Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12414/14.4T8PRT-A.P2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
EFICÁCIA
CEDENTE
CESSIONÁRIO
SOCIEDADE COMERCIAL
SÓCIO
OBRIGAÇÃO
CUMPRIMENTO
PAGAMENTO
AÇÃO EXECUTIVA
BOA FÉ
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 01/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. A eficácia da cessão de créditos quanto ao devedor ocorre quando dela é notificado, quando a aceita ou quando da mesma tem conhecimento (art. 583º do CC).

II. A partir de então, o cumprimento da obrigação só assume carácter liberatório se for realizado perante o cessionário (art. 769º do CC), sem embargo das situações previstas no art. 770º do CC.

III. O facto de a sociedade cedente e a sociedade cessionária terem em comum o mesmo sócio que era titular de cerca de 99% do capital social de cada uma não permite concluir, por si só, para integração da exceção prevista nna al. d) do art. 770º do CC, que o pagamento feito à sociedade cedente tenha “aproveitado” à sociedade cessionária.

IV. Embora a coincidência no mesmo sócio do domínio do capital social também não seja suficiente para afirmar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade cessionária ou da sociedade cedente, ou de ambas, a exigência do crédito pela sociedade cessionária, depois do devedor ter realizado o pagamento à sociedade cedente, pode ser impedida se houver razões para afirmar que constitui uma manifestação de abuso de direito, nos termos do art. 334º do CC.

V. Por exceder manifestamente o fim social e económico da figura da cessão de créditos e contrariar as regras da boa fé, nos termos do art. 334º do CC, deve ser negada a exigência da quantia reclamada pela sociedade cessionária numa situação em que se conjugam os seguintes fatores:

- A sociedade cedente e a sociedade cessionária do crédito eram detidas em quase 100% pelo mesmo sócio;

- A cessão incidiu sobre um crédito litigioso que fora reconhecido em sentença proferida em ação declarativa, numa altura em que ainda decorria o prazo para a interposição de recurso dessa sentença;

- A cessionária interpôs a ação executiva para pagamento de quantia certa contra o Condomínio devedor quando ainda não fora decidido o incidente de habilitação requerido por apenso à ação declarativa;

- O devedor procedeu ao depósito do cheque que titulava a quantia em dívida numa conta bancária da sociedade cedente depois de diversos condóminos terem sido notificados da penhora de prestações de condomínio e de ter sido feita a penhora de contas bancárias do Condomínio que ainda não fora notificado para a ação executiva;

- O sócio-gerente da sociedade cessionária, confrontado com o depósito do cheque numa das contas bancárias da sociedade cedente, admitiu o efeito liberatório do depósito do cheque se, para evitar a “cativação” da quantia correspondente, o mesmo fosse levantado e depositado noutra conta bancária da sociedade cedente;

- Não se apurou que o depósito do cheque na conta bancária da cedente tenha sido feito com o objetivo de prejudicar a cessionária, pretendendo o Condomínio e os condóminos regularizar a dívida reconhecida pela sentença.

Decisão Texto Integral:

I – Condomínio Urbano do Edifício Âncora, em …, deduziu embargos de executado, por apenso à execução que lhe foi movida por Vieromaterials, Ldª.

Considerou que a quantia exequenda era de € 60.900,50 e não de € 69.295,53, como fora indicado no requerimento executivo, e que a quantia exequenda já fora integralmente paga, tendo em conta, além do mais, um depósito bancário no valor de € 43.551,18 que foi realizado à ordem da sociedade Vierominho, Ldª, a quem fora condenada pagar numa altura ainda não havia sido citado para a ação executiva e antes de a exequente lhe ter exigido o pagamento de qualquer valor.

Terminou pedindo que:

a) Se decida que da liquidação da obrigação da quantia exequenda resulta a quantia pecuniária de € 60.900,50 e não a quantia pecuniária de € 69.295,53 indicada no requerimento executivo que deu origem a estes autos e ainda suspender a execução sem prestação de caução nos termos do art. 733º, n° 1, al. c), do CPC;

b) Se decida que estamos perante a situação do art. 729º, al. g), do CPC, face ao pagamento integral da quantia exequenda pelo executado;

c) Se conclua pela ilegitimidade ativa da exequente, nos termos do art. do 729º, al. c), do CPC;

d) Se decida que a exequente não pode exigir do executado a quantia de € 43.551,18 que já foi paga à Vierominho, Ldª, antes de ter sido notificado na execução;

e) Se declare a extinção da execução, nos termos do art. 732º, n° 4, do CPC, por o executado já ter procedido ao pagamento integral da quantia exequenda devida.

A exequente contestou alegando que o depósito do cheque que foi efetuado não teve, quanto a si, efeito liberatório, já que ante disso, adquirira o crédito exequendo por contrato de cessão de que o executado teve conhecimento.

No despacho saneador os embargos foram julgados procedentes na parte em que se invocava a ilegitimidade ativa da exequente, mas tal decisão acabou por ser revogada.

Retomada tramitação na 1ª instância, foi proferida sentença que julgou os embargos parcialmente procedentes, reconhecendo que o pagamento feito pelo executado à Vierominho Ldª, no valor de € 43.551,18, extinguia esta parte do valor da dívida exequenda, prosseguindo a execução apenas quanto ao eventual valor acima do somatório dos montantes já pagos e penhorados e respetivos juros, nos termos decididos no acórdão do STJ, transitado em julgado em 14-1-16.

A exequente embargada apelou e a Relação revogou a sentença na parte em que reconheceu que o pagamento que feito pelo executado à Vierominho, Ldª, extinguia parte do valor da dívida exequenda, ordenando que a execução prosseguisse também para cobrança desse valor.

O embargante interpôs recurso de revista alegando no essencial que:

Existe prova nos autos, em concreto a certidão permanente da exequente junta aos autos onde se pode verificar que o subscritor do e-mail (Dr. AA) além de sócio, era também o único gerente da exequente no período compreendido entre 2013 a 2015 com poderes para obrigar a referida exequente, pelo que, em Outubro de 2014, quando enviou a comunicação, transmitiu a possibilidade de a executada cumprir a sua obrigação de um outro modo, tendo legitimidade e poderes para obrigar a exequente vinculando a dita exequente.

