Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
427/13.8GAARC.P1-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
INJÚRIA
Data do Acordão: 01/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: REJEITADO
Área Temática:
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A HONRA / INJURIA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS / FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
Doutrina:
- Germano Marques da silva, Curso de Processo Penal, III, 3ª edição, p. 347;
- José de Faria costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, 2ª edição, 2012, Tomo 1, p. 906;
- Pauto Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, p 92;
- Sérgio Luís de Carvalho, Dicionário de Insultos, Editorial Planeta, p. 52.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 181.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 440.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 7/95, DE 19-10-1995, IN DR, SÉRIE 1-A DE 28-12-1995;
- DE 28-04-1999, IN CJSTJ, ANO DE 1999, P. 196.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 06-01-2010, PROCESSO N.º 862/08.3TAPBL.C1, IN WWW.DGSI.PT;


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 12-06-2002, PROCESSO N.º 332/02;
- DE 25-06-2003, PROCESSO N.º 0312710;
- DE 19-04-2006, PROCESSO N.º 0515927;
- DE 19-12-2007, PROCESSO N.º 0745811, TODOS IN WWW.DGSI.PT;
Sumário :
I - A oposição explícita, quanto à mesma questão de direito, só releva para efeitos de recurso para fixação de jurisprudência se se estiver perante uma factualidade subjacente equivalente.
II - Estando em causa certas expressões proferidas pelo arguido destes autos, terem sido consideradas ineptas para integrar o crime de injúria, ao contrário do que ocorreu com a posição do acórdão fundamento, em que se entendeu que as expressões aí em preço, uma das quais coincidia ("vai para o caralho"), integravam o crime de injúrias do art. 181.º, do CP, forçoso é considerar, porém, que a lei não nos dá um conceito de honra, bem jurídico protegido pelo preceito.
III - A tarefa do julgador, para saber se há crime de injúrias, não se basta com a objetividade da pronúncia de certas palavras, antes reclama a valoração dos factos, aqui as palavras dirigidas, dependendo sempre essa valoração e designadamente o grau do caráter ofensivo a partir do qual se passa da obscenidade e má criação para o crime, da mundividência e sensibilidade do julgador. Para corrigir eventuais disfunções existem então os recursos ordinários.
IV - Não há expressões ofensivas independentemente do condicionalismo da sua pronúncia, sendo de rejeitar o presente recurso para fixação de jurisprudência, por o acórdão recorrido e o acórdão fundamento assentarem em factos que se não equivalem, a começar pelas expressões em si.
V - Seria um contra senso apelar a uma fixação de jurisprudência para determinar se uma expressão dirigida a alguém é, por si e independentemente de tudo mais, um crime de injúrias, na medida em que, das duas uma, ou se descreveria todo esse circunstancialismo em que a expressão foi proferida na própria fixação de jurisprudência, o que a tornaria pouco útil para a função que lhe assiste, ou ficando-nos apenas pela consideração das palavras em si, poderíamos levar o direito penal a exorbitar da sua missão que só se propõe salvaguardar um mínimo ético, em muitas decisões que tivessem que ser condenatórias.
Decisão Texto Integral:

AA, assistente e recorrente nos autos em epígrafe, inconformada com o acórdão absolutório proferido nestes autos, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência para o Supremo Tribunal de justiça, face ao que consta dos arts. 437º, nº 2 e 438º, nº 1 e 2, ambos do CPP, afirmando a oposição entre o acórdão recorrido, e o acórdão proferido a 2/11/2011, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, Pº 37/10.1GDGRD.C1 (publicado na CJ, 2011,TomoV, pág. 315), que assim se considera acórdão fundamento.

A questão, sobre que se considera haver oposição, reside na interpretação e aplicação do art. 181º do CP, que prevê o crime de injúrias.

A – RECURSO

Foram as seguintes as conclusões da motivação do recurso da assistente:

"i. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão absolutório que, no provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo Arguido, revogou a sentença recorrida e absolveu o arguido BB do crime de injúria por que vinha acusado e do pedido de indemnização deduzido pela assistente/ora recorrente.

ii. Pelo qual se decide que a expressão "vai para o caralho" não preenche a previsão normativa do estatuído no artº 181 do C.Penal, essencialmente por não imputa(r) à assistente qualquer facto ou juízo de valor.

iii. Em oposição, decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra pelo Acórdão de 02-11-2011, que tem como relator o Exm.° Senhor Desembargador Paulo Guerra e como juiz-adjunto a Exmª Senhora Desembargadora Cacilda Sena, in Coletânea da Jurisprudência 2011, Tomo V, pág. 315, cujo sumário dita o seguinte: "As expressões "vai para o caralho" e "vai para a cona da tua mãe" dirigidas pelo agente à ofendida e qualquer que seja o conceito de honra que se perfilhe, têm um significado inequivocamente ofensivo da honra e consideração à luz dos padrões médios de valoração social, situando-se muito para além da mera violação das regras de cortesia e de boa educação e atingindo um âmago daquele mínimo de respeito indispensável ao relacionamento em sociedade. Daí que a sua prática consubstancia um crime de injúria previsto e punido pelo artigo 181.º n.º 1 do Código Penal”.

iv. Ambas as decisões tem entendimento oposto sobre se a expressão "vai para o caralho", dirigida pelo agente ao visado pela expressão, é ou não ofensiva da honra e consideração deste e, por conseguinte, se preenche ou não o tipo do crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º do CP.

v. Ambas as decisões foram, proferidas no domínio da Lei n.º 65/98, de 02 de setembro [responsável pela atual redação do art. 181º do CP].

vi. Do acórdão recorrido não é admissível recurso ordinário (art. 437º/2), por via do disposto na al. d) n.º 1, do art. 400º ambos do CPP.

vii. Ambas as decisões transitaram, já em julgado.

viii. As asserções antagónicas dos acórdãos invocados consagram soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito - se a expressão “vai para o caralho”, dirigida pelo agente ao visado pela expressão, é ou não ofensiva da honra e consideração deste e, por conseguinte, se preenche ou não o tipo do crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do CP.

ix. As decisões em oposição são expressas.

x. As situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico são idênticos em ambas as decisões - o agente dirige ao ofendido a expressão "vai para o caralho", pelo que lhe é imputada a prática, em autoria material, de um crime de injúria p. e p, pelo artigo 181.º do CP

xi. Em modesto entendimento da assistente, tal expressão tem uma carga injuriosa, não podendo ser considerada uma mera manifestação de falta de civismo ou educação, pois trata-se de uma expressão que, no sentir comum da comunidade, é tida como obscena e ofensiva e que atinge a honra e consideração do visado, sejam quais forem os respetivos conceitos que se perfilhe.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V/Ex.as doutamente suprirão, deve:
a) ser fixada jurisprudência no sentido de que a expressão "vai para o caralho" é ofensiva da honra e consideração de quem por ela visado e, por conseguinte, preenche o tipo legal do crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do CP; e, em consequência, à luz tio art. 445º, nº 1, do CPP,
b) ser o arguido BB condenado pela prática, em autoria material, de um crime de injúria p. e p. pelo art. 181.º do CP, bem como condenado a pagar a assistente/recorrente, a titulo de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de €250,00, como havia sido julgado em 1ª instância,
tudo com as demais consequências legais daí advenientes."

O Mº Pº respondeu, concluindo:

"A. No acórdão proferido em 02.11.2011, no processo nº 37/10.1GDGRD.C1da Relação de Coimbra, (acórdão fundamento) e no acórdão tirado em 27.04.2016, no processo nº 427/13.8GAARC.P1-A, da Relação do Porto, (acórdão recorrido), ambos já objeto de trânsito em julgado, foram proferidas decisões que interpretam e decidem de modo divergente o art. 181º do CP.

Com efeito,

B. Considerou-se no acórdão fundamento, que as expressões proferidas pelo arguido na presença de terceiros, dirigindo-se à ofendida, "vai para o caralho", "não tens nada que estar aqui", integravam a prática, pelo mesmo, em autoria material de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do CP, sendo que no acórdão recorrido, sendo em circunstâncias semelhantes, o facto de terem sido dirigidas para a assistente, as expressões, "vai para o caralho", "não tens nada que estar aqui", entendeu-se, diversamente, não perfectibilizarem as mesmas, o crime p. e p. pelo art. 181º do CP.

C. Verificam-se, assim, todos os pressupostos legais para a interposição do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência –ut CPP 437º."

Termina considerando que, se se julgarem verificados todos os alegados pressupostos, e proferindo acórdão de fixação de jurisprudência, será feita justiça.  

 

Já neste STJ, o Mº Pº teve vista nos autos de acordo com o art. 440.°, n.° 1 do CPP, e proferiu douto parecer, opinando, a dado passo, assim:

 "(…) Segue-se por conseguinte que a divergência entre eles [acórdãos recorrido e fundamento] não é, de todo, de direito, mas antes e tão só de facto. O que vale por dizer pois que, se nos respetivos casos concretos chegou cada um deles a uma solução oposta, isso não radicou em qualquer divergência sobre a mesma questão de direito [dimensão normativa do sobredito tipo penal], mas antes e tão só da distinta valoração da matéria de facto em que cada um deles se moveu.

Ademais, e “ex abundanti”, sempre convirá ter presente que o recurso de fixação de jurisprudência, como recurso “normativo”, não tem por objeto a decisão de uma questão ou de uma causa, mas apenas a definição do sentido de uma norma perante divergências de interpretação. Por isso, e não cumprindo de resto, nesta sede, apreciar do mérito do decidido em qualquer dos acórdãos, a conclusão sobre se determinada expressão preenche o conceito de “ofensiva da honra ou consideração”, por forma a ser ou não passível de subsunção ao tipo de crime em causa, tem necessariamente de partir de uma determinada e concreta factualidade, sendo certo que, para preencher tal conceito, é necessário formular um juízo de valor sobre a conduta do agente. E isto desde logo porque, convenhamos, a lei não define ou baliza o efetivo conceito de ofensa da honra ou consideração.

Ora, e como vimos, no acórdão fundamento considerou o julgador, no seu circunstancialismo específico, que uma certa factualidade – [que incluía a expressão “vai para o caralho”, mas também a expressão “vai para a cona da tua mãe”] – eram suficientes para preencher o sobredito conceito (de ofensa da honra e consideração do visado]; enquanto no acórdão recorrido por seu turno, entendeu o julgador, também no seu próprio circunstancialismo, que o acervo factual em equação – [que incluía igualmente, mas aqui só esta, a expressão “vai para o caralho”] – não era suficiente para preencher o mesmo conceito.

Donde, e porque a lei nos não fornece, como já vimos, qualquer critério geral sobre o apontado conceito, segue-se inexoravelmente que não estamos no caso perante uma questão de direito cuja eventual divergência possa viabilizar a intervenção uniformizadora do Supremo Tribunal de Justiça convocada pela recorrente. Estamos antes, e tão só, perante uma valoração de factos que – [e aqui pedindo vénia para parafrasear a afirmação contida no Acórdão deste mesmo STJ de 4-10-2010, proferido no âmbito do Processo n.º 242/08.0 TTCSC,L1.S1, da 5.ª Secção] – “se não reclama neste ponto da norma, recorre à mundividência do julgador, e não pode deixar, evidentemente, de comportar uma certa dose de discricionariedade. Tudo isto porque, e em suma, saber se foi ou não ofendida a honra e consideração dos visados não dependeu de uma diferente interpretação da previsão típica do dito art. 181.º do Código Penal. Antes dependeu de uma diferente valoração dos factos disponíveis em cada caso.

Acresce por último dizer que o caso em apreço tem contornos simetricamente idênticos ao apreciado no recurso, também para fixação de jurisprudência, registado sob o n.º 5859/13.9TDLSB, da 3.ª Secção[1], sendo apenas diferente a expressão ali em causa que, nesse caso, era “filho da puta”. E tal como muito impressivamente pode ler-se, em sede de fundamentação, no Acórdão ali proferido, datado de 12-04-2015, que o rejeitou, (e citamos, com sublinhados nossos), «[…] O recurso apresentado convoca para definição a questão de valoração objectiva duma determinada expressão pretendendo fazer valer urbi et orbi que a mesma assumirá sempre a natureza de ilícito criminal. Por tal forma a uniformização de jurisprudência pretendida se cinge, na perspectiva do recorrente, ao elemento material da infracção pretendendo o recorrente que o mesmo assuma sempre a mesma natureza, independentemente de quaisquer outros factores de consideração.

(…) Significa o exposto que o recurso interposto se focou no alvo errado. Na verdade, a expressão em causa apenas assume relevância criminal quando na sua materialidade objectiva se conjuga com o elemento subjectivo da infracção. É pois necessário que se possa afirmar que em cada caso, e naquele concreto contexto, as mesmas palavras apenas podiam ser entendidas como ofensivas da honra e consideração. Mas, então, não tratamos duma valoração da expressão, por si mas sim da mesma na sua circunstância concreta aferida em função duma vontade.

Significa o exposto que será perante o circunstancialismo de cada caso que se pode afirmar o elemento subjectivo necessário à consumação da infracção e nunca se poderá traçar uma regra atribuindo ao elemento material da infracção por si tal relevância jurídico criminal como é pretendido pelo recorrente.

Não existindo situações de facto idênticas é evidente que são também diferentes as pronuncias em termos de direito o que afasta, de forma indubitável, a integração dos pressupostos do invocado recurso de fixação de jurisprudência. Não existe, assim, uma identidade de soluções de direito em contradição susceptível de fundamentar a necessidade de uniformização de jurisprudência […]».

A fundamentação aduzida neste aresto é, a nosso ver, inteiramente convocável, “mutatis mutandis”, ao caso dos autos, e dispensa-nos de mais desenvolvido labor argumentativo.

Não se estando assim, também à luz do sobredito aresto, perante divergência sobre matéria de direito, não pode pois deixar de claudicar, em nosso juízo, a pretensão da recorrente.

A não oposição de julgados é fundamento de rejeição do recurso, nos termos do art. 441.º, n.º 1 do CPP". 

 

Termina negando a oposição de julgados e falência do requisito substancial do artigo 437.º do CPP, relativo à oposição relevante dos ditos julgados quanto à mesma questão de direito, motivo pelo qual o recurso deverá ser rejeitado, nos termos dos  arts. 440.º, nºs 3 e 4 e 441.°, nº 1, ambos do CPP.

Colhidos os vistos submeteram-se os autos a conferência.

B – APRECIAÇÃO

1. Pressupostos formais

O recorrente tem legitimidade, o recurso mostra-se tempestivo, porque interposto a 14/6/2016, e o acórdão recorrido transitou a 16/5/2016, certo que ambos os acórdãos, recorrido e fundamento, transitaram em julgado, concretamente este, de 2/11/2011, antes daquele. Não ocorreu alteração legislativa, relevante para o caso, entre a prolação e um e outro acórdão, porque ambos foram lavrados, designadamente, já depois da última alteração dada ao art. 181º, do CP, que ocorreu através da lei 65/98, de 2 de setembro.

2.  A oposição relevante

Quanto à natureza da oposição que interessa ter em conta começaremos por dizer o seguinte:

O art. 437º do CPP reclama, para fundamento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, a existência de dois acórdãos, tirados sob a mesma legislação, que assentem em soluções opostas quanto à mesma questão de direito. Perfilada pois uma questão de direito, importa que se enunciem “soluções” para ela, que se venham a revelar opostas.

Os dois acórdãos têm que assentar em soluções opostas, certo que a oposição deve ser expressa e não tácita. Isto é, tem que haver uma tomada de posição explícita divergente quanto à mesma questão de direito. Não basta que a oposição se deduza de posições implícitas, que estão para além da decisão final, ou que em cada um dos acórdãos esta tenha, só por pressuposto, teses diferentes. A oposição deve respeitar à decisão e não aos seus fundamentos (cf. v.g. Ac. do S.T.J. de 11/10/2001, Pº 2236/01 desta 5ª Secção).

Mas importa ainda que se esteja perante a mesma questão de direito. E isso só ocorrerá quando estejam em jogo as mesmas normas, reclamadas para aplicar a uma determinada situação fáctica, e elas tenham sido interpretadas de modo diferente.

Interessa pois que a situação fáctica se apresente com contornos equivalentes, para o que releva no desencadeamento da aplicação das mesmas normas.

Citando A. REIS, dizem-nos SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES:

 “Dá-se a oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas” (in “Recursos em Processo Penal”, pág. 183).

A seu turno, o Ac. deste STJ de 23/4/1986 (B.M.J. 356-272) defendeu que “É indispensável para haver oposição de acórdãos, justificativa de recurso, que as disposições legais em que se basearam as decisões conflituantes, tenham sido interpretadas e aplicadas diversamente a factos idênticos”.

Esta jurisprudência foi depois uniformemente seguida neste Supremo Tribunal (cf. ob. cit. a menção dos acórdãos pertinentes, a pág. 183, nota 189).

É evidente que se não trata, na presente fase, de apreciar a bondade da decisão proferida, no acórdão recorrido. Ou ainda de avaliar a correção do acórdão fundamento. Trata-se de verificar se aí se tomou uma posição, sobre uma questão de direito, em contradição com a posição que, sobre a mesma questão de direito, se teria tomado no acórdão fundamento, mas partindo evidentemente de uma factualidade equivalente. Por outras palavras, a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento. E vice-versa.

Mesmo que a diferença factual de ambos os processos, a do acórdão recorrido e a do acórdão fundamento, seja inelutável por dizer respeito a acontecimentos históricos diversos, as diferenças factuais terão que ser inócuas no sentido de que não interferem com o aspeto jurídico do caso, porque só assim a oposição será relevante.

Na verdade, a mesmidade pretendida tem apenas um objetivo específico: evitar que a falta de identidade dos factos pudesse explicar, por si, a prolação de soluções jurídicas díspares. Repetimos: a oposição relevante sobre a mesma questão de direito existirá, se e apenas se puder dizer-se, com boa margem de segurança, que os julgadores do acórdão fundamento, caso estivessem na condição de julgadores do acórdão recorrido, perante a factualidade que lhe era própria, não teriam decidido da mesma maneira que se decidiu neste acórdão recorrido.

Mas se ficarem dúvidas sobre o que teriam decidido os julgadores do acórdão fundamento, se tivessem estado no lugar do tribunal do acórdão recorrido, considerando as diferenças factuais apesar de tudo existentes, então não se poderá dizer que existe uma oposição relevante.

E assim se concluirá que os factos terão que ser idênticos nos dois processos, com o sentido de equivalentes.

3. O caso em apreço

3.1. Do acórdão fundamento extraem-se as seguintes passagens, começando por factos provados :

"(…) 1. No dia 29 de Maio de 2010, cerca das 12:30 horas, em ..., após uma troca de palavras por questões relacionadas com a propriedade de terrenos, o arguido CC, dirigindo-se à assistente, em voz alta, proferiu as seguintes expressões: "vai para o caralho" e "vai para a cona da tua mãe".

2. Tais palavras foram proferidas na presença de DD, proprietária de um prédio confinante com o local onde ambos se encontravam naquele momento.

3. O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

4. Com o descrito comportamento do arguido a assistente sentiu-se humilhada e ofendida na sua honra e consideração (…)." 

Em relação à matéria de direito, transcreve-se o seguinte:

"(…) 3.4.1. As frases imputadas ao arguido constituem uma injúria penalmente típica?

Estamos em pleno no capítulo dos CRIMES CONTRA HONRA.

A honra (e, por aproximação semântica e de significado/significante, o bom nome) está ligada à imagem que cada um tem de si próprio, construída interiormente mas também a partir de reflexões exteriores, repercutindo-se no apego a valores de probidade e honestidade.

A reputação (e também a boa fama) representa a visão exterior sobre a dignidade de cada um, ao apreço social, o bom nome de que cada um goza no círculo das suas relações (cf. Ac. do STJ de 12 de Janeiro de 2000 in BMJ 493-156).

Já o Acórdão do STJ de 20.03.1973, in BMJ n° 225-222 forneceu uma noção do que foi o pensamento do legislador ao criar esta incriminação:

«Atribuir a alguém uma conduta contrária e oposta àquela que o sentimento da generalidade das pessoas exige do homem medianamente leal e honrado, é atentar contra o seu bom nome, renutação e integridade pessoal».

Leal Henriques e Simas Santos in “Código Penal Anotado “. 2° Vol.. 3° ed., 2000.p. 494, na mesma linha dizem que não se protege a susceptibilidade pessoal de quem quer que seja, mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas.

Igualmente, o acórdão da Relação de Lisboa de 12/10/2000, em www.dgsi.pt decidiu que:

«Tanto a doutrina como a jurisprudência são, desde há muito e de forma unânime, restritivas na avaliação do desvalor da ofensa considerando “que nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível" (cf. Professor Beleza dos Santos, in «Algumas Considerações Sobre Crimes de Difamação e de Injúria’’ RU, Ano 92, p, 167) ou ainda “que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos artigos 180° e 181°, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa”

(cf. Oliveira Mendes, “O Direito à Honra e a Sua Tutela Penal” p. 37- reportando-se as normas citadas ao C. Penal Revisto)».

O nosso legislador penal adopta, como bem refere José de Faria Costa no «Cometário Conimbricenses», uma concepção dual na delimitação do conceito de honra, ou seja, o conceito de honra deve ser entendido no tempero da concepção normativa, com a dimensão fáctica: a honra é vista assim como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior - assim abarcando a honra subjectiva ou interior e a honra objectiva ou exterior, nas quais a pura concepção fáctica da honra a subdivide.

Continua Faria Costa:

«( ...) o que se protege “é a honra interior inerente á pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade. Fundamento essencial da honra interior e, desta forma, núcleo da capacidade de honra do indivíduo, é a irrenunciável dignidade pessoal que lhe pertence desde o nascimento e cuja inviolabilidade a lei fundamental reconhece (...). Da honra interior decorre a pretensão jurídica, criminalmente protegida, de cada um a que nem a sua honra interior nem a sua boa reputação exterior sejam minimizadas ou mesmo totalmente desrespeitadas».

Como tal, o conceito de honra abrange também a consideração ou reputação exteriores (…). 

3.4.2. As frases em causa são:

«Vai para o caralho» e

«Vai para a cona da tua mãe».

Decidiu o Tribunal recorrido que as frases documentadas no ponto 1 do rol de factos provados incluem no seu teor, não a imputação de factos[2](3), mas PALAVRAS ofensivas da honra e da consideração da assistente.

Numa fórmula conclusiva, podemos dizer que o tipo objectivo deste ilícito se satisfaz com a imputação de “factos, palavras ou juízos desonrosos”.

Quanto ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, trata-se aqui de um crime doloso, o que quer significar, por um lado, o afastamento do âmbito subjectivo das condutas negligentes e, por outro, a exclusão, hoje pacífica na doutrina e na jurisprudência, do “animus difamandi” enquanto forma específica e necessária do dolo.

Na verdade, de acordo com a conceitualização da doutrina hoje dominante, exige-se que o agente tenha conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento volitivo) de realização do tipo objectivo de ilícito.

De um lado, impõe-se que, ao actuar, o agente conheça tudo o que é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito, de outro, exige a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização, que se pode manifestar com maior ou menor grau de intensidade, de acordo com o disposto no artigo 14.° do Código Penal (Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo 1, 2004, pág. 328 e ss).

Do que ficou dito resulta que a afirmação do dolo do tipo exige, antes de tudo, a apreensão do sentido ou significado, no essencial e segundo o cível próprio das representações do agente, da totalidade dos elementos constitutivos do respectivo tipo de ilícito objectivo, da factualidade típica.

De facto, decorre do n° 1 do art.° 181°, conjugadamente com o disposto no 13º do CP. que, para efeitos do tipo legal do crime de injúria, só a actuação dolosa é punível.

É certo que não é necessária a existência do dolo específico — o animus injuriandi[3](4).

Contudo, continua a ser necessário que se possa afirmar a existência de dolo genérico em qualquer das suas modalidades, seja o dolo directo seja o dolo eventual — cfr. art.° 14° do CP.

O tipo subjectivo do ilícito pressupõe, por conseguinte, “o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo do ilícito” (o dolo do tipo consiste nesse conhecimento e nessa vontade e de realização da acção típica).

Pressupõe assim, antes de mais, que o arguido tenha conhecimento (dos elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito, da factualidade típica, sendo necessário que o agente, no momento da actuação, esteja ciente de que o juízo ou os factos imputados são adequados a lesar os sentimentos de honra e consideração social do ofendido.

É ainda necessário que a factualidade imputável ao arguido traduza uma vontade dirigida à realização do resultado típico.

Não basta, pois, o conhecimento, é necessária igualmente a vontade.

Tudo isto se apurou in casu.

Na realidade, também para nós, neste caso, mostra-se inequívoco que o arguido dirigiu à assistente, de viva voz, palavras objectivamente ofensivas da sua honra.

No presente caso, o sentido essencial das expressões usadas é o mesmo: denegrir a imagem da destinatária.

Não é o sentido literal — referindo-se a práticas sexuais - que constitui a essência do crime de injúria.

A ofensa da honra e consideração, neste tipo de crime, dá-se através de um sentido difuso, através de conotações mais ou menos intuídas e implícitas, ressaltando, no essencial a exibição pública de desprezo.

Ora, com o devido respeito pela opinião expressa na motivação do presente recurso, é para nós inquestionável que essas afirmações, proferidas pelo arguido, possuem um nítido cariz ofensivo da honra e da consideração da assistente.

Trata-se, com efeito, de expressões clara e objectivamente injuriosas, não correlacionadas com uma critica que se pudesse pretender exprimir face à presença da assistente, eu com uma formulação de juízos de valor sobre a pessoa da assistente feita de forma deseducada e/ou excessiva, revelando tais expressões, isso sim, uma vontade de agressão à assistente e de confronto com a mesma (e que o recorrente não desconhecia).

E não esquecemos que, para determinar se as imputações feitas são ou não ofensivas, se deve atender à opinião comum do meio em que arguido e assistente se movem. É que, objectivamente, e em qualquer meio social e cultural, as imputações dos autos são ofensivas. Basta, a qualquer Homem comum, raciocinar com bom senso e razoabilidade, para assim as considerar.

A injúria, enquanto expressão puramente afectiva e quase sempre espontânea da vontade de poder do sujeito, é acto verbal despejado na cara do interlocutor, a quem se nega qualquer valor, que é desprezado e desdenhado.

«Mandar para o caralho» alguém é mais do que grosseiro, tendo um valor inequivocamente ofensivo da honra e consideração de alguém (sobretudo, de uma mulher, já agora), à luz dos padrões médios de valoração social.

Segundo as fontes, para uns a palavra ‘‘caralho’’ vem do latim ‘‘caraculu’’ que significava pequena estaca, enquanto que, para outros, este termo surge utilizado pelos portugueses nos tempos das grandes navegações para, nas artes de marinhagem, designar o topo do mastro principal das naus, ou seja, um pau grande.

Certo é que, independentemente da etimologia da palavra, o povo começou a associar a palavra ao órgão sexual masculino, o pénis.

E esse é o significado actual da palavra, se bem que no seu uso popular quotidiano a conotação fálica nem sequer muitas vezes é racionalizada.

Com efeito, é público e notório, pois tal resulta da experiência comum, que CARALHO é palavra usada por alguns (muitos) para expressar, definir, explicar ou enfatizar toda uma gama de sentimentos humanos e diversos estados de ânimo.

Assim, dizer para alguém “vai para o caralho” é bem diferente de afirmar perante alguém e num quadro de contrariedade “ai o caralho” ou simplesmente “caralho”, quase em termos coloquiais e socialmente aceite.

Vários arestos têm assim decidido — os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/12/1997 e de 5/5/2004, o Acórdão do STJ de 21/12/2006 ou o Acórdão da Relação de Évora de 21/7/2011 (in www.dgsi.pt, uns diretamente, outros sancionando indiretamente a condenação (…).

 

A expressão constante do ponto 1 dos factos provados é, pois, uma expressão incorrecta e não axiologicamente neutra, podendo e devendo, por isso, no contexto da discussão entre vizinhos, ser considerada ofensiva da honra e consideração do ofendido e, nessa medida, subsumível ao tipo legal do crime de “injúria”, i e p. pelo art. 181º do Cód. Penal.

E o mesmo se diga da expressão «vai para a cona da tua mãe», não vislumbrando nós a diferença entre tal expressão e a típica injúria de todos os dias, em que se apelida alguém de filho de meretriz (em vernáculo, pois então!).

Literalmente, significa tal convidar a assistente a uma prática incestuosa com a própria mãe.

Indirectamente, significa não querer ser aborrecido pela assistente, mandando-a para um local imprevisto e anti-natural.

Recentemente, fomos adjuntos num acórdão — datado de 4/5/2011 - em que se validou a criminalização por injúria da expressão: "Vai tirar fotografias à cona da tua mãe, vai tirar fotografias ao caralho, ordinária".

Também o Acórdão da Relação de Lisboa de 13/1/2004, sancionou uma condenação por injúria, em caso em que um arguido chamou “puta” à ofendida, dizendo-lhe para ir para “o caralho do pai e a cona da mãe”.

O sentido pejorativo e desonroso destas expressões, atiradas em público à cara e ao sossego de alguém, num contexto de guerra de vizinhos, é por demais evidente...

Como afirma Faria Costa, «a palavra foi proferida num quadro situacional de vivência humana e, nesse, dúvidas não há: ela exprime e carrega consigo um indesmentível desvalor objectivamente ofensivo».

Entende o recorrente, embora não o diga directamente, que factos imputados ao arguido não são aptos a integrar a prática do crime de injúria porque as afirmações produzidas devem ser entendidas, não como uma injúria, mas antes como, expressões incluídas num contexto de discussão ou desentendimento que representam algum desagrado por uma determinada situação.

No fundo, tais expressões proferidas, em público, num contexto de discussão, não podem ter outro sentido que não a de manifestação de desagrado, não assumindo carácter injurioso.

Não podemos aceitar esta argumentação pois que as expressões dirigidas pelo arguido à assistente, qualquer que seja o conceito de honra e consideração que se perfilhe, têm um significado inequivocamente ofensivo da honra e consideração à luz dos padrões médios de valoração social, situando-se muito para além da mera violação das regras de cortesia e de boa educação e atingindo já o âmago daquele mínimo de respeito indispensável ao relacionamento em Sociedade.

Quis-se humilhar e a queixosa sentiu-se vexada.

Tanto basta para a condenação."

3.2. Do acórdão recorrido, interessa sobretudo o trecho que se segue:

"(…)  A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: [transcrição]

1°-No dia 15 de novembro de 2013, cerca das l6h5Om, no ..., a assistente encontrava-se na companhia dos seus colaboradores, EE e FF, a visitar uma mina de água da qual a ofendida/assistente é co-proprietária, a fim de averiguar, juntamente com estes, o motivo pelo qual a água proveniente da referida mina não chegava à sua propriedade sita na ....

2°-Ali presentes, puderam constatar que, encontrando-se a porta daquela referida mina fechada, a chave que a assistente habitualmente utilizava para abrir a mesma, não permitia abri-la, não obstante terem encetado diversas tentativas nesse sentido.

3°-Assim, perante tal circunstância, e porque entretanto anoitecera, a assistente e os referidos seus colaboradores ausentaram-se daquele referido local, tendo a assistente contactado nesse mesmo dia um serralheiro para que este, no dia seguinte se deslocasse ao referido local a fim de resolver tal impedimento na abertura da porta da mina.

4°-No dia 16 de novembro de 2013, por volta das 11h00m, no supra referido local, ..., ali encontrando-se a assistente acompanhada dos referidos FF e EE bem como do serralheiro, de nome ..., e enquanto este último providenciava pela pretendida entrada naquela referida mina mediante abertura da fechadura da porta da mesma, chegou o arguido, o referido BB.

5°-Depois de o arguido questionar a assistente da sua presença na mina, e de a mesma lhe tinha dito que era seu direito ir à mina, o arguido disse à assistente “vai para o caralho” “não tens nada que estar aqui”.

6°-No dia e hora referidos em 4°, a GNR esteve no local e registou a ocorrência.

7°-O arguido proferiu a expressão supra referida dirigida à assistente e foi ouvida pelas pessoas que ali se encontravam.

8°-Com a conduta descrita, o arguido quis ofender, como efetivamente ofendeu, a honra, dignidade, bom nome e consideração social da assistente, que goza do respeito e consideração de todos quanto conhece.

9°-O arguido bem sabia que a expressão que proferiu ofendia a honra, dignidade, bom nome e consideração social da assistente, e mesmo assim concretizou a intenção de a ofender.

10°-O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, ao que foi indiferente.

11°-A assistente, que é pessoa muito respeitada e considerada por todos quantos a conhecem, sentiu-se humilhada, magoada, envergonhada e constrangida, por ter sido destinatária da expressão “vai para o caralho” e esta ter sido ouvida pelas pessoas que a acompanhavam.

12°-Os danos supra referidos foram consequência direta, necessária e adequada da conduta ilícita do arguido (…).

E mais adiante:

"III - O DIREITO

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[4], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º n° 2 do C.P.P.[5].

De acordo com as conclusões de ambos os recursos interpostos — pelo M° Público e pelo arguido — a única questão que importa apreciar consiste em saber se a expressão proferida pelo arguido à assistente “vai para o caralho” preenche o elemento objetivo do tipo de ilícito do crime de injúria p. e p. no art° 181º do Cód. Penal.

Dispõe este preceito que: “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias"

O Código Penal adotou uma conceção dualista da noção de honra e consideração, na medida em que esta é vista, quer pelo valor pessoal ou interior de cada indivíduo, o juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma (honra subjetiva ou interior), quer pela consideração, o bom nome, a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente, equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa (honra objetiva ou exterior)[6].

Para que se verifique um crime de injúria é necessário que as expressões consistam numa imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, com um conteúdo ofensivo da honra ou consideração do visado, ou que as palavras dirigidas ao visado tenham esse mesmo cariz ofensivo da honra ou da consideração.

A injúria anda associada à noção de insulto e de ultraje.

Contudo, nem todos os insultos ou palavras depreciativas são suscetíveis de integrar o crime de injuria[7].

Importa assim determinar se a expressão proferida pelo arguido em direção à assistente, nas circunstâncias de tempo e lugar apuradas, revestem dignidade penal, ou seja, se foram proferidas em condições de atingir, de modo penalmente censurável, a honra ou a consideração da assistente, ou, dito de outra forma, o seu bom nome ou a sua reputação, que são, como se sabe, os valores protegidos pela incriminação do art° 181 do C. Penal.

Como resulta da matéria de facto provada, “depois de o arguido questionar a assistente da sua presença na mina, e de a mesma lhe ter dito que era seu direito ir à mina, o arguido disse à assistente “vai para o caralho” “não tens nada que estar aqui”.

Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que a expressão “vai para o caralho” não preenche a previsão normativa do estatuído no art° 181º do C. Penal, onde se diz, recorde-se, que comete o crime de injúria «Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração».

Com efeito, a mesma, de forma clara, evidente e linear, não imputa à assistente qualquer facto ou juízo de valor.

Como se escreveu no Ac. R. Évora de 28.05.2013[8], a respeito de idêntica expressão, «sendo indiscutivelmente rudes, assumidamente ordinárias, claramente grosseiras, e obviamente deselegantes, que qualificam negativamente quem as profere e que ofendem as normas de convivência social e aquele mínimo de respeito comunitário que é suposto existir, não atingem, contudo, aquele núcleo essencial do conceito de honra e consideração de forma a merecer a tutela penal.

Na verdade, uma coisa é a grosseria, a má educação, a utilização de linguagem desbragada ou obscena e outra, bem diversa, é que tal comportamento, eticamente reprovavelmente e moralmente censurável, traduza um atentado à personalidade moral do interlocutor».

Com efeito, há que ter em consideração que “a ofensa à honra ou consideração não é suscetível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direcionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objeto de sanção penal”[9].

A jurisprudência tem entendido que a mera verbalização de palavras obscenas, são absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação do visado. Traduzem um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral, que fere as regras do civismo exigível na convivência social. Contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, tido por boçal e ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal[10].

Ao proferir a expressão “vai para o caralho”, o arguido não emitiu qualquer juízo de valor em relação à pessoa da assistente, nem lhe imputou qualquer facto, ainda que sob a forma de suspeita, e as palavras que lhe dirigiu não são suscetíveis de ofender a honra ou consideração da assistente, pese embora se reconheça (à referida expressão), como se disse, a forma grosseira, rude, boçal até, de transmitir a sua indignação perante a circunstância de a assistente se encontrar junto à mina.

Como se escreveu em Acórdão desta Relação [11]“o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”.

Conclui-se, assim, que a expressão utilizada pelo arguido é inócua, isto é, deixa intocada a honra da assistente, importando ter em mente que o bem jurídico a que alude a incriminação a que se vem fazendo referência, não é por qualquer forma atingido, não se olvidando que o direito penal visa a tutela de bens jurídicos, pelo qualquer conduta que não os afete é atípica, isto é, não é punível.

Impõe-se, por isso, a absolvição do arguido.


*

Importa finalmente referir que os factos considerados provados nos pontos 8, 9 e 10 da matéria de facto provada relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta do arguido foram considerados assentes a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum e da normalidade, como se retira do § 1º de fls. 276 da sentença recorrida.

Assim que, não se verificando que os factos objetivos integrem o tipo de ilícito criminal imputado ao arguido, não pode dos mesmos retirar-se o elemento subjetivo.

Impõe-se, por isso, retirar dos factos provados os indicados sob os nº 8 a 10 e, na procedência de ambos os recursos, absolver o arguido do crime de injúria que lhe era imputado.
Por outro lado, atento o princípio da adesão consagrado nos artºs 71º e 377º do C.P.P., sendo o arguido absolvido da acusação em relação ao crime de injúria, o pedido cível formulado só podia ser considerado se existisse ilícito civil, o que não é o caso em discussão, impondo-se retirar da procedência do recurso na parte criminal as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão, absolvendo-se igualmente o arguido/demandado do pedido cível formulado pela assistente/demandante AA"

3.3. No cerne da questão, já se viu que está o facto de certas expressões proferidas pelo arguido destes autos, terem sido consideradas ineptas para integrar o crime de injúrias, ao contrário do que ocorreu com a posição do acórdão fundamento, em que se entendeu que as expressões aí em preço, uma das quais coincidia (“vai para o caralho”), integravam o crime de injúrias do art. 181º do CP.

3.3.1. A primeira coisa que importa salientar é que não está em causa, neste acórdão preliminar previsto no art. 440º, nº 4, do CPP, relativo ao processamento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, a análise contextualizada das expressões em confronto, para se apurar se e quais devem ser consideradas injuriosas, de modo a imputar-se ou não o crime do art. 181º do CP a quem as proferiu. Por outras palavras, não se trata, aqui e agora, de aplicar o direito aos factos apurados em primeira instância e mantidos nas Relações.

3.3.2. Depois interessa ter em conta que, as palavras proferidas pelo arguido do acórdão recorrido se aí tivesse havido condenação, integrariam um único crime de injúrias. Mas, ao mesmo tempo, a condenação do acórdão fundamento foi por um único crime – e bem – apesar de se terem considerado injuriosas duas expressões diferentes.

Tal significa que o comportamento do arguido deste último caso foi encarado unitariamente, e que portanto o desvalor da ação do agente (e do respectivo resultado), foi um só. A ilicitude do comportamento não foi cindida.

Vem esta observação a talhe de foice para se afirmar, como desde já se afirma, um grau de ofensividade potencial diferente, em face das expressões do acórdão recorrido e em face das do acórdão fundamento.

Aqui, disse-se "vai para o caralho" e "vai para a cona da tua mãe".

Ali, as palavras foram “vai para o caralho” e “não tens nada que estar aqui”.

Quanto ao mais, as diferenças serão irrelevantes: num caso estava a disputa relacionada com a propriedade de uma mina e no outro com a propriedade de terrenos.

Importa então abordar a questão da oposição de julgados.

3.3.3. Como atrás se defendeu ainda em tese geral (C, 2.), a oposição explícita, quanto à mesma questão de direito, só releva se se estiver perante uma factualidade subjacente equivalente.

Ora, consistindo a factualidade relevante, no caso, as frases proferidas, é evidente que as duas expressões do acórdão fundamento não só não coincidem com as do acórdão recorrido como, já se disse, apresentam uma potencialidade ofensiva claramente maior.

Daí que, subsistam dúvidas sobre se, posto a julgar o caso do acórdão fundamento, o Tribunal da Relação do Porto teria absolvido o arguido, e até sobre se colocado no lugar do colectivo da Relação de Coimbra que condenou o aí arguido, os julgadores da Relação do Porto não teriam feito o mesmo.

3.3.4. Não se ignora que no acórdão fundamento se analisou a expressão "vai para o caralho" considerando-a injuriosa, e no acórdão recorrido, não. Acontece é que, como se mostra consensual, a lei não nos dá um conceito de honra.

Portanto, saber quando é que certas palavras são ofensivas da honra e consideração de alguém depende em primeiro lugar da intensidade ou perigo da ofensa. Dir-se-ia até que as palavras do acórdão fundamento foram duplamente ofensivas em relação às do acórdão recorrido. 

Depois, a ofensividade potencial das palavras, mesmo independentemente do modo de sentir do visado, depende das circunstâncias do caso. E então não poderá ignorar-se, para além do mais, a banalidade ou não banalidade com que, em certos meios ou até regiões geográficas, certas expressões se usam.

Por último, a tarefa do julgador, para saber se há crime de injúrias, não se basta com a objetividade da pronúncia de certas palavras, antes reclama a valoração dos factos, aqui as palavras dirigidas. Ora, essa valoração e designadamente o grau do caráter ofensivo a partir do qual se passa da obscenidade e má criação para o crime, depende sempre da mundividência e sensibilidade do julgador. É inultrapassável.

Para corrigir eventuais disfunções existem então os recursos ordinários.

Porém, apelar a uma fixação de jurisprudência para determinar se uma expressão dirigida a alguém é, por si e independentemente de tudo mais, um crime de injúrias, seria um contra senso.

O terreno em que nos movemos exige, num grau importante, a valoração dos factos, não apenas para apurar o grau de ilicitude da conduta como, antes disso, para se saber se há ilicitude penal. Não há expressões ofensivas independentemente do condicionalismo da sua pronúncia. E das duas uma, ou se descreveria esse circunstancialismo (até onde?) na própria fixação de jurisprudência, o que a tornaria pouco útil para a função que lhe assiste, ou ficando-nos apenas pela consideração das palavras em si, poderíamos levar o direito penal a exorbitar da sua missão que só se propõe salvaguardar um mínimo ético, em muitas decisões que tivessem que ser condenatórias. 

Sobretudo, no caso em apreço, a factualidade de uma decisão e de outra nem sequer se equivalem, no que importa ter por essencial: o grau de ofensividade das palavras proferidas, claramente redobrado no acórdão fundamento.

Por isso é que, sem necessidade de mais considerações, se entende que o presente recurso é de rejeitar.

C – DECISÃO

Por todo o exposto se delibera, em conferência da 5ª secção do STJ, não estarem verificados todos os requisitos substanciais previstos no art. 437.º, nº 1 do CPP, de que dependeria a prossecução do presente recurso, por acórdão recorrido e fundamento assentarem em factos que se não equivalem, e daí que o presente recurso seja rejeitado, nos termos do nº 1 do art. 441º do CPP.

 Custas pelo recorrente com taxa de justiça de 2 UC.


Lisboa, 12 de Janeiro de  2017

Souto de Moura (Relator)

Isabel Pais Martins


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[1] - Relatado pelo Sr. Conselheiro Santos Cabral.
[2] A noção de facto traduz-se naquilo que é ou acontece, sendo um dado real da experiência (não deixando de ser um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, um claro juízo de existência).

[3] À intenção enquanto elemento subjetivo do tipo nos crimes de intenção não deve ser confundida com a «intenção» como elemento constitutivo da forma mais grave de dolo. Os crimes de intenção podem ser cometidos em qualquer forma de dolo, precisamente porque a intenção é um elemento subjectivo adicional ao dolo. Já nos crimes de dolo específico a conduta só é relevante tipicamente se o agente actuar com a forma de dolo exigida pela letra da lei, cobrindo este dolo inteiramente o tipo objectivo (cfr. Pauto Pinto de Albuquerque, Comentário do CP, Universidade Católica Editora, p 92).

Portanto, nos crimes  de intenção o tipo subjectivo inclui o dolo (em regra as 3 formas de dolo — directo, necessário e eventual) e ainda um elemento subjectivo adicional que vem por objecto um resultado exterior ao tipo objectivo.

Já nos crimes de dolo específico, o tipo subjectivo esgota-se na particular forma de dolo exigida por lei.

[4] 1 cfr. Prof, Germano Marques da silva, “curso de Processo Penal” III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[5] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série 1-A de 28/12/95.

[6] Cfr., neste sentido, José de Faria costa, in comentário conimbricense do Código Penal, 2 ed., 2012, Tomo 1, pág. 906.

[7] Como anota Sérgio Luís de carvalho, in “Dicionário de Insultos”, Editorial Planeta, pág. 52 “Este é, de facto, um dos insultos mais comuns e mais incisivos da nossa língua. E deve dizer-se que o termo caralho só existe nas línguas latinas ibéricas e em mais lado algum. (...)

Literária e documentalmente, o termo prossegue a sua carreira até aos nossos dias, omnipresente, jocoso, gozão e sempre associado ao pícaro e à sátira. Já da época dos descobrimentos vem uma historieta que se popularizou muito e que garante que os marinheiros davam o nome de cara/fio ao cesto da gávea, isto é, ao cesto de vigia que ficava no cimo do mastro mais alto. Não parece inverosímil, sobretudo se se pensar que o étimo mais citado para o termo é, recorde-se, o caraculum (estaca ou poste). Ir para o cara/fio ganha assim outra explicação, pois o cesto da gávea deveria ser o lugar mais incómodo para se estar: frio, ventoso, isolado e sujeito às grandes oscilações do navio. Mas como já vimos, o termo não nasceu ai, pois no séc. XIII já era usado na lírica, havendo ainda registos documentais anteriores. Hoje, como ontem, mandar alguém ir ter com ele é insulto. Enfim, o seu percurso é longo e a sua história antiga. E inevitavelmente irá continuar.

[8] Proferido no Proc. n° 9/12.1GDFTR.E1, não publicado, mas que nos foi gentilmente cedido pelo seu Relator, Des. Renato Barroso.

[9] Cfr. Ac.R. Coimbra de 06.01.2010, proferido no Proc. n° 862/08.3TAPBL.C1, Des. Jorge Jacob, disponível em www.dgsi.pt

[10] Cfr., entre outros, Acs. R. Porto de 25.062003 (Proc. n° 0312710, Des. Francisco Marcolino); de 19.04.2006 (Proc. n° 0515927, Des. Élia São Pedro) e 19.12.2007 (Proc. n° 0745811, Des. Olga Maurício), todos disponíveis em www.dgsi.pt
[11] Cfr. Ac. RP de 1206.02, Recurso 332/02.