Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | GRAÇA AMARAL | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL ACIDENTE DE VIAÇÃO COLISÃO DE VEÍCULOS MOTOCICLO RESPONSABILIDADE PELO RISCO DOCUMENTO AUTÊNTICO FORÇA PROBATÓRIA PROPRIETÁRIO DIRECÇÃO EFECTIVA DIREÇÃO EFETIVA CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO EQUIDADE PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
Data do Acordão: | 12/17/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / RESPONSABILIDADE PELO RISCO. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 494.º E 503.º, N.º 1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 28-10-2010, PROCESSO N.º 272/06.7TBMTR.P1.S1; - DE 05-06-2012, PROCESSO N.º 100/10.9YFLSB. | ||
Sumário : |
I – A força probatória material dos documentos autênticos encontra-se restrita aos factos praticados ou percepcionados pelo documentador. I - Para efeitos do artigo 503.º, n.º1, do CC, há que atribuir ao proprietário do veículo a direcção efectiva deste, quando não seja demonstrada a utilização abusiva do mesmo por parte do condutor quando do acidente. III - Não apurada a existência de culpa (efectiva ou presumida) na produção do acidente, há que fazer intervir a responsabilidade pelo risco por parte do proprietário do veículo que detém a direcção efectiva do mesmo. IV – A graduação equitativa da indemnização prevista no artigo 494.º, do CC, mostra-se também aplicável à responsabilidade pelo risco. V - A fixação da indemnização assente no recurso à equidade apenas permite que a intervenção do STJ se reporte à verificação dos limites e pressupostos do juízo equitativo formulado pelo tribunal a quo em face da individualidade do caso concreto. VI - Há que manter o decidido pela Relação quanto à proporção da responsabilidade (pelo risco) pelo acidente, se o juízo equitativo fixado não se mostrar em desacordo com os critérios jurisprudenciais que vêm sendo adoptados em realidades fácticas com as quais se pode estabelecer algum paralelismo, não se mostrando, assim, colocada em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade. | ||
Decisão Texto Integral: |
I – relatório
9. O Réu interpõe recurso de revista concluindo nas suas alegações (transcrição): “I- Vem o presente recurso do Acórdão da Relação que julgou parcialmente procedente a apelação e revogando, em parte, a sentença, condenou o Réu CC a pagar à Autora a quantia de € 22.052,57, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação. II- O Tribunal de 1.ª Instância havia julgado parcialmente procedente a ação proposta, condenando o ora Recorrente, no pagamento à autora da quantia de €27.565,72 (vinte e sete mil quinhentos e sessenta e cinco euros e setenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora calculados à taxa legal supletiva, desde a data da sua citação e até integral pagamento III- Impugnada a matéria de facto, face aos elementos probatórios carreados e após audição integral da gravação da prova produzida em audiência, o Douto Tribunal da Relação, julgou provados ainda os seguintes factos, que mandou aditar aos descritos na Sentença: - O sinistrado DD condutor do RF já havia sofrido outro acidente anteriormente, no qual sofreu lesões na perna esquerda, precisamente, fratura do fémur da perna esquerda (artigo 31 da contestação do ora recorrente) - O sinistrado DD condutor do veículo RF, não fazia uso do capacete de proteção (artigo 32 da contestação do ora recorrente). IV- A Sentença proferida e da qual se recorreu, concluiu que na ponderação global da dinâmica do acidente, face à ausência de suporte factual quanto à culpa por parte dos intervenientes (condutores dos motociclos), concluiu pela responsabilidade pelo risco, repartida na proporção de 50% para cada um dos condutores. Assim, responsabilizou o Réu, aqui Recorrente, pelo pagamento de 50% de € 55.131,44. V- O Acórdão do Tribunal da Relação, tendo em conta os factos que julgou provados, nomeadamente, o facto do sinistrado não fazer uso do capacete de protecção, reduziu para 40% a indemnização a suportar pelo Recorrente. VI- Pese embora o Tribunal da Relação tenha reduzido em 10% a indemnização a pagar à Autora, tal redução não é justa nem reflecte a responsabilidade do sinistrado pelo acidente, que foi, de facto, muito superior. VII- São assim, duas as questões sobre as quais incide o recurso: A responsabilidade do Réu proprietário do motociclo e a direcção efectiva do veículo; A colisão dos veículos e a responsabilidade pelo acidente. VIII- O Tribunal de 1.