O subscritor do e-mail tinha poderes para obrigar a embargada nesse período temporal, não é indicada alguma conta bancária da exequente, o terceiro a quem a executada fez o pagamento da quantia de € 43.551,18 é o titular de todas as contas bancárias identificadas pela exequente no anexo junto com o email de fls. 1228 a 1230, é solicitado pela exequente que a executada transfira a quantia especificada para uma das contas bancárias identificadas no anexo junto com o dito e-mail. Resulta assim que a exequente solicitou expressamente ao executado que transferisse a quantia de € 43.551,18 para uma de outras contas bancárias que a Vierominho, Ldª, era a titular, pelo que anuiu que a dita quantia não saísse da esfera jurídico-patrimonial dessa sociedade.

A circunstância de o exequente ter indicado outras contas bancárias tituladas pelo terceiro para onde solicitou que a quantia em apreço fosse depositada revela que consentiu que essa quantia ficasse na esfera jurídica do terceiro por força do pagamento já realizado ao mesmo pela executada pelo que está preenchida a condição estabelecida na al. a) do art. 770º do CC.

O consentimento a que alude o art. 770º, al. a), do CC, pode ser expresso, ou tácito, ou pode resultar de factualidade de onde se retire a ilação de que o credor se veio a aproveitar do cumprimento e não tiver interesse fundado em não a considerar como feita a si próprio (art. 217º, nº 1, do C).

Ficando sempre na esfera jurídica do terceiro a descrita quantia, mesmo que se tivesse dado cumprimento ao pedido da exequente para a transferência da quantia em apreço para outra das contas bancárias do terceiro, está verificado o aproveitamento do cumprimento nos termos da al. d) do art. 770º do CC, pois se um credor consente que a prestação feita a terceiro se mantenha na esfera jurídica desse terceiro é porque tem aproveitamento do cumprimento dessa prestação feita a terceiro e não existe nos autos factos que levem a crer que exista um interesse em não a considerar feita à exequente em função da conduta do seu único gerente com poderes para obrigar que anuiu no pagamento à Vierominho, Ldª, ao indicar contas bancárias desta, para onde solicitou que o montante em questão fosse transferido.

Está verificada a situação de abuso de direito quando o credor se aproveita do cumprimento da obrigação feita a terceiro e depois demanda o devedor para repetir a obrigação ao mesmo tornando consequentemente injustificável e ilegítimo o exercício desse direito pela exequente por exceder os limites da boa fé.

Ora essa é a situação dos presentes autos, tornando injustificável e ilegítimo o exercício desta demanda por parte da exequente para peticionar novamente o pagamento do aludido montante de € 43.551,18, alegando que não reconhece o pagamento efetuado pela embargante à Vierominho, Ldª, quando anteriormente, por comunicação escrita, o gerente único da exequente com poderes para obrigar à sociedade à data do envio dessa comunicação indicou contas bancárias da dita Vierominho, Ldª, para onde solicitou que aquele montante fosse transferido.


Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II – Factos provados:

1. A execução à qual os presentes embargos correm por apenso foi instaurada por Vieromaterials, Ldª, contra o Condomínio do Edifício Âncora, a 16-5-14, e o executado foi citado a 6-11-14 para os termos dos arts. 626º e 856º do CPC.

2. Na referida execução foi apresentado como título executivo a sentença proferida, em 2-5-14, no âmbito da ação declarativa nº 12/11.T…, na qual era A. Vierominho, Ldª, e R. o executado Condomínio do Edifício Âncora.

3. Na referida sentença o executado foi condenado a pagar à Vierominho, Ldª, a quantia de € 37.883,14, acrescida de juros de mora, à taxa legal (juros comerciais), desde a data de vencimento das faturas, até efetivo e integral pagamento.

4. Vierominho, Ldª, entretanto interpôs recurso dessa sentença para a Relação, tendo sido proferido acórdão, em 12-5-15, que alterou parcialmente a sentença referida; deste acórdão o Condomínio do Edifício Âncora interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do qual veio a ser proferido acórdão, em 12-12-15, no qual se alterou parcialmente a decisão proferida pela Relação, tendo este último acórdão transitado em julgado em 11-1-16.

5. No acórdão referido em 4. foi decidido:

“a) Condena-se o R. a pagar a A. a quantia total de € 71.624,17, reconhecendo-se ao R. o direito de reter, a título de garantia, conforme acordado, 5% do valor das faturas acima identificadas equivalente a € 16.175,27 já deduzido no apuramento do total em que vai condenado;

b) Condena-se ainda o R. a pagar à A. os juros de mora sobre o total referido em a), às sucessivas taxas aplicáveis aos créditos de que são titulares as empresas comerciais ao abrigo do art. 102º do Cód. Com., desde as datas do vencimento de cada fatura considerada desde a citação quanto à parcela respeitante à quantia não faturada de € 7.508,93”.

6. A 12-5-14, Vieirominho, Ldª, celebrou com Vieromaterials, Ldª, contrato de dação em cumprimento de crédito, nos termos da qual a Vieirominho, Ldª, declarou ser titular de um crédito reconhecido por sentença proferida no âmbito da ação declarativa nº 12/11.9… que condenou o Condomínio Edifício Âncora a pagar a quantia de € 37.883,14 acrescidos de juros de mora a taxa legal (juros comerciais), desde a data de vencimento das faturas nºs 1...93, 3...34 e 3...35, até efetivo e integral pagamento. Nele se declarou que a Vierominho, Ldª, pelo preço de € 37.883,14, dá em cumprimento a Vieromaterials, Ldª, que dela recebe, a totalidade do referido crédito que detém sobre o Condomínio do Edifício Âncora.

7. A 30-5-14, no âmbito da ação declarativa nº 12/11.9…, a Vieromaterials, Ldª, deduziu incidente de habilitação, como adquirente, contra Vierominho, Ldª, e Condomínio do Edifício Âncora.

