Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1550/06.0TBSTR.E1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
CONTRATO INOMINADO
RESOLUÇÃO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
SUCUMBÊNCIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 11/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO DA RÉ, NEGADA A REVISTA DO AUTOR
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / ATOS PROCESSUAIS – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO AMPLIADO DA REVISTA.
DIREITO CIVIL – LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / FORMA / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES EM GERAL / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATO-PROMESSA / RESOLUÇÃO DO CONTRATO / ANTECIPAÇÃO DO CUMPRIMENTO, SINAL / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / MORA DO DEVEDOR.
Doutrina:
-Antunes Varela, M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, revista e actualizada, 687;
-Ferrer Correia, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, Colecção Teses, Almedina, 14 e 15;
-Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral Tomo I, 1999, 478, 479 e 483;
-Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1980, 423.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 138.º, N.ºS 1 E 2, 139.º, N.º 4, 140.º, 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, ALÍNEA C), 627.º, N.º 1, 629.º, N.º 1, 635.º, N.º 3, 638.º, N.º 1, 671.º, N.º 3 E 690.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 221.º, 236.º, N.º 1, 238.º, N.ºS 1 E 2, 342.º, N.º 1, 410.º, N.º 1, 432.º, N.º 1, 441.º, 442.º, N.º 2, 804.º, 805.º E 808.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 205.º, N.º 2.
LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS (LOFTJ), APROVADA PELA LEI N.º 3/99, DE 03-01, ALTERADA PELA LEI N.º 42/2005, DE 29-08: - ARTIGO 24.º, N.º 1.
DL N.º 303/2007, DE 24 DE AGOSTO, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI N.º 41/2013, DE 26 DE JUNHO: - ARTIGOS 5.º, N.º 1, 7.º, N.º 1 E 8.º.
Sumário :
I - Salvo os casos excepcionais expressamente contemplados na lei, a admissibilidade do recurso ordinário depende da verificação cumulativa de um duplo requisito: (i) a causa ter valor superior à alçada do tribunal de que se recorre; e (ii) a decisão impugnada ser desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão (art. 629.º, n.º 1, do CPC).

II - Restringindo a ré o seu recurso de revista, autónomo e independente do recurso do autor, à condenação no pagamento de € 2 941,24 acrescida de juros de mora desde a citação, sendo esta quantia manifestamente inferior a metade da alçada do tribunal da Relação – que, à data da propositura da acção, estava fixada em € 14 963,94 (art. 24.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 03-01, na versão da Lei n.º 42/2005, de 29-08) –, o recurso é legalmente inadmissível.

III - A causa de nulidade da decisão prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, como é pacificamente aceite na doutrina e na jurisprudência, só ocorre quando exista absoluta falta de fundamentação, seja quanto aos fundamentos de facto, seja quanto aos fundamentos de direito.

IV - Vem sendo uniformemente entendido pelo STJ que os seus poderes de cognição no domínio da interpretação dos negócios jurídicos estão circunscritos à determinação do sentido normativo da declaração negocial, com recurso aos critérios fixados nos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do CC, por tal envolver conhecimento de matéria de direito, estando-lhe vedado o apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes por esta constituir matéria de facto da exclusiva competência das instâncias.

V - Estando em causa um negócio formal, uma vez que foi adoptada a forma escrita (art. 221.º do CC), deve observar-se na sua interpretação a regra especial inserta no art. 238.º, n.º 1, do CC, segundo a qual “a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, excepto quando esse sentido corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a essa validade” (art. 238.º, n.º 2, do CC).

VI - O acordo no qual as partes clausularam que “1º A primeira outorgante é revendendor(a) nas freguesias de (…), para o ramo do comércio constituído por gases liquefeitos do petróleo (…) da companhia CC…, S.A.. e que 2.º Pelo presente contrato promessa a primeira outorgante promete ceder pelo preço de (…) ao segundo (…) os direitos de “revendedor” (…) assim como um computador, um ecrã, uma impressora, uma secretária, duas cadeiras, um vasilhame, Toyota mato RN-...-..., Renault Kangoo mato ...-...-ZI, um expositor” é de qualificar juridicamente como promessa de celebração de contrato inominado, no caso, de cedência de direitos de “revendedor” de gases liquefeitos do petróleo, no qual o autor figura como promitente-cessionário e a ré como promitente-cedente.

VII - Na ausência de outros elementos interpretativos coadjuvantes e desconhecendo-se a vontade real das partes, não pode o referido acordo ser qualificado como contrato-promessa de cessão de estabelecimento comercial (na acepção de um complexo de elementos corpóreos e incorpóreos organizados e aptos ao exercício de uma concreta actividade comercial) já que este pressuporia a cessão da exploração de todos os elementos que o integram, designadamente a loja onde o mesmo funcionava.

VIII - Tendo o autor entregue à ré, em execução do contrato, a quantia de € 40 000 a título de sinal, devendo ser pagos € 20 000 em 14-06-2015 e o remanescente logo que o empréstimo bancário por si pedido lhe fosse concedido ou até 31-12-2015, sem que o autor, apesar de sucessivamente interpelado para esse efeito, tenha entregue à ré a referida quantia de € 20 000 na data prevista ou ulteriormente, a sua mora converteu-se em incumprimento definitivo, posto que as comunicações que a ré lhe dirigiu consubstanciaram verdadeira interpelação admonitória (arts. 410.º, n.º 1, 441.º, 804.º, 805.º, e 808.º, do CC).

IX - O facto de a ré ter entrado, durante a noite, cinco dias antes do prazo limite que tinha fixado ao autor para pagamento da prestação em falta, na loja acima referida e de se ter apropriado do computador e das pastas dos clientes que aí se encontravam, impedindo o autor de aí entrar e dizendo que o contrato ficava sem efeito, não anula o comportamento omissivo do autor na satisfação da contraprestação a que estava vinculado, traduzindo, no contexto provado, uma antecipação dos efeitos daquela falta de cumprimento, tanto mais que o mesmo não alegou, nem provou, que tivesse oferecido à ré o pagamento em falta dentro do prazo razoável que lhe foi fixado.