ª Instância julgou não provados os factos “referentes ao motivo pelo qual e/ou contexto em que BB conduzia o veículo pertencente ao interveniente CC”. IX- O Acórdão do Tribunal da Relação não deu, neste ponto, razão ao Recorrente, fundamentando, além do mais que, “ O Apelante limitou-se a alegar o transcrito na sentença, que corresponde ao depoimento, pois que ele declarou haverem utilizado o motociclo sem autorização do dono, “sem que aquele proprietário soubesse de tal utilização e a houvesse expressamente autorizado”, embora sublinhando que havia uma relação de amizade e confiança entre os três. No entanto, essa declaração, por si só, não é suficiente, tanto mais que o tribunal não credibilizou tal depoimento, bem assim o de BB, por se revelarem tendenciosos.” X- Ora, cremos que uma relação de amizade e de confiança entre as pessoas, não pode equivaler, nunca, a uma autorização expressa para uso de motociclo, e muito menos, pode a amizade e a confiança serem confundidos com falta de responsabilidade. XI- A responsabilidade objetiva ou pelo risco tem natureza excecional, em face do disposto no artigo 483, n.º2 do C.C., onde se estabelece que só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na Lei. XII- A responsabilidade pelo risco, no caso de veículo de circulação terrestre, depende de dois pressupostos: ter a direção efetiva do veículo causador do dano e estar a ser utilizado no seu próprio interesse. XIII- O proprietário da viatura AS, aqui interveniente/recorrente, não pode ser responsabilizado pelos danos emergentes da circulação da sua viatura que, embora não beneficie de seguro, não tinha, na data do acidente, a direção efetiva dessa viatura, a qual foi posta a circular sem o seu conhecimento e obviamente contra a sua vontade, na medida em que a mesma não tinha seguro, não era conduzido pelo seu proprietário, e obviamente, não poderia ser conduzido por terceiros, que a tal não estavam autorizados. XIV- O condutor do AS, era assim, um utilizador abusivo, que tinha nesse momento a direção efetiva do veículo e o utilizava no próprio interesse. XV- O Douto Tribunal da Relação deu como provado que o sinistrado DD condutor do RF já havia sofrido outro acidente anteriormente, no qual sofreu lesões na perna esquerda, precisamente fratura do fémur da perna esquerda. Provado ficou também que o Sinistrado DD condutor do veículo RF, não fazia uso do capacete de protecção. XVI- Entende o ora Recorrente que o sinistrado DD, perante a prova produzida, nomeadamente, a “participação de acidente de viação” elaborado pela GNR e junto à P.I. como doc. n.º 1, o Tribunal deveria ter dado como provado que o mesmo conduzia sem habilitação, ou seja, não possuía licença de condução. XVII- A Participação do Acidente de Viação junta pela Autora com a petição inicial é um documento autêntico, uma vez que emana de um órgão de polícia criminal a quem é reconhecida competência para a sua elaboração. XVIII- Decorre do artigo 371 n.º1 do C.C. que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora. XIX- No campo destinado à identificação dos condutores dos veículos intervenientes no acidente verifica-se que o condutor do RF, sinistrado DD, não possui licença de condução. XX- Pelo que, a “Participação de acidente de viação” elaborado pela GNR faz fé em juízo. XXI- O bem jurídico protegido no crime de condução sem habilitação legal é a segurança de circulação rodoviária e indiretamente a tutela de bens jurídicos que se prendem com essa segurança, como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais. XXII- Esta conduta do sinistrado é repetida, ou seja, este acidente de viação não foi o primeiro que sofreu. As lesões sofridas na perna esquerda (fémur), foram-no também no anterior acidente de viação (perna esquerda e fémur). XXIII- Estamos, por isso, perante o caso de ausência originária de habilitação de conduzir do sinistrado DD, em que se presume “ad unum” a inexperiência e a falta de destreza do condutor. XXIV- Verifica-se, pois, a presunção de culpa na produção do acidente, do sinistrado DD, interveniente no acidente, proprietário e condutor do motociclo RF. XXV- Nesta senda, caberia à Autora aqui recorrida alegar e provar factos de que a falta de habilitação legal para o exercício da condução do sinistrado DD não teve qualquer contribuição causal na ocorrência do sinistro, o que de todo, não fez (artigo 344 do C.C.). XXVI- Nos termos do artigo 570 n.º 2 do C.C. “Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnização”. XXVII- No entanto e mesmo que assim se não venha a entender, sempre a responsabilidade do sinistrado e condutor do RF na produção e agravamento dos danos físicos que sofreu será sempre muito superior à do outro interveniente e condutor do AS, pois, o seu comportamento anterior ao acidente e durante o acidente para isso contribuiu decisivamente. XXVIII- É certo que o Douto Tribunal da Relação deu razão, em parte, ao aqui Recorrente, na medida em que baixou em 10% o montante da indemnização a pagar à A. XXIX- Parece-nos no entanto que a contribuição do condutor do RF para os danos por si sofridos, é muito superior a 10% em relação ao condutor do AS. XXX- Também a nossa jurisprudência e esse Douto Tribunal, em situações análogas tem fixado uma percentagem de culpa muito superior. XXXI- Veja-se, por exemplo, o Acórdão STJ http:www.dgsi.pt, processo 1295/11.0TBMCN.P1.S2 ”… VI – Se momento do embate, o lesado, motociclista, não usava capacete de proteção e se, tendo embatido no asfalto, sofreu lesões que se situaram sobretudo no crânio, é adequado atribuir-lhe a percentagem de 30% de culpa na produção/ agravamento dos danos que sofreu, nos termos do art. 570º, nº 1 do C. Civil, com a inerente redução da indemnização” XXXII- A contribuição do condutor do veículo RF para os danos por si sofridos, é muito superior à contribuição do condutor do AS. XXXIII- O uso de capacete de proteção é obrigatório em casos como o dos autos. Tal imposição tem como finalidade primeira a preservação da integridade física do respetivo obrigado. XXXIV- Provou-se que o sinistrado DD sofreu lesões graves em ambos os maxilares. Ora, havendo lesões físicas na zona corporal reservada ao uso de capacete de proteção, não pode negar-se um agravamento causal dos inerentes danos provocados pela falta do capacete de proteção, com direta repercursão, nos termos previstos no artigo 570 n.º 1 do C.C., na redução do correspondente montante indemnizatório, filiada na concorrência de um facto culposo do sinistrado DD para o agravamento dos danos. XXXV- No caso dos autos verifica-se, cremos, uma desproporcional gravidade de infrações praticadas pelo sinistrado e condutor do RF em relação ao condutor do AS. XXXVI- A repartição de culpas tal como foi acolhida pelo Tribunal da Relação (60%/40%) é manifestamente injusta para o ora Recorrente e contrária à Lei. XXXVII- Foram violados, além de outros, os artigos 371 C.C., artigo 344 C.C, artigo 494 do C.C., artigo 570 do C.C e artigo 506 do C.C..”.
13. Em contra alegações a Autora defende a improcedência do recurso.
II – APRECIAÇÃO DO RECURSO De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC) mostram-se submetidas à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
1. Os factos 1.1 provados e) Factos referentes ao motivo pelo qual e/ou contexto em que BB conduzia o veículo pertencente ao interveniente CC.
2.1 Da responsabilidade do Recorrente, enquanto proprietário do veículo AS, pelas consequências do acidente (conclusões VIII a XIV) Pretende o Recorrente afastar a sua responsabilidade relativamente ao acidente em que interveio o motociclo de que é proprietário sustentando que, quando do acidente, não tinha a direcção efectiva do veículo e que o mesmo não se encontrava a ser utilizado no seu próprio interesse. Invoca nesse sentido que a mera existência de uma relação de amizade e de confiança entre pessoas não permite concluir pela existência de uma autorização para a circulação do veículo. Considera, por isso, que o condutor do seu veículo foi um utilizador abusivo. A questão prende-se com a matéria de facto provada, como aliás o próprio Recorrente reconhece nas suas alegações invocando o depoimento da testemunha II e fazendo menção a um excerto do mesmo. Com efeito, a factualidade referente aos motivos pelos quais BB conduzia o veículo