Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P1882
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: PROIBIÇÃO DE PROVA
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
MATÉRIA DE FACTO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ200310150018823
Data do Acordão: 10/15/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2 J CR FARO
Processo no Tribunal Recurso: 948/98
Data: 05/07/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : 1. Nos termos do artigo 432º, alínea b), do Código de Processo Penal, há recurso para o Supremo Tribunal de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400°.

2. O artigo 400º, nº 1, alínea f) do Código de Processo Penal determina que são irrecorríveis os acórdãos condenatórios proferidos em recurso pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, sendo por isso, susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal os acórdãos proferidos pelas relações em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão superior a oito anos.

3. Os elementos da norma do referido artigo 400°, alínea f), "por crime e "pena aplicável", aponta, no quadro das conjugações conceituais próprias do direito penal e da definição dos crimes e das penas, para referências de natureza abstracta: a pena aplicável é a que está definida na moldura penal fixada para um determinado tipo legal de crime antes de ser objecto de qualquer acto de aplicação concreta.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal da Supremo Tribunal de Justiça:


1. No processo nº 948/98.0JAFAR do Tribunal da Comarca de Faro, foram julgados pelo Tribunal Colectivo, entre outros, os arguidos A; B E C pela prática de um crime previsto e punido no artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 13/93, de 22 de Janeiro, e condenados, o A por cumplicidade na prática do referido crime, na pena de quatro anos de prisão, e o B e o C, como autores materiais, na pena de oito anos de prisão.

Os arguidos recorreram para o Tribunal da Relação, que veio a conceder provimento parcial ao recurso do arguido A, condenando-o a três anos de prisão, mas julgou improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos B e C.

2. De novo inconformados, os arguidos interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que motivaram, apresentando as seguintes conclusões:
Recorrentes B e C:
1ª- Ao ter mantido a decisão de primeira instância na parte em que se alegou a violação do princípio da vinculação temática, pelo facto de o M. P. ter deduzido acusação contra os recorrentes sem, no entanto, prescindir da junção aos autos da carta rogatória cuja emissão havia previamente ordenado, entendido que a mesma era necessária à prova de um facto essencial para a acusação ou para a defesa (cfr. art° 230°, n°2, do C.P.P.), sem absolver os arguidos com fundamento na violação daquele princípio, violou o Tribunal da Relação de Évora o invocado princípio da vinculação temática;

2ª- Caso assim não se entenda, requer-se sejam declaradas inconstitucionais, por violação do disposto no art° 32°, n°5, da C.R.P., as normas constantes dos art°s 262º, nº 1, 267° e 230°, n°2, do C.P.P., na medida em que tais normas sejam interpretadas no sentido de os arguidos poderem ser julgados com base numa acusação elaborada pelo M. P. que, na fase do inquérito, ordena a expedição de uma carta rogatória, deduzindo acusação contra os arguidos antes de recebida tal rogatória e não prescindindo da sua posterior junção aos autos, por entender que a mesma é necessária "...à prova de algum facto essencial para a acusação ou para a defesa";

3ª- Nos termos do art° 58°, n°4, do C.P.P-, a omissão da investidura dos recorrentes na qualidade de arguidos quando prestaram as primeiras declarações (a fls. 241 -A, 242-A e 246-A) perante agentes da Polícia Judiciária, implicava que tais declarações não podiam ter sido utilizadas como prova contra eles, contrariamente ao que veio a suceder, com o que o acórdão recorrido, que manteve o acórdão condenatório de primeira instância, violou os art°s 58°, n°1, als c) e d), n° 2. e n°4, 59°, n°1 e 32°, n°1, da C.R.P., devendo, consequentemente, tais declarações ser consideradas como um meio de prova proibido determinante da nulidade de todos os actos processuais afectados por tal vício;

4ª- Se assim não se entender, requerem os arguidos que sejam declaradas inconstitucionais as normas constantes do artº 58°, alíneas e) e d), n°s 2 e 4, do C P.P.. por violação do princípio constitucional das garantias de defesa do arguido, vertido no art° 32°, n°1, da C.R.P., quando interpretadas no sentido de que as declarações prestadas por suspeitos detidos perante agentes da Polícia Judiciária não obrigam primeiro à respectiva investidura na qualidade de arguidos, não consubstanciando, assim, as "declarações" prestadas meios de prova que não possam ser utilizados contra os arguidos;

5ª- Os arguidos requerem seja declarada a nulidade insanável prevista no art° 119°, alíneas b) e c), do C.P.P., com fundamento na ausência da presença do M.P. e do advogado defensor (cfr. art° 64°, n° 1, alínea c), do C.P.P.) aquando das primeiras declarações por eles prestadas, e que, consequentemente, tais declarações, bem como os actos que delas dependeram neste processo, sejam considerados inválidos, de harmonia com o disposto no art° 122°, n°1, do C.P.P.;

6ª- Requerem ainda que a norma constante do art° 64°, n°1, al c), do C.P.P. seja declarada inconstitucional por violação do art° 32°, n°3, da C.R.P., se aquela for entendida no sentido perfilhado pelo Tribunal recorrido, que manteve o acórdão condenatório no que a esta questão respeita, ou seja, se se entender que as "declarações" prestadas pelos arguidos em 02.06.99 não obrigavam à assistência de advogado;

7ª- Ao afirmar na parte decisória respeitante à determinação da medida da pena que "contra os arguidos B e C teremos de considerar o facto evidente de serem controladores da operação por conta do dono da droga" e que "...embora se procurem manter de «mãos limpas» durante a operação, a têm sempre controlada...", o acórdão condenatório, bem como a douta decisão do Tribunal da Relação de Évora, que manteve aqueloutra, violaram os art°s 359°, n°1, 379°, n°1, b), do C.P.P. e 32°, n°5 da C.R.P., devendo este acórdão ser declarado nulo, sob pena de se verificar a inconstitucionalidade do artº 359º, n'1, C.P.P, por violação do artº 32º, n°5, da C.R.P., com a interpretação que lhe é dada pelo acórdão recorrido.