X - Havendo incumprimento definitivo imputável ao autor, a resolução do contrato-promessa levada a cabo pela ré apresenta-se como legítima (arts. 808.º, e 432.º, n.º 1, do CC).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório:


  AA propôs, em 7 de Junho de 2006, a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra BB, pedindo a sua condenação no pagamento do quantia de € 91.870,64, acrescida de juros de mora desde a data da citação até pagamento, com fundamento no incumprimento de um contrato-promessa de «transmissão de estabelecimento comercial» celebrado por ambos em finais de Dezembro de 2004.

      Para fundamentar a sua pretensão alegou, em suma, que aquele contrato visava a transmissão para o autor do estabelecimento comercial de revenda de gás da ré, com o respectivo equipamento, mobiliário, veículos e stock de garrafas de gás, pela quantia de € 174.579,26, tendo sido formalizado, em Março de 2005, através de um contrato-promessa, nos termos do qual pagou à ré a quantia de 40.000,000€, a título de sinal e princípio de pagamento, obrigando-se a efectuar um reforço de € 20.000,00, em 14 de Junho de 2005, e a pagar do remanescente do preço - € 114.579,26 - logo que obtivesse empréstimo bancário ou até 31 de Dezembro do mesmo ano, quantias que lhe seriam restituídas em singelo pela ré se a CC não autorizasse o negócio.

Mais alegou que a partir de 15 de Março de 2005 os clientes do estabelecimento começaram a ser fornecidos por um antigo funcionário do mesmo, praticando preços mais baixos, o que diminuiu as receitas do estabelecimento e o impossibilitou de pagar o reforço do sinal, e que foi sucessivamente interpelado pela ré, por cartas, para efectuar o pagamento em falta, na última das quais, datada de 19 de Julho de 2005, lhe comunicou que se o mesmo não fosse efectuado até ao dia 25 de Julho de 2005 perderia o interesse na prestação e consideraria incumprida a obrigação.

Porém, no dia 20 de Julho de 2005, durante a noite, a ré invadiu o estabelecimento, retirou dali o computador e as pastas dos clientes, apropriou-se da mercadoria existente e dos critérios sobre clientes, impedindo o autor de lá entrar e dizendo que o contrato ficava sem efeito a partir dali, conduta que configura o incumprimento do contrato pela ré e lhe confere o direito a receber desta o dobro do sinal entregue (€ 80.00,000), bem como o valor da mercadoria que adquiriu (€ 2.941,24) e dos créditos sobre clientes resultantes de revendas de gás que fez enquanto esteve na posse do estabelecimento (€ 8.929,40).

A ré contestou por impugnação, alegando que prometeu vender ao autor os direitos de revendedor, ou seja, transmitir-lhe a sua posição contratual no contrato celebrado com a CC, bem como os bens elencados no contrato-promessa, que o autor incumpriu culposamente ao não efectuar o pagamento do reforço do sinal na data acordada nem posteriormente, apesar das cartas que lhe enviou, pugnando pela improcedência da acção.

Deduziu reconvenção com fundamento em que o incumprimento do autor a levou a perder interesse no contrato prometido e a resolver o contrato-promessa por carta de 26 de Julho de 2005, pedindo a condenação do autor no pagamento de indemnização por danos patrimoniais no montante de € 127.879,26, resultantes do não recebimento do reforço do sinal e do remanescente do preço acordado. Subsidiariamente, pediu a condenação do autor na perda do sinal prestado, no valor de € 40.00,00, e no pagamento de indemnização no montante de € 15.000,00 por danos não patrimoniais resultantes da ofensa do seu bom nome e reputação, comercial e pessoal.

O autor apresentou réplica, na qual impugnou a factualidade alegada pela ré relativa ao incumprimento definitivo do contrato-promessa e consequente perda de interesse da ré no cumprimento em face da mora no pagamento do reforço do sinal, alegando ter pago à ré, desde que tomou posse do estabelecimento, uma renda mensal de € 250,00 como contrapartida pelo gozo do estabelecimento prometido transmitir.

Pediu ainda a condenação da ré como litigante de má-fé, em multa e indemnização no valor de € 2.000,00, acrescida dos honorários ao mandatário e custas.

A ré apresentou tréplica, pugnando pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má-fé.


No saneador foi rejeitada a reconvenção quanto aos pedidos de condenação do autor no pagamento da quantia de € 127.679,26 pela perda do valor do negócio e de indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 15.000,00 e admitida quanto ao mais.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte teor:

«(…) julgo:

a) Esta acção totalmente procedente e condeno a ré a pagar ao autor a quantia de € 91.870,64 (noventa e um mil oitocentos e setenta euros sessenta e quatro cêntimos), acrescida de juros moratórios vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa legal;

b) O pedido reconvencional totalmente improcedente e dele absolvo o autor;

c) Improcedente o pedido de condenação da ré como litigante de má-fé».


A ré, inconformada, interpôs recurso de apelação.

O Tribunal da Relação de … proferiu acórdão de não admissão do recurso com fundamento em que as conclusões apresentadas eram absolutamente deficientes, deficiência insusceptível de ser sanada através de aperfeiçoamento, nos termos do artigo 639º nº 3 do Código de Processo Civil.

Interposto recurso de revista, decidiu este Supremo Tribunal de Justiça revogar aquela decisão no segmento em que rejeitou o recurso de apelação e determinar a baixa dos autos à Relação, a fim de ser formulado convite de aperfeiçoamento das conclusões da alegação de recurso, nos termos do disposto no artigo 685º-A do Código de Processo Civil, na redacção do DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, (actual artigo 639º).