8. A 16-6-14 foi enviada notificação ao mandatário constituído pelo executado condomínio na ação referida em 2. para contestar a habilitação de cessionário.

9. Em 30-6-14, o executado contestou a habilitação de adquirente, impugnando, por desconhecimento, a matéria invocada no requerimento inicial.

10. Em 23-10-14, foi depositado pelo Condomínio executado o cheque com o nº 61…9, emitido pelo BPI, no montante pecuniário de € 43.551,18, na conta bancária nº 22…84 do Millennium BCP, titulada pela Vierominho, Ldª, para pagamento do remanescente da dívida decorrente da condenação pela sentença.

11. Nessa mesma data o dito cheque e a respetiva quantia pecuniária relativa ao dito cheque foi creditada na identificada conta da Vierominho, Ldª, e subsequentemente foi descontada da conta bancária com o nº 43…01 do BPI (afeta ao referenciado cheque).

12. No incidente de habilitação de cessionário veio a ser proferida a sentença, transitada em julgado em 11-3-15, na qual se decidiu:

“Em face de tudo o exposto, julgo a requerente Vieromaterials, Ldª, habilitada para intervir nos autos principais, como A., na posição que antes pertencia a Vierominho, Ldª – cf. fls. 721.

13. A Vieromaterials, Ldª, foi constituída pela ap. 9/20061228, encontrando-se descrita na CRC sob o NIPC 50…81.

14. A Vierominho, Ldª, foi constituída pela ap. 12/20010824, encontra-se descrita na CRC sob a NIPC 50…62.

15. As sociedades referidas em 13. e 14. detêm o mesmo sócio maioritário, sendo que BB à data detém a maioria absoluta do capital social da empresa Vierominho, Ldª, e a maioria do capital social da empresa Vieromaterials, Ldª, tendo esta última um outro sócio - Dr. AA - com € 500,00 do capital social.

16. A 27-10-14, o mandatário e sócio-gerente da exequente, Dr. AA, enviou ao mandatário do executado o e-mail cuja cópia se encontra junta a fls. 1228 e no qual comunica o seguinte:

“Conforme conversa telefónica de há minutos venho comunicar ao Exmº Colega o seguinte:

Caso o seu cliente persista no depósito da quantia na conta mencionada, a mesma será cativada e corremos o risco de prosseguir com litígios despiciendos, e despesas acrescidas, independentemente da razão que possa assistir a uma ou a outra parte.

Caso o seu cliente entenda, poderá fazer uma comunicação ao banco até as 15.00 horas de hoje, a relatar que se enganou na conta em que pretendia fazer o depósito e a pedir o reembolso.

Tal possibilidade já foi confirmada pela minha cliente junto do banco, apesar de o depósito já ter sido realizado a dia 23.

De seguida e caso o seu cliente assim o entenda, mantendo a posição irredutível de pagamento à Vierominho, poderá fazer o depósito da quantia numa das contas da Vierominho que anexo.

Conforme acordei com o colega e porque não existe tempo para negociar, a minha cliente está disponível para fazer o abatimento da quantia de € 1.000,00 caso o pagamento seja realizado antes numa das contas indicadas.

Se o seu cliente quiser poderá fazer da seguinte forma:

a) Paga a quantia que entender para uma das duas contas que anexo;

b) Eu assumo pessoalmente com o colega o pagamento da quantia de € 1.000,00 em numerário no seu escritório, no prazo de 48 horas após a quantia estar disponível numa das contas em anexo;

c) Dessa quantia não será exigido recibo e será a contrapartida para não termos que encarar uma disputa judicial que trará encargos a ambas as partes”.

17. Através da presente ação executiva foi penhorada ao Condomínio executado, a 31-5-14, a quantia pecuniária de € 4.542,07 (saldo existente na conta bancária nº 43…01 do BPI, titulada pelo executado) e, a 9-6-14, a quantia pecuniária de € 1.770,08 (saldo existente na conta bancária nº 45…22 do Millennium BCP, titulada igualmente pelo executado).

18. Foram entregues por diversos condóminos ao agente de execução as seguintes quantias num total de pelo menos € 12.258,67, a saber:

a) Pelo condómino CC, proprietário da fração CE do Edifício Âncora foi entregue a quantia pecuniária de € 1.089,30 resultante da entrega de € 830,80 por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o R. foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de € 222,88 por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014 e ainda da entrega de € 35,62 da quota do seguro.

b) Pelo condómino DD, proprietário das frações M e CH do Edifício Âncora foram entregues as quantias pecuniárias de € 134,50 (referente à fração M) e de € 864,30 (referente à fração CH) sendo que relativamente à quantia de € 134,40 tal resulta da entrega de € 107,20 por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o réu foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de € 22,60 por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014 e ainda da entrega de € 4,60 da quota do seguro e relativamente à quantia pecuniária de € 864,30 tal resulta da entrega de € 670,00 por conta da quota extraordinária do dito condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o réu foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de 165,58€ por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014 e ainda da entrega de 28,72€ da quota do seguro.

c) Pelo condómino EE, proprietário da fração AE, foi entregue a quantia pecuniária de € 916,11 resultante da entrega de € 710,20 por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o réu foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de € 175,46 por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade respeitante ao período temporal do segundo semestre de 2014 e ainda da entrega de € 30,45 da quota do seguro.

d) Pelo condómino FF, proprietário da fração AZ, foi entregue a quantia pecuniária de € 1117,34 resultante da entrega de € 871,00 por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o réu foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de € 209,00 por conta das quotas ordinárias igualmente da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014 e ainda da entrega da quota do seguro de € 37,34.

e) Pela condómina GG, proprietária da fração BB, foi entregue a quantia pecuniária de € 1.031,39 resultante da entrega de € 804,00 por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o réu foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de € 192,92 por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014 e ainda da entrega de € 34,47 da quota do seguro.

f) Pela condómina HH, proprietária da fração BD, foi entregue a quantia pecuniária de € 582,00 por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o réu foi condenado pela sobredita douta sentença.