pertencente a CC foi considerada não provada na sentença, tendo o tribunal a quo, mantido tal decisão, ponderando nesse sentido: “O tribunal julgou não provados os factos “Referentes ao motivo pelo qual e / ou contexto em que BB conduzia o veículo pertencente ao interveniente CC.” O Apelante impugna este facto, baseando-se no resumo do depoimento da testemunha II, exarado na fundamentação. Note-se que quando se impugne a matéria de facto, o recorrente tem o ónus primário de identificar o concreto ponto de facto nas respectivas conclusões (porque delimitadoras do objecto do recurso) e o ónus secundário de indicar a passagem da gravação do depoimento da testemunha. O Apelante limitou-se a alegar o transcrito na sentença, que corresponde ao depoimento, pois que ele declarou haverem utilizado o motociclo sem autorização do dono, “sem que aquele proprietário soubesse de tal utilização e a houvesse expressamente autorizado”, embora sublinhado que havia uma relação de amizade e confiança entre os três. No entanto, essa declaração, por si só, não é suficiente, tanto mais que o tribunal não credibilizou tal depoimento, bem assim o de BB, por se revelarem tendenciosos. Por isso, justificou-se assim os factos não provados: “No que concerne aos factos a que se reporta o ponto II. dos factos não provados, a versão apresentada pelas testemunhas II e BB não mereceu qualquer confiança ao tribunal, tendo-se ficado com a convicção, em face da relação de fraternidade que havia (e há) entre aqueles e o intervenientes que, mesmo que este não tenha autorizado, expressamente, no dia do acidente, a utilização do seu motociclo, já o havia feito, em momento anterior e em termos mais genéricos, estando esse veículo – e respetiva chave – colocados na disponibilidade de ambas as mencionadas testemunhas, para dele usufruírem legitimamente (e não em termos abusivos / não autorizados), sentindo-se à vontade para, a qualquer momento, dele fazerem uso, nomeadamente, para divertimento e lazer, no decurso das férias que estavam a gozar em Portugal.” Concorda-se com a fundamentação aduzida, pelo que improcede a alteração do facto não provado” Está pois em causa decisão factual alicerçada na apreciação de meios de prova sujeitos à livre convicção do julgador. O Autor fundamenta a sua pretensão recursória (visando a não responsabilização pelas consequências do acidente) pugnando, ainda que implicitamente, pela alteração do sentido probatório invocando para o efeito declarações de uma testemunha ouvida em julgamento (que, aliás não mereceu credibilidade às instâncias). Faz pois assentar o recurso em questão (fáctica) que não pode deixar de ser tida como definitivamente assente pelo tribunal recorrido tendo presente os poderes que legalmente se encontram atribuídos a este Supremo Tribunal. Como resulta da lei, a intervenção do STJ no domínio factual é muito limitada, não podendo o tribunal de revista sindicar o erro na livre apreciação das provas, excepto quando, nos termos contemplados no artigo 674.º, n.º3, do CPC (ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, ou ainda quando a apreciação feita se mostre alicerçada num juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade). Nesse sentido, não pode este tribunal modificar ou sancionar a decisão fáctica fixada pela instância recorrida quando estejam em causa meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal, ou seja, sem valor probatório tabelado, como é sem qualquer dúvida o caso da prova testemunhal. Assim, mostra-se pois arredada a possibilidade deste tribunal se pronunciar sobre a valia das declarações da testemunha na demonstração da pretendida factualidade. Consequentemente, tal como entendeu o tribunal recorrido, dado que o Recorrente, proprietário do veículo AS, não demonstrou a utilização abusiva do mesmo pelo respectivo condutor quando do acidente, não pode deixar de se concluir no sentido de que tinha a direcção efectiva do veículo. Consequentemente, a sua responsabilidade no acidente assume enquadramento nos termos do artigo 503.º, n.º1, do Código Civil (doravante CC) uma vez que, conforme igualmente se passará a justificar, não resultou demonstrada factualidade que permita concluir pela existência de qualquer comportamento culposo na produção do acidente.
2.2 Da culpa do lesado na produção do acidente (conclusões XVI a XXVI) Pugnando por não ser responsável pelas consequências do acidente, apoiado no disposto no artigo 570.º, n.º2, do CC, o Recorrente defende que a falta de habilitação de conduzir por parte de DD faz presumir a culpa deste na produção do acidente. Considera que o tribunal da Relação deveria ter dado como provado que DD conduzia sem possuir licença de condução por este facto se encontrar demonstrado por documento autêntico – participação do acidente de viação elaborado pela autoridade policial competente –, fazendo prova plena os factos nele contidos atestados com base nas percepções da entidade documentadora, de acordo com o n.º1 do artigo 371.º do CC. Imputa por isso ao acórdão recorrido erro na apreciação das provas e consequente fixação/não alteração da matéria de facto. Nos termos já acima sublinhados, a lei confere a este tribunal poderes muitos restritos em matéria de facto, sendo pois dentro dos condicionantes excepcionais – incumprimento de preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova – previstos no n.º 3 do artigo 674.º CPC, que se impõe apreciar esta questão no âmbito do presente recurso. As instâncias não deram como provada a factualidade indicada no artigo 21.º da contestação de fls. 203/205, isto é que o referido DD conduzia o veículo sem possuir a competente licença de condução. O acórdão recorrido, quanto a este aspecto, conhecendo da impugnação da matéria de facto objecto de apelação, ponderou nos seguintes termos quanto ao teor da participação: “A participação junta a fls.33 a 36 nada refere quanto à circunstância de DD possuir ou não licença de condução (…). É certo que na participação menciona-se apenas o número de identificação da licença quanto a BB nada se assinalando quanto a DD, mas aquela declaração revela-se ambígua, pois não se sabe se tal se reporta à falta de licença para conduzir ou se não a trazia no momento, já que também se afirmou que o lesado DD foi socorrido e levado para o hospital, chegando a ficar inconsciente (cf. depoimentos de DD, BB, II )”. Nesta sede o Recorrente persiste em se insurgir quanto a esta matéria cimentado na valoração do mesmo documento enquanto documento autêntico. A questão da natureza da referida participação de acidente nos termos legalmente definidos no n.º2 do artigo 363.º do CC, (exarado, com as formalidades legais, pela respectiva autoridade pública nos limites das suas competências) não foi posta em causa, não se mostrando impugnada a respectiva autenticidade ou invocada a sua falsidade. Todavia, no que toca ao seu valor probatório, não pode deixar de se concordar com o juízo levado a cabo pelo acórdão recorrido (e também pelo tribunal de 1ª instância), não tendo ocorrido qualquer desrespeito pelo valor probatório que se imporia retirar do documento em referência relativamente à factualidade em causa. De acordo com o disposto no n.º1 do artigo 371.º do CC, Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador. Na verdade, como salienta o Recorrente e constitui entendimento pacífico da jurisprudência e da doutrina, nestes documentos (autênticos) o âmbito da prova plena dos factos não respeita a tudo o que neles se contém, mas apenas aos factos que se referem praticados pela autoridade ou oficial público respectivo e aos factos exarados com base nas percepções da entidade documentadora (a força probatória material dos mesmos encontra-se restrita aos factos, praticados ou percepcionados pelo documentador) O equívoco do Recorrente está em retirar do documento uma realidade que ele não comporta. Do referido documento onde consta “TEM LICENÇA DE CONDUÇÃO – SIM ( ) NÃO ( )”, nada foi consignado quanto a DD, identificado como condutor do veículo n.º2[3]. Ora, da circunstância de nada ter sido assinalado quanto à identificação da licença de condução não pode ser concluído que o referido DD não a tinha pois, para isso, seria necessário que no documento estivesse assinalado após os dizeres “TEM LICENÇA DE CONDUÇÃO” a menção “Não”, o que não foi feito. Assim sendo, não pode deixar de se concluir que as instâncias não violaram o valor probatório tarifado do referido documento ao não considerarem provado que o lesado não possuía licença de condução. Consequentemente, não se encontrando provada a falta de habilitação legal para conduzir por parte do lesado[4], em face da factualidade apurada, assume total acerto o entendimento do tribunal a quo ao referir “Não se provando a falta de habilitação legal para conduzir veículos motorizados, fica desde logo postergada a pretensão do Apelante. Em todo o caso, tal facto não justificaria a culpa na produção do acidente. Por isso, sabendo-se apenas que houve um embate (cf pontos 1, 2 e 3), não se provando a culpa dos condutores dos veículos ou ainda que o acidente se devesse a força maior, estranha ao funcionamento dos veículos, estava legitimada a convolação da responsabilidade subjectiva para a responsabilidade objectiva ou pelo risco (art.503 nº1, 506 nº2 do CC ).”. Improcedem, por isso, nesta parte, as conclusões das alegações.