Dando cumprimento ao assim determinado, proferiu o Tribunal da Relação de … novo acórdão, em 12 de Janeiro de 2017, no qual julgou a apelação procedente e revogou a decisão recorrida, julgando a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou «a ré a pagar ao autor a quantia de € 2.941,24, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, à taxa legal, absolvendo a mesma do restante peticionado.

Mais se julga procedente a reconvenção, declarando o incumprimento definitivo do contrato-promessa pelo autor, com a consequente perda do sinal».


Irresignado, recorreu o autor de revista.

Na sua alegação formulou as seguintes conclusões (sic):

a) A racionalidade especificamente jurídica oferece-nos parâmetros de interpretação e racionalização que têm de ser consentâneos com a realidade que esteja sob escrutínio.

b) Se no contrato se encontra positivado que não é apenas transmitido o direito à revenda dos produtos de gás liquefeito, mas também um computador, um ecrã, uma impressora, uma secretária, duas cadeiras, um vasilhame, Toyota mat. RN-…-…, Renault Kangoo mat. …-…-ZI, um expositor, não se revela prudente concluir que o autor iria utilizar aqueles bens móveis na rua ou mesmo em outro estabelecimento comercial, dado que faziam parte integrante da "loja".

c) Se o contrato-promessa tinha como objecto "ceder pelo preço de €174.579,26 (…) ao segundo outorgante (ora autor) dos direitos de "revendedor", assim como, um computador, um ecrã, uma impressora, uma secretária, duas cadeiras, um vasilhame, duas viaturas e um expositor, é de interpretar o contrato-promessa como sendo um contrato-promessa de cessão de exploração.

d) Ademais, tendo ficado provado que os pagamentos efectuados pelo autor a 17 de Janeiro de 2005 e em 19 de Janeiro de 2005 correspondiam ao valor da mercadoria em stock, temos necessariamente de depreender que o stock foi vendido pelo autor aquando da exploração da "loja". Nenhuma das testemunhas rumou no sentido de não ser o autor que geria o negócio com carácter exclusivo, encomendando e vendendo gás por sua conta e risco, no lapso temporal referido nos autos, muito pelo contrário.

e) Logo, ao se qualificar juridicamente um contrato atendendo apenas ao que se encontra exarado no mesmo, ignorando, consequentemente, a intenção das partes aquando da sua outorga e os actos praticados na vigência estamos perante uma questão puramente jurídica que merece ser atendida pelos VENERANDOS CONSELHEIROS.

f) O princípio da primazia da realidade diz-nos essencialmente que não podemos manipular ilicitamente a qualificação da relação. Logo, revela-se imperioso proceder à interpretação do negócio jurídico em causa, dado que do mesmo não resulta de forma clara e inequívoca, a sua subsunção a um determinado regime jurídico.

g) A compreensão e assimilação do conteúdo das declarações negociais vertidas num contrato é uma actividade intelectiva que se deve efectuar de acordo com os critérios delineados, em especial no art. 236.° do CC - que consagra a denominada teoria da impressão do destinatário - que se podem resumir assim: as declarações devem valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratório, deve entendê-la, desde que no documento esse sentido encontre um mínimo de correspondência. O declaratário é obrigado a investigar, num plano de boa fé e tendo em consideração todas as circunstâncias por ele sabidas ou cognoscíveis, o que o declarante quis; este, por seu lado, é também obrigado pela boa fé a deixar valer a declaração no sentido que o declaratário, mediante cuidadosa verificação, tinha de atribuir-lhe.

h) Todavia, na interpretação de um contrato deve buscar-se não apenas o sentido de declarações negociais separadas e alheadas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo, como acção de autonomia privada e como globalidade da matéria negociada ou contratada'. A normalidade do declaratário legalmente apontada implica, por um lado, a capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, e, por outro lado, o zelo para acolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, contribuam para a descoberta da vontade real do declarante. Nesses elementos inserem-se: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras que antecederam a sua celebração ou são contemporâneas destas; as negociações entabuladas; a finalidade prosseguida pelas partes; o próprio tipo negocial; a lei, os usos e os costumes por ela recebidos. Para além destes elementos, também releva a posição assumida pelas partes na concretização do negócio. Esta não pode, na verdade, deixar de, razoavelmente, corresponder ao que as partes entendem ser os direitos e as vinculações que para cada uma delas emergem do negócio.

i) Considera-se que foi violado o disposto no artigo 236.°, 237.°, 238.° do CPC, aquando da apreciação, interpretação e qualificação do contrato-promessa celebrado entre Autor e Ré pelo douto Tribunal da Relação de ….

j) O Acórdão recorrido, pelo facto de carecer de fundamentação, quer no plano da fundamentação fáctica quer do direito padece de nulidade, nos termos do artigo 615.°, n.° 1 al. c) do CPC, violando, consequentemente o previsto no n.° 2 do artigo 205.° da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que e nos mais de direito deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, revogada a decisão recorrida, proferindo-se douto acórdão que reponha a decisão de 1ª instância».


      Recorreu também a ré do segmento decisório do mesmo acórdão que lhe foi desfavorável, ou seja, que a condenou a pagar ao autor € 2.941,24, acrescidos de juros de mora à taxa legal vencidos e vincendos desde a data da citação até integral pagamento.

     Alegou e formulou a respectiva síntese conclusiva da qual se extraem, em resumo, como questões relevantes a decidir saber se:

- tem, no caso, aplicação o instituto do enriquecimento sem causa;

- e, na afirmativa, se estão preenchidos os respectivos pressupostos, em particular, a falta de «causa justificativa» exigida pelo disposto no artigo 473º do Código Civil.

       A ré suscitou ainda a inadmissibilidade do recurso do autor com fundamento na sua extemporaneidade.

O autor respondeu, procurando demonstrar a tempestividade da interposição do recurso.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


    II. Fundamentos:

        De facto:

        O Tribunal da Relação, após conhecimento da impugnação da decisão fáctica, teve por provados os seguintes factos:

1. Por documento escrito, datado de 8 de Março de 2005, intitulado "Contrato- Promessa" e subscrito pelo autor, como segundo outorgante, e pela ré, como primeira outorgante, as partes declararam, além do mais, o seguinte:

"1° A Primeira outorgante é revendedor(a) nas freguesias de Almeirim, Benfica do Ribatejo, Fazendas de Almeirim e Raposa, para o ramo do comércio constituído por gases liquefeitos do petróleo, com exclusão dos fornecimentos e granel, da companhia "CC- Comércio de Combustíveis e Lubrificantes, SA".

2° Pelo presente contrato promessa a primeira outorgante promete ceder pelo preço de € 174.579,26 (cento e setenta e quatro mil, quinhentos e setenta e nova euros e vinte e seis cêntimos) ao segundo outorgante dos direitos de "revendedor" consubstanciados no aditamento ao contrato efectuado em 1 de Julho de 2004 entre a S.A., assim como, um computador, um ecrã, uma impressora, uma secretária, duas cadeiras, um vasilhame, Toyota mato RN -…-…, Renault Kangoo mato …-…-ZI, um expositor.

3° O preço acima mencionado de € 174.579,26 (cento e setenta e quatro mil, quinhentos e setenta e nova euros e vinte e seis cêntimos), será pago pelo Segundo Outorgante, conforme infra:

A) Nesta data € 40.000.00 (quarenta mil euros) de que aqui se dá a competente quitação.

B) No dia 14 de Junho de 2005, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros).

C) O remanescente do preço de € 114.579,25 (cento e catorze mil, quinhentos e setenta e nova euros e vinte e seis cêntimos), logo que o empréstimo bancário pedido para tal pelo segundo outorgante, lhe seja concedido, ou até 31 de Dezembro de 2005.

4° O presente contrato é feito no pressuposto de que a CC- Portugal SA admite a cedência dos direitos supra mencionados, pois que, caso a CC-Portugal, SA, venha por qualquer forma ou meio a não admitir ou autorizar a cedência dos direitos, a Primeira Outorgante obriga-se a restituir ao Segundo Outorgante, em singelo, o montante recebido até à data."

2. No dia 14 de Junho de 2005, o autor não pagou à ré o montante de € 20.000,00.

3. Em 17 de Junho de 2005, a ré enviou uma carta ao autor da qual constava, além do mais, o seguinte: "Por Contrato-Promessa realizado em 08/Março/2005 entre a minha pessoa e V. Exa ficou V. Exa obrigado a pagar-me no dia 14/Junho/2005, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros) à minha pessoa, conforme estipulado na cláusula 3a alínea B) do contrato promessa que celebrei com V. Exa em 08/Março/2005."

4. Em 6 de Julho de 2005, a ré enviou uma carta ao autor da qual constava, além do mais o seguinte: "Na sequência da M/carta de 17/Junho/2005, venho mais uma vez insistir junto de V. Exa para que proceda ao imediato pagamento de € 20.000,00 (vinte mil euros) à minha pessoa conforme estipulado na cláusula da 3a alínea B) do contrato promessa que celebrei com V. Exa em 08/Março/2005. Caso V. Exa não proceda ao imediato pagamento de € 20.000,00 (vinte mil euros) conforme atrás solicitado; reservar-me-ei ao direito de proceder conforme de direito for, nomeadamente interpor contra V. Exa a competente acção judicial e tomar as providências que considerar necessárias e suficientes para a defesa dos meus direitos."

5. Em 19 de Julho de 2005, a ré enviou uma carta ao autor da qual constava, além do mais, o seguinte:

"Apesar das minhas cartas endereçadas a v. Exa de 17/Junho/2005 e 6/Julho/2005, V. Exa. Não me pagou a quantia a que estava obrigado por contrato-promessa que realizámos em 8/Março/2005.

Além de que V. Exa não se dignou a responder por qualquer forma ou mero às aludidas cartas, nem se dignou a pagar-me. Porque assim é, sou a informar V. Exa que, caso não proceda ao pagamento de € 20.000,00 (vinte mil euros) - solicitados nas m/cartas de 17/Junho/2005 e 6/Julho/2005 e respeitantes ao estabelecido na cláusula 3a alínea B) do contrato-promessa que celebrei com V. Exa em 08/Março/2005 - até ao próximo dia 25/07/2005 (inclusive); perderei o interesse que tinha na susodita prestação, considerando-se para todos os efeitos legais ou outros como não cumprida a obrigação. Isto é, caso V. Exa até ao dia 25/07/2005 (inclusive) não me pague os € 20.000,00 (vinte mil euros), respeitantes ao estabelecido na cláusula 3a alínea B) do contrato-promessa que celebrei com V. Exa em 8/Março/2005, perderei o interesse que tinha na susodita prestação, considerando-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação."

6. Em 26 de Julho de 2005, a ré enviou uma carta ao autor da qual constava, além do mais, o seguinte: "Na sequência das minhas cartas 17/Junho/2005; 6/Julho/2005 e 19/Julho/2005 e, uma vez que V. Exa. não procedeu ao pagamento de € 20.000,00 (vinte mil euros) que estava obrigado por contrato promessa que realizámos em 8/Março/2005, apesar das várias cartas que lhe escrevi e de que não obtive qualquer resposta da sua parte, seja de que natureza for, sou a comunicar-lhe que perdi o interesse que tinha na susodita prestação, considerando-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação a que vexa estava obrigado. É assim que o não pagamento por parte de V. Exa da quantia a que estava obrigado e na data constante no contrato-promessa; bem assim como o não pagamento no prazo que razoavelmente lhe foi conferido (carta de 19/Julho/2005), concedeu-me o direito, com todas as consequências legais e contratuais, tanto mais que, e esta é outra razão invocada, a cedência deixou de ter interesse para mim, por não poder realizar o capital no tempo previsto, e ter, por isso perdido uma boa oportunidade de negócio que tinha projectado."

7. Em 29 de Julho de 2005, O Mandatário do autor enviou uma carta à ré da qual constava, além do mais o seguinte: "E, somos a dizer que, o n/ constituinte não procedeu ao pagamento da quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), conforme referido na v/correspondência de 19 do corrente, por quanto Va Exª, antes daquela data, abusiva e intempestivamente, expulsou o n/constituinte do estabelecimento, apropriando-se inclusivamente de bens que bem sabia não serem de sua propriedade, sendo certo que tal conduta, causou um mau estar muito grande naquele e bem assim foi o objecto de diversos comentários públicos. Pelo que, face a tal situação, não poderia o n/constituinte continuar com o negócio que ficou muito prejudicado com a conduta de Vª Ex"ª e a forma como a mesma foi efectuada."

8. Em 17 de Janeiro de 2005, o autor pagou à ré a quantia de € 2.138,00 e em 19 de 2015 a quantia de € 2.806,19, montantes que correspondiam ao valor da mercadoria em stock (arts. 2.°, 3.° e 4.°).

9. A partir de 15 de Março de 2005, as freguesias de Almeirim, Benfica do Ribatejo, Fazendas de Almeirim e Raposa começaram a ser abastecidas de gases liquefeitos da CC - Comércio de Combustíveis e Lubrificantes, SA, por um antigo empregado da ré, com prática de preços muito mais baixos, o que fez com que os clientes da ré passassem a contratar com aquele, provocando a diminuição das receitas provenientes da venda de gases liquefeitos (arts. 6.°, 7.°, 8.° e 9.°).

10. No dia 20 de Julho de 2005 a ré entrou na loja supra identificada durante a noite e apropriou-se do computador e das pastas dos clientes, impedindo o autor de nela entrar e comunicando-lhe que o contrato celebrado ficava sem efeito (arts. 11.°, 12.°, 13.° e 14.°).

11. Em 20 de Julho de 2005 o autor tinha mercadoria no valor de € 2.941,24 (art. 15.°).

12. A ré ficou com esta mercadoria (art. 16.°).

13. Até 20 de Julho de 2005 o autor sempre entregou à ré o produto das vendas efectuadas por esta, naquela loja, até ao dia 17 de Janeiro de 2005 (art. 17.°).

14. Em data e circunstâncias não concretamente apuradas, a ré pediu um orçamento para remodelação de um imóvel (art. 21.°)

        De direito:

Dado que a presente acção foi instaurada antes de 1 de Janeiro de 2008 e o acórdão recorrido foi proferido em 2017, tem aplicação, no caso, o regime recursório decorrente do DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, como resulta do disposto nos artigos 5º n.º 1, 7º n.º 1 e 8º desta última lei, excepcionando-se apenas a aplicabilidade do regime da dupla conforme consagrado no nº 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil.


        Da admissibilidade dos recursos:

A apreciação dos recursos passa, em primeiro lugar, por decidir da sua admissibilidade e, só depois, concluindo-se que são admissíveis, serão conhecidas as questões colocadas.

Suscitou a ré a extemporaneidade do recurso interposto pelo autor no dia 9 de Março de 2017 com fundamento em que, tendo o mesmo sido notificado do acórdão recorrido em 30 de Janeiro de 2017, o prazo de trinta dias que a lei lhe confere para o efeito expirou no dia 4 de Março do corrente ano.

Não lhe assiste, contudo, razão.

É certo que o prazo de trinta dias fixado no artigo 638º nº 1 do Código de Processo Civil para a interposição do recurso, contado com observância do estatuído no artigo no artigo 138º nº 1 daquele código, atingiu, no caso vertente, o seu termo no dia 4 de Março de 2017.

Porém, coincidindo este dia com um sábado, dia em que os tribunais se encontram encerrados, o termo do prazo para a prática do acto transferiu-se para o 1º dia útil seguinte, como determina o nº 2 do referido artigo 138º, ou seja, para dia 6 de Março, segunda-feira.

Tal não significa, no entanto, que esgotado o referido prazo ficasse, desde logo, vedado ao autor impugnar o acórdão do Tribunal da Relação. Na verdade, para além das situações em que ocorre justo impedimento, previsto no artigo 140º do citado código, que permite a prática do acto fora de prazo sem qualquer pagamento adicional, a lei contempla a possibilidade de o acto processual sujeito a prazo peremptório ser praticado depois de decorrido o mesmo, ainda que se não verifique justo impedimento, desde que a sua prática ocorra dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo e seja paga a multa correspondente.

É o que prescreve o artigo 139º nº 4 do Código de Processo Civil, normativo que concede às partes uma moratória, ainda que condicionando a validade do acto ao pagamento imediato da multa.

Logo, a interposição do presente do recurso pelo autor no dia 9 de Março, terceiro dia posterior ao termo do prazo, acompanhada da liquidação da multa devida, como evidenciam os autos, traduz-se na prática tempestiva daquele acto processual.

Já no que tange ao recurso que a ré interpôs, o qual, convém realçar, se apresenta como autónomo e independente do recurso do autor, cumpre analisar se ocorrem os necessários requisitos gerais de recorribilidade.

Como se sabe, o princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais contido no artigo 627º nº 1 do Código de Processo Civil sofre limitações de índole objectiva.

Com efeito, de harmonia com o estatuído no nº 1 do artigo 629º daquele código, a admissibilidade do recurso ordinário está, por princípio, condicionada pelo valor da causa e pelo valor da sucumbência.

Assim, salvo os casos excepcionais expressamente contemplados na lei, a admissibilidade do recurso ordinário depende da verificação cumulativa de um duplo requisito: por um lado, a causa ter valor superior à alçada do tribunal de que se recorre; por outro lado, a decisão impugnada ser desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre.

Se não se colocam problemas relativamente ao valor da causa para efeitos de admissibilidade de recurso ordinário, já o mesmo não sucede no que tange ao valor da sucumbência entendida como a medida do decaimento da parte na decisão exigível para poder interpor recurso ordinário.

Na verdade, ao tempo da propositura desta acção a alçada do Tribunal da Relação estava fixada em € 14.963,94 (artigo 24.º nº 1 da Lei nº 3/99, de 3 de Janeiro, na versão da Lei nº 42/2005, de 29 de Agosto), pelo que só o decaimento em valor superior a metade do valor dessa alçada facultaria às partes o acesso ao recurso de revista.

No caso, a ré restringe o seu recurso à condenação no pagamento ao autor da quantia de € 2.941,24, acrescida de juros de mora desde a citação, sendo este, efectivamente, o valor da sua sucumbência, o qual é manifestamente inferior ao correspondente a metade da alçada do Tribunal da Relação exigido para a admissibilidade do recurso.

Por tal razão, se não tomará conhecimento do recurso da ré por legalmente inadmissível.


Do mérito do recurso:

Balizado que está o objecto do recurso pelas conclusões da alegação do autor (artigos 608.º nº 2, 635.º nº 3 e 690.º nº 1 do Código de Processo Civil), único recurso a apreciar, podem elencar-se as questões a decidir da seguinte forma:

- nulidade do acórdão recorrido;

- qualificação jurídica do contrato outorgado pelas partes.

Da nulidade do acórdão recorrido:

De forma singela diz o autor, ora recorrente, na sua alegação que o acórdão recorrido, pelo facto de carecer de fundamentação quer no plano da fundamentação fáctica, quer do direito padece de nulidade, nos termos do artigo 615.°, n.° 1 al. c) do Código de Processo Civil, violando, consequentemente, o previsto no n.° 2 do artigo 205.° da Constituição da República Portuguesa.

Esta invocada causa de nulidade, genericamente afirmada pelo autor, só ocorre, como é pacificamente aceite na nossa jurisprudência e doutrina, quando exista absoluta falta de fundamentação, seja quanto aos fundamentos de facto seja quanto aos fundamentos de direito.

Com afirmam, expressivamente, Antunes Varela, M. Bezerra e Sampaio e Nora, (Manual de Processo Civil, 2ª ed., revista e actualizada, pág. 687), para a configuração do vício de falta de motivação não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta ou não convincente.

In casu, o acórdão recorrido, contém a descrição de toda a facticidade julgada provada, após cuidado e criterioso conhecimento da impugnação da decisão fáctica, e nele se procedeu a detalhada e concreta apreciação da questão jurídica submetida à sua apreciação, com desenvolvida análise dos institutos jurídicos aplicáveis, suportada em doutrina e jurisprudência apropriadas e amplamente citadas.

Não divisamos, assim, no acórdão recorrido a apontada falta de fundamentação fáctica ou jurídica, antes pelo contrário, nos deparamos com uma decisão colegial tratou exaustivamente todas as questões suscitadas e de que lhe cumpria conhecer.

Improcede, pois, a nulidade arguida.


Da qualificação jurídica do contrato:

Ressalta, desde logo, da alegação do autor que o recurso está, essencialmente, centrado na qualificação jurídica do contrato outorgado entre as partes, partindo daí para alcançar a procedência da acção, com repristinação da sentença da 1ª instância.

     Nesta entendeu-se que as partes celebraram um contrato-promessa de cessão de exploração de estabelecimento comercial.

E considerando que, tendo a ré, recorrida, facultado ao autor, por carta de 19 de Julho de 2005, um prazo suplementar final para reforçar o sinal com o pagamento da quantia de € 20.000 €, prestação já vencida, com a advertência de que se não fosse respeitado tal prazo perderia todo o interesse na realização da prestação e consideraria a obrigação como não cumprida, não podia a mesma ré ter entrado na loja identificada nos autos na noite de 20 de Julho de 2005 para se apropriar do computador e das pastas dos clientes, impedindo o autor de nela entrar e comunicando-lhe que o contrato celebrado ficava sem efeito.

De modo que, ao ter infringido o programa obrigacional que ela própria criara, incorreu a ré em incumprimento do contrato-promessa de cessão de exploração, daí advindo para o autor o direito à devolução do sinal em dobro.

Divergindo, acolheu o acórdão recorrido a tese da ré, qualificando o contrato em causa, outorgado em 8 de Março de2005, como contrato-promessa de cedência dos direitos de revendedora que a mesma detinha sobre produtos comercializados pela CC, Portugal e, bem assim, dos bens elencados neste, tal como a lei o define no artigo 410.º, n.º 1 do Código Civil.

Afirmou, para tanto, decorrer dos factos provados que no dia 8 de Março de 2005, o autor e a ré, como revendedora no ramo do comércio de gases liquefeitos do petróleo da CC, celebraram um contrato promessa nos termos do qual, pelo preço de € 174.579,26, a primeira prometeu ceder ao autor os seus direitos de revendedora dos referidos produtos, assim como os bens elencados no dito contrato-promessa, isto é, um computador, um ecrã, uma impressora, uma secretária, duas cadeiras, um vasilhame, um expositor e um veículo Toyota e outro Renault Kangoo.

Vem sendo uniformemente entendido por este Supremo Tribunal de Justiça que os seus poderes de cognição no domínio da interpretação dos negócios jurídicos estão circunscritos à determinação do sentido normativo da declaração negocial, com recurso aos critérios fixados nos artigos 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, por tal envolver conhecimento de matéria de direito, estando-lhe vedado o apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes por constituir matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias.

No caso, encontramo-nos perante um negócio formal, uma vez que foi adoptada a forma escrita (artigo 221º do Código Civil).

Na interpretação dos negócios formais deve observar-se a regra especial inserta no artigo 238º nº 1 do Código Civil segundo a qual «a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso».

Contudo, de harmonia com o seu nº 2, «esse sentido pode, todavia, valer se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade».

A lei admite, assim, que as declarações negociais das partes possam valer com um sentido não traduzido no documento que as corporiza, desde que correspondam à vontade real e concordante das mesmas e não exista oposição das razões determinantes da forma do negócio a essa validade da declaração (cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora - 1980, pág. 423).

      Na concretização deste desígnio interpretativo deve o intérprete «procurar aquele dos possíveis significados da declaração que o seu destinatário podia julgar conforme às reais intenções do declarante; mas o sentido assim encontrado só poderá ser definitivamente atribuído à declaração litigiosa, na medida em que o próprio declarante também devesse orientar-se por ele» (Ferrer Correia, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, Colecção Teses, Almedina, págs. 14 e 15).

Refere, a propósito, Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral Tomo I, 1999, págs. 478, 479 e 483) que “A doutrina actual encara a interpretação do negócio jurídico como algo de essencialmente objectivo; o seu ponto de incidência não é a vontade interior: ela recai antes sobre um comportamento significativo.” Acrescenta ainda o mesmo autor que a autonomia privada “...tem de ser temperada com o princípio da tutela da confiança...”, que não se opõe à autonomia privada, antes a delimita, e que a própria interpretação não pode deixar de atender à boa fé, ou seja, aos valores fundamentais do ordenamento jurídico que aí se jogam.

      No caso que nos ocupa, os contraentes clausularam, no que ora releva, o seguinte:

«1° A Primeira outorgante é revendedor(a) nas freguesias de Almeirim, Benfica do Ribatejo, Fazendas de Almeirim e Raposa, para o ramo do comércio constituído por gases liquefeitos do petróleo, com exclusão dos fornecimentos e granel, da companhia "CC- Comércio de Combustíveis e Lubrificantes, SA".

2° Pelo presente contrato promessa a primeira outorgante promete ceder pelo preço de € 174.579,26 (cento e setenta e quatro mil, quinhentos e setenta e nova euros e vinte e seis cêntimos) ao segundo outorgante dos direitos de "revendedor" consubstanciados no aditamento ao contrato efectuado em 1 de Julho de 2004 entre a S.A., assim como, um computador, um ecrã, uma impressora, uma secretária, duas cadeiras, um vasilhame, Toyota mato RN -…-…, Renault Kangoo mato ….-…-ZI, um expositor».

      Ressalta do assim clausulado que o sentido interpretativo que o autor pretende atribuir ao negócio celebrado não encontra qualquer correspondência no seu texto. Não sendo o elemento literal decisivo, não pode, no entanto, deixar de ser considerado como um ponto de partida na difícil tarefa de descobrir qual o sentido normativo da declaração negocial.

Na ausência de outros elementos interpretativos coadjuvantes e desconhecendo-se a vontade real das partes, objectivamente considerada, não é possível extrair do teor do documento mais do que nele consta.

Efectivamente, tendo sido questionado na base instrutória (artigo 1º) se a loja a que o autor se refere estava incluída no objecto do contrato-promessa, este facto, julgado provado na 1ª instância, veio a ser considerado como não provado pelo Tribunal da Relação, ao qual cabe a última palavra em sede de facto, o que significa que não foi cumprido, neste particular o ónus probatório que recaía sobre o autor (artigo 342º nº 1 do Código Civil).

      Aliás, tratando-se, como defende o autor, de um contrato-promessa de cessão de estabelecimento comercial, na acepção de um complexo de elementos corpóreos e incorpóreos organizados e aptos ao exercício de uma concreta actividade comercial – revenda de gases liquefeitos do petróleo –, aquele incluiria a loja em questão, pelo que não faria sentido que as partes tivessem tido o cuidado de proceder à discriminação positiva autónoma dos bens móveis abrangidos pelo negócio celebrado, concretamente, um computador, um ecrã, uma impressora, uma secretária, duas cadeiras, um vasilhame, Toyota mato RN-…-…, Renault Kangoo mato …-…-ZI e um expositor. Na verdade, a cessão da exploração do estabelecimento comercial pressuporia, naturalmente, a inclusão de todos os bens que o integravam.

     As partes não só não fizeram referência no contrato a qualquer estabelecimento comercial, nem sequer a qualquer loja, como optaram por se centrar negocialmente na promessa de cedência onerosa ao autor dos «direitos de revendedor» da ré para o ramo do comércio constituído por gases liquefeitos do petróleo, com exclusão dos fornecimentos e granel, da companhia "CC-Comércio de Combustíveis e Lubrificantes, SA.

     Neste contexto e não obstante o esforço argumentativo do autor, não dispomos de elementos interpretativos que permitam sustentar a qualificação jurídica do contrato por este defendida e afastar a efectuada pelo Tribunal da Relação, que acolhemos.

Encontramo-nos perante uma promessa de celebração de um contrato inominado, um contrato-promessa de cedência de direitos de “revendedor” de gases liquefeitos do petróleo, no qual o autor figura como promitente-cessionário e a ré como promitente-cedente.

Em execução desse contrato o autor entregou à ré a quantia de € 40.000,00 a título de sinal (arts.410º, nº1 e 441º, do Código Civil), devendo ser pagos € 20.000,00 no dia 14 de Junho de 2005 e o remanescente logo que o empréstimo bancário pedido para tal pelo autor lhe fosse concedido ou até 31 de Dezembro de 2005.

Os factos provados mostram que o autor não entregou à ré a referida quantia de € 20.000,00 na data prevista nem ulteriormente, apesar de interpelado por esta para efectuar o seu pagamento por cartas de 17 de Junho de 2005, de 6 de Julho de 2005 e de 19 de Julho de 2005.

Esta última continha, aliás, uma verdadeira interpelação admonitória para o autor efectuar a prestação em falta em prazo razoável, que lhe foi fixado, sob pena de a ré perder interesse no negócio, em conformidade com o estatuído no artigo 808º nº 1 do Código Civil.

Com efeito, escreveu a ré nessa carta, além do mais, o seguinte:

"Apesar das minhas cartas endereçadas a v. Exa de 17/Junho/2005 e 6/Julho/2005, V. Exa. Não me pagou a quantia a que estava obrigado por contrato-promessa que realizámos em 8/Março/2005.

Além de que V. Exa não se dignou a responder por qualquer forma ou mero às aludidas cartas, nem se dignou a pagar-me. Porque assim é, sou a informar V. Exa que, caso não proceda ao pagamento de € 20.000,00 (vinte mil euros) - solicitados nas m/cartas de 17/Junho/2005 e 6/Julho/2005 e respeitantes ao estabelecido na cláusula 3a alínea B) do contrato-promessa que celebrei com V. Exa em 08/Março/2005 - até ao próximo dia 25/07/2005 (inclusive); perderei o interesse que tinha na susodita prestação, considerando-se para todos os efeitos legais ou outros como não cumprida a obrigação. Isto é, caso V. Exa até ao dia 25/07/2005 (inclusive) não me pague os € 20.000,00 (vinte mil euros), respeitantes ao estabelecido na cláusula 3ª alínea B) do contrato-promessa que celebrei com V. Exa em 8/Março/2005, perderei o interesse que tinha na susodita prestação, considerando-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação."

Mantendo-se o incumprimento do autor, a ré endereçou-lhe uma nova e última carta, em 26 de Julho de 2005, com o seguinte teor:

 "Na sequência das minhas cartas 17/Junho/2005; 6/Julho/2005 e 19/Julho/2005 e, uma vez que V. Exa. não procedeu ao pagamento de € 20.000,00 (vinte mil euros) que estava obrigado por contrato promessa que realizámos em 8/Março/2005, apesar das várias cartas que lhe escrevi e de que não obtive qualquer resposta da sua parte, seja de que natureza for, sou a comunicar-lhe que perdi o interesse que tinha na susodita prestação, considerando-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação a que vexa estava obrigado. É assim que o não pagamento por parte de V. Exa da quantia a que estava obrigado e na data constante no contrato-promessa; bem assim como o não pagamento no prazo que razoavelmente lhe foi conferido (carta de 19/Julho/2005), concedeu-me o direito, com todas as consequências legais e contratuais, tanto mais que, e esta é outra razão invocada, a cedência deixou de ter interesse para mim, por não poder realizar o capital no tempo previsto, e ter, por isso perdido uma boa oportunidade de negócio que tinha projectado."

A interpelação feita ao autor através da carta de 19 de Julho de 2005 converteu a mora em que incorrera em incumprimento definitivo (artigos 804º e 805º do Código Civil), uma vez que não decorre da facticidade provada que o prazo contratualmente estabelecido para o efeito revestisse a natureza de prazo fixo, essencial e absoluto (só assim se explica o envio das sucessivas cartas que a ré dirigiu ao autor a solicitar o pagamento em falta).

Objecta o autor que no dia 20 de Julho de 2005, cinco dias antes do prazo limite fixado para proceder ao pagamento da prestação em falta, a ré entrou na loja durante a noite e apropriou-se do computador e das pastas dos clientes, impedindo o autor de nela entrar, dizendo-lhe que o contrato celebrado ficava sem efeito.

Esta conduta da ré, num quadro de mora reiterada do autor na concretização do reforço do sinal a que estava vinculado, porque contratualmente previsto, ou seja, no pagamento do montante de € 20.000,00, vencido desde 14 de Junho de 2005, não obstante as insistências da primeira, por escrito, não assume a gravidade que o mesmo pretende atribuir-lhe.

Na verdade, a actuação da ré não anula o comportamento omissivo do autor na satisfação da contraprestação a que se achava contratualmente vinculado e já vencida, traduzindo, no contexto, uma antecipação dos efeitos da falta de cumprimento daquele. Note-se que o autor não alegou e não provou que tivesse oferecido à ré o pagamento em falta dentro do prazo razoável que lhe foi fixado por esta. E só então poderia atribuir-se à actuação da ré a natureza de incumprimento culposo susceptível de vir a comprometer a execução do contrato de forma definitiva.

Aliás, confrontado com as cartas da ré a solicitar-lhe o pagamento da quantia em falta, o autor nada disse até 29 de Julho de 2005, apenas nesta data justificando, também por carta, o não pagamento da quantia de € 20.000,00 com a actuação da ré no antecedente dia 20, considerando a situação criada por esta impeditiva da prossecução do negócio com o intuito de fazer desaparecer a persistente mora no cumprimento em que havia incorrido.

Atribuir outra significação jurídica ao comportamento da ré, designadamente a pretendida pelo autor, revelar-se-ia até desproporcionada no contexto da facticidade provada.

A resolução do contrato-promessa pela ré apresenta-se, por conseguinte, legítima à luz do disposto nos artigos 808º e 432º nº 1 do Código Civil porque alicerçada em incumprimento definitivo imputável ao autor.

Donde, por aplicação do disposto no artigo 442º nº 2 do Código Civil, assiste à ré o direito a fazer seu o sinal que recebeu do autor no valor de 40.000,00, como peticionou em sede reconvencional.


III. Decisão:

Termos em que se acorda no Supremo Tribunal de Justiça em:

a) não tomar conhecimento do recurso interposto pela ré;

b) negar a revista e confirmar o douto acórdão recorrido.

Custas pelo autor, recorrente.


Lisboa, 30 de Novembro de 2017


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado