Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2430/11.3.TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CO-AVALISTAS
DIREITO DE REGRESSO
LIVRANÇA EM BRANCO
FALTA DE ELEMENTOS ESSENCIAIS
Data do Acordão: 04/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO COMERCIAL - TÍTULOS DE CRÉDITO / LIVRANÇAS.
Doutrina:
- Pereira Delgado, "Lei Uniforme das Letras e Livranças" anot., 4ª ed., págs. 63 e 66.
- Pinto Furtado, Títulos de Crédito, p. 145.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 524.º, 650.º.
LEI UNIFORME DAS LETRAS E LIVRANÇAS (LULL): - ARTIGOS 10.º, 75.º, N.º2, 76.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 1-7-2003.
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AC. DE UNIF. DE JURISP. N.º 7/12, DE 5-6-2012, NO D.R. DE 17-7-2012.
Sumário :

1. Na falta de convenção extracartular, o direito de regresso entre os avalistas é exercido de acordo com as regras previstas para as obrigações solidárias.

2. O exercício do direito de regresso entre os avalistas que apuseram o seu aval numa livrança em branco não prescinde do seu preenchimento quanto aos elementos essenciais em falta, em que se inscrevem a indicação do montante e a data da emissão da livrança.

A.G.

Decisão Texto Integral:

I - AA e mulher BB intentaram acção declarativa contra a CC-Combustível, Ldª, e DD, alegando que o A. marido e a R. DD são os únicos sócios, com quotas iguais, da sociedade CC, a qual explorava postos de abastecimento de combustível, propriedade da EE, cujos fornecimentos eram assegurados por garantias bancárias.

No âmbito dessa actividade foi solicitado ao FF a prestação de uma garantia bancária no valor de € 75.000,00, que teve como contra-garantia a emissão e entrega de uma livrança no montante de € 37.500,00, com pacto de preenchimento, subscrita pela 1ª R. e avalizada pelo A. marido e pela R. DD. A EE accionou tal garantia, tendo o FF efectuado o paga­mento de € 75.000,00, solicitando depois ao A. e às R.R. o depósito da quantia de € 37.500,00, o qual foi efectuado apenas pelo A. marido.

A solicitação da 1ª R., o Banco GG, emitiu também duas garantias bancárias a favor da EE, no valor de € 75.000,00 cada uma, as quais foram contra-garantidas pela emissão em branco e entrega das duas livranças, com pacto de preenchimento, ambas subscritas pela 1ª R., sendo uma delas avalizada pelo A. marido e pela R. DD e a outra pelos AA. e pela R. DD. A EE accionou as duas garantias, tendo o Banco procedido ao seu ao pagamento, nos valores de € 74.930,04 e de € 65.480,04, solicitan­do aos AA. e às RR. o reembolso, o qual foi efectuado apenas pelos AA.

Concluíram pedindo a condenação da 1ª R. no pagamento da quantia global de € 376.122,75 e a condenação da R. DD no pagamento da quantia de € 88.955,04, correspondendo esta a metade das contra-garantias que foram pagas pelos AA. às entidades bancárias, com juros de mora a contar da data da citação.

A R. DD contestou.

Foi proferida a sentença que condenou a 1ª R. no pagamento da quantia de € 357.372,75, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da citação até efectivo pagamento, julgando prejudicada a apreciação do pedido relativamente à R. DD.

Os AA. impugnaram em recurso de apelação a decisão na parte respeitante à R. DD, e a Relação absolveu essa R. do pedido de condenação no pagamento das quantias de € 37.465,02 e de € 32.740,02, respeitantes às livranças de fls. 33 e 34 subscritas e avalizadas em branco para funcionarem como contra-garantias das garantias bancárias, mas determinou a ampliação da matéria de facto relativamente à livrança de fls. 26 que igualmente foi subscrita e avalizada para funcionar como contra-garantia de uma garantia bancária.

Os AA. interpuseram recurso de revista defendendo que a ampliação da decisão da matéria de facto deveria ser determinada relativamente a 3 livranças. Para o efeito concluíram essencialmente que:
a) Sem a subscrição e prestação de avales nas duas livranças entregues ao Banco GG, este não prestaria as garantias bancárias a favor da EE e, por seu lado, esta não efectuaria os fornecimentos de combustível à 1ª R., de modo que, sendo o A. marido e a R. DD os únicos sócios e gerentes da 1ª R., a prestação de avales nas livranças foi feita no interesse, embora indirecto, dos AA e da R. DD;
b) Tais livranças que foram subscritas e avalizadas em branco apenas não foram preenchidas totalmente porque os AA. entretanto pagaram ao Banco GG as quantias que as mesmas garantiam, atenta a sua qualidade de avalistas e o facto de terem subscrito os pactos de preenchimento, tornando supervenientemente inútil aquele preenchimento;
c) O não preenchimento total das duas livranças não é impeditivo do exercício do direito de regresso entre os co-avalistas, uma vez que estamos no domínio das relações entre os próprios co-avalistas;
d) Se não tivesse havido os avales prestados pelos AA. e pela R. DD e os respectivos pactos de preenchimento o Banco GG não teria legitimidade para exigir dos AA. e das RR. o pagamento das quantias a que respeitavam as livranças e os AA. não teriam efectuado o pagamento ao referido Banco;
e) O facto de as livranças não terem sido preenchidas quanto ao montante e data de emissão e de vencimento não lhes retira eficácia cambiária, nem prejudica a responsabilidade solidária entre os co-avalistas, tanto mais que as livranças não foram apresentadas como título executivo;
f) A existência de declaração de aval dos AA. e da R. DD é incontroversa, assim como o é a validade dos pactos de preenchimento, tornando evidente a vinculação da R. DD, pelo que esta é obrigada a restituir aos AA. metade das quantias que, na qualidade de co-avalistas, os mesmos pagaram ao Banco GG.

Não houve contra-alegações.

II – Incidindo sobre os factos fixados pelas instâncias:

1. A presente revista trata simplesmente das condições para o exercício do direito de regresso por parte dos AA. relativamente aos valores que pagaram a uma das entidades bancárias chamadas a cumprir as garantias bancárias que foram prestadas no âmbito dos fornecimentos de produtos à R. CC pela EE.

Não está em discussão na presente acção e nesta revista a admissibilidade do exercício do direito de regresso entre co-avalistas de livranças nos casos em que não exista qualquer acordo extracartular.

A polémica jurisprudencial que se instalara relativamente a tal questão acabou por ser sanada pelo Ac. de Unif. de Jurisp. nº 7/12, de 5-6-12, no D.R. de 17-7-12 (relatado pelo ora relator), no qual se fixou que “sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias”.

Foi na sequência de tal entendimento que no acórdão recorrido se decidiu, relativamente à quantia inscrita na livrança de fls. 26, cujo pagamento foi efectuado pelos AA., que era admissível, em abstracto, o direito de regresso relativamente à R. DD, condicionado, no entanto, pelo apuramento de factos relativos à excussão de todos os bens da sociedade subscritora da livrança, a R. CC.

Por isso a Relação determinou que fosse ampliada a matéria de facto, por forma a apurar factos que foram alegados pelos AA. relativamente às condições para o exercício do direito de regresso sobre a quantia que efectivamente foi inscrita em tal livrança.

Com efeito, embora tal livrança tivesse sido subscrita e avalizada em branco, com pacto de preenchimento, posteriormente foram preenchidos os demais elementos essenciais, com especial destaque para a indicação do quantitativo a que respeitava a obrigação cambiária da subscritora e dos co-avalistas e pelo qual os ora AA. foram chamados a responder.

Em tais circunstâncias, a afirmação da admissibilidade do direito de regresso dos AA. relativamente à R. DD teve como substrato o facto de aqueles serem legítimos portadores da livrança que, cumprindo no momento do exercício do direito de regresso todos os requisitos essenciais, demonstrava efectivamente, para além da existência dos co-avalistas da subscritora, o montante que titulava e cujo pagamento foi efectuado pelos AA.

Já quanto às livranças de fls. 33 e 34, o acórdão recorrido concluiu que não estava verificado o pressuposto básico do exercício do direito de regresso dos AA. em relação à R. DD, uma vez que, tendo também sido subscritas e avalizadas em branco, como aquela, não foram, no entanto, preenchidas nos seus elementos essenciais respeitantes aos montantes e às datas de emissão.

2. Tendo os AA. e a R. DD aposto a sua assinatura como avalistas nas livranças de fls. 33 e 34 que foram subscritas em branco pela CC e que foram entregues ao Banco GG como contra-garantias de garantias bancárias, pretendem os AA. exercer sobre a R. DD o direito de regresso correspondente a metade de cada uma das quantias a que respeitavam tais livranças.

Como se disse, tal pretensão foi recusada relativamente a às livranças de fls. 33 e 34., uma vez que tais títulos, na posse dos AA., não se encontravam preenchidos quanto aos quantitativos que titulam e quanto à data da emissão.

Como se referiu no ACUJ mencionado, é “pacífico o entendimento de que a LULL não regula as relações internas entre os diversos avalistas do mesmo avalizado”, de tal modo que a “resposta relativamente ao eventual direito de regresso entre eles deve encontrar-se nos quadros do direito comum”.

Assim por via do direito comum, ao avalista ou avalistas que tenham suportado o pagamento da quantia inscrita em livrança é legítimo o exercício do direito de regresso sobre os demais avalistas com vista ao reembolso da parte que, de acordo com a convenção extracartular ou, na sua falta, de acordo com as regras da fiança plural e das obrigações solidárias, tenha superado a sua responsabilidade, depois de demonstrada a excussão do património da subscritora.

Mas, ainda que o direito de regresso entre co-avalistas não seja regulado pelas regras do direito cambiário (máxime pela LULL), é pressuposto necessário do seu exercício a existência e a eficácia do título de crédito que sustenta a relação de aval ou de co-aval, o que não se verifica no caso concreto relativamente aos documentos de fls. 33 e 34.

3. É admissível a subscrição ou o aval numa livrança em branco, com pacto de preenchimento, nos termos do art. 10º da LULL.

Mas como decorre do art. 76º da LULL, em conexão com o art. 75º, nº 2, na falta dos elementos essenciais como aquele que respeita ao montante titulado, a livrança não pode produzir efeitos enquanto título de natureza cambiária.

O seu posterior preenchimento relativamente aos elementos essenciais de que a lei não prescinde constitui uma condição de eficácia do título de crédito (cfr. neste sentido Pereira Delgado, LULL anot., 4ª ed., págs. 63 e 66), posto que Pinto Furtado defenda que “só se considera constituída a obrigação cambiária quando o título vier a ser preenchido” (Títulos de Crédito, pág. 145).

Independentemente da qualificação do vício que se verifica quando se constate a ausência nos escritos de fls. 33 e 34 do montante que cada uma titulava e da indicação da data de emissão (quanto à data de vencimento deveria entender.se que seria pagável à vista, nos termos do art. 76º da LULL), decorre da lei com inequivocidade que os mesmos não são susceptíveis de produzir efeitos enquanto documentos que titulam livranças, o que se repercute em todas as relações cambiárias que em abstracto da mesma podem emergir, com inclusão da relação de aval ou e co-aval (neste sentido cfr. também o Ac. do STJ, de 1-7-03, Rel. Silva Salazar).

A verificação desses requisitos formais revela-se tanto mais necessária quanto é certo que qualquer uma dessas relações cambiárias (com destaque para o aval) é pautada pela autonomia, abstracção e literalidade, sendo a responsabilidade de cada um dos intervenientes definida unicamente em função do teor da livrança.

4. Contra o afirmado pelos recorrentes, o resultado não se altera pelo facto de nos encontrarmos no domínio das relações imediatas, isto é, das relações que se estabelecem entre avalistas da mesma subscritora da livrança.

Com efeito, a única causa de pedir da presente acção é sustentada na alegação e reconhecimento do direito de regresso entre co-avalistas. Para sustentar o direito de regresso seria imprescindível a existência ou ao menos a eficácia de uma tal vinculação de génese cambiária, não sendo legítimo sequer apelar a qualquer relação substancial, tanto mais que nem sequer foi invocada qualquer outra fonte negocial ou legal com relevo para sustentar o exercício do direito de regresso.

Fica, assim, destituída de apoio a pretensão de regresso, pois que, embora a mesma seja regulada pelas regras da fiança e das obrigações solidárias, nos termos dos arts. 650º e 524º do CC, era imprescindível que se pudesse considerar eficazmente assumida alguma obrigação cambiária como avalista por parte da R. DD.

Como se disse anteriormente, não se questiona a admissão de letras ou de livranças em branco, nem a legitimidade da assinatura aposta por avalista de algum dos demais obrigados cambiários, o que gera uma vinculação incompleta, cujo eficácia e conteúdo não prescinde do posterior preenchimento dos elementos essenciais em falta, através dos quais é medida a responsabilidade dos avalistas em globo e, a partir desse plano, a responsabilidade individualizada susceptível de ser reclamada no âmbito da acção de regresso.

O facto de os AA. terem efectuado o pagamento das quantias contra-garantidas pelas referidas livranças logo que foram confrontados com a solicitação do Banco Santander não supera a necessidade do seu preenchimento para efeitos de ser exercido o direito de regresso relativamente à R. coavalista.

III – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo dos recorrentes

Notifique.

Lisboa, 30-4-15


Abrantes Geraldes (Relator)

Bettencourt de Faria

João Bernardo