- 8ª A afirmação de tais factos consubstancia uma alteração substancial dos factos, de harmonia com o disposto no art° 359°, n°1, do C.P.P., uma vez que, se tivessem sido dados a conhecer aos arguidos aquando da audiência de discussão e julgamento, tal teria com certeza influído na respectiva estratégia de defesa mas como nunca lhes foi dado a conhecer semelhante entendimento, não puderam os arguidos defender-se de tais acusações novas, tendo, assim, o Tribunal recorrido violado o disposto no art° 32°, n°5, da Constituição da República Portuguesa.

- 9ª Ao ter valorado as declarações prestadas pelo arguido D no primeiro interrogatório judicial para dar como provados em sede de audiência os factos dos pontos 4 e 5 do acórdão condenatório, o Tribunal de primeira instância, tal como o Tribunal a quo, na medida em que manteve aquela decisão, violou o disposto nos art°s 61°, n° 1, alínea c), 345°, n°1, 355°, nº 1, 357°, n°1, alínea b), 140°, n°2, 128°, 130°, n°s 1 e 2, 129°, n°1 do ao C. P. P. e 32°, n°s 1 e 5, da C. R. P.;

10ª Assim não se entendendo, devem ser declaradas inconstitucionais as normas constantes dos art°s 61 °, n°1, alínea c), 128°, n°1, e 345°, n°1, do C.P.P., por violação do disposto no art° 32°, n°s 1 e 5, da C.R.P., quando interpretadas no sentido perfilhado pelo tribunal a quo;

- 11ª Sendo certo que é jurisprudência pacífica o facto de o art° 345° do C.P.P. não proibir que o Tribunal forme a sua convicção acerca da responsabilidade de um arguido a partir das declarações prestadas por outro arguido, também é certo que, tendo um arguido a possibilidade de não responder às perguntas formuladas pelo Tribunal, ou de não esclarecer as perguntas que lhe são feitas, daí não pode resultar qualquer prejuízo para o exercício do direito de defesa de outro co-arguido;

- 12ª Os arguidos foram condenados com base em meras presunções, pelo que o Tribunal a quo violou o princípio do in dubio pro reo, isto é, incorreu num erro notório na apreciação da prova, tal como já o havia feito o tribunal de primeira instância;

- 13ª Na determinação da pena aplicada aos arguidos, o acórdão condenatório, mantido pelo acórdão recorrido, não se refere na respectiva fundamentação aos relatórios do I.R.S., que são bastante favoráveis aos arguidos, o que significa que o tribunal recorrido não teve em conta os relatórios em apreço, com o que violou o disposto nos art°s 40°, n°s 1 e 2, 71º do C.P., e 10º da C.R.P.;

- 14ª Diz-se que o arguido C contraiu um empréstimo bancário para habitação, mas não se menciona um outro facto essencial constante do mesmo documento, qual seja, o de que em 12 de Maio de 1999 faltava amortizar a quantia de 5.094.020 pesetas (cfr. art° 169°, do C.P.P.);

- 15ª Por registo de 23.09.99 foi junto (e admitido) aos autos documento comprovativo da contracção de um empréstimo de 1.706.000 pesetas, em 09.02.89, pelo arguido B, junto do Banco de ...., em que o pagamento das anualidades ficou estipulado da seguinte forma: nove anualidades a pagar de 1992 a 2000, em 20 de Março de cada ano (fls. 739 dos autos), pelo que deveria o Tribunal, nos termos do art° 169° do C.P.P., ter referido os factos constantes de tal documento na fundamentação do acórdão;

- 16ª De fls. 897 dos autos consta uma informação enviada pelo Gabinete Nacional da Interpol respeitante aos arguidos, da qual consta não possuírem os mesmos antecedentes nos arquivos daquele gabinete e de não serem conhecidos como pessoas que se dedicam ao tráfico de droga, que não é referida no acórdão recorrido;

- 17ª Dentro da moldura de 4 a 12 anos de prisão e atendendo à "elevada ilicitude" do facto, à "posição social já apreciável", à "ganância" como motivação já prática do facto, ao facto "evidente" de os arguidos serem os controladores da operação por conta do dono da droga, e de não terem demonstrado arrependimento, apesar da ausência de antecedentes criminais, considerou o Tribunal de primeira instância como adequadas e proporcionais à culpa dos arguidos as penas de 8 anos de prisão efectiva para cada um;

- 18ª Ao decidir desta forma violou o Tribunal de primeira instância e o Tribunal da Relação de Évora, que manteve a decisão condenatória, os art°s 124°, n°1, do C.P.P., 40°, n°s 1 e 2 e 71°, do C.P. e 1°, da C.R.P., bem como o princípio penal da proibição da dupla valoração da conduta do agente;

- 19ª Constituindo objecto de prova os factos relevantes para a determinação da pena aplicável, de acordo com o art° 124°, n°1, do C.P.P., ao ter recorrido a factos que não foram objecto de prova nos autos e que não resultam, de todo, do texto da decisão condenatória de primeira instância, para determinar a medida da pena aplicada aos arguidos, violou o Tribunal da Relação, por ter mantido a decisão judicial condenatória, nesta parte, o normativo indicado no presente ponto das conclusões;

- 20ª Requerem, finalmente, os arguidos, caso não proceda qualquer dos restantes vícios arguidos neste recurso, que seja revogada a pena de prisão que lhes foi aplicada, sendo a mesma substituída por outra que se aproxime do mínimo legalmente previsto para o crime pelo qual foram condenados;

- 21ª A decisão de primeira instância, bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tendo violado o disposto no artº 410°, n°2, alínea a), do C.P.P., porquanto, ao condenar os recorrentes na pena de 8 anos de prisão cada um, invoca para tal na parte decisória do acórdão, que os arguidos eram os controladores da operação por conta do dono da droga, que procuraram manter-se de mãos limpas durante tal operação, que a tiveram sempre controlada e que agiram por ganância;

- 22ª Os factos vertidos nos pontos 4 e 5 do acórdão condenatório estão em contradição com os vertidos no ponto 5.5 dos factos não provados do mesmo acórdão, pois se não se provaram os factos relativos às paragens e aos movimentos dos arguidos, não se pode considerar provado que os arguidos tenham trazido de Espanha no veículo BB qualquer haxixe, sendo o acórdão de primeira instância nulo por padecer do vício consagrado no art° 410°, n°2, alínea b), do C. P P.

