ora 1ºs R.R. condenados a, no prazo de 6 meses a contar do trânsito em julgado da sentença:

A - A procederem à reparação/eliminação dos defeitos existentes no prédio urbano sito em ..., freguesa de ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...93/..., inscrito na respectiva matriz sob o art. provisório 5783 e registado a favor da A. pela inscrição G-2, contemplando a verificação da estrutura do mesmo, a drenagem e impermeabilização dos pavimentos e a eliminação de pontes e reforço do isolamento térmico:

1) Proceder à drenagem do solo da fundação da moradia e do logradouro de forma permanente fazendo baixar significativamente o nível freático.

2) Substituir a pintura exterior das fachadas, por uma pintura que, para além das necessárias características de impermeabilidade, seja tolerante à difusão do vapor de água que se venha a gerar no interior da habitação, incluindo a reposição ou substituição (consoante os casos) de materiais, dos revestimentos e pinturas.

3) Proceder à impermeabilização, pelo exterior, das vigas de fundação e drenagem em torno destas vigas, arranque das paredes exteriores, com emulsão betuminosa e revestimento com membrana polimétrica e camada drenante granular em polietiano e geotêxtil.

E sendo o caso,

- Proceder à remoção dos revestimentos e betonilha do piso térreo e executada a escavação de uma caixa com a altura mínima de 35 cm, com valas e tubos de drenagem geodreno, tubos de drenagem esses que deverão ser ligados por caixas de visita, a efectuar, e finalmente à caixa de recolha de águas pluviais.

- E na execução de novo pavimento sobre betonilha armada hidrofugada com endurecedor, proceder à execução de enrocamento e massame ou lage de pavimento sobre a caixa de ar e à impermeabilização do pavimento com membrana polimérica, isolamento térmico com poliestireno extrudido de alta densidade e tecido separador de poliéster.

4 – Substituir as carpintarias interiores e mobiliário de madeira.

5 – Proceder à pintura das paredes interiores.

B - ….” [Vide certidão de fls. 7 a 55]

2. Dado os 1ºs R.R. não terem procedido a quaisquer obras em que foram condenados, a 20/3/18 a A. intentou contra aqueles execução para prestação de facto por outrem, que com o nº 1527/18.... pende pelo Tribunal da Comarca ..., Juízo de Execução ... – Juiz .... [Vide docs. de fls. 56 a 60v]

3. tendo a 27/4/2018 os Executados, ora 1ºs R.R., sido citados para deduzirem oposição à execução e apresentado embargos de executado, os quais foram liminarmente indeferidos por sentença transitada em julgado. [Vide docs. de fls. 61 a 69v]

4. e, por despacho de 3/6/19, “nos termos do disposto no art. 868º/1 e 870º/1 do CPC, determino a realização de avaliação ao custo das obras necessárias à reparação/eliminação dos defeitos existentes no prédio em causa”. [Vide docs. de fls. 70 a 71]

5. a qual foi realizada, tendo sido fixado um custo de € 155.195,25. [Vide docs. de fls. 71 a 80]

6. tendo por despacho de 18/3/20 transitado em julgado sido determinado “que, tendo por referência o valor apurado de € 155.195,25, a execução prossiga nos termos do nº 2 do art. 870 do Código de Processo Civil”. [Vide doc. de fls. 80v a 82]

7. Por escritura de 3/10/18 os 1º R.R. doaram ao 2º R., seu filho, que aceitou e por conta das suas quotas disponíveis, livre de ónus e encargos e reservando para si o usufruto simultâneo e vitalício, a nua propriedade “do prédio misto, com a área total de três mil e seiscentos metros quadrados, sito em ..., na Rua ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número quatro mil cento e quarenta e quatro da freguesia ..., onde se encontra registada a aquisição a seu favor pela apresentação sete, de vinte e cinco de setembro de dois mil e dois, prédio esse que se compõe de:

- a) Parte urbana: casa térrea de habitação, com sessenta e cinco metros quadrados, com um logradouro com trezentos e setenta e cinco metros quadrados, inscrita na matriz da freguesia ... sob o artigo ...20, do qual foi pedida a actualização, com o valor patrimonial de E. 9.600,00

- b) Parte rústica: terreno de cultura arvense, vinha, pomar de laranjeiras e leito de curso de água, com três mil e duzentos metros quadrados, inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo ...01 da secção AB (que teve origem no 40-AB da mesma freguesia com o valor patrimonial de € 630,12”, atribuindo “ao bem doado o valor igual ao patrimonial correspondente, ou seja o de €. 6.138,12” (doc.8), com registo de aquisição a favor do 2º R. pela Ap. ...99 de 2018/10/10. [Vide certidão de fls. 82 v a 84]

8. e, por escritura de 6/12/18, a 1ª R., com o consentimento de seu marido, o 1º R., doou ao 2º R., seu filho, que aceitou, por conta da sua quota disponível, a nua propriedade do “prédio misto sito na Quinta ..., freguesia ..., concelho ..., com a área total de mil seiscentos e trinta e três metros quadrados, composto por terreno e cultura arvense em parte do qual se encontram implantadas as seguintes construções:

a) casa de rés do chão destinada a habitação, com a área de cinquenta e oito virgula vinte sete metros quadrados, inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...98, com o valor patrimonial de 15.617,36 E, a que atribui igual valor, e,

b) casa de rés do chão destinada a habitação, com a área de cento e três virgula cinquenta metros, inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...53, com o valor patrimonial de 29.493,74 E, a que atribui igual valor, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número três mil novecentos e quarenta, da freguesia ..., com aquisição registada a seu favor como bem próprio, nos termos da apresentação cinco de vinte e sete de Outubro de dois mil e quatro. A parte rústica inscrita na respectiva matriz cadastral sob parte do artigo ...0 da secção AG, pendente de resolução, a que atribui o valor de quinhentos euros”, correspondendo à nua propriedade ora doada o valor de E. 27.366,66, nos termos do art. 13º do C.I.M.T, alínea), a que atribui igual valor.

Mais declarou a 1ª R. em tal escritura de doação “que, o correspondente direito de USUFRUTO fica na contitularidade, dela própria doadora, por reserva na doação que ora faz, mas também na titularidade do 1º Outorgante, BB, seu marido, por doação que faz também nesta escritura, a que corresponde o valor de dezoito mil duzentos e quarenta e quatro euros e quarenta e quatro cêntimos, nos termos da alínea b) do art. 13º do C.I.M.T., a que atribui igual valor”.

Que o direito de usufruto sobre o referido prédio á assim constituído simultânea e sucessivamente a favor dos dois usufrutuários, a extinguir, no todo, à morte do último a sobreviver “, tendo o 2º R. aceite tal doação (doc. 9), com registo de aquisição favor deste pela Ap. ...36 de 2018/12/11. [Vide certidão de fls. 84v a 98]

9. Os 1º e 2º RR tinha conhecimento da existência da acção judicial supra referida e do crédito da Autora sobre os 1ºs RR, bem como que com as supra mencionadas doações, subtraiam os referenciados prédios do património dos 1ºss RR, ficando a Autora impossibilitada de cobrar e obter o seu crédito.

10. Encontra-se registado a favor da Ré EE, o direito de propriedade sobre o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, marca Fiat modelo Ducati DS100 Furgão, matrícula XO-..-.. do ano de 1991. [Vide docs. de fls. 90v e 92v]

11. Encontra-se registado a favor do Réu FF o direito de propriedade sobre os seguintes veículos:

- veículo automóvel ligeiro de mercadorias, marca Nissan, modelo RLMD 21 SFA, matrícula GX-..-.. do ano de 1990;

- veículo automóvel ligeiro misto, marca Ford, modelo Escort 1100, matrícula HA-..-.., do ano de 1987;

