Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
440/07.4TBLNH.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREÇÃO EFETIVA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
PROPRIETÁRIO
CONDUÇÃO DE VEÍCULO CONTRA VONTADE DO PROPRIETÁRIO
CONTRATO DE SEGURO
SUB-ROGAÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 04/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Em acção destinada à efectivação da responsabilidade decorrente de acidente de viação intentada contra o FGA, por falta de seguro obrigatório, o proprietário, também demandado, só responde solidariamente com o Fundo, na vigência do DL nº 522/85 de 31.12, se detiver a direcção efectiva e interessada do veículo causador do acidente;

II. Tendo-se provado que, no dia do acidente, o proprietário não tinha autorizado o condutor a conduzir o veículo e que, por isso, não detinha a direcção efectiva do veículo, não pode aquele ser responsabilizado pelas consequências do acidente.

Decisão Texto Integral:

          Acordam na 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:


*

   AA, solteira, maior, intentou acção declarativa contra Instituto de Seguros de Portugal/ Fundo de Garantia Automóvel, BB, CC, Discolis - Distribuidora Comercial do Frio, S.A, e Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A. todos melhor identificados nos autos, pedindo a condenação do FGA no pagamento de indemnização nos valores de:

a) € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de danos morais;

b) e c) € 135.337,76 (cento e trinta e cinco mil trezentos e trinta e sete euros e setenta e seis cêntimos), a título de danos patrimoniais decorrentes da perda da capacidade de ganho, ou montante superior se no Instituto de Medicina Legal vier a ser apurado uma IPP superior à que serviu de base aos cálculos da autora, e em conformidade com o resultado obtido;

 d) € 3.535,16 (três mil quinhentos e trinta e cinco euros e dezasseis cêntimos), a título de reembolso dos danos e prejuízos materiais decorrentes do acidente Juros de mora à taxa legal sobre as quantias peticionadas sob as als. b) a c).”

Salvaguardando hipotéticas causas de exclusão de responsabilidade, demandou: BB na qualidade de condutor do veículo, CC na qualidade de detentor da direcção efectiva do veículo, Discolis na qualidade de titular do registo de propriedade do veículo, e Allianz, na qualidade de seguradora para quem a ré Discolis havia transferido a responsabilidade civil.

  Alegou, em síntese: que no dia 10.06.2004 sofreu um acidente de viação quando ela e outros circulavam como passageiros no veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula …-…-RA e o seu condutor, o réu BB, perdeu o controlo do veículo, que saiu da estrada e foi embater numa manilha de escoamento de águas, acidente do qual lhe resultaram diversos danos corporais e materiais, que descreveu; que no âmbito de transação que em 28.05.2004 celebraram no processo n° 66/04…., que correu termos no …..o Juízo do Tribunal de Comércio de ….., a ré Discolis ali se comprometeu a no prazo de 15 dias transferir a propriedade do veículo de matrícula …-…-RA para o réu CC e que, em data que desconhece, mas anterior a 10.06.2004, aquela lhe entregou o veículo: que à data do acidente o réu CC, padrasto do réu BB, não tinha transferido a sua responsabilidade civil transferida para qualquer companhia de seguros:; que a ré Discolis tinha a sua responsabilidade civil transferida para a Allianz através da apólice n° …., e esta declarou declinar a responsabilidade pelo acidente porquanto, na data do mesmo, já havia sido cancelada a referida apólice por motivo de transferência de propriedade, tendo então o ISP/FGA assumido a responsabilidade civil decorrente do acidente e, em 15.07.2005, procedeu ao adiantamento à autora da quantia de € 6.503,35 por conta da indemnização final, e apresentou uma proposta para pagamento de indemnização no valor total de € 73.934,94, sendo € 47.176,00 a título da IPP e € 25.000,00 a título de danos não patrimoniais, proposta que a autora não aceitou por entender pecar por defeito.

  Contestou o réu FGA alegando que, embora tenha avançado com uma proposta indemnizatória a título extrajudicial, não dispensa a produção de prova, impugnando parte da matéria de facto alegada e o valor peticionado a título de danos morais, que reputa de manifestamente exagerado, e concluindo pela sua absolvição do pedido.

    Contestou a ré Discolis, alegando que à data do acidente já tinha transferido a propriedade e posse do veículo …-…-RA para o réu CC, o qual estava na sua posse deste desde o início de 2004, altura em que este o retirou das instalações da contestante sem a autorização desta, não mais o tendo devolvido, acto pelo qual contra ele apresentou queixa por furto e abuso de confiança, litígio que dirimiram por transação entre ambos celebrada no âmbito do processo 66/04…. do …. Juízo do Tribunal de Comércio …, com a transferência da propriedade do veículo pela contestante para o réu CC, ao qual em 31.05.2004 entregou os documentos necessários a fim de este proceder à transferência do registo da propriedade para seu nome. Mais alegou que desde Março de 2004 tinha a sua responsabilidade civil transferida para a Allianz, apólice número ……..87, que anulou o referido contrato de seguro, com fundamento na transferência de propriedade, com efeitos a partir do dia 18 de Agosto de 2004, pelo que na data do acidente aquele contrato de seguro estava em vigor, e concluiu pela improcedência da acção e pela absolvição do pedido no que a si tange.

   Contestou a ré Allianz: por excepção, invocando excepção processual dilatória da respetiva ilegitimidade para a ação, alegando que à data do acidente não garantia a responsabilidade civil por danos causados a terceiros decorrente da circulação do veículo …-…-RA, porque o contrato de seguro que, para esse efeito, celebrara com a ré Discolis havia cessado em consequência da transferência da propriedade do veículo para o réu CC, nos termos da transação entre aqueles alcançada naquele processo em 28.05.2004, e o contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, sendo aquele réu quem desde então e à data do acidente detinha a direção efectiva do veículo, com ele circulando no seu interesse (moral) desde 28.05.2004; aduz, ainda, que, sendo o veículo conduzido por pessoa que para tanto não estava legalmente habilitada, só poderia ser condenada até ao limite do capital abrangido pelo seguro obrigatório, € 600.000,00, cfr. causa de exclusão prevista pela al. d) do n° 1 do art.° 2o/CE 01, Parte II - Condições Especiais do Seguro Facultativo de Responsabilidade Civil Automóvel; considerando que o transporte era gratuito, posto que a autora e os outros ocupantes do veículo regressavam à boleia no momento do acidente, apenas assistirá à autora o direito de peticionar os seus danos pessoais, o que exclui os danos de terceiros; por impugnação, quanto aos factos  e quanto aos quantitativos peticionados. Concluiu sucessivamente pela procedência da excepção dilatória da ilegitimidade, com a sua consequente absolvição da instância, pela procedência das excepções peremptórias invocadas, com a sua consequente absolvição parcial do pedido, e pela improcedência da ação, com a sua consequente absolvição total do pedido. Mais requereu a intervenção acessória provocada do réu BB para contra ele exercer direito de regresso por não ser titular de licença de condução, o que foi admitido por despacho transitado em julgado.

   Contestou, também, o réu CC: por exceção, invocando a ineptidão da petição com fundamento em ausência de alegação de factos que fundamentem algum pedido e constituam causa de pedir em relação a ele, invocando a sua ilegitimidade para a sua acção por não ser nem o dono do veículo interveniente no acidente, nem à data do acidente nem depois, porque o acordo para transferência do veículo não se chegou a concretizar, nem sequer a autora alega que se tenha operado a transmissão do dito veículo para o réu que, à data do acidente, era de outra entidade, acrescentando que então se encontrava em …. no desempenho das suas atividades profissionais e por isso não tinha condições de obstar ao uso abusivo do veículo, uso de que a autora tinha conhecimento e nele participou instigando o condutor a fazê-lo, o que constitui comparticipação no furto do veículo e abuso de confiança; e invocando a prescrição do direito da autora com fundamento no decurso do prazo de três anos desde a data do acidente (10.06.2004) e a da citação (12.06.2007); por impugnação, invocando desconhecimento dos factos alegados, e impugnando os montantes peticionados, que reputa exagerados e sem cabal fundamento.

