Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6959/15.6T8CBR.C2.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
REVOGAÇÃO
VENDA DE COISA ALHEIA
NULIDADE
ANULABILIDADE
EFEITOS DO REGISTO EM RELAÇÃO A TERCEIROS
PODERES DE COGNIÇÃO DO TRIBUNAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 04/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDE-SE A REVISTA DAS AUTORAS E NEGA-SE A REVISTA DA RÉ
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO / INOPONIBILIDADE DA NULIDADE E DA ANULAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / DISPOSIÇÕES E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS / ÓNUS DE ALEGAÇÃO DAS PARTES E PODERES DE COGNIÇÃO DO TRIBUNAL.
Doutrina:
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª edição, p. 463 e 655.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 291.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 5.º, N.º 3.
Sumário :
I Um contrato validamente celebrado entre as partes, pode vir a ser extinto do mesmo modo pelo qual foi efectivado, porquanto a destruição dos efeitos decorrentes de uma negociação, constitui apanágio da própria autonomia privada.

II Se um contrato de compra e venda é nula, por ter tido como objecto um bem alheio, e se o registo de propriedade tal bem tiver sido efectuado a favor do adquirente nos três anos anteriores à propositura da acção e respectivo registo desta, não pode o mesmo aproveitar-se do disposto no nº1 do artigo 291º do CCivil, não lhe podendo ser reconhecido qualquer direito de propriedade sobre o veículo vendido.

III Resulta do artigo 5º, nº3 do CPCivil que «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.», contudo, apenas se pode servir da factualidade alegada e não se pode avançar para uma solução jurídica possível dentro da materialidade alegada e tendo em atenção o que peticionado se mostra, sem que as partes se tenham pronunciado sobre a temática, devendo neste caso o Tribunal, mesmo em sede de recurso, ordená-lo.

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

 

I R e A, instauraram acção declarativa contra MASSA INSOLVENTE DE L, SA e M, pedindo que seja: a) declarada a nulidade dos contratos, que celebraram com a L, que permitiu o registo, por esta última, em seu nome, do veículo …., bem como do contrato de compra e venda supostamente celebrado entre a L e a 2ª Ré, que teve por objecto o mesmo veículo; b) ordenado o cancelamento daqueles registos, constantes das AP. … em 22.8.2004, e A.P. …. em 17.9.2014 e de todos os que houver após o registo em nome da A. mulher; c) declarar-se e condenar-se as Rés a reconhecer que os Autores são os únicos proprietários e possuidores de tal veículo; d) condenar-se a 2ª Ré a restituir aos Autores tal veículo.

Alegaram para o efeito e em síntese, ter o Autor celebrado com a 1ª Ré, que veio a ser declarada insolvente, um negócio por via do qual procedia à compra de um veículo automóvel, Porsche 911, pelo preço de 81.005 €, o qual se encontrava num concessionário na Alemanha, tendo acordado que 41.000 € seriam pagos em dinheiro e 40.000 € através de entrega do veículo Ferrari 355 F1, matrícula ….. Não tendo a L cumprido com a entrega do Porsche as partes acordaram na revogação do negócio, uma vez que aquele veículo já não era passível de ser adquirido junto do proprietário, sendo o objecto do contrato impossível física e legalmente, e por isso nulo nos termos do art. 280º do CCivil. Na revogação ficou estabelecido, além do mais, que esta Ré se comprometia a pagar ao Autor as quantias por si entregues a título de sinal em singelo no total de 81.005 €. A dita revogação implicava a restituição do Ferrari, além do dinheiro, mas como a sociedade Ré alegava que o veículo tinha desaparecido, a mesma obrigou-se a restituir o valor correspondente, sem prejuízo da sua eventual localização e restituição, o que nunca veio a ocorrer, nem quanto à quantia nem quanto ao veículo, nem assim quanto à indemnização prevista na referida revogação. Posteriormente os Autores tomaram conhecimento que o veículo havia sido registado em nome da sociedade Ré e depois vendido à 2ª Ré, que o registou a seu favor. Confrontado o administrador da Ré este negou a venda. Os documentos de suporte do registo são falsos. Que tal negócio entre a 1ª e 2ª Ré é inexistente ou nulo, por se tratar de venda de bens alheios, nos termos do art. 892º do CC. A sociedade Ré, face à nulidade do contratado com os Autores deveria restituir tudo o que estes tinham prestado, nomeadamente o Ferrari ou, não sendo possível, o valor correspondente, o que nunca aconteceu. Os Autores invocaram ainda a usucapião quanto ao veículo Ferrari por parte da Autora.

A Ré M contestou, referindo que o crédito dos Autores, emergente do incumprimento do contrato celebrado com a L, que os mesmos agora dizem ser nulo, e que foi depois objecto de liquidação na mencionada revogação, e até serviu para interposição de acção executiva em que o título executivo foi o dito instrumento de revogação, veio a ser reconhecido por sentença de graduação de créditos na insolvência da L, e, por via disso, verifica-se a excepção de caso julgado. Pretendendo, através do presente processo “receber”, com prejuízo dos restantes credores, nomeadamente os que tenham créditos graduados acima do seu. Que apesar do título do contrato celebrado entre Autores e sociedade, o mesmo configura uma compra e venda, e que, atento o incumprimento, foi acordada a revogação do mesmo, nunca se tendo acordado ou colocado a hipótese de devolução do Ferrari nem foi invocada qualquer impossibilidade física e legal do objecto do negócio, não havendo qualquer nulidade. Em reconvenção invocou a propriedade do veículo a seu favor por ter pago o preço ao seu então proprietário, a L, e a realização de despesas relativas ao mesmo, considerando que os Autores devem ser condenados a tal reconhecer, acrescentando que aqueles alteraram a verdade dos factos, fazendo um uso reprovável dos meios processuais, pelo que devem ser condenados como litigantes de má fé.

Terminou pedindo para: a) ser julgada procedente a excepção de caso julgado, e absolvidos os RR da instância; b) caso assim não se entenda, ser a acção julgada improcedente por não provada, absolvendo-se a 2ª Ré de todos os pedidos formulados pelos A; c) ser julgada procedente, por provada, a reconvenção, e, por via disso, os Autores e a 1ª Ré condenados a reconhecer que a 2ª Ré é única e exclusiva proprietária do veículo Ferrari …-…-…; d) ser a invocada litigância de má fé dos Autores julgada procedente e a final, serem estes condenados no pagamento de indemnização de valor não inferior a 5.000€ para além de multa, bem como todos os custos que a Ré tiver com o mandato judicial necessário nos presentes autos, nomeadamente, honorários de advogado e despesas de escritório, a liquidar em execução de sentença.

Os Autores replicaram, afirmando inexistir caso julgado, e que a impossibilidade do objecto que tinham alegado é legal já que, não tendo pago o Porsche, a Ré sociedade perdeu a possibilidade de adquirir tal veículo.

Contestaram o pedido reconvencional, dizendo que a Ré não comprou o veículo porquanto o mesmo lhe foi entregue por quem não tinha legitimidade nem poderes de representação, tanto mais que o preço não entrou na conta daquela, acrescendo que a Ré não é terceira de boa fé, pois a acção não foi proposta e registada no prazo de três anos posterior à conclusão do negócio, nos termos do artigo 291º do CCivil, sendo que no momento da aquisição conhecia ou devia conhecer a invalidade do negócio.

Responderam, ainda, à questão da litigância de má fé, dizendo que ela não existe.

A final foi proferida sentença que julgou, parcialmente, procedente a acção e improcedente a reconvenção e, em consequência:

a) anulou o contrato celebrado entre os Autores e a L, aludido em I) dos factos assentes;

b) declarou ineficaz o documento referido em X) dos factos assentes;

c) ordenou o cancelamento dos registos, constantes das AP. … em 22.8.2004, e AP. … em 17.9.2014, constantes em G) dos factos assentes e de todos os posteriores;

d) condenou as Rés a reconhecer que os Autores são os únicos e legítimos proprietários e possuidores do veículo automóvel Ferrari, matrícula …;

e) condenou a 2ª Ré a restituir aos Autores o veículo automóvel Ferrari;

f) absolveu as Rés do demais peticionado (declaração de nulidade do contrato referido em B) dos factos assentes);

g) absolveu os Autores dos pedidos contra eles formulado;

h) absolveu os Autores do pedido de condenação como litigantes de má fé contra eles formulado.

Desta decisão apelaram as Rés, tendo sido julgados procedentes, na totalidade, o recurso da 1ª Ré L e, parcialmente, o da Ré M, e, em consequência, julgou-se a acção improcedente, revogando a sentença recorrida quanto às alíneas a) a e), absolvendo-se as Rés dos pedidos, mantendo-se a sentença recorrida no demais, alíneas g) e h).

Inconformados, recorrem agora de Revista os Autores e a Ré M.

Os Autores concluíram da seguinte forma:

- A causa pedir foi alegada na petição inicial, designadamente nos art°s 12 e 13 dos quais consta:

«Como à data da outorga da revogação a L alegava que o ferrari havia desaparecido (sem que tivesse sido vendido ou tivesse recebido por ele qualquer valor), obrigou-se a restituir o valor correspondente sem prejuízo de se obrigarem a diligenciar no sentido da localização do veículo ferrari, com vista a que o mesmo fosse restituído aos Autores, em vez dos 40.000,00€.»

- A causa de invalidade de tal acordo de revogação decorria e decorre justamente disso, de terem sido dos Autores enganados pela L, de que o veículo tinha desaparecido, e por isso, não o podiam restituir, mas que apesar da assinatura de revogação continuariam a diligenciar para o restituírem aos Autores em vez dos 40.000,00€.

- E tais factos até foram dados como provados na alínea N) da sentença da 1ª Instância.

- Assim, das duas uma, ou se considera a causa de pedir, para o efeito, de se julgar procedente o pedido de invalidade da revogação, dado que a mesma foi alegada no modelo processual próprio, ou não se entendendo assim,

- Não podem tais factos deixar de ser ponderados no desfecho da acção, que tinha como pedido principal a declaração de propriedade dos Autores sobre o automóvel em questão, e a restituição do mesmo à sua esfera patrimonial, condenando-se a 2ª Ré nesse sentido.

- O que o Tribunal “a quo” não pode, é deixar de apreciar a relevância da factualidade provada em N) da sentença da 1ª Instância, e que não foi alterada pela Relação, no desfecho da acção, e para tanto,

- Pode atribuir-lhe a qualificação jurídica que entender, tanto mais que, nos termos do disposto no art° 5, nº 3 do CPC,

“o Juiz não está sujeito às alegações das partes, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”

- Os factos que constituem a causa de pedir valem independentemente da qualificação jurídica fornecida ou não pela parte, dado que a mesma não é vinculativa para o Tribunal.

- Não houve pois excesso de pronúncia na anulação do acordo revogatório decidida pelo Tribunal da 1ª Instância, dado que o pedido estava lá e a causa de pedir que o sustentava também, e tudo isso foi alegado na petição inicial, como o bem diz a Desembargadora vencida.

- Mas, ainda que falhassem ou não estivessem presentes e/ou a causa de pedir, para que pudesse ser anulado o contrato de revogação, o que não se concede, a verdade é que os factos constantes na alínea N) da decisão da Iª Instancia não podem deixar de ser determinantes no desfecho da acção, cujo pedido principal era o da declaração de propriedade dos Autores sobre o veículo, e a condenação da 2a Ré a restituir-lho.

- E que o acordo de revogação tinha e teve subjacente o acordo entre as partes (autores e L) da restituição do veículo em vez dos 40.000,00€, caso ele aparecesse. E ele felizmente apareceu!

- Então os Autores sempre teriam, como tem o direito à sua restituição - veículo ferrari - tanto mais que é essa a única solução do diferendo justa e compreensível, capaz de se impor e ser socialmente aceite, e não qualquer outra, distorcida, que atribua a propriedade do veículo a quem não pagou por ele nem um cêntimo. A que propósito podem ser considerados proprietário dele, e serem com ele beneficiados?

- O acórdão recorrido violou nomeadamente as seguintes normas jurídicas: art° 342, nº 1, 252, nº 2, 879 e 1316 todos do CC - Lei substantiva - e fez errada aplicação da Lei de processo, nomeadamente do art° 265, do NCPC.

- O acórdão recorrido ao decidir como decidiu, violou flagrantemente o disposto no art° 342, nº 1, do CC, no sentido em que, não considerou como devia, que os Autores alegaram e provaram todos os factos constitutivos dos direitos que pretendiam fazer valer, isto é, a declaração judicial do direito de propriedade sobre o veículo ferrari, e a condenação dos Réus à restituição do mesmo.

- Violou ainda o disposto no art° 252, nº 2 do CC, no sentido em que, não relevou como devia, a factualidade contida na alínea N) dos factos provados da sentença proferida em Ia Instância, que consubstancia um erro, absolutamente essencial, causal ou determinante da celebração do contrato de revogação, quer para os Autores (que julgavam que o veículo estava desaparecido) quer para L (que também julgava que já não detinha o veículo) que caso o detivesse tinha todo o interesse em restitui-lo aos Autores, porque isso diminuiria substancialmente a divida que tinha para com eles.

- O Acórdão recorrido viola ainda os art°s 879 e 1316 do CC, ou seja, o direito de propriedade dos Autores sobre aquele veículo ferrari, na medida em que não declarou que são eles os únicos que adquiriram por compra e venda e pagaram o respectivo preço, já que, a L não o pagou aos Autores e a 2ª Ré que supostamente o adquiriu à L, também não lho pagou, sendo que o pagamento do preço é uma das obrigações e efeitos do contrato de compra e venda.

- As normas jurídicas que constituíram o cerne do Acórdão de que se recorre, como sejam o 615, nº 2, ai. d), 2ª parte e 608, nº 2, 2ª parte do CPC e 265, nº 2, também do CPC, foram erradamente aplicadas, já que, deviam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido em que inexistia no caso sub índice, qualquer excesso de pronúncia, porquanto os Autores deduziram o pedido de anulação/nulidade dos contratos celebrados com a L (incluindo o acordo de revogação do contrato anterior), alegaram a causa de invalidade do acordo revogatório nos artigos 12 e 13 da petição, e não apenas na réplica.

- Assim, como o presente recurso versa apenas matéria de direito, não tendo a Relação alterado o facto N) da sentença da 1ª Instância, os Autores já indicaram as normas jurídicas violadas por aquele Acórdão da Relação de Coimbra e o sentido da sua interpretação que deveria levar, tendo em conta o facto provado N) e o que alegou nos art°s 12 e 13 da petição à confirmação da sentença da Ia Instância, dado que, no fundo, o sentido querido era a restituição do veículo, e

- As normas em causa implicam que a sua correcta interpretação era aquela de confirmar os Autores como donos do dito veículo, e

- As normas jurídicas referidas conjugadas com o alegado nos art°s 12 e 13 da pi e o facto provado N) entre outros, claro, implicam que este Supremo Tribunal as interprete tal como o fez a Juíza da Iª Instância, a Desembargadora vencida e o que os Autores aqui alegaram, pois a Relação de Coimbra interpretou aquelas normas de modo errado e contra os factos provados e assim aplicou e interpretou as normas em causa de modo errado, dado que, as mesmas, atento o alegado e a factualidade provada, determinam e determinavam que deveriam ser interpretadas no sentido da restituição do veículo aos Autores.

A Ré M, concluiu da seguinte forma:

- O presente recurso interposto pela R. M detém-se em duas ordens de razões:

no facto de se ter considerado que para o efeito de reconhecimento do direito de propriedade da ora recorrente sobre o veículo, esta tinha que ter feito prova e alegado factualidade da propriedade originária do mesmo veículo;

no facto de o douto acórdão ora recorrido não ter apreciado a matéria de facto impugnada pela ora recorrente no recurso interposto por esta, por ter considerado que a alteração da matéria de facto nos pontos impugnados seria inócua e insuficiente pois não interferiria na solução de Direito.

- Deliberou o acórdão, contra voto de vencido, pela improcedência do pedido reconvencional. Ora, como refere o último parágrafo da Exma. Desembargadora X, no seu voto de vencido, sendo o pedido dos AA julgado improcedente (como o foi), o pedido reconvencional da ora recorrente sempre terá que ser procedente, uma vez que esta goza da presunção de propriedade derivada, não só da posse mas também do registo a seu favor.

- Parafraseando a Exma. Desembargadora que votou de vencido, na parte em que se concorda com tal voto de vencido, ou seja, o último parágrafo, “não se atinge de que modo o pedido reconvencional poderia, também ele, vir a ser julgado improcedente, uma vez que, a manter-se de pé o negócio de compra e venda do veículo a favor da 2ª R. e o respectivo registo, a mesma gozaria da presunção de propriedade derivada, não apenas da posse mas também do registo”.

- Ora, a questão da validade do negócio de compra e venda do veículo por parte da ora recorrente foi matéria objecto de impugnação no recurso perante a Relação, pelo que, não se mostra tal apreciação inócua e irrelevante à aplicação do Direito ao presente caso. Tal apreciação impõe-se pois a negação da mesma impede o segundo grau de jurisdição da matéria de facto permitido pela lei processual e pugnado pela ora recorrente.

- Assim, deverá concluir-se pela propriedade da ora recorrente sobre o veículo em causa nos presentes autos, atendendo à presunção que a mesma goza de propriedade da posse e do registo.

- Caso assim não se entenda, sempre terá que ser ordenado à Relação que proceda à apreciação da impugnação da matéria de facto.

Nas suas contra alegações a Ré Massa Insolvente pugna pela manutenção do julgado.

Porque a Relatora entendeu que a análise jurídica das questões enunciadas em sede de recurso poderia passar, eventualmente, não só pela nulidade e/ou anulabilidade dos contratos havidos, mas antes, também, pela sua eventual validade, nomeadamente do acordo revogatório celebrado entre os Autores e a primeira Ré, com as consequências legais daí advenientes, a fim de evitar uma qualquer decisão surpresa, de harmonia com o disposto no artigo 3º, nº3 do CPCivil, foi ordenada a notificação das partes para se pronunciarem.

A Ré Massa Insolvente, pronunciou-se no sentido de ser considerado válido o acordo revogatório; os Autores, mantêm a sua pretensão recursiva, independentemente de tal acordo ser considerado válido ou inválido.

II Põem-se como questões a resolver no presente recurso as de saber: i) se ocorreu excesso de pronúncia na sentença de primeira instância, como entendeu o segundo grau; ii) se o acordo revogatório havido entre os Autores e a Ré L é nulo, com todas as consequências daí decorrentes; iii) se há que reconhecer à Ré M a propriedade do veículo Ferrari.

As instâncias declararam como assentes os seguintes factos:

- A L, SA, era, à época dos factos, uma sociedade comercial anónima que tinha como objecto social a actividade de assessoria e consultoria para os negócios e a gestão, comércio de peças e acessórios para veículos, compra, venda, revenda e aluguer de veículos novos e usados, manutenção e reparação de veículos, organização e realização de transportes rodoviários de mercadorias, bem como outros investimentos ligados ao comércio de veículos automóveis ou motociclos, comercialização, importação, exportação e representação de vestuário, acessórios de moda, artigos de higiene pessoal, artigos de viagens, telecomunicações, calçado em geral, artigos de desporto, avionetas, aviões e barcos de recreio, que veio a ser declarada insolvente por sentença proferida no processo n° …. da Comarca de Coimbra, Instancia Central — Secção de Comércio (alínea A) dos factos assentes);

- No desenvolvimento dessa actividade empresarial, o autor marido com o conhecimento, consentimento e com total acordo da Autora mulher, celebrou com a L, SA, em 07.07.2014, o contrato que denominaram de prestação e serviços de consultoria 2014ZC367 de fls. 29 e ss. (alínea B) dos factos assentes);

- Por tal contrato, os autores procediam à compra da concreta viatura marca Porsche, modelo 911 (996), com o chassis WP…, mês de Julho, ano de 2002, na Alemanha, no concessionário A.L., com 35.420 quilómetros, veículo esse que os Autores valorizaram especialmente, tendo em conta as respectivas características, de tal sorte que o pretendiam adquirir, pelo preço de 81.005,00€ (oitenta e um mil e cinco euros), o qual devia ser entregue pela L na M Coimbra (alínea C) dos factos assentes);

- O referido automóvel Porsche devia ter sido entregue pela L aos Autores em 36 dias úteis, após a outorga do contrato e boa cobrança do pagamento (alínea D) dos factos assentes);

- Os Autores obrigaram-se a pagar o preço de 81.005,00€ foi pago da seguinte forma: - Pagamento de 41.000,00€ em 16.07.2014, por transferência bancária da conta n°… PT50…, para a conta da L com o n.° PT50….;

- Entrega do valor de 40.000,00€, pagos em forma de género na mesma data, pela entrega à L da sua viatura marca e modelo (alínea E) dos factos assentes);

- Até 22.08.2014 o veículo Ferrari …. estava registado em nome da Autora mulher, em consequência de ter sido por ela adquirido em 09.06.2009 (alínea L) dos factos assentes);

- O Ferrari 355 Fl, matrícula … de Maio de 1998, tinha 65.250 Km reais e percorridos e encontrava-se em perfeito estado de funcionamento e circulação, livre de quaisquer encargos, sendo entregue na pressuposição para ambas as partes contratantes de que o negócio e entrega do Porsche se concretizaria (resposta positiva ao tema de prova 1);

- Era a Autora que desde a data da sua aquisição e ate ter sido desapossada do mesmo, contínua e ininterruptamente, por si e por intermédio dos seus antepossuidores, há mais de 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e mais anos, o vinha possuindo, gozando e detendo, nomeadamente, fazendo-se transportar nele, pagando os respectivos impostos, e seguro de responsabilidade civil, sujeitando-o às inspecções, reparações, mandando fazer a manutenção do motor, lavando-o, limpando-o, e antes os anteriores donos o fabricaram, nele se transportaram e usaram como qualquer normal proprietário, à vista de toda a gente sem oposição ou violência de ninguém, dado que a Autora por todos era reconhecida como a verdadeira proprietária do veículo, sempre na convicção de que ao adquirir, possuir, e fruir o já identificado bem - veículo Ferrari, matricula … - não lesava direitos de outrem, antes possuía e fruía coisa sua (resposta restritiva ao tema de prova 16);

- Foi pressuposto por ambas as partes que o veículo Ferrari só integrava o negócio, tendo em vista a aquisição e a entrega do Porsche (resposta positiva ao tema de prova 11);

- O veículo Ferrari  esteve anunciado no sítio da internet Stand Virtual pela M, marca usada pela L (parte do art. 34.° da contestação, constante do tema de prova 17);

- A L devia ter entregue aos Autores o veículo Porsche até ao dia 07.09.2014, mas os Autores não o receberam naquela data nem até ao presente, apesar de terem pago a totalidade do preço, nos termos acordados (alínea F) dos factos assentes);

- A L nunca restituiu aos Autores a quantia de 41.000,00€ que deles recebeu por transferência bancária e não restituiu aos Autores o Ferrari, alegando que o mesmo havia desaparecido das suas instalações, apesar de, segundo o seu administrador, Sr. R, não o terem vendido a ninguém, e de não o restituírem porque o mesmo tinha desaparecido das suas instalações e que o restituiria aos Autores logo que conseguisse reavê-lo (resposta positiva ao tema de prova 12);

- Assim, o contrato que a L celebrou com os Autores foi revogado entre as partes, em 21.11.2104 (alínea I) dos factos assentes);

- A revogação referida implicava a restituição aos Autores dos 41.000,00€ em dinheiro, e do veículo Ferrari que lhes pertencia e fora dado à L em pagamento dos restantes 40.000,00€, perfazendo o preço integral do Porsche a comprar — 81.000,00€ (resposta positiva ao tema de prova 2);

- À data da outorga da revogação, a L alegava que o Ferrari estava desaparecido (sem que tivesse sido vendido ou tivesse recebido por ele qualquer valor), obrigou-se a restituir o valor correspondente sem prejuízo de se obrigarem a diligenciar no sentido da localização do veículo Ferrari, com vista a que o mesmo fosse restituído aos autores, em ve2 dos 40.000,00€ (resposta positiva ao tema de prova 3);

- A L não restituiu aos autores a quantia de 41.000,00€ que recebeu em dinheiro, não restituiu o Ferrari, nem o valor deste, nem pagou a indemnização a que se obrigou, na data do vencimento, nem até ao presente, apesar das contínuas promessas de restituição desses valores ou/e veículo (resposta positiva ao tema de prova 4);

- Em abril de 2015, os Autores começaram a reclamar da L a restituição do veículo Ferrari, ao que a L respondia com insistência que o mesmo não tinha aparecido, mantendo que não tinham procedido à venda do mesmo, nem tão pouco recebido qualquer valor pela venda dele (resposta positiva ao tema de prova 5);

- O veículo Ferrari fora registado em nome da L em 22.08.2014, pela AP …, e, depois, em nome da 2.ª ré, M em 17.09.2014, pela AP. … (alínea G) dos factos assentes);

- A assinatura do documento que serviu de base ao registo da propriedade do veículo Ferrari, matrícula …, em nome da 2ª Ré, nele aposta, não é da mesma (alínea Fl) dos factos assentes);

- O registo do Ferrari na C. R. Automóvel em nome da Ré foi efectuado com o recurso a um requerimento de registo com a assinatura da vendedora falsificada, por não ter sido aposta no documento pelos administradores da L (resposta restritiva ao tema de prova 13);

- A Ré bem sabe que não assinou o requerimento de registo referido (resposta restritiva ao tema de prova 14);

- A 2ª R. assinou uma declaração para registo, ficando com uma cópia (parte do art. 40.° da contestação, constante do tema de prova 17);

- A Ré recebeu em sua casa o certificado de matrícula do veículo (parte do art. 41.° da contestação, constante do tema de prova 17); contactou a L dizendo que na data em que levantou o veículo, a L ficou de entregar à Ré o livro de revisões do veículo e o histórico de manutenções do mesmo, o conjunto de chaves suplentes do veículo, uma placa metálica do lado direito do compartimento do motor, com inscrições de fábrica e as quatro jantes originais (parte do art. 43.° da contestação, constante do tema de prova 17);

- A fim de perceber a transacção ocorrida, R, então administrador da L, encontrou-se pessoalmente com o filho da Ré, entregando 4 jantes originais do Ferrari …, em Janeiro de 2015, nas instalações da M Coimbra, na presença da companheira deste, A L (parte do art. 48.° da contestação, constante do tema de prova 17).

Factos não provados:

(…)

3) Que a 2.ª Ré comprasse o veículo … à L na data referida em BB) (resposta restritiva ao tema de prova 17);

4) Que o filho da 2ª R. enviasse e-mail para o endereço facultado no anúncio da viatura constante do referido website Standvirtual e fosse posteriormente contactado telefonicamente por um colaborador da empresa L, Sr. D, e combinassem uma visita ao stand de Lisboa da L, para ver o veículo (resposta negativa aos arts. 35.º e 36.º do tema de prova 17);

5) Que nessa primeira visita à viatura, nas instalações da M Lisboa (Avenida … Lisboa), que ocorreu na quarta-feira, 10 de Setembro 2014, a 2ª Ré e o seu filho fossem recebidos por outro colaborador da empresa L, Sr. J, que informou que o Sr. D se encontrava ausente (resposta negativa ao art. 37.º do tema de prova 17);

6) Que após uma segunda visita e vários contactos telefónicos, fosse acordado o pagamento do preço estipulado pelo colaborador da L, Sr. D nas instalações da M Lisboa no endereço anteriormente identificado, nos termos e condições exigidos pelo colaborador da empresa, Sr. D (resposta negativa ao art. 38.º do tema de prova 17);

7) Que no acto da compra, para além da entrega dos dois cheques, fosse declarado na própria folha em que foram tiradas as cópias pelo representante da L a que se destinavam os mesmos cheques, ou seja, ao pagamento do Ferrari (resposta negativa ao art. 39.º do tema de prova 17);

8) Que o representante da L ficasse de tratar de todas as diligências inerentes ao registo da transferência de propriedade do veículo para a 2ª Ré (parte do art. 40.º da contestação, resposta restritiva ao tema de prova 17);

9) Que a então administração da L sempre soubesse que a 2ª Ré havia comprado o veículo de marca Ferrari em causa nos presentes autos (resposta negativa ao art. 42.º do tema de prova 17);

10) Que, segundo o representante da L, os bens descritos em FF) estavam nas instalações da M Coimbra (parte do art. 43.º da contestação, resposta restritiva ao tema de prova 17);

11) Que o representante da L, D, embora instado por várias vezes para proceder à entrega dos referidos bens, fosse sempre protelando a respectiva entrega (resposta negativa ao art. 44.º, constante do tema de prova 17);

12) Que a dada altura, por o D deixar de trabalhar para a L, a Ré quase sempre por intermédio do seu filho, passasse a contactar com outro funcionário da M, J e com o próprio administrador da L, R (resposta negativa ao art. 45.º, constante do tema de prova 17);

13) Que entre Outubro e Dezembro de 2014, o filho da Ré falasse directamente com o R, o qual estava plenamente ciente de toda a situação, inclusive declarando que sabia que o veículo estava em Corroios (resposta negativa ao art. 46.º, constante do tema de prova 17);

14) Que tais conversas ocorressem, quer telefonicamente, quer pessoalmente, nas instalações da empresa M Lisboa com extensivos e amplos detalhes sobre o Ferrari aqui em causa (resposta negativa ao art. 47.º, constante do tema de prova 17);

15) Que o referido em GG) ocorresse no dia 20 e que A L acompanhasse todo o processo de venda (parte do art. 43.º da contestação, resposta restritiva ao tema de prova 17);

16) Que a 2.ª Ré pagasse à L o valor de € 46.000,00 pelo dito veículo (resposta negativa ao tema de prova 18).

Analisemos.

Os Autores intentam a presente ação alegando, em síntese:

- A 7 de Julho de 2014, os Autores negociaram com a Ré L a compra de um Porshe pelo preço de 81.005, 00 €, para cujo pagamento entregaram a quantia de 41.000,00 €, mais um veículo Ferrari de sua propriedade;

- Não tendo a L feito a entrega do Porshe aos Autores, a 21de Novembro de 2014, acordaram Autores e Ré na revogação do contrato e, “como à data da outorga da revogação a L alegava que o Ferrari havia desaparecido (sem que tivesse sido vendido ou tivesse recebido por ele qualquer valor), obrigou-se a restituir o valor correspondente sem prejuízo de se obrigarem a diligenciar no sentido da localização do veículo Ferrari, com vista a que o mesmo fosse restituído aos AA., em vez dos 40.000,00 €” ;

- Em 11 de Maio de 2015, os Autores vieram a descobrir que o veículo havia sido registado em nome da L a 22-8-2014, e depois em nome da 2ª Ré, M, em 17 de Julho de 2014;

- O documento que serviu de base ao registo de aquisição a favor da 2ª Ré não foi assinado por nenhum administrador da 1ª Ré, e esta nunca qualquer valor pela venda do veículo;

- O negócio celebrado a favor da 2ª Ré é inexistente ou, pelo menos nulo, por força do art. 892º do CC, tendo a 2ª Ré adquirido o veículo de quem não era o seu legítimo dono.

1.Do Recurso dos Autores.

Peticionaram os Autores o seguinte:

- A declaração de nulidade dos contratos celebrados entre si e a L, bem como do contrato de compra e venda entre a 1ª e a 2ª Ré que teve por objeto o Ferrari;

- Que seja ordenado o cancelamento dos registos a favor da 1ª e da 2ª Ré, relativamente ao Ferrari;

- A condenação dos Réus a reconhecer que os Autores são os únicos proprietários e possuidores do Ferrari;

- A condenação da 2ª Ré a restituir o Ferrari aos Autores.

Estes pedidos vieram a ser julgados improcedentes pelo Acórdão recorrido, na sequência do conhecimento das nulidades da sentença produzida, que em sede de Apelação foram suscitadas pelas Rés/Apelantes.

Insurgem-se os Autores contra o Aresto impugnado, uma vez que na sua tese não houve qualquer excesso de pronúncia na anulação do acordo revogatório decidida pelo Tribunal da 1ª Instância, dado que o pedido estava lá e a causa de pedir que o sustentava também - a causa pedir foi alegada na petição inicial, designadamente nos artigos 12 e 13 dos quais consta «Como à data da outorga da revogação a L alegava que o ferrari havia desaparecido (sem que tivesse sido vendido ou tivesse recebido por ele qualquer valor), obrigou-se a restituir o valor correspondente sem prejuízo de se obrigarem a diligenciar no sentido da localização do veículo Ferrari, com vista a que o mesmo fosse restituído aos Autores, em vez dos 40.000,00€.», resultando a invalidade de tal acordo de revogação justamente disso, de terem sido dos Autores enganados pela L, de que o veículo tinha desaparecido, e por isso, não o podiam restituir, mas que apesar da assinatura de revogação continuariam a diligenciar para o restituírem aos Autores em vez dos 40.000,00€, sendo que tais factos foram dados como provados na alínea N) da sentença da 1ª Instância; assim, das duas uma, ou se considera a causa de pedir, para o efeito, de se julgar procedente o pedido de invalidade da revogação, dado que a mesma foi alegada no modelo processual próprio, ou não se entendendo assim, não podem tais factos deixar de ser ponderados no desfecho da acção, que tinha como pedido principal a declaração de propriedade dos Autores sobre o automóvel em questão, e a restituição do mesmo à sua esfera patrimonial, condenando-se a 2ª Ré nesse sentido. O que o Tribunal "a quo" não pode, é deixar de apreciar a relevância da factualidade provada em N) da sentença da 1ª Instância, e que não foi alterada pela Relação, no desfecho da acção, e para tanto, poderá atribuir-lhe a qualificação jurídica que entender.

Resulta da materialidade assente (alíneas B) a E)) que entre os Autores e a Ré L foi celebrado um contrato de prestação de serviços cujo objecto seria a aquisição por aqueles do veículo Porsche, modelo 911 (996), com o chassis WPO…, mês de Julho, ano de 2002, a importar da Alemanha pela Ré, o qual devia ser entregue por esta L aos Autores em 36 dias úteis, pelo preço de 81.005,00€ (oitenta e um mil e cinco euros), através do pagamento de 41.000,00€ em 16 de Julho de 2014, por transferência bancária da conta nº PT50…., para a conta da L com o n.º PT50…. e entrega do valor de 40.000,00€, pagos em forma de género na mesma data, pela entrega à L da sua viatura marca e modelo Ferrari matrícula ….

Embora se tenha considerado na sentença de primeiro grau estarmos face a um contrato de compra e venda de bem futuro, aludida no artigo 880º do CCivil, estamos, antes, face a um contrato misto de prestação de serviços e compra e venda, tal como os mesmos nos são definidos pelos artigos 1154º e 879º, do CCivil, no qual a Ré L se obrigou a negociar a viatura dele objecto ao concessionário vendedor, devendo proceder subsequentemente ao respectivo procedimento de legalização e entrega da mesma aos Autores, cfr doc de fls 20 a 31, cláusulas primeira a quarta.

Tratou-se de um contrato de tipo modificado, que «absorveu» as regras do contrato de compra e venda, implicando, desde logo para os Autores, aqui Recorrentes, o pagamento do preço acordado, cláusula quarta, cfr Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, 463.

Para a Ré, com a outorga do contrato, surgiam as obrigações de efectuar todas a démarches para a aquisição da viatura ao concessionário vendedor na Alemanha e de desencadear todos os trâmites necessários para a sua entrega aos Autores, adquirentes.

 

Questão diversa é a de saber se o contrato foi ou não cumprido e como decorre dos factos dados como assentes,- cfr alínea F) – a Ré  L não entregou aos Autores, como se havia obrigado, o veículo Porshe no prazo estipulado para o efeito, não obstante tenha recebido na totalidade o pagamento do preço, isto é, a quantia em dinheiro e a transferência da propriedade do veículo Ferrari (alínea G) e K)) e nessa sequência, decidiram as partes (Autores e Ré L) revogar o negócio efectuado de prestação de serviços/compra e venda, o que foi feito através do acordo aludido na alínea I), ocorrido em 21 de Novembro de 2014, o que  implicaria a restituição aos Autores dos 41.000,00€ em dinheiro, e do veículo Ferrari que lhes pertencia e fora dado à L em pagamento dos restantes 40.000,00€, perfazendo o preço integral do Porsche a comprar – 81.000,00€, mas porque nessa data aquela Ré  alegava que o Ferrari estava desaparecido (sem que tivesse sido vendido ou tivesse recebido por ele qualquer valor), obrigou-se a restituir o valor correspondente sem prejuízo de se obrigarem a diligenciar no sentido da localização do veículo Ferrari, com vista a que o mesmo fosse restituído aos Autores, em vez dos 40.000,00€ (respostas positivas aos temas de prova 2 e 3). 

O negócio pode ser extinto do mesmo modo pelo qual foi celebrado, porquanto a destruição dos efeitos decorrentes de uma negociação, constitui apanágio da própria autonomia privada, cfr artigo 405º, nºs 1 e 2 do CCivil, cfr Pedro Pais de Vasconcelos, ibidem, 655.

A revogação do negócio é válida porque assentou na vontade esclarecida das partes, nos termos do artigo 432º, nº1 do CCivil, tendo sido celebrada por escrito, obedecendo assim à mesma forma que o negócio revogado, e implicaria a restituição pela Ré L aos Autores do que havia destes recebido, isto é o preço acordado para a compra do veículo, parte em dinheiro e a restante em espécie: a devolução do veículo Ferrari da Autora, se o mesmo viesse a aparecer, ou a quantia de 40.000 €, não tendo havido qualquer erro ma declaração que possa invalidar a mesma já que, ao contrário do que esgrimem os Autores aqui Recorrentes, não se mostra provado que a aceitação pelos mesmos do pacto revogatório, na parte em que substituíram a entrega do Ferrari por uma quantia em dinheiro, tivesse tido como pressuposto que o veículo tivesse efectivamente desaparecido, nem tal resulta da materialidade apurada e constante do tema de prova 3, pois o que aí se lê é diverso: «À data da outorga da revogação, a L alegava que o Ferrari estava desaparecido (sem que tivesse sido vendido ou tivesse recebido por ele qualquer valor), obrigou-se a restituir o valor correspondente sem prejuízo de se obrigarem a diligenciar no sentido da localização do veículo Ferrari, com vista a que o mesmo fosse restituído aos autores, em vez dos 40.000,00€», improcedendo assim a qualificação jurídica aventada.

Alegaram também os Autores, que o objecto do negócio de compra e venda – o dito Porshe a importar da Alemanha – seria nulo por inexistência do objecto (artigo 280º, nº1 do CCivil), contudo não lograram provar a sua tese, pois o que se apurou foi que tal veículo não veio a ser entregue no prazo acordado pelas partes e estas decidiram dar o mesmo sem efeito, extinguindo-o.

Assim sendo, claudica igualmente a pretensão no que tange à nulidade do próprio acordo de revogação por o mesmo incidir sobre um objecto inexistente, porquanto o objecto existiria – Porshe enquanto bem perfeitamente identificado, a importar da Alemanha –, o que aconteceu é que tal contrato não veio a ser cumprido nos termos da alínea b) do artigo 879º do CCivil, pois a Ré L não procedeu à sua entrega aos Autores, o que originou o acordo revogatório.

De outra banda, aquela Ré não devolveu aos Autores o que se havia obrigado em sede de acordo de revogação daqueloutro negócio, sendo certo que, teria de cumprir as condições a que ali ficaram estipuladas por força do disposto no artigo 289º, nº1 do CCivil, aplicável ex vi do artigo 433º do mesmo diploma, sendo que, entretanto, havia já procedido ao registo da propriedade do veículo Ferrari a seu favor, cfr alínea G) dos factos assentes.

Ficou pressuposto entre as partes - L e Autores – que devido ao facto de o veículo Ferrari se encontrar desaparecido, aquela Ré satisfaria a estes o valor de 40.000€, mas apurou-se que este veículo, propriedade da Autora e moeda de troca na efectivação do primeiro negócio com vista à aquisição do veículo Porshe, veio a ser vendido à segunda Ré, que registou a propriedade a seu favor, tendo sido tal registo efectuado com o recurso a uma assinatura falsificada da primeira Ré, a qual não procedeu à venda do mesmo, nem recebeu da segunda Ré qualquer quantia referente ao preço (cfr respostas aos temas de prova 6, 7, 8, 9, 10, 13, 15 e alíneas H) e K) dos factos assentes).

Quid inde?

Como referimos supra, nem estamos face a uma nulidade do contrato de compra e venda do veículo Porshe, que deu origem à transferência de propriedade da Autora/Recorrente para a Ré/Recorrida L do veículo Ferrari, como parte do pagamento do preço acordado, nem tão pouco à nulidade da revogação havida entre as partes, como sequência lógica daquela nulidade, pois ambos os acordos se mostram validamente celebrados.

Isto vale por dizer que quando o Aresto em crise se pronuncia sobre um eventual excesso de pronuncia por parte do primeiro grau ao considerar que houve erro sobre os motivos na celebração do acordo de revogação, dado lugar à sua anulação, que o contrato celebrado entre a L e a segunda Ré não é uma venda de coisa alheia mas antes a celebração de um negócio com falta de poderes, oponível a esta última por não gozar da protecção do preceituado no artigo 291º do CCivil, essa apreciação peca por erro de direito, já que, afinal das contas, estamos é face a uma ausência total de prova da materialidade alegada com vista à declaração de nulidade peticionada.

A compra e venda do veículo Ferrari, aqui enunciada como tendo sido efectuada pela primeira à segunda Ré, configura uma compra e venda de bens alheios, nos termos do artigo 892º do CCivil, uma vez que se apurou ter a Ré compradora obtido a viatura de pessoa, que não a primeira Ré, única entidade com legitimidade para a realizar, já que o veículo se encontrava registado em seu nome, como deflui da alínea G) dos factos assentes.

A aludida compra e venda é, por isso, nula, e porque o registo do veículo Ferrari foi efectuado a favor da segunda Ré em 17 de Setembro de 2014, o que fará inculcar, atentas as datas dos negócios havidos entre as várias partes envolvidas, que a compra teria ocorrido igualmente em Setembro (cfr alínea G)), e como a acção deu entrada em 21 de Agosto de 2015, fls 64, a Ré M não se pode aproveitar do disposto no nº1 do artigo 291º do CCivil, não lhe podendo ser reconhecido qualquer direito de propriedade sobre o veículo Ferrari, pois a acção foi proposta dentro dos três anos subsequentes à conclusão do negócio, o que fará soçobrar a pretensão ensaiada por aquela em sede de pedido reconvencional.

Resulta do artigo 5º, nº3 do CPCivil que «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.», contudo, apenas se pode servir da factualidade alegada e não se pode avançar para uma solução jurídica possível dentro da materialidade alegada e tendo em atenção o que peticionado se mostra, sem que as partes se tenham pronunciado sobre a temática, o que foi feito.

Assim.

Face à revogação contratual havida entre os Autores e a Ré L e por via dos efeitos decorrentes dos artigos 433º e 289º, nº1 do CCivil, tudo se passa na ordem jurídica como se nenhum negócio tivesse existido, devendo ser restituído tudo o que houver sido prestado, embora aqui apenas esteja em causa a devolução do veículo Ferrari, porquanto o demais acordado entre as partes foi objecto de reclamação em sede insolvencial.

O aludido veículo enquanto bem alheio, objecto de venda nula à Ré M, é propriedade da Autora, tendo sido objecto do acordo existente entre os Autores e a Ré L e a eles deverá ser restituído, pela Ré M por se encontrar em seu poder.

Procedem as conclusões dos Autores, embora com um diferente enquadramento e improcede in totum as conclusões da Ré M.

III Destarte, concedendo-se a Revista dos Autores e negando-se a Revista interposta pela Ré M, revoga-se parcialmente a decisão ínsita no Acórdão sob censura e em consequência altera-se a decisão de primeiro grau, nos seguintes termos:

a)          Declara-se válida a resolução contratual havida entre os Autores e a Ré L;

b)           Declara-se nula e de nenhum efeito a compra efectuada pela Ré M e cujo objecto é o veículo Ferrari de matrícula …;

c)            Declara-se a Autora a única e legítima proprietária do veículo Ferrari de matrícula …, condenando-se as Rés a reconhecê-lo;

d)           Ordena-se o cancelamento dos registos constantes das AP…, de 22 de Agosto de 2014 (em nome da Ré L) e … de 17 de Setembro de 2014 (em nome da Ré M), bem como quaisquer outros que hajam sido efectuados subsequentemente.

e)           Condena-se a Ré M a devolver aos Autores o veículo Ferrari;

f)            Absolvem-se os Réus do demais peticionado e os Autores do pedido reconvencional contra os mesmos formulado, bem como da condenação como litigantes de má fé, mantendo-se assim nesta parte o decidido em primeira e segunda instância.

Custas da Revista dos Autores por ambas as Rés, e da Revista da Ré M, a cargo desta, e da acção por ambas as Rés, ficando também a cargo da segunda Ré as custas pela improcedência do pedido reconvencional formulado.

 

Lisboa, 30 de Abril de 2019

Ana Paula Boularot (Relatora)

Fernando Pinto de Almeida

José Rainho