- veículo automóvel ligeiro de mercadorias, marca Nissan, modelo Homer QLGF 20A, matrícula BV-..-.. do ano de 1996;

- ciclomotor de 50cc de cilindrada, marca Macal, modelo M-70-Sport, matrícula ..-NA-.. do ano de 1984;  [Vide docs. de fls. 91v,93 e 93v]

12. A Autora só teve conhecimento das doações a 18 de Setembro de 2020, quando notificada pelo Agente de Execução das pesquisa de bens feita em sede de execução, em 16 de Setembro de 2020. [Vide doc. de fls. 87v e 88]

13. Os prédios em causa foram adquiridos pelos 1º RR mediante escritura de partilha outorgada no dia 1 de Julho de 2002 no Cartório Notarial .... [Vide certidão de fls. 122 a 125]

14. Através de escrituras de divisão e doação, realizada em 15 de Setembro de 2004, entre GG e a Ré HH, foi acordada a divisão de prédio descrito sob o nº ...49 do Registo Predial de ..., tendo sido adjudicada à GG um parcela de terreno a destacar do referido prédio e à ora Ré o restante do prédio, o qual foi objecto da doação em 06 /12 2018, referida no ponto 2.1.8. [Vide cópia não certifica de escritura pública de fls .128v a 131v]


Factos Não Provados:

1. Os 1º e 2º RR acordaram e combinaram entre si, ficcionar e fingir que aqueles doavam a este a nua propriedade dos prédios em causa e que esta aceitava tal doação, no intuito de enganar e prejudicar a Autora, credora dos 1ºs RR.

2. Os 1ºs RR nunca tiveram vontade real e verdadeira de doar tais prédios reservando o usufruto para si, nem o 2º R. de aceitar tal doacção.

3. Por o 2º Réu ser filho adoptivo, sempre foi intenção dos 1ºsRR, transmitir a propriedade de todos os bens imóveis e móveis, ao seu filho, em vida deles (pais).

4. Os 1ºRR desde 2011/2012 que tentaram fazer a escritura de doação ao 2º Réu mas não o puderam fazer porque o terreno não estava legalizado.

5. Sempre que os 1º RR tentavam fazer a doação ao seu filho DD e ora 2º R, surgiam problemas ou porque o terreno não estava legalizado, ou porque havia desconformidades entre as áreas, as áreas escritas nas Finanças eram diferentes das áreas escritas na Conservatória do Registo Predial, falta de rectificação das áreas, ausência de destaques.

6. Só em 2018, foram removidos os obstáculos que permitiram fazer as escrituras de doação, referidas nos pontos 7 e 8.

7. Que para além dos veículos automóveis referidos nos pontos 10 e 11, os Réus tenha quaisquer outros bens que possibilitem à Autora obter a satisfação integral do seu crédito.


Conhecendo:


À guisa de intróito, dir-se-á que, de acordo com o que é jurisprudência consolidada deste Tribunal, a imputação ao tribunal recorrido da violação do regime adjectivo previsto no art.º 640.º do CPCiv, no tocante à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, descaracteriza a dupla conforme entre as decisões das instâncias, por se inscrever no âmbito do exercício dos poderes conferidos à Relação, não se verificando duas apreciações sucessivas de uma mesma questão de direito; no caso, tendo em conta que a questão que a Ré invoca revestir relevância jurídica se reconduz ao tópico da errada aplicação pela Relação das disposições adjectivas contidas no art.º 640.º n.ºs 1 al. b) e 2 al. a) do CPCiv, conclui-se não estar verificada a dupla conformidade decisória pressuposta para a admissibilidade do meio impugnatório excepcional.

Como assim, nada impede o conhecimento da revista, a título de revista normal ou ordinária.



I


Importa sublinhar, desde logo, que é de sufragar a doutrina exposta no acórdão recorrido, no sentido de que, no regime legal do art.º 640.º n.ºs 1 e 2 do CPCiv, “é possível distinguir dois tipos de ónus, como tem vindo a entender a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e está bem explícito no acórdão de 29.10.2015 (p.º n.º 233/09.4TBVNC.G1.S1), a saber:”

- “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes» e consta do transcrito n.º 1 do art. 640º; e”

- “um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes», previsto no nº 2 do mesmo preceito.”

“O ónus primário refere-se à exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, conforme previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do citado artigo 640º, visa fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e tem por função delimitar o objeto do recurso.”

“O ónus secundário consiste na exigência da indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo, e visa possibilitar um acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.”

Acrescente-se porém que também é jurisprudência habitual deste S.T.J., na expressão do Ac. de 19.02.2015 (p.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1), que enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1 do referido art. 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2 al. a) do mesmo artigo, tal sanção deverá ser aplicada com algum tempero, só se justificando nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame por banda do tribunal de recurso.

Desde que não exista essa dificuldade, apesar da indicação pelo recorrente da localização dos depoimentos não ser totalmente exacta e precisa, não se justifica a rejeição do recurso (veja-se, por todos, o Ac. S.T.J. 21/3/2019, p.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2, rel. Maria Rosa Tching).



II


Conjugando assim a impugnação recursória com o teor do acórdão recorrido, o quadro geral de solução da matéria do recurso é o de saber se se mostra, em concreto, cumprida a exigência do artº 640º nºs 1 al.b) e 2 al.a) do CPCiv, ou seja, se, nas alegações de recurso de apelação, os Recorrentes se limitaram a transcrever depoimentos testemunhais, a referenciar documentos e a mencionar determinado articulado da Contestação, por forma genérica, relativamente aos factos provados e não provados concretizados e que, nessa medida, desejavam fossem julgados de forma diversa.

Isto é, se, apesar de concretizarem os factos impugnados (nos termos do art.º 640.º n.º1 als.a) e c), procederam após a um elenco das provas que imporia decisão diversa, por forma genérica, inconcretizada, mencionando de forma genérica documentos e, também de forma genérica, transcrevendo depoimentos testemunhais, face aos ditos pontos de facto impugnados, como aconteceu nas alegações de apelação adrede produzidas no processo - se os Recorrentes de apelação se limitaram a transcrever declarações e a mencionar documentos, descurando uma impugnação pontual e, quanto aos depoimentos testemunhais gravados, uma indicação precisa das passagens da gravação e/ou da transcrição dos excertos relevantes, tal como é imposta pela lei.

A natureza da exigência legal prevista na al. b) do n.º1 do art.º 640.º do CPCiv, também em conjugação com a norma da al.a) do n.º2 do mesmo artigo, impõe a indicação precisa dos meios de prova que deveriam levar à pretendida modificação dos factos concretamente impugnados e a especificação, no recurso, das concretas razões trazidas à análise probatória por esses referidos meios de prova.

Situa-se assim a apreciação do recurso em matéria de facto algures entre os citados ónus primário e secundário – entre a al.b) do n.º1 e a al.a) do n.º2 do art.º 640.º do CPCiv.

Neste sentido, impõe-se uma análise do recorrido à luz de princípios de proporcionalidade ou adequação, evitando o acolhimento da pretensão que se traduziria numa total reapreciação da prova pela 2.ª instância e a abertura do caminho à admissibilidade de recursos genéricos, que a lei não permite (cf. o Ac.S.T.J. 11/4/2018, p.º n.º789/16.5T8VRL.G1.S1, in direitoemdia.pt, rel. Chambel Mourisco, adequadamente citado pelo acórdão recorrido).



III


Não pode deixar de se dar razão ao acórdão, no sentido de que as alegações e as conclusões (estas que repetem as primeiras, apenas com supressão de alguns pontos) são sobretudo descritivas e com uma explanação apenas indirecta, por reporte aos factos que se pretendiam impugnar.

Esse pode, porém, ser apenas um estilo da impugnação e não a substância da mesma.

Não estando em causa o “ónus primário”, em matéria de “ónus secundário” os Recorrentes pretendem se conclua que determinadas escrituras de doação, celebradas em 2018, não podiam ser outorgadas antes, o que se retira quer das próprias escrituras de doação, quer da necessária rectificação prévia de áreas do prédio doado (vejam-se os art.ºs 15.º a 18.º das conclusões de apelação).

Considerou-se ainda a relevância dos excertos das declarações de parte e dos depoimentos testemunhais, transcritos nas conclusões, transcrições essas que provieram de outras transcrições mais extensas, constantes do corpo das alegações, com as partes relevantes destacadas em negrito.

Ao longo das alegações da apelação são transcritos os depoimentos interessantes, identificado o depoente, indicada a extensão temporal do depoimento, e assinalado, em cada depoimento, a negrito, o que se entende relevante do discurso para a alteração da matéria de facto, mais se indicando, em todas as passagens, a negrito, dentro de parêntesis rectos, os minutos em que ocorreu tal depoimento.

É certo que a indicação das passagens da gravação relevantes não é precisa (indica-se apenas a totalidade do depoimento), mas a imprecisão é compensada de duas formas: pelo destaque, a negrito, dos pontos que se entendem salientar; pela transcrição, extensa, mas mais abreviada, constante das conclusões.

Lida a acta da audiência de julgamento, contabiliza-se o tempo dos depoimentos e ele é, quanto a todos os depoimentos, razoavelmente curto, não havendo depoimentos que se arrastem durante horas.

Portanto, observados os requisitos legais, tal como foram concretizados no caso em análise, não apenas os Recorrentes indicaram as passagens da gravação relevantes, como também, porque assim o entenderam, procederam à transcrição das partes importantes do depoimento, que tinham destacado no corpo das alegações.

Impondo-se a análise do recorrido à luz de princípios de proporcionalidade ou adequação, será apenas de evitar o acolhimento da pretensão recursória que se traduza numa total reapreciação da prova pela 2.ª instância ou (o seu equivalente) que se traduza em recurso genérico, em matéria de indicação das passagens da gravação, no caso vertente de provas gravadas.

Não é esse o caso do recurso de apelação dos autos, pelo que cumpre fazer baixar o processo à Relação, para que seja julgado o recurso em matéria de facto e se renove o julgamento do direito.


Concluindo:

I – A natureza da exigência legal prevista na al. b) do n.º1 do art.º 640.º do CPCiv, também em conjugação com a norma da al.a) do n.º2 do mesmo artigo, impõe a indicação precisa dos meios de prova que deveriam levar à pretendida modificação dos factos concretamente impugnados e a especificação, no recurso, das concretas razões trazidas à análise probatória por esses referidos meios de prova.

II - Impondo-se a análise do recorrido à luz de princípios de proporcionalidade ou adequação, será apenas de evitar o acolhimento da pretensão recursória que se traduza numa total reapreciação da prova pela 2.ª instância ou (o seu equivalente) que se traduza em recurso genérico, em matéria de indicação das passagens da gravação, no caso de provas gravadas.

III – Se a indicação das passagens da gravação relevantes não é precisa (indica-se apenas a totalidade do depoimento), mas a imprecisão é compensada de duas formas: pelo destaque, a negrito, dos pontos que se entendem salientar e pela transcrição mais abreviada, constante das conclusões, e se, observados os requisitos legais, não apenas os Recorrentes indicaram as passagens da gravação relevantes, como também procederam à transcrição das partes importantes do depoimento, que tinham antes destacado no corpo das alegações, cumprirá fazer baixar o processo à Relação, para que seja julgado o recurso em matéria de facto.


Decisão:

Concede-se a revista, determinando-se a baixa do processo ao Tribunal da Relação para aí se conhecer do objeto da apelação, nos termos expostos.

Custas a cargo da parte vencida a final.


S.T.J., 19/1/2023

                                                          

Vieira e Cunha (Relator)                                              

Ana Paula Lobo                                              

Afonso Henrique Cabral Ferreira