   A autora respondeu às exceções invocadas pelos réus nas suas contestações, concluindo pela improcedência das mesmas e, espontaneamente, procedeu ao aperfeiçoamento do pedido inicial, aditando-lhe pedido de condenação do responsável civil solidariamente com o FGA e, caso se entenda que este não responde pelos danos decorrentes do acidente, pedido de condenação do réu julgado responsável.

  Foi proferido despacho saneador, que julgou improcedentes as exceções da ineptidão da petição inicial e da prescrição invocadas pelo réu CC, relegou para sentença a apreciação das exceções de ilegitimidade invocadas pelos réus Companhia de Seguros, Discolis e CC, e concluiu pela validade e regularidade da instância.

   Foram descritos os factos assentes e a base instrutória, peças sobre as quais recaíram reclamações apresentadas pela ré Allianz e pelo réu CC e que, com excepção da requerida retificação de lapso material de escrita, foram objeto de despacho de indeferimento.

   O réu CC apresentou requerimento de recurso da decisão que julgou improcedentes as exceções da ineptidão da petição inicial, da respetiva ilegitimidade passiva para a ação, e da prescrição por ele invocadas, recurso que foi admitido como de agravo, com subida em diferido com o primeiro recurso que haja de subir imediatamente nos próprios autos, e com efeito devolutivo, nos termos do art. art. 676°, n.° 1, 678°, n.° 1, 680°, 685°, n.° 1, 735°, n.° l e 2, 736° e 740° a contrario, todos do Código de Processo Civil, na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.° 303/2007, de 24 de Agosto- cf. art. 11.°, n.° 1, do mesmo Decreto-Lei.  Mas tal recurso que terá ficado deserto por ausência de alegações, posto que não consta dos autos que tenham sido apresentadas nem, conforme informação prestada pelo tribunal recorrido e cotada nos autos, organizado apenso de recurso de agravo.

Na 1.ª instância foi proferida sentença que concluiu assim:

  “1. Julgo totalmente procedente, por provada, a excepção dilatória de ilegitimidade e, em consequência, declaro o réu, Instituto de Seguros de Portugal/ Fundo de Garantia Automóvel parte ilegítima e absolvo-o da presente instância.

  2. Julgo totalmente procedente, por provada, a excepção dilatória de ilegitimidade e, em consequência, declaro o réu, CC parte ilegítima e absolvo-o da presente instância.

  3. Julgo totalmente procedente, por provada, a excepção dilatória de ilegitimidade e, em consequência, declaro a ré, Discolis – Distribuidora Comercial do Frio, SA parte ilegítima e absolvo-a da presente instância.

  4. Julgo totalmente improcedente, por não provada, a excepção dilatória de ilegitimidade invocada pela ré Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA e, em consequência, declaro-a parte legítima.

  5. Julgo a presente acção, parcialmente procedente, por provada e, em consequência condeno a ré Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA a pagar à autora AA:

 5.1. A quantia de € 1 846,50 (mil e oitocentos e quarenta e seis euros e cinquenta cêntimos) a título de danos patrimoniais emergentes sofridos pela autora, acrescida dos juros moratórios desde a citação de tal ré para contestar a presente acção e até integral pagamento, sendo que, tais juros moratórios são os juros legais, à taxa legal em vigor que, actualmente, é de 4% ao ano (Portaria nº 291/2003, de 8 de Abril);

  5.2. A quantia de € 45 000,00 (quarenta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais sofridos pela autora, aplicando a actualização monetária prevista no n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil;

  5.3. Nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do art.º 609º do CPC revisto relego para liquidação o montante indemnizatório devido à autora a título de danos patrimoniais futuros ou lucros cessantes, com o limite de € 135.337,76 (cento e trinta e cinco mil trezentos e trinta e sete euros e setenta e seis cêntimos), mas acrescido dos juros moratórios, à taxa legal em vigor;

  5.4 Julgo a presente acção, parcialmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolvo a ré Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA do demais pedido pela autora AA nos presentes autos.

