Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17908/16.4T8LSB-C.L1-A.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CONDENAÇÃO EM CUSTAS
CUSTAS DE PARTE
ISENÇÃO DE CUSTAS
DECISÃO QUE PÕE TERMO AO PROCESSO
CONHECIMENTO DO MÉRITO
RECLAMAÇÃO
SUCUMBÊNCIA
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: DEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Sumário :
I - A decisão de condenação em custas de acordo com os critérios de causalidade/vencimento e proveito/decaimento na acção previstos no art. 527.º, n.os 1 e 2, do CPC é complemento e parte integrante do dispositivo relativo ao julgamento da acção (art. 607.º, n.º 6, do CPC) e assume autonomia material quando decide a questão da responsabilidade pelas custas processuais (no caso, só as “custas de parte”: arts. 529.º, n.os 1, in fine, e 4, e 533.º do CPC, 26.º, n.os 1 e 2, do RCP). Por isso, a “decisão condenatória” em sede de pagamento de custas a que se refere o art. 527.º, n.º 1, recai igualmente no conceito amplo de «mérito da causa», uma vez que é parte integrante, ainda que independente, da decisão material final que coloca termo ao litígio.
II - O recurso de revista de acórdão da Relação que aprecie tal decisão proferida pela 1.ª instância é admissível para apreciação por parte do STJ se e na medida em que a enquadremos no art. 671.º, n.º 1, do CPC, que permite a revista para as decisões materialmente finais da Relação que conheçam do mérito da causa ou que coloquem termo ao processo em sede processual, desde que preenchido o pressuposto geral de recorribilidade contemplado no art. 629.º, n.º 1, do CPC.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 17908/16.4T8LSB-C.L1-A.S1

Tribunal reclamado: Relação ……, 7.ª Secção

Reclamação de Despacho do Relator: Arts. 643º, 4, 652º, 3, CPC (Reclamação Prévia: Arts. 641º, 6, 643º, CPC)

Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. «Fundo de Recuperação de Créditos – INQ – Papel Comercial ESRI e Rio Forte», sendo «PATRIS – SGFTC, S.A.» a respectiva entidade gestora, apresentou Reclamação, nos termos do art. 643º, 1 e 3, do CPC, contra o despacho do Ex.mo Relator Desembargador do Tribunal da Relação …. (TR….), proferido em 4 de Abril de 2020 (a fls. 14 deste apenso), que não admitiu recurso de Revista interposto do acórdão desse TR….., proferido em 5 de Novembro de 2011 (a fls. 10v e ss deste mesmo apenso). 

Neste aresto de segundo grau de jurisdição foi apreciada a apelação interposta pelo Réu AA. contra o despacho proferido em 26 de Junho de 2019, que, por sua vez, rectificara a sentença proferida em 22 de Março de 2019 na parte relativa à decisão sobre custas – em que a Autora (uma vez habilitada após transmissão de créditos) fora condenada nas custas respectivas (depois de decidida a absolvição dos Réus da instância por incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria em acção declarativa sob a forma de processo comum intentada contra “Banco Espírito Santo, S.A.”, Banco de Portugal, BB., CC., DD., EE., FF., CC., AA., GG., HH., II., JJ., LL., MM., NN., “ESI – Espírito Santo International”, “Novo Banco, S.A.”) – uma vez solicitada a isenção prevista no art. 69º da Lei 69/2017, de 11 de Agosto (assim se argumentou: “o fundo de recuperação de créditos fica isento de custas judiciais nas ações por si intentadas ou em que por outra forma intervenha na prossecução das respetivas finalidades, nomeadamente com vista à cobrança dos créditos que lhe tenham sido cedidos pelos participantes”), despacho esse (Juiz ….. do Juízo Central Cível de …..) que assim decidiu:

“ao abrigo do preceituado no art. 614.º/1 do C.P.C., rectifica-se o lapso constante da sentença, por forma a que onde se lê custas pela A. se leia, sem custas, por delas estar isento o Fundo A. (art. 69.º da Lei 69/2017 de 11 de Agosto). Notifique e introduza a rectificação no local próprio em formato de papel”.

Esse recurso de apelação visou revogar a sentença rectificada pelo despacho superveniente na parte em que a decretada isenção de custas abrangia também o pagamento das “custas de parte” devidas como reembolso às partes vencedoras da acção (os Réus) a esse título, por via do art. 4º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), aprovado pelo art. 1º do DL n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, sendo alegado pelo Apelante que essa quantia correspondia ao montante total de € 9.588,00. Por isso se identificou como única questão recursiva “determinar se[,] não obstante a isenção de custas reconhecida à autora, parte vencida na decisão final do processo principal, deve esta suportar a quantia correspondente às custas de parte a que o réu ora recorrente teria direito”. Decidiu então o TR…… julgar procedente a apelação, por se ter concluído que “a recorrida deve ser condenada no pagamento das custas, na vertente de custas de parte, ficando isenta das demais custas”, embora sem existir “fundamento bastante para quantificar a quantia a que o mesmo tem direito a título de custas de parte”; no dispositivo do acórdão, alterando-se o despacho recorrido, inscreveu-se determinar que “no dispositivo da sentença datada de 22-03-2019 (…), onde consta ‘Custas pela A. (art. 527.º/1/2 do CPC)’ passe a constar: ‘Custas pela A., na vertente de custas de parte, estando a mesma isenta das demais custas – arts. 527.º, n.os 1 e 2 do CPC, 69.º da Lei 69/2017, de 11-08, e 4.º, nº 7 do RCP’”.

2. Desse acórdão veio a Autora e aqui Reclamante interpor recurso de revista para o STJ, alegando a impugnação nos termos do art. 671º, 1, e 674º, 1, a), do CPC, tendo em vista revogar o acórdão recorrido e a manutenção integral da sentença com a redacção do despacho superveniente de rectificação.

3. No despacho de não admissão do recurso de revista referido sob 1., fundamenta-se a irrecorribilidade com base no não preenchimento do art. 629º, 1, do CPC, quanto ao valor da sucumbência exigível para a revista, atenta a perda alegada quanto ao montante de € 9.588,00 a título de custas de parte, sendo este inferior a metade da alçada da Relação (€ 15.000).

4. A Reclamante contesta este despacho pelo facto de ter havido adesão ao seu recurso de apelação pelos restantes dois Réus (HH. e GG.), apresentando cada um deles notas de custas de parte no valor de € 9.588,00 cada: “[a]ssim, o valor da sucumbência, entendido com prejuízo que advém para o recorrente da decisão impugnada, em concreto, materializa-se para o Autor em € 28.764,00 e não em € 9.588,00”, em resultado da aplicação do art. 634º, 2, a), do CPC.

Foi apresentada Resposta pelo Réu e Recorrido AA., nos termos do art. 643º, 2, do CPC, pugnando pela improcedência da Reclamação e confirmação do despacho reclamado, seja porque a adesão ao recurso não altera o valor da causa nem pode alterar o eventual valor da sucumbência na apreciação do art. 629º, 1, do CPC (“o valor da pretensão daquele que adere não pode ser tido em consideração para determinação do valor da sucumbência”), seja porque o acórdão recorrido não é recorrível ao abrigo do art. 671º, 1, do CPC.

5. Por despacho singular do aqui Relator foi decidido julgar improcedente a Reclamação, confirmando-se a decisão reclamada de não admissão do recurso de revista, ainda que com fundamentação diversa.

6. Notificado de tal despacho, vem dele o Recorrente reclamar para a Conferência, visando a sua revogação e a prolação de acórdão que admita o recurso de revista interposto nos termos do art. 671º, 1, do CPC, concluindo que, “tendo sido o recurso de revista interposto da decisão da 1a instância que põe termo ao processo modificada, ao abrigo do disposto no artigo 613.º, n.º 2 e 614.º, n.º 1 do CPC e no âmbito do poder jurisdicional do juiz de 1a instância, deve o mesmo ser admitido por preencher todos os pressupostos de recorribilidade”.

7. Não houve pronúncias dos Recorridos nos termos do art. 652º, 3, in fine, do CPC.

Uma vez colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO

8. Na sequência do despacho reclamado, a questão que se apresenta para decisão é saber se deveria ter sido admitido ou não o recurso de revista do acórdão proferido pela Relação ….., atentos os pressupostos de admissibilidade, gerais e especiais, da revista.

Em causa a decisão proferida pela 1.ª instância, ao abrigo da imposição do art. 607º, 6, do CPC («No final da sentença, deve o juiz condenar os responsáveis pelas custas processuais, indicando a proporção da respectiva responsabilidade.»), em aplicação dos critérios do art. 527º do mesmo CPC.

O despacho ulterior de rectificação, proferido ao abrigo dos poderes atribuídos pelos arts. 613º, 2, e 614º, 1, do CPC, considera-se parte constitutiva (neste caso, substitutiva por integração) da sentença rectificada, no segmento decisório relativo à condenação em custas (por analogia com o art. 617º, 2, do CPC[1]).

9. Foi referido no despacho reclamado e reitera-se:

“O art. 629º, 1, do CPC determina que: «O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (…)».
Este preceito impõe que, enquanto condição geral de recorribilidade das decisões judiciais, a admissibilidade do recurso ordinário esteja dependente da verificação cumulativa destes dois pressupostos jurídico-processuais: (i) o valor da causa tem de exceder a alçada do tribunal de que se recorre; (ii) a decisão impugnada tem de ser desfavorável para o recorrente em valor também superior a metade da alçada do tribunal que decretou a decisão que se impugna. Tal significa que os requisitos previstos no art. 629º, 1, do CPC são cumulativos e indissociáveis (em rigor, um duplo requisito) e a observância do primeiro deles – “valor da causa” – precisa da averiguação (se possível: 2.ª parte do preceito) do segundo – “valor da sucumbência” – para, ainda que a título complementar[2], completar o requisito de admissibilidade[3].
Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000,00 (art. 44º, 1, da L 62/2013, de 26 de Agosto), anotando-se que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção (n.º 3 desse art. 44º).

No caso, a causa tem um valor processual, fixado pelo juiz de 1ª instância na sentença (art. 306º, 1 e 2, 297º, 1, CPC), de € 250.000 – logo, manifestamente superior a € 30.000,00, alçada do tribunal (da Relação) recorrido.
Quanto à sucumbência sofrida pela parte vencida na decisão, deveria ser avaliada, uma vez interpretada de acordo com o critério fixado pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ, de 14/5/2015 (AUJ n.º 10/15)[4] (“diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1.ª instância e no acórdão da Relação”), tendo em conta a diferença/perda entre o valor arbitrado na 1ª instância e o valor resultante da decisão proferida pelo acórdão da Relação. Neste caso, a perda seria o montante a constar da nota discriminativa e justificativa das “custas de parte” a serem reembolsadas em virtude da condenação da parte contrária (arts. 529º, 4, 533º CPC; 25º, 1 e 2, 26º-A, RCP; 31º, 1, 33º, 1 e 4, Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril), montante esse cuja responsabilidade pelo pagamento era excluído pela decisão de isenção de custas da 1.ª instância. Acontece, porém, que, tal como se reconhece no acórdão recorrido, esse montante não está comprovadamente quantificado na tramitação processual e no objecto recursivo da decisão recorrida da Relação. Não estamos, portanto, em condições de aferir com exactidão o valor indicado pela parte apelante, e agora Recorrida, no ponto 21. das suas Conclusões em apelação. Razão pela qual não se pode atender ao requisito complementar imposto pelo art. 629º, 1, 1.ª parte do CPC, por impossibilidade de verificar o decaimento entre o resultado declarado pelo despacho de rectificação da sentença e o resultado declarado no acórdão recorrido e, assim, atendendo só ao valor da causa (2.ª parte do art. 629º, 1, do CPC), o recurso seria admissível”.

Por outro lado.

10. A impugnação recursiva corresponde a revista de acórdão da Relação que incidiu sobre a sentença de 1.ª instância, integrada/rectificada pelo despacho superveniente de modificação do segmento decisório de condenação em custas. Logo, a questão recursiva submetida pelo crivo da revista interposta incide sobre o acórdão da Relação mas apenas, só e exclusivamente, se circunscreve à decisão de condenação em custas proferida pela 1.ª instância e reapreciada pelo acórdão da Relação (v. art. 635º, 2, do CPC: «Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre.»), ainda que tal decisão tenha assumido a sua versão recorrida depois de corrigida por despacho judicial superveniente.
Este segmento decisório é complemento e parte integrante do dispositivo relativo ao julgamento da acção (art. 607º, 6, CPC) e assume autonomia material quando decide da questão da responsabilidade pelas custas processuais de acordo com os critérios de causalidade/vencimento e proveito/decaimento na acção previstos no art. 527º, 1 e 2, do CPC[5] (no caso, só as “custas de parte”: arts. 529º, 1, in fine, 4, 533º, CPC, 26º, 1 e 2, RCP). Por isso, a “decisão condenatória” em sede de pagamento de custas a que se refere o art. 527º, 1 (excluída a «taxa de justiça»: art. 529º, 2[6]), recai igualmente no conceito amplo de «mérito da causa», uma vez que é parte integrante, ainda que independente, da decisão material final que coloca termo ao litígio[7]
Assim sendo, ao invés do sustentado no despacho reclamado, a decisão recorrida é impugnável em sede de revista no âmbito do art. 671º, 1, do CPC, que enquadra a revista para as decisões finais da Relação que conheçam do mérito da causa ou que coloquem termo ao processo.
Sendo este o fundamento do Recorrente, e cumprido o art. 629º, 1, do CPC, nos termos sobreditos, deve ser admitido o recurso.


III. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a Reclamação apresentada, admitindo-se o recurso e requisitando-se o processo principal ao tribunal recorrido nos termos do art. 643º, 6, do CPC.
*
Custas da Reclamação a cargo dos Recorridos, que se fixa em taxa de justiça no montante correspondente a 1 UC.



STJ/Lisboa, 26 de Janeiro de 2021 

Ricardo Costa (Relator)

Nos termos do art. 15º-A do DL 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do DL 20/2020, de 1 de Maio, e para os efeitos do disposto pelo art. 153º, 1, do CPC, declaro que o presente acórdão, não obstante a falta de assinatura, tem o voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos que compõem este Colectivo.

António Barateiro Martins

Ana Paula Boularot

SUMÁRIO (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

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[1] V. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS FILIPE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 614º, pág. 735.
[2] Também porque, de acordo com o art. 629º, 1, 2ª parte, só se atenderá ao “valor da causa” – diz a lei – «em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência».
V. por todos, para se realçar a complementaridade do “valor da sucumbência” em relação ao “valor da causa” (na relação com a alçada do tribunal recorrido), ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 629º, pág. 44.

[3] Sobre a relação entre estes dois pressupostos (principal e complementar), v. o Ac. do STJ de 17/10/2019, processo n.º 255/10.2T2AVR-J.P1-A.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[4] Processo n.º 687/10.6TVLSB.L1.S1-A, Rel. FERNANDO BENTO, in www.dgsi.pt; publicado in DR, 1.ª Série n.º 123, de 26 de Junho de 2015.

[5] V. SALVADOR DA COSTA, “Responsabilidade pelas custas no recurso julgado procedente sem contra-alegação do recorrido”, Blog do IPPC (https://blogippc.blogspot.com/search/label/Notas; https://drive.google.com/file/d/1AUCq7fmuDEcJjTOH7adY2whdoybrxrEY/view), pág. 3.
[6] Assim, SALVADOR DA COSTA, As custas processuais – Análise e comentário, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 7-8.
[7] V. RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, sub art. 671º, págs. 174-175.