Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2622/18.4T8CSC.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
DEFESA POR EXCEÇÃO
CONVERSÃO DO NEGÓCIO
PROCURAÇÃO
CASO JULGADO
EXCEÇÃO DILATÓRIA
ANALOGIA
INEFICÁCIA DO NEGÓCIO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - O requisito da norma do art.º 293.º do CCiv, relativo à vontade hipotética das partes, tem de ser invocado e provado pela parte que invoca a conversão do negócio, posto não ser o mesmo de conhecimento oficioso.

II – Na conversão, cabe uma interpretação melhorada do negócio, de modo a fazer dele a leitura sistemática – não se convertem negócios mas sim as declarações negociais de um único negócio.

III - O que está em causa na conversão, à luz do disposto no art.º 293.º do CCiv, não é uma prévia ou necessária declaração de invalidade do negócio (nulo, anulável ou relativamente ineficaz), para, mais tarde, em nova acção (ou até na acção primitiva, por reconvenção) se invocar a conversão.

IV - A conversão pode ser aplicada por analogia aos casos de ineficácia em sentido estrito.

V – Para efeitos da preclusão extraprocessual da alegação, considera-se que incumbe ao réu o ónus de apresentar toda a defesa na contestação – art.º 573.º n.º1 do CPCiv, ficando assim precludidos todos os factos que podiam ter sido invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada e, por isso, com aquela que foi apreciada antes pelo tribunal.

VI - Sendo a defesa por via da conversão do negócio dedutível enquanto defesa por excepção, fica a mesma precludida pelo disposto no art.º 573.º n.º1 do CPCiv, caso não venha a ser deduzida na contestação da acção.

VII - A preclusão em causa opera por via da excepção dilatória de caso julgado, visto o disposto nos art.ºs 580.º n.º1 e 581.º n.º1 do CPCiv.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Objecto da Acção

A “Herança Indivisa Aberta por óbito de AA” e a “Fundação Arcângela Teixeira Marques Couceiro” intentaram a presente acção, com processo de declaração e forma comum, contra BB, CC, DD, requerendo ainda a intervenção principal de EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN e OO.

Alegaram que AA faleceu em .../.../2005, sendo então herdeiro de PP, sua mãe, conjuntamente com o seu pai, QQ, e seu irmão BB, 1º Réu.

Por sua vez, QQ, falecido em 2003,  deixou como únicos herdeiros os seus dois filhos (AA e BB).

Em testamento, PP deixou a quota disponível dos seus bens aos 2º e 3ª R.R.

AA não deixou herdeiros legitimários e, por um lado, instituiu legatários do usufruto de todos os seus bens, maxime de património financeiro e prédios urbanos, a 1ª chamada e do usufruto de todos os demais bens imóveis rústicos os ora 1º R. e os 1º a 11º chamados.

AA instituiu herdeira do remanescente da herança, uma “obra de assistência”, que é a 2ª Autora.

Sucede que em data anterior a ... de Abril de 2002, PP e seu marido QQ formaram a vontade de dispor de certos e determinados imóveis a eles pertencentes, exclusivamente, a favor dos seus dois únicos filhos, o ora 1º R. BB e o falecido AA.

Assim, por instrumento de procuração, PP nomeou seus procuradores AA “e/ou” BB, ora 1º R., tendo-lhes conferido “os poderes necessários para doar a eles mandatários, seus filhos…” os imóveis ali discriminados de que era exclusiva proprietária.

Naquele mesmo dia ... de Abril de 2002, PP e QQ nomearam igualmente seus procuradores AA e BB tendo-lhes conferido os poderes necessários para doar a eles mandatários, o prédio rústico aí descrito e uma quota na sociedade “S..., Lda”, de que era titular exclusivo o mandante.

Na partilha realizada no dia ... de Dezembro de 2002 entre o 1º R. BB, sua mulher RR, como “outorgante”, o falecido AA e o pai de ambos, QQ – este representado pelos seus dois filhos – todos os bens imóveis deixados por PP identificados na procuração de ... de Abril de 2002, ficaram adjudicados em “comum e partes iguais” aos filhos BB e AA. Em simultâneo com a outorga da escritura de partilha, a quota parte do direito de propriedade sobre o imóvel que pertenceu a QQ, veio a ser doada ao R. BB e ao falecido AA, em comum e partes iguais.

Pese embora tenha corrido o processo n.º 123/06...., as questões da validade da escritura de partilha realizada no dia ... de Dezembro de 2002, por conversão do negócio, e da revogação ou caducidade do testamento de ... de Julho de 1979, na parte que se refere expressa e concretamente aos imóveis identificados na procuração junta sob o nº 14, e só quanto a esses, mantêm-se em aberto e, na falta de consenso entre as partes, impõe-se que este seja dirimido.

Assim, sempre por via da conversão nos precisos termos previstos no artº 293º da Cód. Civil, a procuração emitida por PP, em ... de Abril de 2002, vale como revogação parcial do testamento outorgado em ... de Julho de 1979, como a escritura de partilha realizada no dia ... de Dezembro de 2002 vale como doação ao 1º R. e ao falecido AA dos imóveis identificados na referida procuração, e só quanto a estes.

Concluiu, peticionando:

a) – Declarar-se a validade e eficácia da procuração emitida em ... de Abril de 2002 por PP, por conversão, como disposição de última vontade desta, revogatória, ou determinante da caducidade, da parte do testamento de ... de Julho de 1979 com ela incompatível;

b) – Declarar-se a validade e eficácia da escritura de partilha outorgada em ... de Dezembro de 2002, por conversão, como doação de PP ao 1º R. e ao falecido AA dos bens imóveis identificados na procuração de ... de Abril de 2002;

c) – Condenar-se os R.R. a reconhecerem a validade e a eficácia da procuração de ... de Abril de 2002 e da escritura de ... de Dezembro de 2002, por conversão, nos precisos termos referidos nas alíneas antecedentes, assim se respeitando a vontade de PP;

d) - Ordenar-se o cancelamento de todos os registos relativos aos imóveis identificados supra em 25º, bem como na procuração emitida por PP em ... de Abril de 2002 que se mostrem efectuados depois de 17 de Junho de 2002.


BB contestou, invocando ser parte ilegítima na presente acção, dado não ter interesse directo em contradizer, porque da procedência da acção não lhe advém qualquer prejuízo.

Invocou ainda a excepção do caso julgado, por entender que a acção que correu termos com o n.º 123/06.... já decidiu sobre as questões essenciais agora em apreço, sendo a presente acção uma tentativa de reverter os efeitos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça aí proferido. Pede assim, que se considere verificada a excepção do caso julgado, e em consequência, seja absolvido o Réu da instância.

Considera em causa o efeito preclusivo do caso julgado ou a preclusão da invocação de meios de defesa não apresentados pela aqui Autoras na primeira acção, em que foram demandadas como Rés. Assim, a autoridade do caso julgado impede o conhecimento do mérito desta acção, porquanto a anterior decisão judicial que com força de caso julgado recaiu sobre esta mesma relação material teria que ser contraditada e revertida no caso de uma decisão de procedência da presente acção. Mais se encontra precludida a possibilidade de as Autoras virem deduzir em novo processo qualquer fundamento novo contra a definição dada pela decisão judicial definitiva anterior à relação jurídica em causa. Requereu a respectiva absolvição da instância.

Invocou ainda, a ilegitimidade processual dos Autores, por preterição de litisconsórcio activo necessário - sendo pedida a conversão de um contrato de partilhas numa doação, têm que estar na acção todos os herdeiros, mormente o Réu contestante, que figura no contrato de partilha como adquirente.

Defende-se finalmente por impugnação, alegando ter ficado provado que, aquando da outorga da escritura de partilha, nenhum dos outorgantes tinha conhecimento do testamento de 1979. É falso que o ora Réu e o seu irmão tivesse pretendido dar execução à procuração, com a outorga da escritura de partilha.

Por último, peticiona a condenação das AA. em multa e indemnização, como litigantes de má fé.


DD e CC alegaram que a presente acção pretende a conversão de um negócio declarado ineficaz por decisão transitada em julgado, com o intuito de conseguir o contrário do decidido nesse processo. 

Alegaram a ilegitimidade dos chamados para intervir através do incidente da intervenção provocada, dado que a Fundação Arcângela Teixeira Marques Couceiro é a única e universal herdeira de AA, sendo que os legatários instituídos no testamento de AA não são a parte directamente interessada na presente acção.

O direito invocado mostra-se precludido, posto que a questão da conversão não foi oportunamente suscitada, não o podendo ser agora, verificando-se excepção de caso julgado, atento o já decidido pelo STJ no âmbito do processo n.º 123/06.....

Igualmente se defenderam por impugnação e pediram a condenação das Autoras como litigantes de má fé.

As Autoras invocaram a improcedência da peticionada condenação por via da má fé processual.

Os chamados vieram aos autos declarar que fazem seus os articulados apresentados pelas Autoras às quais se associam.

Por despacho judicial de 17/12/2020, o Tribunal decidiu julgar improcedente a excepção de ilegitimidade dos chamados e procedente a excepção de ilegitimidade passiva quanto ao Réu BB.

Todavia, as Autoras requereram a intervenção principal de BB, como seu associado, intervenção que foi deferida.

BB apresentou articulado próprio, nos termos do qual invocou a excepção de caso julgado, o efeito preclusivo do caso julgado e a ilegitimidade substantiva ou material dos autores, pugnando pela improcedência da acção e pela condenação das Autoras como litigantes de má fé.

FF e outros, por um lado, e a Autora Fundação Arcângela Teixeira Marques Couceiro, por outro lado, pugnaram pela improcedência das questões suscitadas pelo interveniente.


As Decisões Judiciais

Em 23.06.2021, foi proferida decisão final em 1.ª instância, na qual se decidiu julgar procedente, por provada, a excepção de autoridade de caso julgado e, em consequência, absolver os Réus da instância, mais se julgando improcedente o pedido de condenação das Autoras como litigantes de má fé.

De tal decisão recorreram de apelação quer a 2.ª Autora Fundação, quer os intervenientes FF e outros.

A Relação decidiu, no acórdão recorrido, julgar improcedentes as apelações e, por verificação da excepção dilatória do caso julgado, confirmar a decisão recorrida de absolvição dos RR. da instância.


Inconformada, a Autora Fundação Arcângela Teixeira Marques Couceiro recorreu agora de revista excepcional, admitida pela Formação deste Supremo Tribunal de Justiça, prevista no art.º 672.º n.º 3 do CPCiv, e ao abrigo da norma do art.º 672.º n.º2 al.a) do CPCiv, para o que aquela Fundação formulou as seguintes conclusões:

1º- O recurso de revista normal do douto acórdão da Relação de ... é admissível, por isso que, sendo a sua fundamentação essencialmente diferente da douta sentença da 1ª instância, não se verifica a “dupla conforme”;

2º - Caso se entenda que se verifica a “dupla conforme”, deve ser admitida a revista excepcional, por isso que a questão suscitada nos presentes autos (conversão de negócios jurídicos que não foi objecto de apreciação e decisão em acção anterior) é complexa e de difícil resolução no contexto actual, assumindo a sua apreciação uma relevância jurídica necessária para uma melhor aplicação do direito. Art. 672º, nº1, al. a) CPC;

3º - Entre a presente acção e a acção que correu termos pelo Tribunal Judicial ... não se verifica nenhuma identidade de pedidos e de causa de pedir;

4º - A decisão de procedência da presente acção não põe em causa a decisão definitiva proferida na acção que correu termos pelo Tribunal Judicial ...;

5º - Não se verifica, pois, a excepção do caso julgado;

6º - É admissível a conversão dos negócios jurídicos meramente ineficazes, por aplicação analógica da disposição do artº 293º do Cód. Civil;

7º - Existe base para a aplicação analógica da disposição do artº 293º do Cód. Civil, às conversões ora pretendidas, por isso que “in casu” procedem inteiramente as razões justificativas do caso previsto na lei, isto é, o interesse primordial de validação da vontade claramente expressa por PP na procuração de ... de Abril de 2002 e de validação das vontades também claramente expressas de BB e AA na escritura de partilha outorgada no dia ... de Dezembro de 2002, aliás no sentido da estrita observância da vontade daquela;

8º - A vontade expressa por PP na procuração de ... de Abril de 2002 foi no sentido de que os bens imóveis nela identificados viessem a ser transferidos em vida ou por morte, em comum e partes iguais, para os seus únicos dois filhos;

9º - A escritura de partilha realizada em ... de Dezembro de 2002 concretiza plenamente a vontade de PP expressa naquela procuração;

10º - Se BB e AA tivessem optado por celebrar uma escritura de doação depois do falecimento de PP, usando da procuração por ela emitida em ... de Abril de 2002, a vontade desta teria sido cumprida sem que, por razões puramente formais, pudesse ser posta em crise;

11º - A ineficácia dos negócios jurídicos decretado pelo STJ no douto acórdão proferido na acção anterior, decorrente da falta de intervenção dos R.R. DD e BB, não obsta a que, impondo-se a realização de nova escritura de habilitação de herdeiros e de partilha dos bens imóveis e dos bens móveis restantes, se opere a conversão da procuração de ... de Abril de 2002 como disposição de última vontade de PP, coexistente com a validade e subsistência do testamento de Julho de 1979, na parte com ele compatível, e da escritura de partilha de ... de Dezembro de 2002 como doação, no preciso cumprimento da vontade expressa dela.

12º - O douto acórdão recorrido, decidindo como decidiu, infringiu o disposto no artº 20º nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, e os artºs 293º do Cód. Civil, 580º nºs 1, 2, 3 e 4, 608º nº 2 e 619º nº 1, do Cód. de Processo Civil, incorrendo na nulidade prevista no artº 615º nº 1 alª d) deste mesmo diploma legal.

Nestes termos, deve a revista ser admitida e revogar-se o douto acórdão recorrido, substituindo-se este por outro que julgue procedente a acção.


Apresentaram contra-alegações, os demandados CC e DD, por um lado, e BB, por outro, ambos pugnando pela improcedência do recurso.

Factos Apurados

a) São partes na presente acção: Herança indivisa Aberta por Óbito de AA; Fundação Arcângela Teixeira Marques Couceiro, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN e OO;

b) Os autores fundam a presente acção na existência de duas procurações outorgadas em ... de Abril de 2002, através das quais, PP e seu marido QQ formaram a vontade de dispor de certos e determinados imóveis que lhes pertenciam, exclusivamente, a favor dos seus dois únicos filhos, o ora réu BB e AA, entretanto falecido, para o que os mandataram para praticarem os atos necessários à concretização das suas últimas vontades, conferindo-lhes os poderes necessários para doarem, a eles próprios, os imóveis que deixaram identificados nas Procurações; bem como na celebração de escritura de partilha realizada em ... de Dezembro de 2002, entre aqueles e o seu pai QQ, e que na parte em que coincide com o teor das ditas Procurações entendem constituir execução dos mandatos, ou o cumprimento pontual e perfeito da última vontade de PP;

c) Formulam os seguintes pedidos: a) Que se declare a validade e eficácia da procuração emitida em ... de Abril de 2002 por PP, por conversão, como disposição de última vontade desta, revogatória, ou determinante da caducidade, da parte do testamento de ... de Julho de 1979 com ela incompatível; b) Que se declare a validade e eficácia da escritura de partilha outorgada em ... de Dezembro de 2002, por conversão, como doação de PP ao réu BB e ao falecido AA dos bens imóveis identificados na procuração de ... de Abril de 2002; c) Que se condenem os réus a reconhecerem a validade e a eficácia da procuração de ... de Abril de 2002 e da escritura de ... de Dezembro de 2002, por conversão, nos precisos termos referidos nas alíneas antecedentes, assim se respeitando a vontade de DD; d) Que se ordene o cancelamento de todos os registos relativos aos imóveis identificados no art. 25º da petição inicial, bem como na Procuração emitida por PP em ... de Abril de 2002 que se mostrem efectuados depois de 17 de Junho de 2002.

d) Correu termos o processo com o número 123/06...., intentado por DD e CC contra BB e mulher RR e Herança aberta por óbito de AA, representada em juízo por Reverendíssimo Senhor Arcebispo de ..., D. SS, BB, EE, GG e mulher TT, FF e mulher UU, HH e mulher VV, II e mulher WW, JJ, KK, LL, MM, NN e OO;

e) Formularam os seguintes pedidos: 1) Que se declare todos os réus como únicos interessados na herança aberta por óbito de AA; 2) Que se declarem nulas ou anuladas as escrituras públicas referidas nos art.ºs 4.º e 5.º e 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14-º da petição inicial (documentos 6 e 7); 3) que se declare nula ou anulada a partilha referida no art.º 15.º da petição inicial; 4) Que se anule as aquisições, pelo réu BB e pelo falecido AA, dos prédios identificados nos art.ºs 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14-º da petição inicial (documento 7); 5) Que se condene os réus a reconhecer o decidido sob 1) a 4); 6) Que se ordene o cancelamento dos registos de aquisição a favor do réu BB e do falecido AA, dos prédios identificados nos art.ºs 6.º a 14.º da petição inicial, bem como todos os que se tenham efectuado posteriormente;

f) Alegaram, em síntese, que por escritura pública de 11-10-2002, QQ e os filhos BB e AA foram habilitados como únicos e universais herdeiros de PP. Por escritura pública de 11-12-2002 os três habilitados herdeiros procederam à partilha dos bens deixados por morte de DD: todos os bens imóveis foram adjudicados, em comum e partes iguais, aos filhos, tendo o pai recebido tornas em dinheiro. Na mesma data, partilharam entre si, do mesmo modo, os bens móveis deixados por DD. Por escritura pública de 29-01-2003, BB e AA habilitaram-se como únicos e universais herdeiros do pai BB, que não deixou bens. Após a abertura do testamento de AA – o qual faleceu solteiro e sem filhos e instituiu seus legatários todos os 2ªs réus e respectivos cônjuges – os autores vieram a ter conhecimento de que em ...-07-1979, fora lavrado testamento por DD, instituindo-os únicos e universais herdeiros da sua quota disponível, em comum e partes iguais. A omissão, na escritura de habilitação de herdeiros de 11-10-2002, da existência desta disposição testamentária, acarreta a nulidade ou a anulabilidade do acto, bem como das subsequentes partilhas de bens imóveis e móveis;

g) A Ré EE contestou, alegando, em síntese, que os familiares mais próximos de DD que se habilitaram como seus herdeiros estavam seguros de que a esta não havia feito qualquer disposição testamentária, pois em 03-05-2002 emitiu uma procuração/doação a favor dos filhos, com poderes especiais e sem caducidade por morte, onde expressou a verdadeira declaração de última vontade a respeito do destino dos seus bens imóveis ali identificados, tendo emitido outra procuração, na mesma data e conjuntamente com o marido, a conferir os mesmos poderes, nos mesmos termos, porém, com referência a um único prédio rústico, sito em ...;

h) A Ré Herança Aberta por óbito de AA contestou, arguindo a incompetência territorial. Alegou ainda que os autores deviam contextualizar as circunstâncias de tempo, modo e lugar da descoberta do testamento;

i) Replicaram os Autores, pedindo a improcedência da excepção de incompetência territorial e que a procuração invocada pela ré EE confere apenas poderes representativos e que estes já se extinguiram com o óbito de AA, que faleceu sem a ter usado, tendo ambos os procuradores renunciado à mesma quando outorgaram, sem dela fazerem uso, a escritura de partilhas;

j) Após várias vicissitudes processuais, foi proferida sentença, em 31 de Agosto de 2012, que concluiu o seguinte: A) Relativamente ao pedido formulado pelos autores na alínea a) do art.º 33.º da petição inicial e alínea a) do art.º 39.º não devem as RR RR, TT, UU, VV e WW ser consideradas na herança aberta por óbito de AA e, consequentemente, absolvo as mesmas de todos os pedidos formulados pelos autores nesta acção, sendo os restantes réus nos autos identificados como tal reconhecidos, o que agora se declara; B) Relativamente aos restantes pedidos pelos autores formulados (alíneas b) a f) do artigo 33.º da petição inicial e alíneas b) a f) do art.º 39.º, julgo os mesmos totalmente improcedentes, por não provados e, em consequência, absolvo os réus dos mesmos; C) Não se condenam os autores como litigantes de má fé.”;

k) Apelaram os autores, tendo o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de Janeiro de 2014, concedido parcial provimento à apelação e, alterando a sentença recorrida, declarou a nulidade da escritura de habilitação de herdeiros outorgada a 11 de Outubro de 2002, declarou a nulidade da escritura de partilha outorgada no dia ... de Dezembro de 2002, declarou a nulidade da partilha dos bens móveis mencionada no art.º 15.º da petição inicial, decidiu anular as aquisições pelo réu BB e por AA dos prédios identificados na escritura de partilha de 11 de Outubro de 2002, condenou todos os réus recorridos a reconhecer o decidido supra, e ordenou o cancelamento dos registos de aquisição a favor do réu BB e AA dos prédios identificados na escritura de partilha de 11 de Outubro de 2002;

l) Os réus recorreram, pedindo a revogação do acórdão recorrido, na parte em que declara nula a escritura de partilha de 11-12-2002, declarando-se essa escritura plenamente válida e eficaz, como negócio de execução do mandato constante da procuração datada de ... de Abril de 2002, por conversão, tendo o Supremo Tribunal de Justiça por acórdão datado de 28 de Maio de 2015 concluído o seguinte: “Não há revogação – tácita ou expressa-, nem caducidade, do testamento que institui herdeiro de quota disponível da herança, se o de cuiús outorga instrumento de procuração posterior, irrevogável, para produzir efeitos em vida e depois da sua morte, nomeando seus procuradores os filhos, para doarem a si próprios, bens imóveis, certos e determinados, em comum e partes iguais, com dispensa de colação e reserva de usufruto a seu favor e do marido, ou para procederem a partilhas judiciais ou extrajudiciais, certo que aqueles bens, apesar de integrarem o acervo hereditário, não o esgotam. – A procuração é um negócio jurídico unilateral que, conferindo apenas poderes representativos, não implica uma transmissão da posição jurídica do dominus e, na falta de bilateralidade, não consubstancia um contrato de mandato ou um contrato de doação. – Os actos extrajudiciais de habilitação de herdeiros e de partilha de bens, titulados em escrituras públicas, não são aptos a produzir os seus efeitos em relação aos herdeiros preteridos, a estes inoponíveis, sanando-se mediante a prática de novos e idênticos actos que contemplem as suas posições. – Tendo sido suscitada e pedida apenas nas alegações do recurso de revista a conversão do negócio (partilha), matéria que não é de conhecimento oficioso, está vedada a sua apreciação pelo Supremo Tribunal por constituir questão nova.”;

m) Decidindo, negar a revista, mas alterando o acórdão recorrido, e declarar a ineficácia das escrituras de habilitação de herdeiros outorgada em 11 de Outubro de 2002 e de partilha de bens celebrada em ... de Dezembro de 2002 e, bem assim, da partilha referida no art.º 15.º da petição inicial, mantendo, no mais, o acórdão recorrido;

n) A Fundação Arcângela Teixeira Marques Couceiro foi instituída por vontade expressa de AA, conforme disposição testamentária de 25 de Fevereiro de 2005 (na qual instituiu como sua universal herdeira), mediante Decreto de Erecção canónica de 26 de Julho de 2011, cujos estatutos foram aprovados neste mesmo dia.

Conhecendo:


Iniciando por observar que a Recorrente faz menção final, nas respectivas alegações, ao facto de o tribunal recorrido ter praticado a nulidade prevista na norma do art.º 615.º n.º1 al.d) do CPCiv – omissão ou excesso de pronúncia – mas, observadas as mesmas alegações, o conteúdo normativo da impugnação, com base no dispositivo citado, resume-se à impugnação de idênticos fundamentos da impugnação de direito do acórdão recorrido, pelo que se procederá simplesmente à análise destes referidos fundamentos de direito.



I


A análise da impugnação recursória implica se situe a matéria dos autos, a partir da decisão recorrida ou dos respectivos termos, designadamente a partir do conceito ali desenvolvido de excepção dilatória de caso julgado, nas vertentes da repetição da primeira acção em matérias de pedido e causa de pedir – art.ºs 580.º n.º1 e 581.º n.ºs 1, 3 e 4 do CPCiv.

No acórdão recorrido, exarou-se então:

“Da análise que dos documentos constantes na presente acção e dos documentos que nela foram juntos referentes à acção 123/06...., podemos concluir, como aliás salientam os réus DD e BB, que a questão essencial colocada no âmbito das duas acções é idêntica.”

“Na aludida acção, por estes instaurada no Tribunal ..., pretenderam ver reconhecida a qualidade de herdeiros da sua avó PP e, em consequência, verem cancelados os registos de aquisição sobre os prédios que elencaram que estavam registados a favor de BB (ali Réu) e do seu falecido irmão AA.

Na presente acção, todos os ora Recorrentes, Fundação e Chamados (à excepção do chamado BB) pretendem o inverso daquilo que os ora Réus quiseram e lhes foi reconhecido na acção que intentaram em ..., ou seja, que tais prédios voltem a estar registados a favor de BB e AA, independentemente do substracto jurídico usado para atingir tal desideradto.”

“Na verdade, da análise do conteúdo do acórdão do S.T.J. proferido na acção 123/06...., que emitiu pronúncia definitiva sobre as pretensãoes das partes, cada um dos pedidos formulados na presente acção já aí foram objecto de apreciação.”

“Pois, relativamente aos pedidos formulados pelas autoras na presente acção relativa à validade e eficácia da procuração por conversão, como disposição de última vontade, revogatória de parte do testamento, bem como à condenação dos réu a reconhecerem tal (pedidos vertidos na al.B) – a) e c) do petitório), o S.T.J., no acórdão proferido nesses autos, concluiu que: “Não há revogação – tácita ou expressa, nem caducidade do testamento que institui herdeiro da quota disponível da herança, se o de cujus outorga instrumento de procuração posterior, irrevogável, para produzir efeitos em vida e depois da sua morte, nomeando seus procuradores os filhos, para doarem a si próprios bens imóveis, certos e determinados, em comum e partes iguais, com dispensa de colação e reserva de usufruto a seu favor e do marido, ou para procederem a partilhas judiciais ou extrajudiciais, certo que aqueles bens, apesar de integrarem o acervo hereditário, não o esgotam.”

“A procuração é um negócio jurídico unilateral que, conferindo apenas poderes representativos, não implica uma transmissão da posição jurídica do dominus e, na falta de bilateralidade, não consubstancia um contrato de mandato ou um contrato de doação”. (fim de citação)

“Também no que respeita ao pedido relativo à validade e eficácia da escritura de partilhas por conversão, como doação, bem como ao ordenar-se o cancelamento de todos os registos relativos aos imóveis, efectuados depois de 17/6/2002 (pedidos vertidos na Al.B) – b) e d) do petitório), o S.T.J., no acórdão proferido nesses autos concluiu que: “A ineficácia stricto sensu dos actos de habilitação de herdeiros e partilha de bens, na medida em que, em última análise, consubstancia também ela um valor negativo dos actos praticados, com consequências na ordem jurídica, deverá ter-se como compreendida no âmbito do pedido formulado pelos autores, entendido o pedido como a pretensão de reconhecimento ou protecção de um direito subjectivo.”

“Consequentemente, não poderá subsistir no registo predial a inscrição da aquisição a favor do réu CC e do falecido EE, bem como todos os subsequentes registos que tenham sido realizados, que deverão ser cancelados (artigos 10º e 13º do Código do Registo Predial), relativamente a todos os imóveis incluídos na escritura pública de partilha.”

“Os actos extrajudiciais de habilitação de herdeiros e de partilha de bens, titulados em escrituras públicas, não são aptos a produzir os seus efeitos em relação aos herdeiros preteridos, a estes inoponíveis, sanando-se mediante a prática de novos e idênticos actos que contemplem as suas posições.” (fim de citação)

“Embora nesta acção se invoque a figura jurídica da conversão do negócio como sustentáculo da pretensão formulada, o substacto factual relevante em qualquer das acções é idêntico, não tendo sido alegados factos novos capazes de suportar, de forma autónoma, uma pretensão assente em tal figura.”

“No fundo, como bem salientam os recorridos, as autoras e os réus procuram obter, no presente processo, o mesmo efeito que já visavam no processo de ..., pois a pretensão de aquisição válida e eficaz, por via da partilha, dos imóveis constantes da procuração invocada nos presentes autos pelas autoras, já era a manifestada e defendida no processo anterior, embora aí na posição de parte passiva – na altura, com a consequente pretensão de manutenção dos registos então existentes, agora com a pretensão consequente de cancelamento dos registos actualmente existentes, que foram efectuados com base no acórdão do S.T.J. no processo de ..., estribando as suas pretensões na mesma causa de pedir – entendida como facto jurídico concreto ou complexo de factos jurídicos dos quais emerge a pretensão – dado que o peticionado pelas autoras se baseia, em ambos os processos, na procuração outorgada por PP a seus filhos, e na celebração de escritura de partilhas, como se tivesse constituído uma execução dos poderes contidos nessa procuração – mais, de cumprimento de um suposto mandato, e ainda por esta constituir (alegadamente) uma disposição de última vontade capaz de revogar ou fazer caducar o testamento a favor dos Réus BB e DD (total ou parcialmente, é indiferente, porque  aparte está contida no todo).”

“Quer o conteúdo do testamento de 1979, quer da procuração de 2002, foram tidos, considerados e analisados no âmbito da primitiva acção intentada em ..., não sendo pelo facto de, no âmbito da presente acção, se invocar um novo fundamento em termos de direito que era posta em crise a identidade referente à causa de pedir, inerente a ambos os processos, dado que no processo em análise, no fundo, não foram alegados quaisquer factos concretos que alicerçassem uma nova causa de pedir, que não tivessem sido já alegados na anterior acção. Mesmo o fundamento jurídico da conversão, não se poderá ter por novo, já que a questão jurídica da conversão foi invocada, ainda nesses processo, perante o S.T.J., pelos aí réus, sendo que não são as qualificações ou conclusões jurídicas que se possam retirar dos factos que constituem a causa de pedir, mas tão só o facto jurídico concreto ou específico, pois a causa de pedir está inspirada na teoria da substanciação, sendo envolvida, além do mais, pelas características da facticidade e da concretização, estruturando-se na envolvência dos factos concretos correspondentes à previsão das normas substantivas concedentes da situação jurídica alegada pelas partes, independentemente da respectiva valoração jurídica (Ac. do S.T.J. de 3/2/2005, p.º 0B4773).”

“A identidade e individualidade da causa de pedir têm de aferir-se em função de uma comparação entre o núcleo essencial de cada uma delas, não sendo afectada tal identidade, nem por via da aletaração jurídica dos factos concretos em que se fundamente a pretensão, nem por qualquer alteração ou ampliação factual que não afecte o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as acções (v. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa, CPC Anotado, I, 2018, 662, aludindo a entendimento jurisprudencial - Ac. do S.T.J. de 14/12/2016, p.º 219/14 e de 24/4/2013, p.º 7770/07, Ac.R.P. de 9/7/2014, p.º 16/13).”

“Do exposto, há que reconhecer a verificação do requisito da identidade da causa de pedir.”

“No que respeita à identidade do pedido, diremos que a mesma se verifica quando numa ou noutra acção se pretenda obter o mesmo efeito jurídico em conformidade com o que resulta do disposto no art.º 581.º n.º3 do CPC, aferindo-se tal identidade pela circunstância de em ambas as acções se pretender obter o mesmo efeito prático-jurídico, não sendo de exigir uma adequação integral das pretensões, devendo sempre vedar-se a possibilidade de ocorrer, com a sentença que venha a ser proferida, uma contradição decisória (v. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa, CPC Anotado, I, 2018, 661-662).”

“Da apreciação que fazemos dos factos, a pretensão que as autoras formulam na presente acção é, na sua substância, a de reverter em parte os efeitos decorrentes do julgado definitivo firmado na acção instaurada em ..., tendo por base os mesmos factos relevantes, e nessa medida possibilitar que os bens imóveis identificados na procuração outorgada em .../4/2002 regressem ao património de BB e seu irmão AA (falecido). Ou seja, de parte do património que integra a herança de PP (só aquele referenciado na procuração).”

“Assim, nesta acção pretendem as autoras obter o mesmo efeito jurídico, embora parcial (não está em causa a totalidade da herança, mas apenas os bens aludidos na procuração de .../4/2002) que obtinham com a posição que foi assumida na acção instaurada em ..., pelo que se verifica uma situação de identidade de pedido, identidade essa que não é afastada pelo facto de a pretensão ser dirigida a apenas parte, e não todos, os bens integrantes da herança de PP, porque a parte dos bens que agora é reclamada estava ela própria, já incluída na sua pretensão manifestada no processo anterior e na decisão que nele foi dada às questões suscitadas – da validade e eficácia quer do testamento de 1979, quer da procuração de Abril de 2002, quer das escrituras de habilitação de herdeiros e de partilhas de Outubro e Dezembro de 2002.”

“Concluímos assim, em dissonância com o entendimento dos recorrentes, bem como o entendimento do julgador a quo (este apenas reconheceu estarmos perante uma situação de autoridade de caso julgado) verificar-se a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir e, como tal, a excepção de caso julgado.”



II


Portanto à presente acção, na qual se visa declarar a validade e eficácia de determinada procuração, emitida em ... de Abril de 2002 por PP, por via da conversão, como disposição de última vontade desta, da parte do testamento de ... de Julho de 1979 com ela incompatível, e mais declarar-se a validade e eficácia da escritura de partilha outorgada em ... de Dezembro de 2002, por conversão, como doação de PP, ao 1º R. e ao falecido AA, dos bens imóveis identificados na procuração de ... de Abril de 2002, obstaculiza-se agora o julgado no Ac. do S.T.J. de 28/5/2015, proferido na acção com o n.º 123/06.2....

Pugnando os Réus, na acção anterior em que eram Autores, pela invalidade da escritura de partilhas em causa, decidiu-se a final, no acórdão deste S.T.J., que “não há revogação – tácita ou expressa, nem caducidade, do testamento que institui herdeiro de quota disponível da herança, se o de cuius outorga instrumento de procuração posterior, irrevogável, para produzir efeitos em vida e depois da sua morte, nomeando seus procuradores os filhos, para doarem a si próprios, bens imóveis, certos e determinados, em comum e partes iguais, com dispensa de colação e reserva de usufruto a seu favor e do marido, ou para procederem a partilhas judiciais ou extrajudiciais, certo que aqueles bens, apesar de integrarem o acervo hereditário, não o esgotam”.

Mas quanto à habilitação de herdeiros e partilha de bens, não se evidenciando qualquer vício de génese ou de formação dos ditos actos, não são os mesmos aptos a produzir os efeitos em relação aos autores (réus, na presente acção), herdeiros preteridos. Tais actos são-lhes inoponíveis e são por estes impugnáveis, conforme sucedido.

Por isso se decidiu pela declaração da ineficácia, em face dos ali Autores, das escrituras de habilitação de herdeiros e de partilha de bens, celebrada em ... de Dezembro de 2002 e, bem assim, de determinada partilha de bens móveis.

Igualmente na sobredita acção anterior se considerou que, “tendo sido suscitada apenas nas alegações do recurso de revista a questão da convertibilidade do negócio (partilha), matéria que não é de conhecimento oficioso, está vedada a sua apreciação pelo Supremo Tribunal por constituir questão nova”.



III


Nos termos do art.º 293.º do CCiv, “o negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade”.

O requisito da norma, relativo à vontade hipotética das partes, tem de ser invocado e provado pela parte que invoca a conversão do negócio, posto não ser o mesmo de conhecimento oficioso (veja-se a doutrina do acórdão invocado nos autos, S.T.J. 28/5/2015, p.º 123/06.2TBVS.E1.S1, rel. Fernanda Isabel Pereira) – o interesse é de ordem particular.

A possibilidade de conversão do negócio fica assim dependente não apenas de se verificarem, no negócio inválido, os requisitos necessários à validação de um outro negócio, como também da alegação dos factos que permitam ao terceiro julgador concluir, à luz da boa fé e de outros elementos atendíveis, ao tempo da celebração, que a vontade hipotética das partes apontava para um negócio de tipo ou conteúdo diferente.

Esta “vontade hipotética” será “a alma do negócio sucedâneo, mas construído sobre a base do negócio principal, tendo em vista a sua natureza típica e particularidade concretas” – na dúvida, não é de realizar a conversão (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1983, pg. 434).

É incontestável, pois, que a conversão do negócio no sucedâneo depende da iniciativa e da alegação da parte.

Saliente-se que à orientação dualista que via na conversão a passagem de um primeiro para um segundo negócio, impôs-se mais tarde uma outra opção de interpretação monista, exprimindo agora uma interpretação melhorada do negócio, de modo a fazer dele uma leitura sistemática – não se convertem negócios mas sim declarações negociais (veja-se em Menezes Cordeiro, CC Comentado, I, pg. 865). A conversão constitui a interpretação melhorada de um único negócio.

Passaremos à frente da questão de o julgado anterior não ter declarado a invalidade (em sentido amplo) do negócio de partilha, tal como vinha peticionado pelos ali autores, mas apenas a ineficácia (em sentido estrito) de tal negócio, em face dos ali autores – a matéria não contende com a apreciação da declarada excepção de caso julgado (nos presentes autos).

Assuma-se, porém, mesmo em puro obiter dictum, que a conversão prevista no citado art.º 293.º do CCiv pode ser aplicada por analogia aos casos de ineficácia em sentido estrito – veja-se Vaz Serra, Revista Decana, 103.º/58, ou Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol.I, 3.ª ed., pg. 267.

Resta assim saber, o que é necessário para a verificação da excepção dilatória, ou seja, saber se as partes deveriam ter alegado a factualidade necessária à conversão do negócio na primeira acção.



IV


A matéria deve ser decidida à luz do princípio da preclusão.

Como explana M. Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, pgs. 584 a 586), o caso julgado incide sobre uma decisão que deve considerar a matéria de facto tal como ela se apresenta finda a discussão, daí decorrendo a ideia de que as partes devem, sob pena de preclusão, alegar os factos nos articulados normais, exceptuando os casos de articulados supervenientes admissíveis (art.ºs 588.º e 589.º do CPCiv).

Mas o âmbito da preclusão diverge, do autor para o réu.

Para o primeiro, a preclusão define-se pelo caso julgado.

Para o segundo, há que considerar que lhe incumbe o ónus de apresentar toda a defesa na contestação – art.º 573.º n.º1 do CPCiv – pelo que a preclusão que o atinge é independente do caso julgado, em sentido estrito: ficam precludidos todos os factos que podiam ter sido invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada e, por isso, com aquela que foi apreciada antes pelo tribunal.

Lembremos Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 324): “se a sentença reconheceu, no todo ou em parte, o direito do Autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do Réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir, e até os que ele poderia ter deduzido com base num direito seu (por ex.: ser ele Réu, o proprietário do prédio reivindicado); neste sentido, pelo menos, vale a máxima segundo a qual o caso julgado “cobre o deduzido e o dedutível”.

“Por ex.: julgada procedente uma acção de reivindicação, não pode o Réu vir depois com uma nova acção dessas contra o Autor, fundado em que tinha adquirido por usucapião a propriedade do respectivo prédio; se a nova acção pudesse triunfar e valesse a correspondente decisão, seria contrariada a força de caso julgado que cabe à sentença anterior; tirava-se ao Réu um bem que a mesma sentença lhe tinha dado.”

Ou como em Castro Mendes (cit. in Ac.S.T.J. 20/6/84, Bol. 338/353, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, numa passagem de Paulus, e a propósito do actual art.º 581.º n.º3 do CPCiv): “É o mesmo objecto, não sempre que coincide absolutamente a anterior quantidade ou qualidade, sem qualquer aditamento ou subtracção, mas sempre que é a mesma utilidade, de harmonia com o conceito comum”.

Também se escrevia na Revista Decana, ano 70.º, pg. 234, igualmente citada no mesmo Ac. do S.T.J.: “O instituto do caso julgado destina-se, como é sabido – e outra não pode ser razoavelmente a sua função, pelo menos conforme está organizado, a evitar que as situações concretas definidas por uma sentença, ou por outras palavras talvez mais frisantes, os direitos ou bens que uma sentença reconheceu e garantiu, possam sofrer alteração ou prejuízo por virtude de uma nova sentença”.

Nos termos do art.º 573.º n.ºs 1 e 2 do CPCiv, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, salvo os casos de defesa superveniente.

Deste modo, apresentada a contestação, fica precludida a invocação pelo réu, quer de outros meios de defesa, quer dos meios que ele não chegou a deduzir e até mesmo daqueles que ele poderia ter deduzido com base num direito seu (ut Ac. do S.T.J. de 30/11/2017 Col.III/106, rel. M.ª Rosa Tching).

No mesmo contexto escreve M. Teixeira de Sousa (blog do ippc, Preclusão e Caso Julgado, paper):

“A excepção de caso julgado através da qual opera a preclusão de um facto não se compatibiliza com a exigência da repetição de uma causa quanto ao objecto. A verdade é que aquela excepção de caso julgado nada tem a ver com a excepção de caso julgado que, desde o direito romano, pressupõe a repetição de um mesmo objecto em duas acções. A excepção de caso julgado através da qual opera a preclusão de um facto obsta à apreciação de um aliud; a excepção de caso julgado que impede a repetição de uma mesma causa obsta a reapreciação de um idem.”

“O que a solução mostra é que a excepção de caso julgado pode ter um âmbito de aplicação mais vasto do que habitualmente lhe é reconhecido. Normalmente, a excepção de caso julgado cumpre uma função negativa: esta excepção garante, como se estabelece no art. 580.º, n.º 2, a proibição de repetição de uma causa anterior. Basta atentar, no entanto, no disposto no art. 580.º, n.º 2, para se perceber que a excepção de caso julgado também pode realizar uma função positiva: não a função de excluir a repetição do mesmo, mas a função – também referida no art. 580.º, n.º 2, de obstar à contradição do decidido numa causa anterior. É precisamente isso o que sucede quando a excepção de caso julgado impede a apreciação de um aliud com base num facto precludido.”



V


Igualmente se impõe constatar que, se os factos ora invocados por acção, conducentes à conversão do acto de procuração e subsequente conversão do negócio de partilha, tivessem sido invocados na primeira acção, na qual se invocara a invalidade da partilha (concluída pelo julgado de ineficácia da mesma partilha), teriam necessariamente constituído defesa por excepção peremptória e teriam conduzido à absolvição do pedido.

Isto é: o que está em causa na conversão do negócio, à luz do disposto no art.º 293.º do CCiv, não é uma prévia ou necessária declaração de invalidade do negócio (nulo, anulável, ou, como visto, relativamente ineficaz), para, mais tarde, em nova acção (ou até na acção primitiva, por reconvenção) se invocar a conversão.

Sendo a defesa por via da conversão do negócio, como seria o caso, dedutível enquanto defesa por excepção, fica a mesma precludida, exaurida, pelo disposto no art.º 573.º n.º1 do CPCiv, caso não venha a ser deduzida na contestação da acção.

Se a natureza exauriente não é aferida em absoluto, mas por relação com o objecto, tal como delineado pelo autor, a preclusão em causa abrange toda a defesa que pudesse ser classificada como defesa por excepção (assim, Paula Costa e Silva, O Direito, 2009, I, pg. 226), como seria o caso da invocação, na acção anterior, da conversão do negócio de partilha, caso tivesse sido invocada.

E é óbvio também que a preclusão em causa opera por via da excepção dilatória de caso julgado, como foi declarado na Relação, visto o disposto nos art.ºs 580.º n.º1 e 581.º n.º1 do CPCiv, excepção dilatória que sempre acartaria, em qualquer caso, e independentemente da pronúncia de 1.ª instância, conhecimento oficioso (note-se que, não obstante, a 1.ª instância se pronunciou igualmente pelo caso julgado, embora classificando-o como “excepção de autoridade de caso julgado”, e absolveu da instância) – tudo nos termos dos art.ºs 578.º e 577.º al.i) do CPCiv.


Concluindo:

I - O requisito da norma do art.º 293.º do CCiv, relativo à vontade hipotética das partes, tem de ser invocado e provado pela parte que invoca a conversão do negócio, posto não ser o mesmo de conhecimento oficioso.

II – Na conversão, cabe uma interpretação melhorada do negócio, de modo a fazer dele a leitura sistemática – não se convertem negócios mas sim as declarações negociais de um único negócio.

III - O que está em causa na conversão, à luz do disposto no art.º 293.º do CCiv, não é uma prévia ou necessária declaração de invalidade do negócio (nulo, anulável ou relativamente ineficaz), para, mais tarde, em nova acção (ou até na acção primitiva, por reconvenção) se invocar a conversão.

IV - A conversão pode ser aplicada por analogia aos casos de ineficácia em sentido estrito.

V – Para efeitos da preclusão extraprocessual da alegação, considera-se que incumbe ao réu o ónus de apresentar toda a defesa na contestação – art.º 573.º n.º1 do CPCiv, ficando assim precludidos todos os factos que podiam ter sido invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada e, por isso, com aquela que foi apreciada antes pelo tribunal.

VI - Sendo a defesa por via da conversão do negócio dedutível enquanto defesa por excepção, fica a mesma precludida pelo disposto no art.º 573.º n.º1 do CPCiv, caso não venha a ser deduzida na contestação da acção.

VII - A preclusão em causa opera por via da excepção dilatória de caso julgado, visto o disposto nos art.ºs 580.º n.º1 e 581.º n.º1 do CPCiv.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Recorrente.


S.T.J., 27/04/2023


Vieira e Cunha (Relator)

Ana Paula Lobo

Afonso Henrique Cabral Ferreira