 6. Condeno o chamado/réu BB a reconhecer o supra decidido”

  Não se conformou a Allianz, que interpôs recurso de apelação, tendo a Relação concluído pela respectiva decisão:

  “Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a …..a Secção do Tribunal de Relação ….., em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, em alterar a parte decisória da sentença recorrida, suprimindo os seus pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 que se substitui por outro que, julgando a ação parcialmente procedente, condena os réus Fundo de Garantia Automóvel e BB no pagamento à autora da indemnização determinada sob os pontos 5.1, 5.2 e 5.3 da sentença recorrida, e absolve os réus Discolis- Distribuidora Comercial do Frio, S.A, Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA e CC dos pedidos contra eles deduzidos.

  Custas a cargo da autora e dos réus Fundo de Garantia Automóvel e BB, na proporção de 1/3 para a primeira e de 2/3 para os réus”.

  Inconformado, veio o FGA interpor recurso de revista restringido o respectivo objecto à absolvição do réu CC (situação que faz parte do objecto do recurso de apelação, e sobre a qual o Tribunal da Relação … tomou posição), e à quantificação dos danos patrimoniais e não patrimoniais arbitrados à autora (sendo que em sede de motivação e conclusões apenas faz referência ao valor atribuído para a compensação dos danos não patrimoniais).

  Formulou as seguintes conclusões:

  “A) O tribunal “a quo” absolveu o réu CC do pedido apesar de sobre ele, na qualidade de proprietário do veículo

 B) Ora, quem tem a direção efetiva do veículo é o seu proprietário, que obrigatoriamente terá que responder pelos danos que ele causar, ainda que não se encontre em circulação, conforme dispões o n.º 1 do Art.º 503º do C.C..;

 C) Pois, na verdade, não fosse o facto de o proprietário do veículo lesante ter incumprido a obrigação de segurar o Fundo de Garantia Automóvel não teria intervindo no pagamento das indemnizações resultantes do acidente em causa nos presentes autos, pelo que se impõe uma responsabilidade solidária, entre o Réu CC e o interveniente BB, um na qualidade de proprietário do veículo, que incumpriu a obrigação de segurar e o outro na qualidade de condutor, que deu causa ao acidente;

  D) Estabelece, ainda, o n.º 3 do Art.º 54º do DL 291/2007 de 21.08, são solidariamente responsáveis pelo pagamento ao FGA, nos termos do n.º 1, o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente;

   E) Termos em que se conclui que, mesmo que se tenha provado que o Réu CC não detivesse a direção efetiva do veículo à data do acidente, responde solidariamente, na qualidade de proprietário, com o seu detentor e o seu condutor;

  F) Por outro lado, o Tribunal a quo fixou, nos presentes autos, a título de danos não patrimoniais da Autora o valor de € 45.000,00, valor que diga-se desde logo, reservado a situações de dano morte ou ofensas corporais mais graves;

  G) A fixação em tal ordem de valores, para além da convicção do Douto Tribunal a quo, baseou-se num quadro traçado na fundamentação da douta sentença cujos componentes são de reduzida gravidade (no domínio das ofensas corporais) pelo que desenquadrado do contexto jurisprudencial, ainda que o mais recente considerado, para aquele tipo de danos, e que deveria apontar para um valor conforme, em montante não superior a € 15.000,00;

 H) O douto acórdão recorrido ao fixar os montantes indemnizatórios na vertente dos danos patrimoniais e não patrimoniais violou, assim, o disposto nos art.ºs 496º, 562º ambos do Código Civil:

  I) O douto Acórdão recorrido ao absolver o Réu CC, violou assim o disposto no Art.º 503 nº 3 do C.C. e Art.ºs 6º n.º 1 e 54º n.º 3, ambos do DL 291/2007 de 21 de agosto.”

   Não houve contra-alegações.

 Cumpre decidir:   

        

Da matéria de facto considerada assente:

 “A) O veículo …-…-RA, em 30/07/2004, encontrava-se registado na Conservatória do Registo Automóvel a favor da BPI Leasing Sociedade de Locação Financeira, sendo locatária a Discolis, Distribuidora Comercial de Frio, S. A.

 B) Em 28/05/2004 foi celebrado uma transacção judicial no âmbito do Processo n° 66/04……, que correu termos no … Juízo do Tribunal de Comércio …, mediante a qual ficou acordado que a empresa Discolis - Distribuidora Comercial do Frio, S.A., iria transferir, no prazo de 15 dias, a propriedade do veículo de matrícula …-…-RA para CC, sem encargos para este (alínea B) dos factos assentes e documento de fls. 155 e 156 dos autos).

  C) A R. Discolis tinha transferido a sua responsabilidade civil, relativamente ao veículo de matrícula …-…-RA, para a Companhia de Seguros Allianz, através da apólice n° …..., através do qual garantia, para além de outros riscos, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergente da circulação do “RA” até ao limite de € 50.000.000,00.

 D) Em 15/07/2005, o Instituto de Seguros de Portugal, através do Fundo de Garantia Automóvel, procedeu ao adiantamento à A. da quantia de € 6.503,35 por conta da indemnização final.

E) Por documento escrito, datado de 28/5/2004 e entregue ao R. CC, a Ré Discolis declarava que “No âmbito do acordo de transacção global firmado entre ambos ... a propriedade do automóvel de marca …. com a matrícula …-…-RA será transferida para V. Exa. num prazo de 15 dias, estando, no entanto, autorizado afazer pleno uso do referido veículo a partir da presente data”.

  F) Em 10/ 06/2004, BB não era titular de carta de condução.”

- Das respostas aos números da base instrutória:

  “(...)

JJJ) Por ma das funções por si exercidas na ré Discolis - administrador - o réu CC teve sempre à sua disposição a utilização do veículo automóvel da marca …, com o número de matrícula …-…-RA desde o início do contrato de locação de tal veículo automóvel - ocorrido em 25/01/2001 - celebrado entre a BPI Leasing, Sociedade de Locação Financeira, SA (locadora) e a aqui ré Discolis, Distribuidora Comercial do Frio SA (locatária) (resposta explicativa dada ao n° 10 da base instrutória);

 KKK) Apesar de tal contrato de locação ter terminado em 25.01.2004, a ré Discolis nunca transferiu a propriedade do mesmo para o seu nome, pelo que, em 14/01/2014, a propriedade do veículo automóvel da marca …., com o número de matrícula …-…-RA ainda se encontrava registada em nome do Banco BPI, SA (conf. documentos de fls. 182 e 1049 dos autos e o disposto no art.° 607, n°s 4 e 5 do Código de Processo Civil (na redacção efectuada pela Lei n° 41/2013 de 26/06, aqui aplicável ex vi do disposto no art° 5° do referido diploma))

  LLL) O réu CC nunca transferiu a sua responsabilidade civil, relativa àquela viatura, para qualquer companhia de seguros (resposta dada ao n° 11 da base instrutória);

 MMM) A Companhia de Seguros Allianz informou que não aceitava a responsabilidade pelo acidente porquanto, na data do mesmo, segundo a própria, já não se mostrava transferida para si (Allianz) a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo automóvel RA (resposta explicativa dada ao n° 12 da base instrutória);

 NNN) Por via do constante na alínea antecedente, o Instituto de Seguros de Portugal/Fundo de Garantia Automóvel assumiu então, extrajudicialmente, a responsabilidade civil decorrente do acidente, razão pela qual, em 15/07/2005, o Instituto de Seguros de Portugal, através do Fundo de Garantia Automóvel, procedeu ao adiantamento à A. da quantidade € 6.503,35 por conta da indemnização final e mencionada na alínea D) supra (resposta explicativa dada ao n° 13 da base instrutória)

 OOO) A ré Discolis, requereu por escrito à ré Allianz, em 19/8/04, a anulação imediata do contrato de seguro, referido na alínea C) supra, a partir dessa data e invocando desistência (resposta explicativa dada ao n° 77 da base instrutória);

  PPP) A ré Allianz emitiu em 11/9/04, um documento, que enviou à ré Discolis, a quem informou da aceitação da pretendida desistência, declarando anulado o contrato na referida data de 19/ 8/ 04 e emitindo, nessa mesma data de 11/9/04, um recibo de estorno, no montante de € 636,80 e relativo ao período de 19/08/2004 a 08/03/2005 (resposta explicativa dada ao n° 78 da base instrutória);

  QQQ) Na sequência de averiguações a que procedeu, a ré Allianz deu instruções internas para que fossem rectificados o motivo e a data da anulação do contrato referido na alínea C supra, em conformidade com o que apurou (resposta dada ao n° 79 da base instrutória);

  RRR) Em cumprimento do acordo celebrado com o réu CC e referido na alínea B) supra, a ré Discolis entregou-lhe, em 31 de Maio de 2004, os documentos (fotocópia da Carta Verde (Certificado Internacional de Seguro Automóvel), declaração Mod.2 e declaração Mod.3, assinadas e reconhecidas pelo Banco BPI, SA), referentes ao veículo …, com o número de matrícula …-…-RA, a fim daquele proceder ao registo da transferência da propriedade do mesmo para seu nome (resposta dada ao n° 81 da base instrutória);

  SSS) O réu CC, em 10/06/2004, encontrava-se em …, no desempenho das suas actividades profissionais (resposta dada ao n° 83 ° da base instrutória);

  TTT) O réu CC não autorizou que o chamado BB conduzisse a viatura de matrícula …-…-RA, no dia 10.06.2004 ou em qualquer outra ocasião (resposta dada ao n° 84.° da base instrutória).”

  Admissibilidade do recurso:

 Tendo a acção declarativa sido proposta antes de 1.1.2008, mais precisamente em 5.6.2007, aplica-se-lhe, nos termos do artigo 7º da Lei n.º 41/2013, de 26.6, o regime dos recursos do DL n.º 303/2007, de 24.8, com as alterações introduzidas pela referida lei, com excepção do disposto n.º 3 do artigo 671º do CPC, aprovado em anexo à mesma. Assim, não se aplica ao caso vertente a regra da dupla conforme, razão por que o FGA sempre poderá recorrer da decisão da dupla absolvição do réu CC. Mas ainda que se aplicasse o disposto no n.º 3 do artigo 671º do CPC o recurso seria sempre admissível, uma vez que a fundamentação da Relação, utilizada para a absolvição do réu CC, é essencialmente diferente da da 1ª instância: nesta o réu não foi considerado proprietário, naquela foi considerado como tal mas absolvido por não ter a direcção efectiva do veículo.

 No que respeita ao recurso interposto, e no que concerne à quantificação dos danos patrimoniais e não patrimoniais arbitrados à autora, verifica-se que o FGA não tem legitimidade para interpor recurso. É que sobre a valoração dos danos e sobre o montante da respectiva indemnização não recaiu qualquer reponderação ou apreciação por parte do Tribunal da Relação …., que, na procedência do único recurso, interposto pela Allianz, se limitou a absolver a recorrente Allianz do pedido e, consequentemente, a condenar os réus FGA e BB no pagamento da indemnização fixada pela 1.ª instância, mais absolvendo do pedido os réus Discolis e CC, sem que tenha havido antes da parte do FGA, no recurso de apelação da Allianz, qualquer requerimento de ampliação do âmbito do recurso, nos termos do art. 636º do CPC.

 Como assim, temos de concluir que, nessa parte da quantificação dos danos, a sentença proferida na 1.ª instância transitou em julgado pelo que de dessa parte não cabe, assim, recurso de revista.

  Do thema decidendum:

  Como se disse, na acção interposta, a 1ª instância condenou a Allianz (como seguradora da proprietária do veículo causador do acidente, a ré Discolis) no pagamento da indemnização à autora (lesada), absolvendo da instância os réus FGA (por a responsável Discolis beneficiar de seguro), a Discolis (por ter transferido a responsabilidade para a Allianz) e CC (por não ser proprietário do veículo).

  Porém, a Relação, alterando essa decisão, decidiu condenar os réus FGA (como garante) e BB (como condutor culpado do acidente) no pagamento da indemnização fixada pela 1.ª instância e absolver os réus Discolis (por ter alienado o veículo para o réu CC), Allianz Portugal, SA (por o contrato de seguro ter cessado com a alienação do veículo) e CC (por, apesar de proprietário, não ter a direcção efectiva do veículo) dos pedidos contra eles deduzidos.

   O recorrente FGA limita o recurso à questão da absolvição do réu CC por denominada preterição do litisconsórcio necessário passivo.

 Todavia, não é essa questão, atinente à legitimidade processual, que está em causa: o réu CC foi absolvido não por preterição do litisconsórcio necessário passivo, que não se verifica (cfr. art. 29º, nº 6 do DL 522/85 de 31.12, aqui aplicável), mas pelo facto de a Relação entender que o referido réu não tinha no momento do acidente a direcção efectiva do veículo, nos termos do art. 503º, nº 1 do Código Civil.

  Assim, o que o recorrente pretende é, como decorre, aliás, das alegações e das conclusões, a condenação do réu, por força do disposto nos invocados art. 6º, nº 1 e 54º n.º 3, ambos do DL nº 291/2007 de 21 de Agosto: por ter incumprido a obrigação de segurar, por ser proprietário e por deter a direcção efectiva do veículo.                      

  Mas tal pretensão não pode proceder.

  Em primeiro lugar, à data do acidente (10.6.2004) - e mesmo à data da propositura da acção, em 5.6.2007- estava em vigor o DL nº 522/85 de 31.12. E, por isso, devem ser convocados os preceitos desse diploma, com interesse para a questão que se transcrevem:

   “Artigo 1. ° (Da obrigação de segurar)

 1 - Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade.

2 -(…)

  Artigo 2.° (Sujeitos da obrigação de segurar)

 1 - A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a referida obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário

 Artigo 21° (Âmbito do Fundo)

 1 - Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer, nos termos do presente capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais.

 2 - O Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por:

 a) Morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz, ou for declarada a falência da seguradora;           

  b) Lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido ou eficaz;

  (…)

 Artigo 25° (Sub-rogação do Fundo)

 1 - Satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança.

 2 - (...)

 3 - As pessoas que, estando sujeitas à obrigação de segurar, não tenham efectuado seguro poderão ser demandadas pelo Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.° 1, beneficiando do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente, se os houver, relativamente às quantias que tiverem pago.

 Artigo 29° (Legitimidade das partes e outras regras)

   (...)

  6 - As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido ou eficaz, devem obrigatoriamente ser interpostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade.”

  É certo que o artigo 2º do DL nº 522/85 faz impender a obrigação de segurar, em regra, sobre o proprietário do veículo. Mas, como decorre desde logo do nº 1 do art. 1º, fá-lo no pressuposto de que é esse, em regra, o responsável civil pelo acidente. Essa conclusão resulta também do próprio nº 6 (e do nº 8) do art. 29º que aludem ao “responsável civil” e não ao proprietário sujeito da obrigação de segurar. E também se extrai do art. 21º, nº 2 e do art. 25º, nº 3 (não é aplicável ao caso o invocado nº 3 do art. 54º do DL nº 291/2007) que se referem aos responsáveis pelo acidente (cfr. Ac. STJ de 2.3.2004, proc. nº 03A3499, em www.dgsi.pt).

   Aliás, o art. 25º (como, de resto, o actual art. 54º, nº 3 do DL nº 291/2007) qualifica o direito que permite ao FGA exigir o reembolso das importâncias em que foi condenado como “sub-rogação” nos direitos do lesado, o que significa que o lesado adquire o direito contra o proprietário, não por via deste preceito, mas por via do art. 503º, nº 1 do Código Civil.  O art. 25º, nº 3 quando se refere às pessoas sujeitas à obrigação de segurar tem de ser interpretado, assim, no sentido de que o Fundo apenas dispõe do direito de sub-rogação do lesado quando o proprietário, sujeito de obrigação de segurar, puder ser responsabilizado pelas consequências do acidente. E só pode ser responsabilizado quando tiver a direcção efectiva do veiculo, nos termos do art. 503º, nº 1 do Código Civil (cfr., o supracitado acórdão de 2.3.2004; e o Ac. STJ de 6.6.2019, proc. 519/14.6TBEVR.E1.S1 no sentido de que o n. 3 do art. 54º do DL n.º 291/2007, de 21.8  deve ser interpretado no sentido de que o exercício, por parte do FGA, da sub-rogação nos direitos que competiriam aos lesados contra o proprietário do veículo depende, cumulativamente, do facto de este não ter cumprido a obrigação de o segurar e de deter a direcção efectiva do mesmo).

   De tudo resulta, pois, que o proprietário só é responsável pelas consequências do acidente de viação se for responsável civil do mesmo, o que só acontecerá se tiver a direcção efectiva, nos termos do art. 503º, nº 1 do Código Civil. (v. o citado Ac. STJ de 2.3.2004).

   Como assim, não é exacto que o proprietário do veículo seja responsável por ser mero sujeito da obrigação de obrigação de segurar ou por ter incumprido o dever de segurar.

   Nem é correcto, como se argumenta também, que o proprietário tenha necessariamente a direcção efectiva do veículo, que tenha sempre o poder real (de facto) sobre o veículo (Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, volume I, 3ª edição, pág. 486). Embora a responsabilidade recaia normalmente sobre o proprietário, este não é responsável se e quando não tiver a direcção efectiva do veículo (ob. cit., pág. 485).

  É verdade que se tem entendido que a simples alegação da propriedade sem a invocação expressa de quem tem a sua direcção efectiva e interessada, é suficiente para poder conduzir à procedência do pedido de indemnização emergente de acidente de viação formulado contra o proprietário do veículo e contra o Fundo de Garantia Automóvel, este por falta de seguro, na medida em que se presume a direcção efectiva na titularidade do proprietário (a direcção efectiva integra o conteúdo do direito de propriedade) (cfr., v.g. Ac. STJ de 29.1.2014, proc. nº 294/04.7TB0BR.C1.S1, em www.dgsi.pt).

  Sucede, no entanto, que essa presunção pode ser ilidida pelo dono do veículo, sobre o qual recai a prova de que não tinha a direcção efectiva (cfr. Ac. STJ de 6.12.2011, proc. nº 01A346, no citado site do IGFEJ).

   Revertendo ao caso sub judice, verifica-se que o proprietário logrou essa prova. Com efeito, provou que não tinha autorizado o condutor a conduzir o veículo no dia do acidente ou em qualquer outra ocasião (facto TTT). Provou, portanto, que não detinha a direcção efectiva do veículo no momento do acidente. E, por isso, não pode ser responsabilizado, solidariamente, com o FGA e com o condutor, pelas consequências do acidente.

    Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):

 1. Em acção destinada à efectivação da responsabilidade decorrente de acidente de viação intentada contra o FGA, por falta de seguro obrigatório, o proprietário, também demandado, só responde solidariamente com o Fundo, na vigência do DL nº 522/85 de 31.12, se detiver a direcção efectiva e interessada do veículo causador do acidente;

 2. Tendo-se provado que, no dia do acidente, o proprietário não tinha autorizado o condutor a conduzir o veículo e que, por isso, não detinha a direcção efectiva do veículo, não pode aquele ser responsabilizado pelas consequências do acidente.

 Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 20 de Abril de 2021

O relator António Magalhães

 (Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020 de 13.3., atesto o voto de conformidade dos Srs. Juízes Conselheiros Adjuntos Jorge Dias e Maria Clara Sottomayor que não assinaram, por não o poderem fazer).