g) Pelo condómino II, proprietário das frações B e N, foram entregues as quantias pecuniárias de € 146,02 (referente à fração B) e de € 1133,89 (referente à fração N) sendo que relativamente à quantia de € 146,02 tal resulta da entrega de € 120,60 por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o réu foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de € 25,42 por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014 e relativamente à quantia pecuniária de € 1133,89 tal resulta da entrega de € 830,80 por conta da quota extraordinária do dito condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o R. foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de € 195,60 por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014 e ainda da entrega da quantia de € 35,62 da quota do seguro e finalmente da entrega de € 71,87 da impermeabilização do poço do elevador.

h) Pelo condómino JJ, proprietário da fração BC, foi entregue a quantia pecuniária de € 1.117,34 resultante da entrega de € 871,00 por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o R. foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de € 209,00 por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade respeitante ao período temporal relativo ao segundo semestre de 2014 e ainda da entrega de € 37,34 da quota do seguro.

i) Pela condómina KK, proprietária da fração CV foi entregue a quantia pecuniária de € 1.071,74 resultante da entrega de € 830,80 por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o R. foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de € 205,32 por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014 e ainda da entrega de € 35,62 da quota do seguro.

j) Pelos condóminos LL e MM, proprietários da fração V, foi entregue a quantia pecuniária de € 795,56 resultante da entrega de € 582,90 por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o R. foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de € 137,24 por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014 e ainda da entrega de € 24,99 da quota do seguro e finalmente da entrega de € 50,43 da impermeabilização do elevador.

l) Pelo condómino NN, proprietário das frações 7 e BY foi entregue a quantia pecuniária de € 231,60 (respetivamente € 22,60 + € 209,00) por conta das quotas ordinárias do respetivo condomínio da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014.

m) Pelo condómino OO, proprietário da fração CJ condomínio da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014.

n) Pelo condómino PP, proprietário da fração Q, foi entregue a quantia pecuniária de € 1.332,36 resultante da entrega de € 830,80 por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o R. foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega das quantias de € 35,62 + € 35,62 das quotas do seguro, da entrega das quantias de € 195,60 + € 195,60 por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade relativo ao primeiro e segundo semestre de 2014, da entrega da quantia de € 39,12 do valor anual do fundo de reserva e finalmente € 71,87 da impermeabilização do poço do elevador.

o) Pelo condómino QQ, proprietário da fração AL foi entregue a quantia pecuniária de € 175,46 por conta das quotas ordinárias do respetivo condomínio da sua responsabilidade respeitante ao segundo semestre de 2014.

p) Pela condómina RR, proprietária da fração 5, foi entregue a quantia pecuniária de € 129,80 resultante da entrega de € 107,20  por conta da quota extraordinária do respetivo condomínio da sua responsabilidade referente à quantia pecuniária em que o R. foi condenado pela sobredita douta sentença e da entrega de € 22,60 por conta das quotas ordinárias do dito condomínio igualmente da sua responsabilidade respeitante ao período temporal relativo ao segundo semestre de 2014.

q) Pela condómina SS, proprietária da fração AQ, foi entregue a quantia pecuniária de € 149,58 por conta das quotas ordinárias do respetivo condomínio da sua responsabilidade respeitante ao período temporal relativo ao segundo semestre de 2014.


III – Decidindo:

1. Está sob apreciação apurar se o depósito do cheque que foi efetuado numa das contas bancárias de Vierominho, Ldª, liberou o R. Condomínio da obrigação de pagamento da quantia correspondente com relação à dívida reconhecida na sentença.

A resolução desta questão deverá ponderar essencialmente o regime jurídico da cessão de créditos (art. 577º do CC) e da identificação dos sujeitos a quem o pagamento deve ser feito (arts. 769º 770º) e, em termos subsidiários, a figura do abuso de direito no contexto em que ocorreu o pagamento (art. 334º).

Este é um caso em que a resolução do litígio não se compadece com uma análise meramente formal dos factos enunciados pelas instâncias, exigindo a compreensão do relacionamento que se estabeleceu entre os três sujeitos: o Condomínio devedor, a primitiva credora Vierominho, Ldª, e a cessionária do crédito Vieromaterials, Ldª, sem olvidar ainda o facto de tais sociedades terem, em comum, o mesmo sócio (BB) largamente maioritário, detentor de quotas sociais no valor correspondente a cerca de 99,91% e 99 % do capital social.

Ademais, não podem deixar de ser ponderadas as circunstâncias em que ocorreu o depósito da quantia, num quadro em que a ação principal ainda prosseguia na fase de recurso, sob impulso da Autora e recorrente Vierominho, Ldª, e não da cessionária Vieromaterials, Ldª, a qual, apesar de ainda não ter sido habilitada como tal na ação declarativa, avançou de imediato para a instauração da ação executiva contra o Condomínio.


2. Sintetizemos os elementos essenciais:

- Na ação declarativa interposta por Vierominho, Ldª, contra o Condomínio, este foi condenado, por sentença de 2-5-14, a pagar a quantia de € 37.883,14 e juros de mora;

- Logo em 12-5-14 (10 dias depois da sentença), foi subscrito um contrato de dação em cumprimento com cessão do referido crédito, surgindo nele como cedente Vierominho, Ldª, e como cessionária Vieromaterials, Ldª;

- Em 16-5-14 (4 dias depois da cessão do crédito), Vieromaterals, Ldª, invocando a qualidade de cessionária do crédito (muito antes de ter sido habilitada como tal na ação declarativa), veio instaurar ação executiva contra o Condomínio, pedindo o pagamento da quantia que lhe fora reconhecida pela referida sentença;

- Esta ação executiva foi instaurada ainda antes de a sentença ser vinculativa para o Condomínio, pois ainda decorria o prazo de interposição de recurso;

- Entretanto em 30-5-14, Vieromaterials, Ldª, veio requerer a sua habilitação como cessionária por apenso à aludida ação declarativa;

- Em 16-6-14 o mandatário judicial do Condomínio foi notificado para contestar a habilitação da cessionária, tendo apresentado contestação em 30-6-14; mas só em 13-5-15 foi proferida a sentença que deferiu a habilitação;

- Em 23-10-14, o executado Condomínio (a quem já haviam sido penhoradas contas bancárias, como decorre dos docs. nºs 4 e 5 juntos com a petição de embargos, e quando dezenas de condóminos estavam a ser notificados da penhora das quotas de condomínio, como decorre dos docs. 6 a 17 juntos com a petição inicial e dos docs. juntos com o requerimento de 7-4-15) procedeu ao depósito de um cheque numa conta bancária da Vierominho, Ldª, para pagamento de parte da quantia em que fora condenado (sendo que sentença estava ainda pendente de recurso, o qual, como se disse, foi interposto por Vierominho, Ldª, sem que a Vieromaterials, Ldª, tivesse sido considerada habilitada como cessionária);

- Em 6-11-14, o executado Condomínio foi notificado no processo de execução para pagar a quantia exequenda (numa altura em que já haviam sido realizadas penhoras das contas bancárias e penhoras das quotas sociais e depois de ter depositado o cheque na conta bancária de Vierominho, Ldª).

Outros factos que descrevem a situação e que decorrem dos diversos apensos:

- Como decorre da certidão de registo comercial junta a 16-7-17, na data em que foi realizado o depósito na conta bancária de Vierominho, Ldª (23-10-14), BB era detentor de 99,91% do capital social (quota de € 599.500,00 no capital social de € 600.000,00, sendo TT titular de uma quota de € 500,00, equivalente a cerca de 0,09%);

-  Na mesma data, BB era também titular de uma quota de € 49.500,00 correspondente a 99% do capital social de Vieromaterials, Ldª, sendo o Dr. AA titular de uma quota de € 500,00 (1%), exercendo a qualidade de gerente (e ainda de mandatário judicial nestes autos) da mesma sociedade;

- Quando foi efetuado o depósito era ainda a Vierominho, Ldª, que figurava como Autora na ação declarativa, onde interpusera recurso da sentença, uma vez que, nessa ocasião, ainda não tinha sido deferida a habilitação de cessionária que fora requerida por Vieromaterials, Ldª;

- A 27-10-14 (4 dias depois de o executado Condomínio ter depositado o cheque na conta bancária de Vierominho, Ldª), o sócio-gerente da exequente, Dr. AA, enviou ao mandatário judicial do Condomínio executado o seguinte e-mail:

“Bom dia. Conforme conversa telefónica de há minutos venho comunicar ao Exmº Colega o seguinte:

Caso o seu cliente persista no depósito da quantia na conta mencionada, a mesma será cativada e corremos o risco de prosseguir com litígios despiciendos, e despesas acrescidas, independentemente da razão que possa assistir a uma ou a outra parte.

Caso o seu cliente entenda, poderá fazer uma comunicação ao banco até às 15.00 horas de hoje, a relatar que se enganou na conta em que pretendia fazer o depósito e a pedir o reembolso.

Tal possibilidade já foi confirmada pela minha cliente junto do banco, apesar de o depósito já ter sido realizado a dia 23.

De seguida e caso o seu cliente assim o entenda, mantendo a posição irredutível de pagamento à Vierominho, poderá fazer o depósito da quantia numa das contas da Vierominho que anexo.

Conforme acordei com o colega e porque não existe tempo para negociar, a minha cliente está disponível para fazer o abatimento da quantia de € 1.000,00 caso o pagamento seja realizado antes numa das contas indicadas.

Se o seu cliente quiser poderá fazer da seguinte forma:

a) Paga a quantia que entender para uma das duas contas que anexo;

b) Eu assumo pessoalmente com o colega o pagamento da quantia de € 1.000,00 em numerário no seu escritório, no prazo de 48 horas após a quantia estar disponível numa das contas em anexo;

c) Dessa quantia não será exigido recibo e será a contrapartida para não termos que encarar uma disputa judicial que trará encargos a ambas as partes” (sublinhado e negrito nossos).


3. Atento o disposto no art. 577º, nº 1, in fine, do CC, não havia obstáculos à cessão do crédito que foi acordada entre a sociedade Vierominho, Ldª, e a sociedade Vieromaterials, Ldª. Com efeito, nem a lei, nem qualquer convenção, nem sequer a natureza da prestação colocava quaisquer impedimentos gerais.

Mas, na perspetiva do cessionário, não basta que a cessão de crédito seja admissível, sendo ainda importante que a mesma produza efeitos relativamente ao devedor, questão que releva para efeitos de liberação do comprimento, nos termos do art. 583º.

Uma das formas de tornar a cessão eficaz relativamente ao devedor é através da sua notificação, ainda que extrajudicial (Menezes Leitão, Cessão de Créditos, p. 359).

No caso concreto, segundo a cessionária alegou, essa notificação ocorreu em sede do incidente relativo à sua habilitação que correu por apenso ao processo de declaração em que foi proferida a sentença condenatória do Condomínio.

Na verdade, no âmbito desse incidente, foi efetuada a notificação do mandatário judicial do Condomínio para deduzir oposição, em face da alegação e da junção do documento demonstrativo da cessão do crédito.

O acordo de cessão foi veiculado, assim, através da notificação do mandatário judicial do Condomínio para o referido incidente (note-se que, nos termos do art. 44º, nº 1, do CPC, os poderes de representação do mandatário judicial valem não apenas no processo principal, como ainda nos respetivos incidentes), efeito que, aliás, foi reconhecido na sentença de 1ª instância:

“Conforme resulta da matéria assente, designadamente dos factos referidos em 6) a 9) a 12.05.2014 a Vierominho, Ldª, cedeu o crédito que detinha sobre o aqui executado à Vieromaterials, Ldª, tendo vindo deduzir, a 30-5-14, o competente incidente de adquirente no processo declarativo cuja sentença serve de título executivo.

No âmbito desse processo declarativo o Il. Mandatário constituído pelo Condomínio foi notificado dessa cessão e para contestar a mesma a 16-6-14, tendo, inclusive, deduzido oposição ao referido incidente.

Ora se assim é, e como já referido na motivação da matéria de facto, mostra-se evidente que o executado tinha conhecimento da cessão de créditos ocorrida entre a autora primitiva e a exequente.


Ou seja, a notificação do R. Condomínio, na ação declarativa, para o incidente de habilitação – e contrariamente ao que julgavam os administradores do condomínio - acarreta a eficácia da cessão que o novo credor pode invocar, como o fez, ao exigir a dívida através da ação executiva instaurada tendo o executado que a solver ao novo titular.”

Refira-se ainda que apesar de Menezes Leitão recusar que a citação para a ação em que é exigido o crédito determine, por si, a eficácia da cessão (ob. cit., p. 361), a jurisprudência deste Supremo vem seguindo uma linha divergente no sentido de que tal eficácia pode ser alcançada por via judicial, através da citação (ou da notificação) no âmbito do processo em que é exigido o direito de crédito pelo cessionário. Neste sentido cf. o Ac. do STJ, 10-3-16, 703/11, em que o ora relator interveio como adjunto, assim como os Acs. do STJ de 6-11-12, 314/2002 e de 20-10-03, 04B815, ou o Ac. d Rel. de Lisboa, de 12-5-09, 24988/05, relatado pelo ora relator, todos em www.dgsi.pt. Cf. ainda Assunção Cristas, em Transmissão Contratual do Direito de Crédito, pp. 133 e 134.

Neste contexto, podemos assentar que a cessão do crédito, ainda que de cariz litigioso, produziu efeitos em relação ao Condomínio, nos termos e para efeitos do art. 583º, nºs 1 e 2, do CC, asserção que, aliás, não é questionada pelo Condomínio.


4. Também está definitivamente assegurada a legitimidade ativa da cessionária Vieromaterials, Ldª, para a ação executiva.

Nos embargos de executado o Condomínio questionou tal pressuposto processual, mas a Relação acabou por julgar os embargos improcedentes nessa parte.

Por conseguinte, conjugando a eficácia da cessão relativamente ao Condomínio e a legitimidade ativa da cessionária Vieromaterials, Ldª, podemos concluir que o efeito liberatório decorrente de algum pagamento por conta da quantia que fora reconhecida na sentença de condenação que serve de título executivo apenas existiria, em princípio, se fosse feito à cessionária.

Esta regra extrai-se do art. 769º do CC, com as exceções enunciadas no art. 770º do CC, designadamente na al. a), segundo a qual “a prestação feita a terceiro não extingue a obrigação, exceto se…” tal “for consentido pelo credor”, ou a da al. d), onde se exceciona o caso em que “o credor vier a aproveitar-se do cumprimento e não tiver interesse fundado em não a considerar como feita a si próprio” (al. d)).


5. Foi a respeito da natureza liberatória do depósito do cheque na conta bancária de Vierominho, Ldª, que as instâncias divergiram.

A 1ª instância afirmou o efeito liberatório considerando que o cumprimento por essa via aproveitara à Vieromaterials, Ldª. Além disso, assumiu ainda que a exigência de novo pagamento por parte da cessionária constituía uma manifestação de abuso de direito, mediante a ponderação dos seguintes fatores:

i) Ambas as sociedades têm em comum o sócio maioritário, sendo minoritário o outro sócio na Vieromaterials, Ldª;

ii) O sócio-gerente da Vieromaterials, Ldª, indicou ao Condomínio a possibilidade de o depósito ser efetuado em duas outras contas da Vierominho, Ldª;

iii) Apesar do conhecimento por parte do Condomínio da cessão do crédito, a habilitação de Vieromaterials, Ldª, como cessionária se encontrar ainda em discussão no incidente de habilitação.

Por cada uma destas vias alternativas, a 1ª instância concluiu pela procedência dos embargos nessa parte.

Já a Relação considerou que nenhum desses aspetos permitia afirmar o efeito liberatório do depósito relativamente ao Condomínio que, por isso, teria de pagar de novo à cessionária do crédito em causa.


6. O caso não encontra no ordenamento jurídico uma resposta fácil. Mas, por isso mesmo, teremos de verificar se o caminho mais simples é aquele que conduz à resposta mais correta ou se esta pode ser encontrada seguindo uma via mais sinuosa.

Esta dicotomia é bem visível quando se comparam as decisões das instâncias: a 1ª instância procurou valorizar a materialidade; já a Relação optou por privilegiar os argumentos formais, sem atribuir qualquer relevo a aspetos que emergem da forte coincidência a respeito da titularidade do capital social de ambas as sociedades.

O caminho certo é o primeiro.

Concede-se que não se encontram arrolados elementos de facto que permitam seguir a via da desconsideração da personalidade jurídica de cada uma das sociedades a que se aludiu, en passant, na sentença de 1ª instância.

Para o efeito, seria necessário que tivessem sido apurados factos que permitissem concluir, por exemplo, que a existência das duas sociedades, dominadas pelo mesmo sócio, não passava de um mero artifício para ocultar o verdadeiro titular dos interesses patrimoniais em causa, tornando praticamente indiferente a identificação da sociedade a quem o pagamento fosse feito. Ou seja, era necessário provar, por exemplo, que a criação das duas sociedades constituiu uma mera “cortina de fumo” para ocultar o real interessado: o sócio largamente maioritário. Ou, então, apurar que a sociedade Vieromaterials, Ldª, não passava de uma extensão artificial da sociedade Vierominho, Ldª, destinada, por exemplo, a assumir a titularidade de créditos, enquanto esta arcaria com o passivo (o que a cessão de crédito, no entanto, indicia).

Foi num quadro destes que se assumiu a desconsideração da personalidade jurídica nos Ac. do STJ, de 19-6-18, 446/11, e de 7-11-17, 919/15, www.dgsi.pt.

A realização da cessão de crédito logo a seguir à prolação da sentença, associada à rapidez com que a ação executiva foi instaurada (ainda antes da habilitação da cessionária e também antes de a sentença transitar em julgado) e à “solução” alternativa que o Dr. AA, gerente da Vieromaterials, Ldª, indicou ao Condomínio sugere isso mesmo, mas a ausência de outros factos impede que se firme nesse plano jurídico a solução para o caso concreto.

