Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1347/04.2TBPNF.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: AMPLIAÇÃO DA BASE INSTRUTÓRIA
MÉDICO
HOSPITAL
SECTOR PÚBLICO
EXAME MÉDICO
RESPONSABILIDADE MÉDICA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
OBRIGAÇÃO DE MEIOS E DE RESULTADOS
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
Doutrina: - Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Almedina, 1991, 431; Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006, 1039 e 1040.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, Almedina, 388.
- Aurélio Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª edição, Editora Nova Fronteira, 1998, 584.
- A. Cirinei, La valutazione clínica della responsabilitá professionale del chirurgo, Milão, 1982, 120.
- Jean Penneau, La Responsabilité du Médicin, Dalloz, 1992, 25, citando René Savatier, Traité de la Responsabilité Civile en droit français civil, administratif, profesionel, procedural, 2ª edição, Paris, 1950.
- Joaquim Silva Carneiro, Responsabilidade da Administração Hospitalar, RDES, Ano XIX, 123 e ss..
- Kfouri Neto, Responsabilidade Civil do Médico, Revista dos Tribunais, 4ª edição, 2001, S. Paulo, 82.
- Luís Gonzaléz Morán, La Responsabililidad Civil del Médico, 1990, 96.
- Maldonado de Carvalho, Iatrogenia e Erro Médico sob o Enfoque da Responsabilidade Civil, Lúmen Juris Editora, 2005, 40; Responsabilidade Civil Médica, 3ª edição, revista e ampliada, Editora Destaque, 2002, 53.
- René Savatier, Traité de la Responsabilité Civile en droit français civil, administratif, profesionel, procedural, 2ª edição, Paris, 1950, nº 778.
- Vaz Serra, Responsabilidade Civil do Estado e dos seus Órgãos ou Agentes, BMJ, nº 85, 476 a 497.
- Veloso de França, Direito Médico, 7ª edição, S. Paulo, Fundação BYK, 2001, 259 a 265.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 483.º, N.º1, 486.º, 487.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 264.º, N.º1, 511.º, N.º 1, 514.º, 515.º, Nº1, 665.º, 722.º, N.º2, 729.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 7-5-74, BMJ Nº 237, 196; RT, ANO 93º, 282.
Sumário :
I - Não se mostra pertinente determinar a ampliação da base instrutória, com base no disposto pelo art. 729.º, n.º 3, do CPC, quando a respectiva factualidade já foi objecto de debate e veio a conhecer resposta pelo tribunal, insusceptível de agora tal poder, de novo, voltar a acontecer, a pretexto de poder vir a constituir fundamento suficiente para a decisão de direito.
II - Tem natureza extracontratual a responsabilidade civil, por alegados factos ilícitos cometidos por um médico, em serviço público hospitalar, em relação a um doente, em virtude da inexistência de um vínculo jurídico entre a vítima e o lesante.
III - No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, o médico apenas está vinculado a uma obrigação geral de prudência e de diligência, empregando a sua ciência para a obtenção da cura do doente, mas sem assegurar que esse resultado se produza, esperando-se apenas que assuma um comportamento, particularmente, diligente, que possibilite o correcto diagnóstico, permitindo, com isso, a adopção da terapia mais idónea, mas ficando exonerado de responsabilidade se o cumprimento requerer uma diligência maior, e liberando-se com a impossibilidade objectiva ou subjectiva que lhe não sejam imputáveis.
IV - O diagnóstico traduz-se num enquadramento clínico baseado na capacidade subjectiva do médico em interpretar, de acordo com os indícios colhidos durante o exame preliminar, complementado por exames adicionais, se necessário, as condições de saúde do paciente, cabendo áquele, após uma atenta análise dos sintomas reveladas pelo doente, formar sua convicção e dar início ao tratamento mais adequado à patologia clínica evidenciada, em conformidade com a avaliação obtida.
V - Comprovando-se que o médico, ao examinar o doente, agiu de acordo com as regras técnicas actualizadas da ciência médica, diagnosticando, de forma consciente e cuidadosa, afasta-se o erro e, consequentemente, a culpa, sendo certo que um eventual dano, porventura, ocorrido nessas situações, observadas as circunstâncias de prudência que o caso concreto justifica, é de qualificar como erro escusável ou faut du service, invencível para a mediana cultura médica e que afasta a responsabilidade civil da intervenção, por recair no âmbito da denominada falibilidade médica.
VI - A possibilidade de previsão dos resultados pelo agente, mesmo daqueles que decorrem da sua falta de capacidade individual, segundo as suas aptidões pessoais, define o limite da sua responsabilidade.
VII - Não acolhendo o ordenamento jurídico nacional a teoria do risco profissional, não se incluindo a prática de actos médicos, nos casos especificados na lei em que existe obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, e não demonstrando o autor que a causa da isquémia e necrose do testículo fosse determinada por torção testicular, como propugnava, mas antes que a epididimite era uma possibilidade diagnóstica, face aos sintomas por si referidos, podendo provocar trombose dos vasos espermáticos que degeneram em necrose isquémica, não se provou o erro de diagnóstico do réu médico e, consequentemente, a prática de um facto ilícito e a sua imputação ao mesmo, a título de culpa, nem a correspondente responsabilidade civil médica.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

AA propôs a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra o “Hospital ...... - Vale do Sousa” (Centro ..........., E.P.E.), BB e “S........... Ld.ª”, com sede em Vila Nova de Famalicão, pedindo que, na sua procedência, os réus sejam condenados, solidariamente,  a pagar-lhe a quantia de €175.000,00, acrescida de juros legais, desde a citação e até integral cumprimento, invocando, para tanto, em síntese, que, em virtude de errado diagnóstico, efectuado no dia 18 de Agosto de 2002, no réu “Hospital ...... - Vale do Sousa”, por parte do réu BB, que aí prestava serviço como médico, e da consequente errada prescrição e tratamento, o autor sofreu vários danos, irreparáveis e irreversíveis, no caso, a perda do testículo esquerdo, o que lhe causou ainda outros prejuízos, sendo que, por todos, quer ser ressarcido, computando a indemnização a que se julga com direito, no quantitativo de €1.700.000,00.

             Mais alega que a responsabilidade da ré “S........... Ld.ª” advém do facto de ter indicado e cedido ao réu “Hospital ...... - Vale do Sousa”, no âmbito de um contrato de fornecimento de pessoal médico que tinha com este celebrado, os serviços do réu BB.

            Todos os réus contestaram, concluindo pela improcedência da acção, tendo o réu “Hospital ...... - Vale do Sousa”, invocado, no essencial, desconhecer os factos alegados pelo autor e impugnado que o mesmo apresente qualquer incapacidade para o normal desenvolvimento da actividade sexual e para viabilizar a reprodução humana, alegando ainda que o réu médico que assistiu o autor gozava de absoluta liberdade de diagnóstico e de prescrição, tendo agido de acordo com os procedimentos comuns, ou seja, com as “legis artis” da medicina.

A ré “S........... Ld.ª” invoca a sua ilegitimidade, pois, não obstante aceitar que, à data dos factos, existia um contrato de prestação de serviços, por via do qual cedeu os serviços médicos prestados pelo co-réu BB ao “Hospital ...... - Vale do Sousa”, não exercia qualquer autoridade, direcção ou fiscalização sobre a actividade médica prestada pelo réu BB, mas, mesmo que assim se não entenda, nunca seria responsável pelo pagamento de qualquer indemnização ao autor, já que havia transferido a responsabilidade civil que lhe pudesse advir pelos actos praticados pelo referido médico, para a “Companhia de Seguros Tranquilidade”, por contrato de seguro, válido e vigente, à data dos factos, com a apólice nº 00000.

              Mais alega a ré que, em 1 de Julho de 2002, foi celebrado entre o réu “Hospital ...... - Vale do Sousa” e ela própria um contrato de prestação de serviços, em que esta se comprometia a disponibilizar 336 horas de trabalho médico, em benefício daquele Hospital, a prestar por médicos ao seu serviço, trabalho esse exercido, “sob orientação hierárquica e direcção técnica” do co-réu Hospital, impugnando ainda, por desconhecimento, os demais factos invocados pelo autor.

O réu BB veio, também, invocar a sua ilegitimidade, nos mesmos termos que o tinha feito a ré “S........... Ld.ª” e impugnou a versão dos factos apresentada pelo autor na petição inicial.

Admitida a intervenção principal provocada da “Companhia de Seguros Tranquilidade SA”, com sede em Lisboa, requerida pelo autor, a mesma contestou, terminando com o pedido da improcedência da acção e, em consequência, com a sua absolvição do pedido, alegando, para o efeito, em suma, que nunca foi emitida qualquer apólice que titulasse um qualquer contrato de seguro celebrado entre a chamada e a ré “S........... Ld.ª”, para além de que se encontra prescrito, em relação a si, o direito que o autor pretende fazer valer, por via da presente acção, já que entre a data da sua citação e a data dos factos, decorreram mais de três anos, impugnando, quanto ao mais, por remissão para as contestações dos restantes réus, os factos vertidos na petição inicial.

            Na réplica, o autor defende a legitimidade dos réus BB e “S........... Ld.ª”, e bem assim como a inexistência da prescrição do seu direito contra a seguradora interveniente.

No despacho saneador, julgou-se improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva, arguida pelos réus “S........... Ld.ª e BB, tendo sido relegado para sede de sentença final o conhecimento da excepção peremptória da prescrição.

A sentença julgou a acção, totalmente, improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu todos os réus do pedido formulado pelo autor.

Desta sentença, o autor interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado a apelação, totalmente, improcedente e, em consequência, confirmou a decisão impugnada.

Do acórdão da Relação do Porto, o autor interpôs agora recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem, integralmente:

1ª – O autor, um jovem, foi assistido no Hospital ...... por um médico de clínica geral que, após 4 horas de espera pelas análises feitas, e apenas com base na observação directa e na apalpação, em parte porque o Hospital não possuía os instrumentos tecnológicos de diagnóstico adequados ao caso, e noutra parte porque não se enviou o doente para um Hospital Central do Porto, em ordem a ser visto por um urologista, lhe diagnosticou uma epididimíte, doença de que não padecia, antes sim torção testicular. Em resultado deste errado diagnóstico, o autor ficou para o resto da sua vida sem o testículo esquerdo, sofrendo de vários danos. O douto acórdão recorrido entendeu que a prova produzida era insuficiente para condenar os réus, ficando deste modo o autor, vítima inocente de uma situação, pelos vistos, sem responsável, impedido de ser justa e legitimamente ressarcido pelo dano sofrido.

2ª - Cremos, mal andaram as instâncias ao fixarem a factualidade apurada, no que ao diagnóstico e tratamento respeita, matéria nuclear no presente pleito, com base em depoimento de médicos que não foram testemunhas dos factos sobre que se pronunciaram, quando na verdade, e em rigor, não podem ser considerados testemunhas. Foi com fundamento nesses depoimentos que se veio a fixar a matéria que determinou a improcedência da acção, por um erro, pois, de qualificação jurídica dos depoimentos prestados, em razão de ciência.

3ª - Foi isso, que constitui um elemento essencial a ter em conta para se poder apreciar correctamente este litígio, que o autor defendeu quando considerou que certas pessoas ouvidas como testemunhas, designadamente os médicos arrolados pelos réus, a propósito da matéria primordial da lide o não poderiam substancialmente ser, em concreto, e não em abstracto. Pois quem não presenciou, não viu o doente, não falou com ele, não o conhece ou só ouviu falar do caso dias ou meses depois da ocorrência dos factos, não se pode arvorar em testemunha destes.

4ª - Sublinhe-se: não está em causa a definição de testemunha na sua capacidade genérica em abstracto, conforme decorre dos artigos 616°, 617° e 618°, do CPC. Nesse sentido meramente formal, todas as pessoas ouvidas cumpriam os requisitos legais, sem dúvida. O que está em causa é a razão de ciência, do conhecimento efectivo que tinham ou não, que podiam ter ou não, da matéria essencial e controvertida na presente lide.

5ª - Assim, o que está em causa é tão só entender que a matéria de facto fixada nas instâncias, a que deve aplicar-se o regime jurídico adequado, nos termos do disposto no n° 1 do artigo 729°, do CPC, deve ser lida à luz de que apesar de terem sido ouvidos vários médicos sobre a situação clínica do autor, o certo é que a matéria de facto fixada ilude ou omite aspectos centrais para a correcta compreensão do que efectivamente se passou.

6ª - Com efeito, o réu Dr. BB foi claro ao admitir que medicou o doente na convicção de que o mesmo sofria de epididimite, e, por isso, medicou-o com um anti-inflamatório e um antibiótico, ainda que a audição do seu depoimento revele, de um modo ao menos implícito, que admite ter-se enganado no diagnóstico, haja em vista a inexistência no hospital, naquele tempo, dos instrumentos tecnológicos auxiliares de diagnóstico, bem como da inexistência do serviço de urologia.

7ª - Por sua vez, o médico que operou o doente, especialista na matéria, sustentou de modo absolutamente convicto, que o autor não sofreu de epididimite, mas sim de torção testicular, e que foi por causa desta doença que veio a perder irreversivelmente o testículo esquerdo. O tribunal só não apurou o facto porque desvalorizou o depoimento do médico, considerando incrivelmente que nesta parte não tinha sido isento, e baseando a sua convicção no depoimento dos médicos indicados pelos réus, não especialistas e que não assistiram o autor, e cujo depoimento, naturalmente, visou isentar de responsabilidades a entidade, 1o réu, para a qual trabalham.

8ª - De resto, diga-se, conforme consta do douto acórdão recorrido, por diversas vezes, e julgamos sem razão, são feitas menções despropositadas e infundadas à isenção dos depoimentos das testemunhas indicadas pelo autor, valorizando-se os depoimentos das testemunhas da parte contrária, sem que exista fundamento para tais juízos, objectivamente discriminatórios. Logo aqui, nestes autos, em que o autor é a única vítima inocente de mais um erro médico, ainda que sem dolo, sofrendo danos significativos, que podem ficar sem reparação alguma, e numa acção judicial que consabidamente, pela doutrina e jurisprudência, é de prova assaz difícil, próxima de uma prova diabólica.

9ª - O douto acórdão recorrido manifesta por diversas vezes que a construção da motivação na fixação da matéria de facto se fez na base de pressupostos subjectivos, com um olhar crítico negativo sobre as pretensões formuladas pelo autor. Isso é designadamente patente na forma como são produzidos juízos de valor negativos, do seguinte teor:

- A página 12 do acórdão, o raciocínio do autor, apelante e ora recorrente, é qualificado como faccioso;

- A página 17 do acórdão, e a propósito da fixação da hora a que o doente começara a sentir dores, entre as 6 e as 6,30 horas, com base em depoimentos do autor, é escrito o seguinte: "...os depoimentos de todas estas testemunhas verificamos que as mesmas evidenciaram ter, previamente, concertado, entre si, o teor do que iriam declarar". Não se alcança qual o fundamento que levou o tribunal a produzir o seu juízo, sendo certo que as testemunhas do autor, seus familiares, narraram apenas o que viram, ouviram e sabiam, a partir da experiência obtida junto do próprio, pois com ele viviam, e, por isso, acederam ao conhecimento de factos a que mais ninguém acedeu, nem de outro modo era possível conhecer. Que haja coincidência de narrativas, é aquilo que no caso é mais natural. O contrário é que seria talvez estranho.

              10ª - É espantoso que o tribunal, numa matéria tão essencial e sensível, não tenha conseguido fixar, afinal de contas, qual a exacta doença de que padecia o autor, no dia 18 de Agosto de 2002, facto essencialíssimo para se poder julgar, em atenção à verdade material, o presente pleito, sendo certo que tudo indica que na verdade o autor não padecia de epididimite, pois que nenhuma das análises realizadas permite sustentar a existência no caso desta doença. Dito isto, cremos que este Venerando Tribunal deverá ordenar uma ampliação da matéria de facto, nos termos do n° 3 do artigo 729° do CPC, em ordem a fixar-se que o autor não padecia de epididimite, ou então a fixar-se quesito que permita apurar na realidade a doença de que padecia o autor, no dia em que entrou no hospital.

              11ª - Estamos convictos, ainda assim, que a matéria de facto apurada permite concluir, pela análise interna das provas produzidas e da factualidade fixada, que houve erro de diagnóstico sobre a doença de que padecia o autor, que não era a epididimite, mas sim a torção testicular, e que em resultado disso, veio o autor a perder o testículo esquerdo, uma vez que era tarde quando se procedeu à sua operação e remoção do órgão afectado, irreversivelmente, tendo-lhe sido causados os danos que ficaram fixados e descritos na factualidade apurada.

              12ª - Há assim lugar à condenação dos réus, em matéria de responsabilidade civil, por violação, entre outros, dos artigos 483° e 496°, ambos do Código Civil.

              13ª - O douto acórdão recorrido violou os artigos 483° e 496°, do Código Civil, e as alíneas c) e d), do n° 1 do artigo 668° do CPC, pelo que deve ser revogado, o que é de Inteira Justiça!
Nas contra-alegações, que apenas o réu “Hospital ...... - Vale do Sousa” apresentou, este conclui no sentido de que não há lugar a qualquer condenação dos réus, nem o acórdão violou qualquer disposição legal.

O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:

1. Entre o réu “Hospital ......” e a ré “S.........., Lda” foi celebrado, em 1 de Julho de 2002, o contrato denominado "prestação de serviços", junto a fls. 74 e 75. – A).

2. O 2.º réu é médico e, no dia 18 de Agosto de 2002, exercia funções, no “Hospital ......” – B).

3. Entre a “S............, Lda” e o Dr. BB foi celebrado, em 1 de Janeiro de 2002, um acordo nos termos do qual este prestaria serviços médicos, por ordem daquela, no “Hospital ......” – C).

4. A “S.............., Lda” indicou e cedeu os serviços do 2° réu ao “Hospital ......”, no âmbito do contrato, referido em A). – D).

5. A “Companhia de Seguros Tranquilidade, SA” foi citada para a presente acção, em 21 de Novembro de 2006 – E).

6. No dia 18 de Agosto de 2002, o autor dirigiu-se, por volta das 8,30 horas, ao “Hospital ......”, em Penafiel. – 1.º.

7. Após ter sentido, durante a noite, fortes dores e inchaço, no testículo esquerdo, e vómitos. – 2.º.

8. No Hospital, o autor foi atendido, cerca das 9 horas. – 3.º.

9. Pelo médico Dr. BB. – 4.º.

10. O médico determinou a realização de uma análise à urina do autor. – 5.º.

11. O autor esperou, cerca de 4 horas, pelos resultados da análise – 6º.

12. Face aos resultados das análises efectuadas, o médico pôs em dúvida a correcção dos mesmos, porque não indicavam qualquer infecção. – 7º.

13. O médico decidiu medicar o autor apenas com base no diagnóstico baseado na apalpação e na observação sumária, directa e presencial do doente. – 8º.

14. Sem determinar a repetição das análises para melhor confirmar o diagnóstico. – 9º.

15. O médico medicou o autor com Spidifer 600 mg e Loxina. – 11º.

16. E disse-lhe que, caso não se verificassem melhoras, o autor deveria consultar um urologista. – 12º.

17. O autor, nas primeiras 24 horas, sentiu ligeiras melhoras. – 13º.

18. O autor, perante a persistência dos sintomas, viu-se obrigado a consultar, em Lisboa, o Dr. CC, urologista – 14º.

19. Facto que teve lugar, em 22 de Agosto de 2002 – 15º.

20. Este urologista ordenou a realização imediata de exames, designadamente, um ecodoppler escrotal. – 16º.

21. Deste exame resultou que: “o testículo esquerdo se apresentava aumentado de volume, hiporreflector, heterogéneo, com zonas de diferentes sensibilidades acústicas, predominantemente sólidas, embora sendo possível individualizar algumas Imagens lacunares traduzindo provável processo evolutivo isquémico” – 17º.

22. O Dr. BB diagnosticou ao autor uma epididimite – 19.º.

23. Situação que considerou de tratamento fácil e sem problemas de maior – 20º.

24. O autor veio a ser operado, no Hospital Particular de Lisboa, no dia 26 de Agosto de 2002 – 21º.

25. Tendo-lhe sido aplicado um implante testicular – 22º.

26. Perante o diagnóstico de torção testicular, é obrigatória uma intervenção médica cirúrgica, nas 6 a 8 horas seguintes ao início dos sintomas da doença – 29º.

27. O autor sofreu perda irreversível do testículo esquerdo, no que ao seu normal funcionamento respeita – 30º.

28. Facto que era evitável se a intervenção cirúrgica tivesse sido realizada, nas 6 a 8 horas, como referido em 29º, e se o autor sofresse de torção testicular – 31º.

29. Devido à perda do testículo, o autor receou, durante algum tempo, a intimidade com elementos do sexo oposto – 35º.

30. A perda do testículo fez o autor sofrer e angustiou e angustia o mesmo – 38º.

31. A perda do testículo esquerdo faz o autor duvidar da sua virilidade – 39º.

32. E fê-lo perder confiança em si próprio – 40º.

33. O que lhe causou, durante algum tempo, dificuldade na aproximação e contacto com o sexo oposto – 41º.

34. E fez o autor perder, durante algum tempo, a alegria de viver – 42º.

35. O autor encontrava-se a preparar os exames das disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática (2.ª fase) que tinham lugar, nos dias 3 e 6 de Setembro – 43º.

36. A situação vivida dificultou-lhe a concentração e o interesse pelo estudo – 44º.

37. O que contribuiu para a sua reprovação – 45º.

38. O autor, até à data dos factos, foi um aluno médio, cumpridor, aplicado, motivado e interessado – 46º.

39. Durante algum tempo, próximo à perda do testículo, tal perda causou um trauma ao autor – 48º.

40. As dores físicas e morais, o desalento pelo que estava a viver contribuíram para o insucesso do autor, cujos resultados o impediram de ingressar, nesse ano, no ensino superior – 49º.

41. Durante algum tempo, próximo da perda do testículo esquerdo, o autor andou apático – 50º.

42. Desiludido com a vida – 51º.

43. Desinteressado – 52º.

44. Triste – 53º.

45. Tal facto originou, além do atraso escolar, uma desmotivação do autor pelo não acompanhamento dos seus antigos colegas, e ainda a frustração de ser "apanhado" pelo irmão mais novo – 55º.

46. O autor não se sente à vontade para explicar a quem o questiona sobre a sua falta de aproveitamento escolar (e) que a mesma se deveu ao problema em questão – 56º.

47. O autor, por tudo o que lhe aconteceu, sentiu-se inibido, durante algum tempo, próximo à perda do testículo, nos grupos de familiares e amigos – 58º.

48. O autor, durante algum tempo, próximo à perda do testículo, sentiu-se inibido quando ia à piscina e à praia, com medo de que as pessoas se apercebessem da sua lesão – 59º.

49. O autor não se sente à vontade em praticar desporto quando isso envolva expor-se nos balneários masculinos – 60º.

50. O dano que sofreu tem duração para toda a vida – 63º.

51. O 2.º réu agia, sob a orientação técnico-profissional do “Hospital ......” – 64º.

52. E este facultava àquele os recursos técnicos, económicos e organizacionais para o exercício da medicina – 65º.

53. A epididimite é uma possibilidade diagnóstica face aos sintomas referidos em 2.º – 66º.

54. A epididimite pode provocar trombose dos vasos espermáticos que degeneram em necrose isquémica – 67º.

55. O Dr. BB, no dia 18 de Agosto de 2002, disse ao autor que, a manter-se aquele quadro clínico, devia consultar um médico especialista em urologia – 68º.

56. Ao tempo, 18 de Agosto de 2002, o serviço de urgência do “Hospital ......” não possuía a especialidade de urologia – 69º.

57. A ré “S............., Lda” havia transferido a responsabilidade que lhe pudesse advir, por actos médicos praticados pelo Dr. BB, para a “Companhia de Seguros Tranquilidade, SA”, por acordo constante de "contrato de seguro", com o n.º 00000, válido e em vigor, em 18 de Agosto de 2002 – 70º.

58. No dia 18 de Agosto de 2002, no “Hospital ......”, não funcionava o serviço de ecografia – 71º.
                                                         

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:

I – A questão da ampliação da matéria de facto.

II – A questão do erro de diagnóstico determinante da culpa.

          

                          I. DA AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO


I. 1. O autor sustenta, desde logo, que deve ser ordenada a ampliação da matéria de facto, nos termos do disposto pelo artigo 729°, nº 3, do CPC, em ordem a estabelecer-se que não padecia de epididimite, ou, então, a fixar-se um quesito que permita apurar, na realidade, qual a doença de que sofria, no dia em que entrou no hospital, porquanto o Tribunal não conseguiu fixar qual a exacta doença de que era portador, facto essencial para se poder julgar, em atenção à verdade material, o presente pleito, sendo certo que tudo indica que, na verdade, não padecia de epididimite, pois que nenhuma das análises realizadas permite sustentar a existência, no caso concreto, desta doença.

Efectivamente, o Supremo Tribunal de Justiça aplica, definitivamente, o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, não podendo ser objecto de recurso de revista a alteração da decisão por este proferida quanto à matéria de facto, ainda que exista erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, quando o STJ entenda que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, ou, finalmente, quando a decisão de facto possa e deva ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 729º, nºs 1, 2 e 3 e 722º, nº 2, do CPC.

Contudo, não ocorre, na hipótese em apreço, a situação excepcional em que a decisão proferida pela Relação pode ser alterada pelo STJ, pressuposta pelos artigos 729º, nº 2 e 722º, nº 2, do CPC, isto é, um caso de prova vinculada ou legal.

Dispõe, então, o artigo 729º, nº 3, do CPC, que “o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito”.

A ampliação da base instrutória tem em vista o objectivo de o Tribunal tomar em consideração a relevância para a decisão da causa de todos os factos que possam ter influência, directa ou indirecta, na decisão desta, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, do ponto de vista de uma ou outra das teses em presença, nos termos das disposições combinadas dos artigos 264º e 511º, nº 1, do CPC.
Trata-se de factos controvertidos e pertinentes que o Tribunal, no exercício do poder-dever que lhe compete, tem de incluir na base instrutória, logo que se aperceba da sua importância, de acordo com os factos alegados pelas partes, que integram a causa de pedir e daqueles em que se baseiam as excepções, sem prejuízo dos factos que não carecem de alegação ou de prova [artigo 514º,do CPC], daqueles que traduzam um uso anormal do processo [artigo 665º, do CPC] e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa, conforme decorre do estipulado pelo artigo 264º, nºs 1 e 2, do CPC.
Efectivamente, o artigo 264º, nºs 2 e 3, de acordo com o princípio da aquisição processual, contemplado pelo artigo 515º, 1ª parte, ambos do CPC, permite ainda que o Tribunal funde a sua decisão nos factos essenciais articulados pelas partes, mas, também, nos factos instrumentais relevantes para o desfecho da lide que resultem da instrução e discussão da causa.
Ora, a ampliação da base instrutória, quando determinada por iniciativa do Tribunal, surge nesta conjugação de princípios processuais, de modo a abranger os factos essenciais articulados pelas partes e os factos instrumentais.

Com efeito, o autor entende que o Tribunal deve fixar, tendo em atenção o princípio da verdade material, qual a exacta doença de que padecia, no dia 18 de Agosto de 2002, sendo certo que tudo indica que não sofria de epididimite, pois que nenhuma das análises realizadas permite sustentar a existência desta doença, na hipótese em apreço.

O autor inquieta-se pelo facto de as instâncias não terem conseguido estabelecer qual a exacta doença de que padecia, no dia 18 de Agosto de 2002, aquando do seu atendimento no Hospital réu, sendo certo que tudo indica, segundo a sua versão, que não sofria de epididimite.

I. 2. Efectuando uma síntese conclusiva do essencial relevante que ficou demonstrado, neste particular, importa reter que, no dia 18 de Agosto de 2002, por volta das 8,30 horas, o autor dirigiu-se ao réu “Hospital ......”, por ter sentido, durante a noite, fortes dores e inchaço no testículo esquerdo e vómitos, tendo nele sido atendido, cerca das 9 horas, pelo médico, Dr. BB, ora réu, que determinou, para a situação vertente, a realização de uma análise à urina.

Porquanto os resultados da análise à urina não indicavam qualquer infecção, o réu médico pôs em dúvida a sua correcção, mas sem determinar a repetição da mesma, para melhor ajuizar a situação, diagnosticou ao autor uma epididimite, que considerou de tratamento fácil e sem problemas de maior, e decidiu medicá-lo com Spidifer 600 mg e Loxina, apenas com base no diagnóstico fundamentado, na apalpação e na observação sumária, directa e presencial do doente, dizendo-lhe ainda que, na hipótese de não se verificarem melhoras, a manter-se o quadro clínico que trouxera ao Hospital réu, deveria recorrer a um urologista.

Perante a persistência dos sintomas, o autor viu-se obrigado a consultar um urologista, no dia 22 de Agosto seguinte, que ordenou a realização imediata de exames, designadamente, um ecodoppler escrotal, do qual resultou que “o testículo esquerdo se apresentava aumentado de volume, hiporreflector, heterogéneo, com zonas de diferentes sensibilidades acústicas, predominantemente sólidas, embora sendo possível individualizar algumas imagens lacunares traduzindo provável processo evolutivo isquémico”, mas não a falta de irrigação sanguínea do testículo esquerdo, vindo a ser operado, no Hospital Particular de Lisboa, no dia 26 de Agosto imediato.

Foi-lhe, então, aplicado um implante testicular, sofrendo perda irreversível do testículo esquerdo, no que ao seu normal funcionamento respeita.

Perante um eventual diagnóstico de torção testicular, se viesse a concretizar-se, mas que não aconteceu, seria obrigatória uma intervenção médica cirúrgica, nas 6 a 8 horas seguintes ao início dos sintomas da doença, como forma de evitar a perda irreversível do normal funcionamento do testículo esquerdo.

Porém, a epididimite que lhe foi avaliada pelo réu médico é uma possibilidade diagnóstica, face aos sintomas referidos pelo autor, podendo provocar trombose dos vasos espermáticos que degeneram em necrose isquémica.

Por seu turno, não de demonstrou, conforme foi alegado pelo autor, que “o diagnóstico e a leitura das análises e do exame clínico efectuado pelo réu médico no réu Hospital implicaram uma percepção da situação, um conhecimento da doença e um tratamento médico e medicamentoso errados” e que tal “teve como consequência directa e necessária a posterior perda do testículo”, bem assim como que “o autor, em 18 e Agosto de 2002, sofria de necrose isquémica testicular compatível com o status clínico de torção testicular”, “susceptível de ser diagnosticada nesse dia” e que “obrigasse a uma intervenção médica adequada nas 8 horas seguintes ao início da despistagem da doença”.

A isto acresce que se provou que, no dia 18 de Agosto de 2002, o serviço de urgência do “Hospital ......” não possuía a especialidade de urologia, nele não funcionando, igualmente, o serviço de ecografia.

I. 3. Face ao quadro factual da situação em apreço, impõe-se registar que o autor foi submetido a uma intervenção cirúrgica com implante testicular e extracção do testículo esquerdo, quase dez dias após a inicial sintomatologia da epididimite, que definira a patologia de que o mesmo padecia aquando do seu atendimento hospitalar.
Porém, o autor defende, como já se disse, que deveria estabelecer-se que não padecia de epididimite, ou, então, qual a doença de que sofria, no dia em que entrou no Hospital.
Ora, não ficou provado que “o autor, em 18 e Agosto de 2002, sofria de necrose isquémica testicular compatível com o status clínico de torção testicular”, “susceptível de ser diagnosticada nesse dia” e que “obrigasse a uma intervenção médica adequada nas 8 horas seguintes ao início da despistagem da doença”, sendo certo, outrossim, que a epididimite que lhe foi avaliada pelo réu médico é uma possibilidade diagnóstica, face aos sintomas referidos pelo autor, podendo provocar trombose dos vasos espermáticos que degeneram em necrose isquémica, e que só perante o eventual diagnóstico de torção testicular, se viesse a concretizar-se, o que não aconteceu, seria obrigatória uma intervenção médico-cirúrgica, nas 6 a 8 horas seguintes ao início dos sintomas da doença.

Assim sendo, é manifesto que não se mostra agora pertinente determinar a pretendida ampliação da base instrutória, que não faria qualquer sentido, com o muito devido respeito, porquanto a aludida factualidade já foi objecto de debate e veio a conhecer resposta pelo Tribunal, insusceptível de, presentemente, tal poder voltar, de novo, a acontecer, a pretexto de poder vir a constituir fundamento suficiente para a decisão de direito.

Não se mostra, assim, fundamentada a pretensão de ampliação da matéria de facto, atento o disposto pelo artigo 729º, nº 3, do CPC.

Ora, não cabendo a este Supremo Tribunal de Justiça, no caso em apreciação, a modificação da matéria de facto fixada pelas instâncias, há que a declarar como aceite, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do CPC, em conformidade com o que já consta do texto deste acórdão.

 

                II. DA CULPA DOS RÉUS PELO ERRO DE DIAGNÓSTICO

II. 1. Não invocando o autor o exercício de medicina privada, por parte do réu médico, nas instalações do réu Hospital, goza do direito de reclamar uma indemnização pelos danos que lhe foram causados, por alegado facto ilícito culposo gerador de responsabilidade civil extracontratual.

            Trata-se, com efeito, de uma responsabilidade de natureza extra-contratual, em que a obrigação de indemnizar nasce da violação de uma disposição legal ou de um direito absoluto, devido à inexistência de um vínculo jurídico entre a vítima e o lesante, sendo esta, também, a concepção que melhor se adapta à essência dos serviços públicos ou de interesse público, porquanto qualquer pessoa pode, indistintamente, utilizá-los, nas condições gerais e impessoais dos respectivos estatutos e regulamentos, sem possibilidade da sua recusa ou da negociação de cláusulas particulares[1].

E, na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, é ao lesado que incumbe fazer a prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa, nos termos do preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 342º, nº 1 e 487º, nº 1, sem esquecer que não há lugar a responsabilidade, no caso de faltar qualquer um dos pressupostos legais constantes do artigo 483º, nº 1, todos do CC.

Por outro lado, estipula o artigo 486º, do CC, que “as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido”.

Aliás, a questão da obrigação de indemnização, com base em responsabilidade civil médica, não decorre de qualquer regra especial definidora desse âmbito, encontrando antes o seu campo de implantação geral contido no estatuído pelo artigo 483º, nº 1, do CC.

E, como só existe obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, nos casos especificados na lei, onde não se inclui a pratica de actos médicos, não tendo sido, portanto, acolhida, no nosso ordenamento jurídico, a teoria do risco profissional, não se demonstrando a culpa, inexiste, consequentemente, responsabilidade civil médica.

O autor sustenta o pedido de indemnização pelos danos sofridos, em resultado do errado diagnóstico efectuado no réu “Hospital ...... - Vale do Sousa”, por parte do réu BB, que aí prestava serviço como médico, e da consequente errada prescrição, tratamento e atraso na intervenção médica.

No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, em que se filia a causa de pedir da acção, o médico apenas está obrigado a desenvolver, prudente e diligentemente, certa actividade, empregando a sua ciência para a obtenção da cura do doente, mas sem assegurar que esse efeito se produza, ficando exonerado de responsabilidade se o cumprimento requerer uma diligência maior, e liberando-se com a impossibilidade objectiva ou subjectiva que lhe não sejam imputáveis[2].

II. 2. O diagnóstico consiste na determinação da enfermidade do paciente, na análise das suas características e causas, com vista a alcançar um conhecimento sobre o estado do doente, o mais amplo possível à utilidade que visa, quer se trate de medicina curativa ou de medicina preventiva[3], ou seja, destina-se a conhecer ou determinar “uma doença pelos sintomas e ou mediante exames diversos (radiológicos, laboratoriais), etc”[4].

Trata-se de um enquadramento clínico baseado na capacidade subjectiva do médico em interpretar, de acordo com os indícios colhidos durante o exame preliminar, complementado por exames adicionais, se necessário, as condições de saúde do paciente, cabendo aquele, após uma atenta análise dos sintomas reveladas pelo doente, formar a sua convicção e dar início ao tratamento mais adequado à patologia clínica evidenciada, em conformidade com a avaliação obtida.

            E, por acto médico, entende-se o acto executado por um profissional de saúde que consiste numa avaliação diagnóstica, prognóstica ou de prescrição e execução de medidas terapêuticas adequadas[[5].

Porquanto se está perante uma obrigação geral de prudência e de diligência, isto é, de uma obrigação de meios, como já se disse, espera-se que o profissional médico assuma um comportamento, particularmente, diligente, que possibilite o correcto diagnóstico, permitindo, com isso, a adopção da terapia mais idónea.

E a culpa exprime um juízo de reprovabilidade da conduta do agente, que devia e podia actuar de outro modo, e que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade deste[6].

Com efeito, o erro de diagnóstico é fruto, quase sempre, de uma investigação mal conduzida, quase sempre marcada pela insuficiência dos meios utilizados ou pela negligência, sendo certo, outrossim, que a ciência médica, com vista à obtenção de um quadro clínico seguro, estabelece determinadas rotinas de investigação que possibilitam, de forma considerável, a sua redução.

Ao não adoptar um procedimento seguro, durante o processo inicial, descuidando-se, assim, da necessária observância do prescrito pela ciência médica, o profissional médico revela-se negligente e torna a sua actuação censurável, o que conduz, com facilidade, ao erro e, por conseguinte, à responsabilidade civil médica.

Contudo, nos casos de hospi­tais desprovidos dos serviços necessários ao atendimento de emergên­cias previsíveis, não se pode impor ao médico assistente a respon­sabilidade civil decorrente da falta de condições mínimas para o aten­dimento das situações mais comuns, sem embargo de, perante um quadro clínico duvidoso, com possibilidade de ocorrer um dano irreversível, aquele estar obrigado a empregar maior diligência e cuidado na identificação da doença e, de igual sorte, na indicação do tratamento.

Aliás, "não é propriamente o erro de diagnóstico que incumbe ao juiz examinar, mas sim se o médico teve culpa no modo pelo qual procedeu ao diagnóstico, se recorreu, ou não, a todos os meios ao seu alcance para a investigação do mal, desde as preliminares auscultações até aos exames radiológicos e laboratoriais"[7].

Comprovado, pois, que “ao examinar o doente o médico agiu de acordo com as regras técnicas actualizadas da ciência médica, diagnos­ticando, de forma consciente e cuidadosa, afasta-se o erro e, consequen­temente, a culpa”, sendo certo que um eventual dano, porventura, ocorrido nessas situações, observadas as condições e circunstâncias locais, é de qualificar como um erro escusável ou «faut du service», afastando-se a responsabilidade civil da intervenção, numa hipótese que se confunde com a imperfeição dos conhecimentos científicos e que recai no âmbito da denominada falibilidade médica[8].

Com efeito, não se pode afirmar, por princípio, que o erro de diagnóstico seja constitutivo de culpa médica, uma vez que se trata de um acto de prognóstico, sendo o resultado de um juízo, podendo, então, o diagnóstico ser erróneo se o juízo for falso[9].

Sendo a Medicina, enquanto ciência valorativa, uma ciência não exacta, desde logo, porque perante um mesmo paciente com uma determinada sintomatologia, vários médicos oferecem, muitas vezes, diagnósticos distintos, quer ainda porque acontece, frequentemente, no processo de cura, uma interferência de circunstâncias imprevisíveis, tal não deve constituir argumento justificativo da impossibilidade de comparação da conduta médica, pelas suas características próprias, com qualquer outra actividade profissional, atendendo às suas consequências, muitas vezes, irreparáveis.

Ora, sendo o erro um equívoco no juízo e não se encontrando o médico dotado do dom da infalibilidade, o erro de diagnóstico será imputável, juridicamente, ao médico, a título de culpa, quando ocorreu com descuido das mais elementares regras profissionais, ou, mais, precisamente, quando aconteceu um comportamento inexcusável em que o erro se formou[10].

Se o médico actua “sem a cautela necessária”, sem os cuidados que o caso requer, caracterizando-se a sua conduta pela intempestividade, precipitação, insensatez ou inconsideração, age com imprudência, se se comporta com "inação, indolência, inércia ou passividade", faltando aos deveres que "as circunstâncias e condições concretas do paciente exigem"; actua com imperícia, mas se, "por despreparo prático ou por insuficiência de conhecimentos técnicos", por falta de aptidão técnica, teórica ou pratica para o exercício da Medicina, deixa de observar as normas rudimentares fundamentais ao exercício do ofício, age com imperícia[11].

No fundo, a possibilidade de previsão de resultados pelo agente, mesmo daqueles que decorrem da falta da sua antevisão individual, segundo as suas aptidões pessoais, define o limite da culpa e, em consequência, da responsabilidade.

II. 3. Recuperando a factualidade que ficou consagrada, importa reter que, sem embargo de o réu médico não ter determinado a repetição da análise à urina do autor, cuja correcção lhe ofereceu dúvidas, diagnosticou-lhe uma epididimite, com base na apalpação e na observação sumária, directa e presencial, que medicou, advertindo-o de que deveria recorrer a um urologista, na hipótese de não se verificarem melhoras.

Porém, ficou provado que a epididimite era uma possibilidade diagnóstica, face ao quadro sintomático referido pelo autor, podendo provocar trombose dos vasos espermáticos degeneradora de necrose isquémica.

Contudo, não se demonstrou que o autor, em 18 de Agosto de 2002, sofresse de necrose isquémica testicular compatível com o «status» clínico de torção testicular, susceptível de ser diagnosticado nesse dia, e que obrigasse a uma intervenção médica adequada, nas oito horas seguintes ao início da despistagem da doença, e bem assim como que o diagnóstico e a leitura das análises e do exame clínico efectuado pelo réu BB tenham implicado uma percepção da situação, um conhecimento da doença e um tratamento médico e medicamentoso errados e que tal tivesse como consequência, directa e necessária, a posterior perda do testículo.

Na verdade, o acto médico encontra-se envolto num «clima de ordem pública» que concede ao médico, regularmente, habilitado exercer o seu ministério, num quadro de uma imunidade relativa que exclui a sua responsabilidade, a menos que se esteja em presença de uma falta verificada[12], sendo certo que o erro invencível para a mediana cultura médica, desde que observadas as circunstâncias de prudência que o caso concreto justifica, conforme se demonstrou ter acontecido com a actuação do réu médico, isenta o seu autor da correspondente responsabilidade.

Com efeito, o autor não demonstrou que a causa da isquémia e necrose do testículo esquerdo fosse determinada pela torção testicular como propugnava e, consequentemente, o erro de diagnóstico do réu médico, mas antes que a epididimite era uma possibilidade diagnóstica, face aos sintomas referidos pelo autor, podendo provocar trombose dos vasos espermáticos que degeneram em necrose isquémica.

E, não tendo o autor demonstrado a pratica de um facto ilícito e culposo, por parte do réu médico, impõe-se concluir pela improcedência da acção, atenta a causa de pedir invocada, relativamente aquele e os demais réus, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

 

CONCLUSÕES:

I - Não se mostra pertinente determinar a ampliação da base instrutória, com base no disposto pelo artigo 729º, nº 3, do CPC, quando a respectiva factualidade já foi objecto de debate e veio a conhecer resposta pelo Tribunal, insusceptível de agora tal poder, de novo, voltar a acontecer, a pretexto de poder vir a constituir  fundamento suficiente para a decisão de direito.

II - Tem natureza extracontratual a responsabilidade civil, por alegados factos ilícitos cometidos por um médico, em serviço público hospitalar, em relação a um doente, em virtude da inexistência de um vínculo jurídico entre a vítima e o lesante.

III - No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, o médico apenas está vinculado a uma obrigação geral de prudência e de diligência, empregando a sua ciência para a obtenção da cura do doente, mas sem assegurar que esse resultado se produza, esperando-se apenas que assuma um comportamento, particularmente, diligente, que possibilite o correcto diagnóstico, permitindo, com isso, a adopção da terapia mais idónea, mas ficando exonerado de responsabilidade se o cumprimento requerer uma diligência maior, e liberando-se com a impossibilidade objectiva ou subjectiva que lhe não sejam imputáveis.

IV - O diagnóstico traduz-se num enquadramento clínico baseado na capacidade subjectiva do médico em interpretar, de acordo com os indícios colhidos durante o exame preliminar, complementado por exames adicionais, se necessário, as condições de saúde do paciente, cabendo aquele, após uma atenta análise dos sintomas reveladas pelo doente, formar sua convicção e dar início ao tratamento mais adequado à patologia clínica evidenciada, em conformidade com a avaliação obtida.

V - Comprovando-se que o médico, ao examinar o doente, agiu de acordo com as regras técnicas actualizadas da ciência médica, diagnosticando, de forma consciente e cuidadosa, afasta-se o erro e, consequentemente, a culpa, sendo certo que um eventual dano, porventura, ocorrido nessas situações, observadas as circunstâncias de prudência que o caso concreto justifica, é de qualificar como erro escusável ou «faut du service», invencível para a mediana cultura médica e que afasta a responsabilidade civil da intervenção, por recair no âmbito da denominada falibilidade médica.

VI - A possibilidade de previsão dos resultados pelo agente, mesmo daqueles que decorrem da sua falta de capacidade individual, segundo as suas aptidões pessoais, define o limite da sua responsabilidade.

VII - Não acolhendo o ordenamento jurídico nacional a teoria do risco profissional, não se incluindo a pratica de actos médicos, nos casos especificados na lei em que existe obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, e não demonstrando o autor que a causa da isquémia e necrose do testículo fosse determinada por torção testicular, como propugnava, mas antes que a epididimite era uma possibilidade diagnóstica, face aos sintomas por si referidos, podendo provocar trombose dos vasos espermáticos que degeneram em necrose isquémica, não se provou o erro de diagnóstico do réu médico e, consequentemente, a pratica de um facto ilícito e a sua imputação ao mesmo, a título de culpa, nem a correspondente responsabilidade civil médica.

DECISÃO[13]:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando, inteiramente, o douto acórdão recorrido.

                                                  

Custas, a cargo do autor.

Notifique.

 
Lisboa, 24 de Maio de 2011

Helder Roque (Relator)
Gregório Silva Jesus
Martins de Sousa

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[1] Vaz Serra, Responsabilidade Civil do Estado e dos seus Órgãos ou Agentes, BMJ, nº 85, 476 a 497; Joaquim Silva Carneiro, Responsabilidade da Administração Hospitalar, RDES, Ano XIX, 123 e ss.; STJ, de 7-5-74, BMJ nº 237, 196; RT, Ano 93º, 282.
[2] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006, 1039 e 1040.
[3] René Savatier, Traité de la Responsabilité Civile en droit français civil, administratif, profesionel, procedural, 2ª edição, Paris, 1950, nº 778.
[4] Aurélio Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª edição, Editora Nova Fronteira, 1998, 584.
[5] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Almedina, 1991, 431.
[6] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, Almedina, 388.
[7] Kfouri Neto, Responsabilidade Civil do Médico, Revista dos Tribunais, 4ª edição, 2001, S. Paulo, 82.
[8] Maldonado de Carvalho, Responsabilidade Civil Médica, 3ª edição, revista e ampliada, Editora Destaque, 2002, 53.
[9] Luís Gonzaléz Morán, La Responsabililidad Civil del Médico, 1990, 96.
[10] A. Cirinei, La valutazione clínica della responsabilitá professionale del chirurgo, Milão, 1982, 120.
[11] Veloso de França, Direito Médico, 7ª edição, S. Paulo, Fundação BYK, 2001, 259 a 265; Maldonado de Carvalho, Iatrogenia e Erro Médico sob o Enfoque da Responsabilidade Civil, Lúmen Juris Editora, 2005, 40.
[12]La Responsabilité du Médicin, Dalloz, 1992, 25, citando René Savatier, Traité de la Responsabilité Civile en droit français civil, administratif, profesionel, procedural, 2ª edição, Paris, 1950.
[13] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.