2.3 Da proporção da responsabilidade (pelo risco) pelo acidente (conclusões XXVII a XXXVI) O acórdão recorrido, alterando a proporção do risco em metade (50%) estabelecida pela sentença ao abrigo do disposto no n.º2 do artigo 506.º do CC, fixou-a em 60%/40%, respectivamente, para o veículo conduzido pelo lesado e para veículo pertencente ao Recorrente, levando em consideração: - que o lesado conduzia o veículo sem o capacete; - por se situaram na cabeça (fractura de ambos os maxilares) parte dos danos sofridos pelo lesado concluindo, por isso, que o não uso do capacete aumentava o risco. Justificou pois o tribunal a quo a redução da indemnização nos seguintes termos: “(…) sabendo-se apenas que houve um embate (cf pontos 1, 2 e 3), não se provando a culpa dos condutores dos veículos ou ainda que o acidente se devesse a força maior, estranha ao funcionamento dos veículos, estava legitimada a convolação da responsabilidade subjectiva para a responsabilidade objectiva ou pelo risco ( art.503 nº1, 506 nº2 do CC ). A sentença estabeleceu a proporção do risco em metade, a partir da presunção legal do art.506 nº2 CC tendo em conta que se trata de dois motociclos. Comprovando-se que o lesado DD não usava capacete, o Apelante considera que a indemnização deve ser reduzida, por aplicação do art.570 nº1 CC, na medida em que implica um agravamento dos danos. O art.570 do CC reporta-se à colisão culposa, o que não é o caso, mas entende-se que a indemnização deve ser fixada tendo em conta o disposto no art.494 do CC, aplicável à responsabilidade pelo risco (art.499 CC). Como é sabido tem sido controversa a questão da aplicação do art.494 do CC à responsabilidade pelo risco, com posições jurisprudenciais e doutrinárias divergentes, acolhendo-se aqui a tese da sua aplicação ( cf., por ex., Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 7ªa ed.pág.688; Ac STJ de 21/3/2000, CJ ano VIII, tomo I, pág.138 e segs.). Na situação dos autos, verifica-se que parte das lesões foram na cabeça (fractura de ambos os maxilares), e o uso de capacete serve precisamente para prevenir as lesões na cabeça, destinando-se a proteger o condutor. Por outro lado, a Autora não demonstrou que mesmo com o uso de capacete o lesado teria as mesmas lesões. Parece evidente que a falta de capacete aumenta o risco, como tem sido comumente aceite e assenta nas regras da experiência comum, em especial no caso de condutores motociclos, sendo que nos riscos próprios do veículo abrange também os riscos inerentes ao próprio condutor. Neste contexto, impõe-se a redução da indemnização que se fixa na proporção de 40% de € 55.131,44, ou seja, € 22.052,57.” Insurge-se o Recorrente pugnando por um aumento de proporção na responsabilidade do lesado sustentando a culpa do lesado para o agravamento dos danos e apoiando-se num acórdão deste tribunal (proferido no âmbito do Processo n.º 1295/11.0TBMCN.P1.S2) onde foi atribuída uma percentagem de 30% para efeitos de redução da indemnização. A argumentação do Recorrente encontra-se perspectiva na concorrência de culpa do lesado na produção do acidente e de modo algum põe em causa a ponderação feita pelo acórdão recorrido. No caso[5] está em causa acidente que, perante o suporte factual provado, foi considerado colisão (entre os motociclos) ocorrida sem culpa de nenhum dos condutores, integrável no regime previsto no artigo 506.º, do CC, ou seja, em que a responsabilidade tem de ser estabelecida em função da contribuição dada em concreto por cada veículo (proporção do risco em que cada um dos veículos tiver contribuído para os danos a atender para a fixação da indemnização[6]). Na situação sob apreciação, não obstante assumir relevância o facto de o sinistrado conduzir sem capacete e ter sofrido fractura em ambos os maxilares, importa ter em linha de conta que, para além desta fractura[7], DD fracturou o fémur da perna esquerda (que determinou que, em 23-08-2003, tivesse de regressar ao hospital para ser submetido a cirurgia reparadora do fémur, tendo tido alta apenas em 02-09-2003). Assim sendo, não podemos deixar de considerar que o juízo feito pelo tribunal a quo na fixação da proporção de responsabilidade fixada (com fundamento na graduação equitativa da indemnização, ao abrigo do artigo 494.º, do CC[8]) deve ser mantido porquanto o mesmo não se mostra em desacordo com os critérios jurisprudenciais que vêm sendo adoptados (não pondo por isso em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade[9]) em realidades fácticas com as quais se pode estabelecer algum paralelismo com a dos autos[10]. Improcedem, por isso e na sua totalidade, as conclusões das alegações.
IV. DECISÃO Graça Amaral - Relatora Henrique Araújo Maria Olinda Garcia
SUMÁRIO _______________________________________________________ |