Os recorrentes terminam por pedir que seja dado provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e absolvendo-os, ou, assim não se entendendo, que seja revogada a pena de prisão que lhes foi aplicada, substituindo-a por outra que se aproxime do limite mínimo legalmente previsto para o crime por que foram condenados.

3. Por seu lado, o recorrente A formulou as seguintes conclusões:
- 1ª- Dispondo o artigo 27° n° 2 do Código Penal que é aplicável ao cúmplice a pena fixada para o autor especialmente atenuada, a decisão que aplicou a pena ao arguido fez aplicação errada dos artigos 71°, 72° e 73° do Código Penal e violou o disposto nos artigos 40º, n° l, e 50º, nº l, do Código Penal;

- 2ª- Dispondo o artigo 50°, n° l, do Código Penal, que "o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e ás circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição", o tribunal a quo não valorou, como deveria, a desnecessidade da prevenção;

- 3ª- O tribunal recorrido fez praticamente tábua rasa das condições pessoais do arguido, da sua conduta anterior e posterior ao crime;

- 4ª- Não teve também em conta o tribunal a quo o facto de já ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime e o arguido ter mantido uma boa conduta;

- 5ª- Conforme a lei dispõe, deverá a punição ser sempre de acordo com a atenuante mais eficaz, isto é, que contempla uma maior atenuação e, no caso concreto, o acórdão recorrido não teve em conta este comando normativo;

- 6ª- In casu, a atenuação mais benéfica será a redução da pena e a suspensão da execução da mesma, ou apenas a suspensão da pena de 3 anos que foi aplicada ao arguido, uma vez que a simples ameaça do cumprimento da pena se mostra um meio adequado para afastar o arguido da prática de novos crimes, em virtude de a suspensão da execução da pena de prisão ser uma medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico que deve ser decretada nos casos em que é aplicada pena de prisão não superior a três anos, atendendo à personalidade do agente, e às condições sua vida;

- 7ª -Pois, o arguido é primário está familiar, social e profissionalmente inserido, tendo mantido uma vida de trabalho quer anterior quer posteriormente à prática dos factos, não esquecendo, porém, que já decorreram três anos e oito meses sobre os factos e a conduta do mesmo foi sempre boa;

- 8ª- Para além do mais encontra-se o arguido a desenvolver um projecto de agricultura subsidiado pelo IFADAP, onde terá que o desenvolver na íntegra a execução do mesmo;

- 9ª- Não deve ser esquecido que todas as medidas punitivas devem procurar castigar o homem, e ao mesmo tempo, em vez de o perder, ganhá-lo para a sociedade.
Termina pedindo que a pena de prisão que lhe foi aplicada seja reduzida e a sua execução suspensa, ou caso assim se não entenda, que a pena aplicada de três anos de prisão seja suspensa na sua execução.

4. O Ministério Público respondeu às motivações dos recorrentes, pronunciando-se no sentido da improcedência dos recursos.

5. Neste Supremo Tribunal, decidida uma questão prévia suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, e colhidos os vistos, teve lugar a audiência com a produção de alegações, cumprindo apreciar e decidir.
As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
- l. Com vista a preparar uma compra de grande quantidade de haxixe, em finais de Maio de 1999, o arguido D contactou com o arguido A;

- 2. Para o efeito, o arguido A colocou o arguido D em contacto com o arguido E, tendo então entre estes sido combinada a quantidade de haxixe a transaccionar (50 quilos) e o respectivo preço (200.000$00 por quilo );

- 3. Pelo auxílio prestado, o arguido A receberia dinheiro do arguido D;

- 4. Conforme combinação nesse sentido, B e C, acompanhados pelo irmão do arguido E, F, transportaram desde Espanha, no dia 2 de Junho de 1999, 51.804,7 gramas de haxixe (distribuídas por 47 pacotes ) para serem vendidas a 200.000$00 por quilo ao arguido D;

- 5. A droga foi transportada no veículo de matrícula BB, conduzido pelo arguido C, tendo sido, em Portugal, colocada no veículo conduzido pelo arguido E, de matrícula XN;

- 6. Em Pechão, ainda no dia 2 de Junho de 1999, e pelos arguidos E e F, o haxixe foi entregue ao arguido D que o guardou no veículo de matrícula JF;

- 7. Agiram os arguidos de forma, livre, deliberada e consciente, sabendo que a compra, venda e transporte de haxixe são proibidos ;

- 8. Os arguidos E, F, B, C e A não têm antecedentes criminais;
- 9. O arguido D foi condenado, (...);

- 10. O arguido D, vivendo com os pais, não tem tido ocupação útil com qualquer tipo de estabilidade (salvo os 2 anos durante os quais cumpriu o serviço militar obrigatório), e desde a adolescência que consome " canabis ";

- 11. Relatou ao tribunal os contactos que efectuou para adquirir o haxixe, a quantidade encomendada e o respectivo preço. Logo que detido, auxiliou a Polícia Judiciária no sentido de identificar e capturar os arguidos envolvidos na operação, esclarecendo onde haviam combinado o encontro para pagamento do haxixe e inclusivamente telefonando ao arguido E para confirmar o mesmo, atraindo-o ao local onde se encontrava e onde vieram a ser detidos os arguidos E, B e C;

- 12. O arguido E vivia com a sua companheira e a filha de ambos com 6 anos de idade. Explorava um estabelecimento de café e continuava a sua actividade de futebolista, que vinha desenvolvendo desde os seus 18 anos em clubes algarvios;

- 13. Em audiência admitiu ter procedido à entrega do haxixe, embora afirmasse que só se tinha apercebido do que continham os sacos escassos momentos antes de tal entrega;
- 14. O arguido F vivia com a sua mulher e um filho de 5 anos de idade em Gibraltar, onde ultimamente desempenhava as funções de vigilante na agência "G", desde que para aí se deslocou, depois de cumprir o serviço militar na Marinha durante dois anos. Explorava ainda uma loja de vendas várias e ajudava económicamente a sua mãe;

- 15. Admitiu em julgamento ter procedido à entrega dos 50 quilos de haxixe ao arguido D;

- 16. O arguido B, de nacionalidade espanhola, vivia em Cádis com a sua mulher e filho de 4 anos de idade. É dono de oficina de mecânica de automóveis, frequentou cursos de formação profissional de mecânica, electricidade de automóveis, hortofloricultura, de solos e meio ambiente em pastagens de Inverno;

- 17. O arguido C, de nacionalidade espanhola, trabalhava como taxista para seu pai. Contraíu empréstimo bancário para aquisição de casa no valor de 8.100.000 pesetas;

- 18. O arguido A vive com a sua companheira e dois filhos, com 6 e 2 anos de idade. Depois de frequentar cursos de formação profissional de empresário agrícola e de manutenção de pomar de citrinos, dedica-se à exploração do pomar de citrinos da família, com cerca de 2 hectares e meio, tendo-se candidatado a projecto subsidiado, e aprovado, de desenvolvimento de tal actividade. No passado dedicou-se à jardinagem e à construção civil;

- 19. O veículo de matrícula BB é pertença de H, namorada do arguido C;

- 20. A viatura de matrícula XN está registada a favor de J companheira do arguido A;

- 21. Os telemóveis de D, E e F serviram para combinar e coordenar a operação de transporte de haxixe;

- 22. Dentro de uma viatura da Polícia Judiciária, que procedeu ao transporte de arguidos detidos no âmbito deste processo foram encontrados, escondidos, 644.500$00 em dinheiro;
Provou-se ainda que:

- 23. O arguido D usava vários telemóveis, seus e de outras pessoas, utilizando linguagem figurada para se referir a droga, locais e pessoas, tendo até contactado por tal meio a mãe de I;
- 24. Houve vários contactos telefónicos entre os arguidos D, A e E e entre este e o arguido F sobre a combinação e o desenrolar da operação;

- 25. O arguido B nasceu em 4.6.70;

- 26. O arguido B trazia consigo 75.000 pesetas;

- 27. O arguido E tinha consigo 56.000$00;

-28. O arguido C fazia descontos para a Segurança Social;

- 29. O arguido A conhece o arguido D;

- 30. Demonstrou-se também que, ainda na fase de inquérito e investigação dos factos, foi expedida carta rogatória e foram efectuadas intercepções telefónicas, escutas telefónicas, respectivas gravações, detenções, apreensões, revistas, buscas, relatórios, exames, interrogatórios, inquirições, acareações, fotografias, "croquis " e demais meios e diligências de prova (tal como em tantos outros processos que correm termos nos tribunais portugueses), abundantemente referidos e até mesmo reproduzidos nos libelos acusatórios e em algumas contestações.

6. Recurso dos arguidos B e C:
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação, que devem indicar, como impõe o artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando versem matéria de direito, como é o caso do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, as normas jurídicas violadas, o sentido em que, no entender do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou, e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entender do recorrente, deve ser aplicada.

As conclusões da motivação do recurso dos arguidos B e C não satisfazem, mesmo em interpretação benévola, as exigências impostas pela lei de processo, quando se referem apenas às normas violadas por extensos conjuntos ou catálogos, em algumas conclusões sem relação de aplicabilidade, e sem indicarem nem o sentido em que o tribunal recorrido as interpretou, nem o sentido em que, no entender dos recorrentes, deveriam ser interpretadas.

Tais conclusões impõem, assim, um esforço de interpretação, estritamente necessário para a delimitação do objecto do recurso, no qual, tanto quanto é possível identificar, os recorrentes submetem à apreciação e decisão do Supremo Tribunal as seguintes questões:

1ª- Violação do princípio da vinculação temática pelo facto de o Ministério Público ter deduzido acusação contra os recorrentes sem prescindir da junção de uma carta-rogatória cuja emissão havia previamente ordenado - conclusões 1ª e 2ª.
2ª- Violação das regras sobre proibições de prova pelo facto de terem sido utilizadas as primeiras declarações dos recorrentes prestadas perante os funcionários da Polícia Judiciária, sem que tivessem sido constituídos arguidos e sem a assistência de defensor - nulidade insanável prevista do artigo 119º, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal - conclusões 3ª, 4ª, 5ª e 6ª.

3ª- Alteração substancial dos factos, por constar da parte decisória do acórdão recorrido o «facto evidente de [os recorrentes] serem controladores da operação por conta do dono da droga» e «embora se procurem manter de "mãos limpas" durante a operação a mantêm sempre controlada», dado que tais factos não foram dados a conhecer aos recorrentes durante a audiência de discussão e julgamento, influenciando decisivamente a sua estratégia de defesa - conclusões 7ª e 8ª.

4ª- Valorização das declarações produzidas por um co-arguido no primeiro interrogatório judicial para dar como provados, em audiência, os factos referidos nos pontos 4 e 5 do acórdão condenatório - conclusões 9ª, 10ª e 11ª.

5ª- Condenação dos arguidos com base em meras presunções, com violação do princípio in dubio pro reo - conclusão 12ª.

6ª- Não consideração pelo tribunal recorrido de factos favoráveis aos recorrentes na determinação da medida da pena; ou, subsidiariamente, revogação da pena de prisão aplicada, com substituição por outra que se aproxime do mínimo legalmente previsto para o crime por que foram condenados - conclusões 13ª a 17ª e 21ª;

7ª- Utilização pelo tribunal para a determinação da medida da pena de factos que não foram objecto de prova, e violação do princípio da proibição da dupla valoração da conduta do agente - conclusões 18ª, 19ª, 20ª e 22ª.

8ª- Contradição entre os factos constantes dos pontos 4 e 5 do acórdão condenatório com os pontos 5.5 dos factos não provados - conclusão 23ª.
Efectuada, assim, na medida permitida pela complexidade das conclusões apresentadas, que rigorosamente não respeita as exigências do artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal, a identificação processualmente prestável das questões que delimitam o objecto do recurso, há que decidir sobre cada uma.

7. Primeira questão:
A improcedência do motivo invocado pelos recorrentes apresenta-se manifesta.
Como já decidiu a Relação, se o Ministério Publico deduziu acusação foi por considerar que os indícios que recolheu no inquérito quanto à existência de crime e determinação dos seus agentes eram suficientes, sendo, por isso, nesse limite, da inteira competência de decisão do respectivo magistrado o juízo que faça sobre a necessidade ou desnecessidade dos elementos recolhidos e dos indícios existentes no inquérito.

De todo o modo, mesmo que, em hipotético e longínquo juízo argumentativo, pudesse ser considerada a verificação da nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal, em processo penal vale o princípio do numerus clausus em matéria de nulidades e do respectivo regime de arguição: tal nulidade teria de ser arguida, nos termos do nº 3 do referido artigo 120º, até ao encerramento da instrução, ou, não tendo havido instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que encerrou o inquérito.
O tempo processual para suscitar a questão, mesmo neste extremo limite de hipótese, estaria, pois, há muito ultrapassado.

8. Segunda questão:
Em resumo, os recorrentes consideram que foi violado o princípio relativo às proibições de prova, por terem sido utilizadas contra eles as primeiras declarações prestadas perante os funcionários da Polícia Judiciária, sem terem sido constituído arguidos e sem a assistência de advogado.

A alegação, porém, e em primeiro lugar, não concretiza e não refere em que, como e quando é que tais elementos teriam sido utilizados contra os recorrentes.

Depois, e em interpretação processualmente razoável da finalidade com que este fundamento vem invocado, parece que os recorrentes sobrepõem dois planos, com regras próprias em matéria de prova: o plano da investigação, das variadas diligências realizadas segundo as leges artis para a procura, recolha e reunião de elementos de prova no inquérito destinados a fundamentar a decisão de deduzir acusação ou de arquivamento, e o plano do julgamento, com as regras sobre a produção da prova em audiência, e a consideração e valoração da prova para fundamentar a convicção do juiz.

No primeiro plano, são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei; no julgamento, apenas podem servir para formar a convicção do tribunal as provas produzidas ou examinadas em audiência, como dispõe o artigo 355º, nº 1, do Código de Processo Penal, ressalvando-se, nos termos do nº 2, as provas contidas em actos processuais cuja leitura era audiência seja permitida, nos termos dos artigos 356º e 357º do mesmo diploma.

As proibições de prova estão enunciadas no artigo 126º, nº 1, do referido diploma: «são nulas, não podendo ser utilizadas as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas». No catálogo das proibições não constam, porém, nem enquanto tais, nem integráveis em qualquer das espécies que revelem ofensa da integridade física ou moral das pessoas, as declarações referidas pelos requerentes.

Aliás, os requerentes, para além de não referirem em que, onde, quando e como é que, eventualmente, tais declarações teriam sido utilizadas, invocam consequências que nada têm que ver com o regime legal das provas, mas com a regularidade de actos de processo. A eventual ofensa das regras sobre proibições de prova apenas determina a nulidade das provas, que não podem, consequentemente, ser utilizadas, mas não uma nulidade do processo, que ocorre quando um acto, admitido ou obrigatório, não respeitou o modelo ou os requisitos previstos na lei, e tal consequência esteja expressamente cominada.

Como vem colocada, a questão, porém, não é de processo, mas de julgamento e valoração da prova.
Nesta dimensão, a alegação dos requerentes apenas teria razão de ser se as declarações que referem tivessem sido utilizadas na audiência, por interposto mediador, em violação do que dispõe o artigo 356º, nº 7, do Código de Processo Penal (cfr., entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 11 de Janeiro de 2001, rec. nº 2539/00, e de 7 de Fevereiro de 2001, rec. nº 4/00).

Mas nem os recorrentes alegam tal circunstância, sendo que a fundamentação da decisão sobre os factos claramente afastaria uma tal alegação: do que se refere na fundamentação resulta que tais elementos não tiveram qualquer influência na formação da convicção do tribunal, não tendo sido, consequentemente, utilizados contra os recorrentes.
Improcede, pois, este motivo de impugnação.

9. Terceira questão:
Tal como foi decidido pela Relação, este fundamento de impugnação suscitado pelos recorrentes também se apresenta improcedente.
O artigo 359º do Código de Processo Penal - disposição que os recorrentes consideram violada (conclusão 8ª) - , dispõe sobre alteração substancial dos factos, determinando, como regra, que não pode ser tomada em conta pelo tribunal.

Mas alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa.

É este o sentido da definição constante do artigo 1º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal para «alteração substancial dos factos», que se apresenta, assim, como um conceito normativamente formatado: «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».

A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Uma vez produzida a prova e fixados os factos provados, uma alegada diferença e o nível de extensão e intensidade que apresente, há-de ser avaliada pela consideração de dois módulos de circunstâncias: a acusação, ou a pronúncia, se a houver, de um lado, e os factos provados, de outro. E desta comparação não resulta, no caso, que os recorrentes tivessem sido condenados por crime diverso ou praticado em circunstâncias diferentes das que foram descritas na acusação.

Tal como vem referido, e por isso delimitado pela formulação das conclusões, os recorrentes não invocam a existência de qualquer modificação, substancial ou não, entre uns e outros factos, apenas se referindo, como se fosse um facto material, a uma consideração argumentativa da decisão na parte em que fundamenta a medida concreta das penas aplicadas.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.

10- Quarta questão:
As declarações produzidas por co-arguido não constituem um meio proibido de prova, não se enquadrando em qualquer das previsões do artigo 126º do Código de Processo Penal; não há, por isso, obstáculo legal à valoração de tais declarações em aplicação do princípio de livre apreciação da prova, nos termos do artigo 127º do mesmo diploma. (cfr., v. g., os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 12 de Fevereiro de 2003, proc. 4524/02, e de 19 de Fevereiro de 2003, proc. 4632/02). Por isso, as declarações prestadas por co-arguido, que decida livremente prestá-las, podem ser valoradas como meio de prova dentro dos poderes de livre apreciação, para a formação da convicção do juiz em termos probatórios, naturalmente ponderadas e avaliadas todas as contingências sobre a credibilidade que tais declarações comportem; o problema é, assim, de valoração e credibilidade da prova e não de prova proibida.

Mas, nesta dimensão, a questão releva inteiramente dos poderes das instâncias em matéria de facto, e os termos em que vem suscitada no recurso não referem a violação de qualquer norma pertinente em matéria de prova, nem qualquer norma, da extensa lista referida na conclusão 9ª, que contenda com direitos de um dos arguidos, o qual, no que está em causa, nem sequer é recorrente.

11- Quinta questão:
Neste motivo de impugnação, referido especificamente à matéria de facto (conclusão 12ª), os recorrentes não indicam qualquer norma violada. Por tal ausência, a invocação nem sequer poderia ser objecto de pronúncia pelo Supremo Tribunal.
Sempre se dirá, apesar disso, que o princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação inscrito no artigo 127º do Código de Processo Penal, impondo a orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos, e que nessa medida de imposição de sentido (pro reo) limita a liberdade de apreciação do juiz.

Porém, para poder ser apreciada e conhecida, a violação do princípio in dubio tem de resultar dos próprios termos da decisão recorrida, dada a limitação dos poderes de cognição do Supremo Tribunal às questões de direito.
Por isso, e neste limite de apreciação, não existe violação do princípio se dos termos das decisões das instâncias se não retirar que estas, colocadas perante uma dúvida sobre a prova, tenham optado por uma solução desfavorável ao arguido (cfr. acórdão do Supremo Tribunal, de 19 de Fevereiro de 2003, proc. 4632/02).

No caso, como se vê pela enunciação dos factos provados e pela respectiva fundamentação, das decisões recorridas não se extrai que as instâncias que as proferiram tenham sido, em algum momento, colocadas em estado de dúvida razoável sobre a prova.
Improcede, pois, este motivo de impugnação.

12.- Sexta questão:
Os recorrentes consideram que a decisão recorrida não teve devidamente em conta determinados factos favoráveis aos arguidos na fixação da medida da pena.
Pretendem, por outro lado e subsidiariamente, a aplicação de uma pena em medida que se aproxime do mínimo legalmente previsto, por considerarem ter havido erro na determinação da medida da pena.

Neste ponto, há que dizer que para a determinação da medida da pena o tribunal tem de se basear nos factos provados, e não nas conjecturas dos recorrentes sobre o que deveria, no seu entender, ter sido provado.

A decisão recorrida não permite, assim, a crítica que os recorrentes lhe formulam, uma vez que tomou em devida consideração todos os elementos relevantes para a determinação da medida da pena, desde logo as circunstâncias relativas à natureza e ao elevado grau de ilicitude do facto, quer pela logística revelada, quer pela natureza da actividade, e pelo risco, muito extenso, de difusão em larga escala, considerando a quantidade do produto estupefaciente apreendido.

Por outro lado, sendo intenso o dolo, as condições pessoais dos recorrentes, que constam dos factos provados, não permitem integrar elementos de consideração favorável.
Todos, pois, elementos suficientes e a apontar para a justeza da aplicação pela decisão recorrida dos critérios legais na fixação da pena aplicada aos recorrentes.

13.- Sétima questão:
Os recorrentes alegam que a circunstância de o tribunal ter considerado factos que não foram objecto de prova, e que não resultam do texto da decisão condenatória da primeira instância, para determinar a medida da pena aplicada, integra ofensa do princípio da proibição da dupla valoração da conduta de agente, em violação dos artigos 124º, nº 1, do Código de Processo Penal, e 71º do Código Penal.

A invocação constitui, aliás, um outro modo de recolocar questão (a terceira questão - conclusões 7ª e 8ª) já abordada.
Todavia, os elementos referidos, que os recorrentes designam ou identificam como "factos", não constituem circunstâncias ou elementos de facto, nem no sentido da realidade das coisas, nem na perspectiva processualmente relevante.

Factos são acontecimentos, ocorrências, situações, qualidades, preexistentes ou consequentes a um comportamento ou actividade humana, referidos à natureza, às coisas ou às pessoas, materiais ou pessoais, e que se inscrevem e apresentam na realidade externa de modo identificável; quando tais acontecimentos, situações, ou qualidades sejam juridicamente relevantes, constituem elementos de necessária conformação processual.

Porém, nesta dimensão, não são factos, porque não constituem acontecimentos, situações, ocorrências ou qualidades, tudo quanto constitua juízos lógicos e valorativos que, em dedução permitida ou imposta pelas regras da experiência ou pela normalidade das coisas, derivam de acontecimentos materiais ou qualidades pessoais anteriormente comprovadas.

São ainda factos as inferências que se retiram de outros factos tanto quanto o permitem as regras da experiência que estão na base de uma presunção, isto é, quando de um facto conhecido se firma um facto desconhecido; não são já factos, neste sentido e no sentido processualmente relevante, as conclusões da ordem das valorações que ao juiz é permitido retirar dos factos provados e que utiliza como módulos do processo argumentativo e fundador da decisão.

Nesta compreensão, tudo quanto os recorrentes referem como sendo factos que não resultam do texto da decisão, não são mais do que juízos de lógica derivação, que as regras da experiência impõem e o tribunal retirou dos factos provados; o tribunal, no processo decisório, nada acrescentou ou completou em relação aos factos provados.

A decisão recorrida, nos fundamentos para a determinação da medida da pena, não se socorreu, pois, de factos que não tivessem sido provados.
Não se vê, pois, onde reside o fundamento com que os recorrentes pretendem situar qualquer violação das disposições referidas, que definem o objecto de prova («todos os factos juridicamente relevantes [...] para a determinação da pena»), e os critérios de determinação da pena. O artigo 124º, nº 1, do Código de Processo Penal, é uma norma geral de enquadramento e definição do objecto de prova; como tal, não parece susceptível de violação autónoma, sem ligação com as imposições, já da ordem substancial, quanto à suficiência ou insuficiência para a decisão. E no que respeita ao artigo 71º do Código Penal, os recorrentes não especificam os motivos da invocada violação.
Improcede, pois, também este fundamento de impugnação.

14- Oitava questão:
Por fim, os recorrentes encontram uma contradição entre os factos constantes dos pontos 4 e 5 do acórdão condenatório, e os pontos 5.5 dos factos não provados, o que determinaria a nulidade decorrente do vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal.

Na compreensão dos recorrentes, a contradição estaria na circunstância de «se não se provaram os factos relativos às paragens e aos movimentos dos arguidos, não se pode considerar provado que tenham trazido de Espanha no veículo CA qualquer haxixe para Portugal».
A questão tem, assim, a ver com os factos e com a coerência interna da matéria de facto.

Sucede, porém, que tendo os recorrentes interposto recurso para a Relação, em que suscitaram divergências, incluindo a que agora retomam, relativas à matéria de facto, e tendo a Relação, no exercício da sua competência de reapreciação, decidido sobre tais questões relativas à matéria de facto, esta tem de ser considerada como assente, não podendo os recorrentes retomar tal questão no recurso para o Supremo Tribunal, restrito que está à reposição da matéria de direito.
É o que resulta da interpretação conjugada dos artigos 432º, alínea d), e 434º, do Código de Processo Penal (cfr., v. g., o acórdão deste Tribunal, de 25 de Janeiro de 2001, na C. J., Ano IX, Tomo I, 2001, pág. 22).

15. Os recorrentes referem, a título derivado, a inconstitucionalidade de (conjuntos) de normas do processo penal, se forem interpretadas e aplicadas em sentido divergente daquele que defendem, solicitando a declaração da (consequente) inconstitucionalidade.
Relativamente a esta matéria, e em primeira aproximação ao pedido dos interessados, haverá que considerar tal pedido de imediata improcedência.

Com efeito, os recorrentes pedem que seja "declarada" a inconstitucionalidade de normas processuais que referem, por ofensa de determinados preceitos constitucionais. A função de declaração da inconstitucionalidade de normas é, porém, da competência do Tribunal Constitucional, como dispõe o artigo 281º, nº 1, alínea a), da Constituição e o artigo 66º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (Lei de Organização e Processo do Tribunal Constitucional). Mesmo o julgamento de inconstitucionalidade de uma norma (que conceptualmente é diverso da declaração de inconstitucionalidade) pertence à competência do Tribunal Constitucional - artigo 28ºº, nº 1, alíneas a) e b), da Constituição, e artigo 80º da Lei nº 28/82.

Em matéria de (in)constitucionalidade, a intervenção dos tribunais, na sua função de controlo difuso de constitucionalidade, não integra qualquer competência de declaração da inconstitucionalidade, mas apenas a competência para não aplicar (desaplicar, na formulação da jurisprudência e doutrina constitucionais) uma norma com fundamento em inconstitucionalidade. Por isso, não é função dos tribunais demonstrar a conformidade constitucional das normas que apliquem, mas apenas identificar e justificar os motivos que determinem, em dado caso, a desaplicação de uma norma com fundamento em inconstitucionalidade.

Logo por aqui - e os recorrentes, quando as noções são determinantes, devem utilizar os termos que empregam em sentido de rigor conceptual - o pedido dos recorrentes teria de improceder, pois não compete a este Supremo Tribunal declarar a inconstitucionalidade de normas.

Os recorrentes, porém, não invocam qualquer fundamento para as inconstitucionalidades que alegam (violação das garantias de defesa e do princípio acusatório - artigo 32º, nºs 1, 3 e 5, da Constituição), limitando-se a formulações genéricas e simplesmente afirmativas, que não podem constituir fundamentação mínima para sustentar um recurso.
Não obstante a ausência de fundamentação, e ex abundanti, deverá salientar-se que a disponibilidade de todas as garantias de defesa (artigo 32º, 1, da Constituição) significa que, no respeito pela ordenação própria do processo, o arguido deve ter a possibilidade razoável de utilizar todos os meios e faculdades processuais, disponíveis e admissíveis, que entenda úteis ou necessários à sua defesa. Os recorrentes, no entanto, não referem qualquer acto, processualmente previsto e que lhes pudesse ser favorável, que tenha sido omitido, ou que lhes tenha sido recusado, ou que não pudessem ter praticado no exercício dos seus direitos de defesa.

Por outro lado, não foi negada aos requerentes, em nenhum momento, a possibilidade de nomear advogado, nem invocaram dificuldades que obrigassem à nomeação de um defensor. E, de todo o modo, não alegam falta de assistência de defensor nos casos e para os actos em que a lei a considera obrigatória. Não existe, consequentemente, violação do artigo 32º, 3, da Constituição.

Também sempre foi respeitada a estrutura acusatória do processo, com o sentido imposto pelo artigo 32º, 5, da Constituição - diferenciação completa entre as funções de acusação e de julgamento - , e os recorrentes não alegam, por outro lado, que tenha sido afectado o exercício do contraditório. E de qualquer modo, e como foi referido e se decidiu, falha, logo no plano dos meros pressupostos de integração, a hipótese que os recorrentes entendem fazer integrar como ofensa do princípio acusatório - conclusões 7ª e 8ª, e 3ª questão decidida.

16. Recurso de A:
O recorrente, fundamentando-se na qualificação da sua actuação como cúmplice, nas suas condições pessoais, comportamento anterior e posterior, e no que entende serem os melhores objectivos de reinserção, pretende que a pena em que vem condenado seja reduzida e a execução suspensa, ou, se assim se não entender, e for mantida a medida da pena que lhe foi aplicada, que esta seja suspensa na sua execução.

O recorrente vem condenado por cumplicidade na prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, qualificação que o recorrente aceita e que corresponde adequadamente aos factos provados.

Na fixação da pena dentro dos limites da moldura aplicável, o tribunal está vinculado, nos termos do artigo 72°, n° l, do Código Penal, a critérios definidos em função da culpa do agente (culpa como limite inultrapassável) e de exigências de prevenção.
Nesta determinação, o juiz deve atender a todas as circunstâncias que possam ser consideradas a favor ou contra o agente, entre as quais as que estão exemplificativamente enunciadas nas alíneas a) a f) do n° 2 do artigo 72º do Código Penal.
Elementos de referência na determinação da pena são o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências. Neste aspecto, a ilicitude do facto no caso sub judice, dentro da projecção possível das hipóteses que podem caber numa actuação integrada no âmbito da cumplicidade, deve ser considerada de média gravidade, já que - como se refere no acórdão recorrido - o recorrente, «ciente da natureza» do negócio da droga e «da sua proibição legal», aproximou as partes no "negócio", contribuindo, embora em medida não intensamente relevante, para a prática de factos com acentuada danosidade social pelo risco que determinam para valores comunitários essenciais.

O dolo, por seu lado, é directo, uma vez que o recorrente quis agir pela forma como procedeu, sabendo que com a sua atitude facilitaria a prática do crime. Pretendia, além disso, obter vantagens económicas, embora não venha provado de que montante ou relevância.

No que respeita, por seu lado, a circunstâncias que deponham em favor de recorrente, relevam o facto de não se manifestar algum episódio anterior com consequências a nível criminal, ter uma vida familiar e profissional estabilizada, vivendo com a companheira e dois filhos pequenos, e estar empenhado no desenvolvimento de um projecto de actividade agrícola, após a frequência de curso de formação profissional.

Deste modo, tendo em consideração o grau de ilicitude do facto e a moldura penal atenuada aplicável ao modo de comparticipação de recorrente, a medida da pena fixada pelo acórdão recorrido está determinada com justo critério e rigor, e é simultaneamente adequada para garantir as exigências de prevenção geral e a manutenção da confiança da comunidade na validade das normas em matéria com relevante incidência e preocupação social, e para prover à prevenção especial de socialização e à recomposição, inteiramente realizável em juízo prognóstico, da vivência social do recorrente.
Mantém-se, assim, a pena de três anos de prisão.

17. O recorrente pretende a suspensão da execução da pena.
A suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos deve ter lugar, nos termos do artigo 50º do Código Penal, sempre que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, for de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas.

A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão.

Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.

Por fim, a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.

Como resulta dos factos provados, o recorrente tem actualmente uma vida relativamente estabilizada, com responsabilidades familiares relativamente a dois filhos em idade infantil, dedicando-se a actividade agrícola de exploração de um pomar de citrinos, no desenvolvimento de um projecto agrícola subsidiado.

A integração social e económica indiciada pelo exercício de uma actividade laboral e a vinculação familiar, revelam características de comportamento e da personalidade do recorrente que devem ser positivamente avaliadas, permitindo um juízo de prognose favorável sobre a sua vontade e capacidade para compreender a censura do facto e o sentido da condenação, e para no futuro responder às expectativas de uma vida pautada pelo respeito dos valores comunitários axiais cuja violação constitui crime, procurando uma desejável inclusão social com realização pessoal e comunitária.

Também o tempo entretanto decorrido desde a prática dos factos (cerca de quatro anos e meio), com boa conduta, acentua a necessidade de evitar, na maior medida possível, os factores de exclusão potenciados por uma pena efectiva, diminui a carência de uma medida desta natureza, e reforça o juízo de prognose favorável pressuposto à suspensão da execução da pena.

Por outro lado, a perspectiva de vida em liberdade, acompanhada da censura do facto traduzida na condenação e na ameaça da execução da pena, constituirá uma injunção forte e responsabilizadora para determinar um comportamento e uma forma de vida respeitadora daqueles valores comunitários, respondendo melhor do que a prisão às exigências de prevenção especial de ressocialização, sem desrespeito pelas fundamentais e razoáveis imposições de prevenção geral, melhor acauteladas com a preservação das mais adequadas perspectivas de reinserção social.

Estão, assim, preenchidos os pressupostos da suspensão da execução da pena, que, nos termos do artigo 50º do Código Penal, se fixa por um período de quatro anos.

18. Nestes termos acordam em:

a) Negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos B e C;
b) Conceder provimento ao recurso do arguido A, suspendendo a execução da pena pelo período de quatro anos, nos termos do artigo 50º do Código Penal.
Os recorrentes B e C pagarão a taxa de justiça de cinco UCs.

Lisboa, 15 de Outubro de 2003
Henriques Gaspar (relator)
Antunes Grancho
Políbio Flor