Contrariando ainda a sentença de 1ª instância, a matéria de facto também não fornece suficientes elementos para integrar a previsão normativa do art. 770º, al. d), do CC, na parte em que se refere ao “aproveitamento” pela cessionária Vieromaterials, Ldª, do pagamento que foi feito à cedente Vierominho, Ldª.

O simples facto de ambas serem dominadas em absoluto pelo mesmo sócio revela que esse sócio extraiu, por via indireta, proveito económico do referido depósito, mas não consente que se afirme que o depósito do cheque numa conta de Vierominho, Ldª, tenha “aproveitado” à outra sociedade, a Vieromaterials, Ldª. Para tal era necessária a desconsideração da personalidade jurídica que já anteriormente se negou, ou seja, que ambas as sociedades formavam entre si e com o referido sócio um bloco patrimonial unitário, levando à descaracterização da personalidade jurídica de cada uma delas relativamente ao sócio maioritário.


7. Mas não se esgotam nos referidos preceitos as vias decisórias. A 1ª instância não deixou ainda de sustentar o resultado final na figura do abuso de direito. E é, na verdade, esta figura difusa, multifacetada e multifuncional que pode fundamentar, em situações como aquela que agora defrontamos, a correta resolução do litígio.

Independentemente dos preceitos ligados à cessão de créditos ou ao regime do cumprimento de obrigações, o recurso a tal válvula de escape do ordenamento jurídico permite uma maior aproximação ao ideal de Justiça na esfera do Direito Privado e legitima que se desatendam pretensões que, objetivamente analisadas, acabam por revelar a contrariedade com princípios basilares do direito civil e das obrigações, em divergência com os objetivos de se alcançar uma solução substancialmente justa.

Tal figura tem no caso manifesta pertinência, permitindo recusar a solução de pendor essencialmente formal que foi adotada pela Relação que se limitou à negação do efeito liberatório do depósito efetuado numa conta bancária de Vierominho, Ldª, obrigando o Condomínio a pagar de novo a mesma quantia à sociedade Vieromaterials, Ldª.

Tendo em conta as circunstâncias que rodearam o caso e o facto de no fim da linha do aproveitamento dos proveitos patrimoniais se encontrar uma única pessoa titular de mais de 99% do capital social de cada uma das sociedades, esta solução feriria, de forma flagrante, os limites impostos pelo fim social e económico da cessão de crédito e pelas regras da boa fé.

A ponderação conjugada de todos os elementos relativos à operação financeira, cujos laivos de artificialidade são manifestos, que se traduziu na outorga da cessão do crédito que acabara de ser reconhecido pela sentença ainda pendente de recurso (sendo, por isso, ainda litigioso) e na rapidíssima instauração da ação executiva, complementada com o facto de, na ocasião, a qualidade de cessionária da Vieromaterials, Ldª, ainda nem sequer ter sido reconhecida no incidente de habilitação, deixa claro, para quem queira encarar os mecanismos processuais como instrumentos de realização da Justiça, a insatisfação de uma solução resultante da aplicação singela das referidas normas de direito positivo para negar o efeito liberatório do depósito efetuado pelo Condomínio.


8. No caso concreto, não pode deixar de se atribuir relevo à estrutura de ambas as sociedades, de onde surge, como elemento objetivo preponderante, o facto de o capital social de cada uma ser detido, praticamente a 100%, pelo mesmo indivíduo que, assim, tinha o domínio absoluto dos interesses patrimoniais de ambas. O facto de serem dominadas pelo mesmo sócio capitalista e de o Dr. AA ser, na ocasião, o único gerente da sociedade Vieromaterials, Ldª, permite realçar factos que de outro modo passariam despercebidos.

O e-mail que o Dr. AA dirigiu ao mandatário judicial do Condomínio para “salvar” a situação diz tudo: não fora o risco de a conta bancária em que o cheque foi depositado, titulada formalmente pela sociedade Vierominho, Ldª, estar sujeita a “cativações” (possível eufemismo de penhoras promovidas pelos respetivos credores), seria indiferente para a sociedade Vieromaterials, Ldª, que o pagamento lhe fosse feito diretamente ou através de uma das outras contas da Vierominho, Ldª (se tal fosse efeito, refere-se sugestivamente no mesmo e-mail, o respetivo subscritor comprometia-se pessoalmente com um desconto de € 1.000,00, “sem recibo”).

Assim deve ser interpretada a “sugestão” que foi apresentada ao mandatário do Condomínio de proceder ao levantamento do cheque da conta em que fora depositado (com a falsa justificação de ter havido erro na sua identificação) e proceder ao seu depósito numa das outras contas bancárias da mesma sociedade, sem indicação sequer de alguma conta bancária da sociedade Vieromaterials, Ldª.

Isto demonstra manifestamente que, contra o que a embargada Vieromaterials, Ldª, veio defender nos embargos de executado, a entidade a favor de quem o cheque foi depositado revelava-se, na verdade, um elemento secundário, apenas lhe interessando o objetivo finalístico de evitar que a quantia depositada acabasse por ser objeto de apreensão. Tanto assim que se, porventura, o Condomínio tivesse procedido ao levantamento do cheque e, depois, a novo depósito noutra conta bancária da Vierominho, Ldª, operaria, sem qualquer dúvida, o efeito liberatório, por via do art. 770º, al. a), do CC (consentimento do credor).

É legítimo afirmar que não era o facto de a quantia entrar na esfera jurídica de Vierominho, Ldª, que seria importante para consumar o efeito liberatório relativamente à sociedade Vieromaterials, Ldª, mas apenas a utilização que iria ser feita de tal quantia: ser eventualmente cativada para assegurar outras responsabilidades da Vierominho, Ldª, ou ficar depositada à espera de outro destino qualquer que, como se disse, de uma forma ou de outra, estaria nas mãos de um único indivíduo: o sócio maioritário de ambas as sociedades.

Por conseguinte, a exigência dessa mesma quantia por parte de Vieromaterials, Ldª, na presente ação executiva afronta, de forma flagrante, o fim social e económico da figura da cessão de créditos e as regras da boa fé em sentido objetivo, não podendo ser valorizado de modo algum pelos tribunais o risco que pretendia evitar, ou seja, a eventual apreensão (“cativação”) da quantia depositada na conta de Vierominho, Ldª.

Aparentemente, a cessão de crédito não passou de uma pura manobra de cariz financeiro, sem real justificação, tendo como resultado – que os órgãos jurisdicionais e designadamente por este Supremo Tribunal de Justiça não podem deixar de ponderar negativamente – a retirada de um crédito do património da primitiva credora.


9. Atender às razões invocadas pela Vieromaterials, Ldª, ou acolher a sua pretensão, seria pactuar com a instrumentalização dos mecanismos jurídicos em prol de um objetivo pouco claro, mas que acaba por transparecer do referido e-mail: o interesse principal dessa sociedade era evitar que a quantia depositada fosse alvo de apreensão, servindo a invocação do efeito não liberatório do depósito de mera justificação formal para sustentar uma pretensão materialmente infundada.

No contexto em que tudo ocorreu, revela-se contrária aos princípios de uma justiça comutativa a invocação por parte da exequente Vieromaterials, Ldª, de que o depósito da quantia que foi feito numa conta bancária da cedente do crédito não produziu efeitos na sua esfera jurídica, o que obrigaria o Condomínio a satisfazer de novo esse pagamento.

Repare-se que, uma vez que o Condomínio não interpôs recurso da sentença de 1ª instância que fixou a quantia que era devida, era-lhe absolutamente indiferente pagar a uma ou outra das sociedades. Não se provou também que a efetivação do depósito na conta bancária de Vierominho, Ldª, tivesse como objetivo prejudicar a Vieromaterials, Ldª.

O que acima de tudo resulta dos elementos que ressaltam dos diversos processos e apensos era o interesse do Condomínio e dos respetivos condóminos (que transparece da tramitação do processo de executivo, onde, a par das penhoras das contas bancárias do condomínio, dezenas de condóminos estavam a ser confrontadas com notificações referentes à penhora das suas quotas de condomínio) de realizarem o pagamento da quantia que fora fixada na sentença, evitando quer a cobrança dos juros que continuavam a ser contabilizados, quer a manutenção das diversas penhoras já realizadas sobre contas bancárias do Condomínio e sobre prestações devidas por dezenas de condóminos.

Por outro lado, embora a cessão de créditos fosse do conhecimento do Condomínio, por via da notificação do seu mandatário judicial que fora realizada na habilitação de cessionária, a legitimidade da exequente ainda nem sequer estava reconhecida na ação executiva (onde veio a ser suscitada a ilegitimidade nos embargos) ou no incidente de habilitação (onde fora impugnada a mesma legitimidade).


10. Enfim, num contexto procedimental complexo, tendo em conta a pendência simultânea da ação declarativa (na qual foi interposto recurso pela Autora Vierominho, Ldª), do incidente de habilitação de cessionária (sujeito ainda a impugnação) e da ação executiva interposta pela cessionária Vieromaterials, Ldª (na qual, ainda antes da notificação do Condomínio executado, já haviam sido realizadas penhoras de contas de depósito do Condomínio e de quotas de condóminos), o depósito espontâneo do cheque por parte do Condomínio correspondeu a uma séria vontade de satisfazer a sua obrigação.

Trata-se de uma atuação do Condomínio segundo as regras da boa fé e que apenas se revelou precipitada pelo facto de, na confluência da legitimidade de duas entidades juridicamente distintas (uma, a Vieromaterials, Ldª, tendo a seu favor o facto de ter celebrado um contrato de dação em pagamento; outra, a Vierominho, Ldª, que mantinha intacta a sua legitimidade para acompanhar a ação declarativa que se encontrava em fase de recurso), ter efetuado o depósito na conta “errada”, ou seja, na conta bancária da Vierominho, Ldª.

Esta postura de boa fé, em sentido subjetivo, acaba por acentuar ainda mais o desajustamento da solução declarada pela Relação e que, a manter-se, redundaria no seguinte:

- O cheque depositado entrou na esfera patrimonial da Vierominho, Ldª, detida, praticamente a 100% pelo sócio titular de quase 100% da outra sociedade;

- Teve ou terá o destino ajustado dentro da esfera de responsabilidade daquela entidade, incluindo o de ser eventualmente utilizada para pagamento dos respetivos credores;

- Apesar disso, por causa de uma errónea, ainda que compreensível, opção do Condomínio, este acabaria por ser obrigado a repetir o pagamento da mesma quantia, agora a favor da sociedade Vieromaterials, Ldª.

Na realidade, a situação dos autos pouco se diferencia de uma outra que igualmente não suportaria o resultado declarado pela Relação e que se traduzisse, por exemplo, no pagamento ou no depósito do cheque diretamente ao sócio dominante de cada uma das sociedades.

Evidentemente que, como se observou num caso paralelo apreciado no Ac. do STJ, de 25-11-10, 394/05, www.dgsi.pt, em tal situação também não seria defensável impor ao devedor novo pagamento, sob o pretexto (formal, mas sem qualquer reflexo material) de que a sociedade recetora do cheque constituía uma pessoa jurídica distinta do sócio.

Nenhum ordenamento jurídico que, como o nosso, pretenda preservar os valores da Justiça poderia consentir em tal resultado que, por isso mesmo, também não deve ser chancelado por este Supremo Tribunal de Justiça no caso concreto.


IV – Por conseguinte, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando-se o acórdão da Relação e passando a subsistir a sentença de 1ª instância, de onde decorre que os embargos de executado são parcialmente procedentes, reconhecendo-se que o pagamento feito pelo executado à Vierominho, Ldª, no valor de € 43.551,18, extinguiu esta parte do valor da dívida exequenda, prosseguindo a execução apenas quanto ao eventual valor que exceder o somatório dessa quantia e dos demais montantes que já foram pagos ou penhorados, até atingir o valor da quantia exequenda que foi fixada no acórdão do STJ transitado em 14-01-2016.

Custas da revista e nas instâncias a cargo da exequente/embargada Vieromaterials, Ldª.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

Notifique.


Lisboa, 28-1-21


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo