Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1250/13.5TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: ASSISTÊNCIA HOSPITALAR
DIREITOS DO CONSUMIDOR
DEVER DE INFORMAÇÃO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
ACTO MÉDICO
ATO MÉDICO
CONTRATO DE SEGURO
Data do Acordão: 06/05/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / PRESTAÇÃO DE SERVIÇO / NOÇÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1154.º E SS..
LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR, APROVADA PELA LEI N.º 24/96, DE 31 DE JULHO.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DA BIOMEDICINA: - ARTIGO 5.º.
Sumário :
I – O utente assume a qualidade de consumidor na relação com o prestador de cuidados de saúde, nos termos da Lei n.º 24/96, de 31 de julho que aprovou o regime legal aplicável à defesa do consumidor (Lei do Consumidor).

II - O utente tem o direito a ser informado atempadamente pelo prestador dos cuidados de saúde sobre os serviços e valores a pagar;

III – Se o utente – com conhecimento do prestador de cuidados de saúde - celebrou um determinado contrato de seguro que financia a prática de atos médicos em determinado estabelecimento hospitalar, deve ser esclarecido pelo prestador sobre a possibilidade de vir a ter que suportar algum custo, relativamente aos cuidados de saúde que lhe vierem a ser ministrados.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. “AA, S.A.” instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra BB, CC e DD, pedindo a condenação das rés no pagamento da quantia de EUR 38.813,88, acrescida de juros de mora, à taxa legal para créditos de empresas comerciais, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

No dia 4/8/2011, EE, marido da 1.ª ré e pai das 2.ª e 3.ª rés, foi admitido no Hospital FF (doravante HFF), em Lisboa, cuja exploração foi cedida à autora pela GG, a fim de ser submetido a “cirurgia cardiotoracica”, tendo permanecido internado até 1.9.2011, data em que faleceu.

Porém, antes do internamento, um médico do Hospital formalizou junto da HH, S.A. um pedido de “pré-autorização para a sua hospitalização.

O procedimento veio a ser autorizado pela HH que, com data de 1/8/2011, emitiu e enviou à autora um “Termo de Responsabilidade”, através do qual declarava assumir a responsabilidade pelo pagamento do internamento e/ou ambulatório, pelo procedimento 95.03.01.T - cateterismo coração esquerdo, coronariografia seletiva, ventriculografia, até ao capital disponível de EUR 35.930,00, devendo ser faturado ao doente um copagamento de 10%, no mínimo de € 200,00 e no máximo de € 500,00. 

Durante a permanência do doente no HFF, a coordenadora dos internamentos do Hospital informou as rés de que os serviços já prestados excediam o capital previsto no “Termo de Responsabilidade” acima referido.

Foi, então, emitido pela HH e entregue à autora um novo “Termo de Responsabilidade”, datado de 21.9.2011, no qual aquela assumia a responsabilidade pelo pagamento das despesas hospitalares até € 50.000,00.

Pelos cuidados de saúde prestados a EE, a autora emitiu duas faturas, uma no montante de € 50.000,00, que enviou à HH, e outra no montante de € 41.609,58, que remeteu às rés.

Entretanto, na sequência de uma reclamação apresentada pela HH, que foi atendida pela A., esta remeteu às rés uma nota de crédito, no montante de € 2.5956,70, pelo que o valor em dívida ascende a EUR 38.813,88, quantia que as rés recusam pagar.

2. A ação foi contestada, tendo as rés, em sua defesa, alegado que:

O seu familiar EE foi internado no HFF, a coberto de um contrato de seguro de saúde-HH celebrado com a Seguradora II, SA.

O médico assistente do referido EE enviou previamente à HH uma informação clínica para hospitalização, a qual foi autorizada, conforme “Termo de Responsabilidade” enviado à autora, pela seguradora.

EE foi, então, internado no HFF e submetido às intervenções cirúrgicas programadas, tendo pago diretamente à autora a franquia prevista no contrato de seguro, no montante de EUR 500,00.

O doente e as ora rés estavam convencidos de que a totalidade das despesas com a prestação dos cuidados de saúde que motivaram o internamento seria suportada pela HH, ficando a cargo do doente apenas o pagamento da franquia.

Porém, no dia 8.9.2011, a autora, por intermédio de uma colaboradora, informou as rés de que os valores devidos pelos cuidados de saúde prestados ao doente tinham excedido o capital previsto no “Termo de Responsabilidade”.

Perante esta informação, as rés diligenciaram junto da HH o aumento do valor do capital para € 50.000,00 e solicitaram a transferência imediata do falecido EE para um Hospital público, a qual acabou por não se concretizar devido ao seu falecimento.

Nem o doente, nem as ora rés, nem a seguradora foram informados do valor dos cuidados médicos que iam sendo prestados àquele, tendo apenas tomado conhecimento desses montantes dias antes do falecimento do doente, mais concretamente em 8.9.2011, data em que a mencionada colaboradora da A. as informou desse facto.

Sustentam, assim, nada dever à autora.

3. A final, realizado julgamento, foi proferida sentença que, julgando a ação improcedente, absolveu as rés do pedido.

4. Inconformada, a autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação de … que, revogando a sentença, condenou as rés a pagar à autora a quantia de EUR 27.169,00, acrescida de juros de mora, à taxa devida para os créditos de empresas comerciais, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.

5. Irresignadas com esta decisão, vieram as rés recorrer para este Supremo Tribunal, dizendo, em conclusão:

1. O acórdão que se impugna revogou a sentença de primeira instância que absolveu as RR do pagamento da fatura no valor de € 38.813,88 emitida pela sociedade que explora o Hospital FF. Tal fatura foi emitida, enquanto excesso pelos serviços prestados pelo Hospital ao infeliz EE que faleceu nos cuidados intensivos no dia 10 de Setembro de 2011, onde esteve durante mais de um mês, após ter sido submetido a uma intervenção cirúrgica que consistiu num cateterismo destinado a desimpedir uma obstrução da artéria que sai do ventrículo esquerdo.

2. Claro que tal cirurgia implicava um internamento por período bem inferior a um mês (7, 10, 14 dias?). Só assim não sucedeu porque sobreveio um hematoma generalizado que reteve o EE nos cuidados intensivos desde a operação cirúrgica até à morte.

3. A já mencionada fatura era o valor que o Hospital pedia para além dos € 50.000,00 que faturou e recebeu do seguro de saúde que o EE contratou com a HH. Em rigor, as faturas não estavam corretas, visto a autora ter emitido uma nota de crédito em virtude da reclamação da HH.

4. Não está aqui em causa o cumprimento defeituoso da prestação médica, porque, infelizmente, as rés não reconvieram quando contestaram a ação. A verdade é que até o cirurgião foi mudado, por muito inverosímil que pareça. O Dr. JJ foi o médico do Hospital que consultou e propôs a cirurgia ao doente EE e que transmitiu os dados clínicos e de internamento à seguradora. Quem o operou foi o Dr. KK. É outro mistério desta ação incompreensível. Discutiu-se o acessório. O principal foi deixado de lado. Está aqui em causa apenas o saber se era ao hospital que incumbia o dever de informar as rés de que o valor do capital seguro já fora excedido ou se era às rés que competia o dever de se irem informando permanentemente sobre a hipótese do capital seguro ser suficiente ou já ter sido excedido.

5. Quando o hospital comunicou às rés, em reunião de 8/09/2011, que o capital já fora excedido, estas diligenciaram de imediato na transferência do marido e pai para um Hospital público. Foi tarde. O EE veio a falecer no dia 10 do mesmo mês, isto é, dois dias depois da mencionada reunião. Porque terão agido apenas em 08/09/2011 e não antes? Porque não sabiam obviamente.

6. O acórdão recorrido acaba por ver no caso um contrato a favor de terceiro e depois de muitas considerações sobre a violação do dever de informação por parte do Hospital, acaba por servir-se do art.° 570.° do CC para considerar o Hospital como lesado que também concorreu para a lesão.

7. Nada disto está aqui em questão, como é bom de ver. A prestação médica foi defeituosa e incorreta. Como o defeito não foi invocado, como causa de responsabilidade civil, apenas a incorreção está em discussão; o Hospital não prestou a informação que integra o dever acessório da prestação e que integra também o princípio geral da boa fé, quer na sua vertente objetiva, quer na sua vertente subjetiva ou psicológica.

8. A este respeito, e não só, teremos de dizer que a sentença de primeira instância, que o acórdão recorrido revogou, é irrepreensível, clara e rigorosa. Foi o Hospital FF que não realizou a sua prestação com a lealdade e a consideração devidas para com as rés, porque não prestou a informação devida a tempo de estas poderem assumir a necessária escolha (melhor opção), violando, pois, o art.° 762.° do CC e ainda a Lei de Defesa do Consumidor, - Lei n.° 24/96 de 31 de Julho - designadamente, o art.° 2.°, 3º, al. d), 8.°, nºs 1, 5 e 6 e o art.° 9.° nºs 1 e 4. A isto acrescentaremos o art. 9.°-A para pagamentos adicionais, designadamente os nºs 1, 2 e 4. Refira-se que o acórdão recorrido afasta, sem que veja a necessidade de o justificar sequer, a aplicação da Lei de Defesa do Consumidor. Para nosso grande espanto. Se este não é um dos casos em que essa Lei deva ser aplicada, visto verificar-se uma complexidade socioeconómica que determina a especial necessidade de proteger o "paciente" ou respectivas famílias, então para pouco ou para nada serviria tal Lei. Terminaremos, afirmando que o conhecimento é sempre poder, como é sabido. Nas relações com médicos e, por maioria de razão com organizações médicas, só a Lei e o Direito podem proteger o cidadão.

6. Nas contra-alegações, pugnou-se pela manutenção da decisão recorrida.

7. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), importando, assim, decidir se as rés são, ou não, responsáveis pelo pagamento das despesas relativas a cuidados de saúde prestados pela autora a um seu familiar, na parte em que o respetivo custo exceder o capital previsto no contrato de seguro celebrado entre este e a II Seguros.


***


II – Fundamentação de facto

8. As instâncias deram como provado que:

1.1.2. A Autora é uma sociedade anónima que tem por objeto a gestão e exploração de unidades de saúde e prestação de serviços hospitalares;

1.1.2. Por escritura outorgada em 3 de Agosto de 1998 no 21° Cartório Notarial de Lisboa, onde se encontra lavrada de fls. 118 a fls. 119v. do livro de notas número 135-M, a GG, proprietária do estabelecimento hospitalar Hospital FF, sito na Rua …, no …, em Lisboa, cedeu à Autora a exploração do aludido estabelecimento hospitalar, compreendendo a fruição do imóvel, a transferência dos ativos e dos passivos, bem como o pessoal que laborava no estabelecimento;

1.1.3. Passando a Autora, a partir dessa data, a assumir a exploração do estabelecimento hospitalar denominado Hospital FF;

1.1.4. Em 4 de Agosto de 2011, EE, foi admitido no suprarreferido estabelecimento hospitalar;

1.1.5. EE, permaneceu internado no estabelecimento hospitalar, denominado Hospital FF, no período compreendido entre 4 de agosto e 10 de setembro de 2011, tendo falecido nesta última data;

1.1.6. Antes do aludido internamento, o médico JJ formalizou junto do Departamento Médico da HH, S.A. um pedido de pré-autorização para "Hospitalização";

1.1.7. A HH, S.A. emitiu e enviou à A. um ‘’Termo de Responsabilidade’’, datado de 01.08.2011, mediante o qual assumia a responsabilidade pelo pagamento da "Hospitalização", em regime de Internamento e/ou Ambulatório, procedimento 95.03.01.T - Cateterismo Coração esq. + Coronariografia Selectiva + Ventriculografia -, até ao capital disponível de € 35.930,00, devendo ser facturado a EE um co-pagamento de 10%, no mínimo de € 200,00 e no máximo de € 500,00;

1.1.8. A HH, S.A., emitiu e enviou à A. novo ‘’Termo de Responsabilidade’’, datado de 21.09.2011, que anulou e substituiu o referido em 1.1.7., mediante o qual assumiu a responsabilidade pelo pagamento da "Hospitalização" em regime de Internamento, procedimento 95.03.01.T - Cateterismo Coração esq. + Coronariografia Selectiva + Ventriculografia -, até ao capital disponível de € 50.000,00;

1.1.9. EE faleceu no estado de casado, segundo o regime da comunhão geral de bens, com BB;

1.1.10. Deste casamento existem duas filhas, CC, nascida a 31 de Julho de 1962, e DD, nascida a 24 de Fevereiro de 1967;

1.1.11. A A. enviou à HH a fatura n.º 20…/871, emitida em 30.09.2011, no valor de € 89.880,78 da qual esta entidade satisfez a quantia de € 50.000,00;

1.1.12. Em 04.08.2011, EE entregou à A. a quantia de € 500,00;

1.1.13. Em 30.09.2011, a A. emitiu a fatura 20…/876, correspondente ao valor não comparticipado pela HH, S.A. e enviou-a às Rés, tendo por estas sido recebida;

1.1.14. Em 14.11.2011 a A. solicitou às RR. o pagamento do valor constante da fatura referida em 1.1.13;

1.1.15. A A. emitiu, em nome de EE, a nota de crédito 20…/798, relativa à fatura 20…/876 no valor de € 2.595,70.

1.2.1. EE, por altura da admissão no Hospital FF, entregou à A. a quantia referida em 1.1.12, a título de adiantamento, tendo anteriormente recebido uma carta da HH, na qual lhe comunicava que o processo estava autorizado e enviado “Termo de Responsabilidade” para o HFF, informando as condições autorizadas: limite máximo de capital por anuidade de € 50.000,00 na cobertura de Hospitalização e copagamento a cargo da pessoa segura de 10%, num mínimo de € 200,00 e no máximo de € 500,00, conforme condições particulares, sendo que o protocolo acordado para o ato médico que estava em causa contempla uma estimativa de internamento até 14 dias;

1.2.2. A A. prestou a EE os cuidados de saúde discriminados nas faturas números 20…/871 e 20…/876, com exceção dos serviços constantes de fls. 99 e 100, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, no valor de € 2.595,70, emitidas em 30.09.2011, com os valores, respectivamente, de € 89.880,78 e € 1.728,80;

1.2.3. A A., por altura da admissão de EE, informou-o quanto aos cuidados de saúde que lhe iriam ser prestados - Cateterismo Coração esq. + Coronariografia Selectiva + Ventriculografia;[1]

1.2.4. No dia 05.09.2011, o Hospital FF, enviou à HH informação clínica adicional e comunicando que EE estava internado desde 05.08.2011 e que ainda não tivera alta, facto que, à data, era desconhecido da HH, tendo esta, nesse mesmo dia contactado telefonicamente o Hospital FF, de forma a ser esclarecida da situação;

1.2.5 Após o facto referido em 1.2.4. foi submetida a informação clínica adicional enviada pelo HFF para reapreciação da Direção Clínica da HH, tendo sido autorizada a emissão do termo responsabilidade referido em 1.1.8;

1.2.6. Na pendência do internamento de EE, a Coordenadora dos Internamentos do Hospital FF, LL, pediu aos serviços do respectivo piso que transmitissem aos familiares de EE que considerava relevante terem uma reunião;

1.2.7. Tal reunião teve lugar em 08.09.2011 nas instalações do Hospital FF;[2]

1.2.8. Na reunião referida em 1.2.7., a Coordenadora dos Internamentos do Hospital FF referiu aos familiares de EE que os valores relativos aos serviços já prestados a EE excediam os que se encontravam inscritos no Termo de responsabilidade recebido pela A.;

1.2.9. Ainda na aludida reunião de 08.09.2011 os familiares de EE disseram que iam tentar junto da HH que esta se responsabilizasse pelo pagamento à A. de um valor superior constante do “Termo de Responsabilidade” e que iriam proceder à transferência de EE para um Hospital público;

1.2.10. Desde a admissão de EE e até 08.09.2011 a A. não informou o doente nem as RR. dos valores despendidos nem informou que os valores relativos aos serviços prestados tinham sido excedidos e/ou estavam fora do contrato de seguro HH;

1.2.11. Antes de dia 08.09.2011, a A. não informou as RR da data em que os serviços prestados tinham sido excedidos, embora todos os dias fossem visitar EE, nas instalações da A., Hospital FF;

1.2.12. As RR., na sequência da reunião havida em 08.09.2011 solicitaram a transferência imediata de EE para um Hospital público;

1.2.13. A transferência de EE para um Hospital público não se concretizou, em virtude do falecimento deste dois dias depois da reunião e do pedido, referidos em 1.2.7 e 1.2.12, respectivamente;

1.2.14. As RR. desconheciam o que se passava no que concerne ao valor dos serviços de saúde prestados e até 08.09.2011 nunca lhes foi pedido consentimento ou prestados quaisquer esclarecimentos da importância faturada nem esclarecido os serviços que estariam fora do seguro e que teriam sido debitados;

1.2.15. O advogado das RR. enviou à A., com data de 23.12.2011, uma carta, nos termos da qual: “(…) Em representação da família do falecido EE, venho responder vossa solicitação de pagamento da fatura, no valor de € 41.109,58. (…) Apesar da insistência da família do falecido (…), junto da secretaria (D. MM) da unidade de cuidados intensivos e junto do Dr. NN, desde 17 de Agosto do corrente ano, para saber se o seguro HH cobria todas as despesas e os prolongamentos no prazo de internamento, o que foi respondido sempre afirmativamente pelas pessoas supra referida.

1.2.16. A A. não comunicou, em data anterior a 08.09.2011, a EE, nem às RR. o preço dos serviços prestados ou a prestar.

9. Factos não provados:

- Em momento anterior ao facto 1.2.4. as RR., ou qualquer outro familiar de EE, não tentaram obter informação relativamente aos valores já prestados pela A.;

- EE e as RR. sempre entenderam que os cuidados, tratamentos e intervenções em causa estavam cobertos pelo contrato de seguro de saúde e, assim, os seus custos, seriam pagos diretamente à A. pela HH, ficando a cargo do doente segurado a franquia paga.



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III – Fundamentação de Direito

10. Nesta ação discute-se se as rés são responsáveis pelo pagamento das despesas relativas a cuidados de saúde prestados pelo Hospital FF, em regime de internamento, a um seu familiar, na parte em que o respetivo custo exceder o capital previsto no contrato de seguro celebrado entre o paciente e a II Seguros.

A 1ª instância, recorrendo ao instituto da boa fé e fazendo apelo a deveres acessórios de conduta, considerou que a omissão de informação por parte do Hospital relativamente ao esgotamento do capital do seguro, desonerava as rés da obrigação de pagar a quantia peticionada pela autora.

O Tribunal da Relação, embora aceitando que impendia sobre a autora um dever de informação do doente e/ou dos seus familiares, a respeito do custo do internamento e dos cuidados de saúde prestados ao doente, bem como sobre o esgotamento do capital seguro, que aquela inobservou, considerou que recaía também sobre o doente e/ou os seus familiares o dever de se informar sobre todos esses elementos e, repartindo a responsabilidade entre as partes, na proporção de 70% e 30%, respetivamente, condenou as rés a pagar à autora a quantia de EUR 27.169,00, acrescida de juros, absolvendo-as do demais pedido.

Contra esta decisão se insurgem as rés, pugnando pela revogação do acórdão proferido pela Relação e pela repristinação da sentença da 1ª instância.

Por conseguinte, neste recurso, a questão que se coloca é (apenas) a de saber se deve recair sobre o doente e/ou os seus familiares (ora rés) o dever de, a cada momento, diligenciarem por si próprio(s) pela obtenção de informação sobre os custos do tratamento e internamento e sobre o seu reflexo no plafond contratado com a seguradora.

Vejamos, pois.

O direito à informação do utente – e o concomitante dever de informar – surge com especial relevância na relação que se estabelece entre os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde e os seus utentes.

Na verdade, numa área tão sensível como a da saúde, a liberdade de escolha só pode ser efetivamente garantida se for transmitida ao utente toda a informação relevante para a sua decisão.

O direito do utente à informação está expressamente previsto na al. e), do n.º 1 da Base XIII da Lei de Bases da Saúde (normativo atualmente reforçado pelo disposto no art. 7º, da Lei nº 15/2014, de 21 de março, para efeitos de consentimento informado e esclarecimento, quanto a alternativas de tratamento e evolução do estado clínico).

Por outro lado, a informação transmitida ao utente deve ser verdadeira, completa, transparente, acessível e inteligível pelo seu destinatário concreto, como se refere no art. 5º da Convenção dos Direitos Humanos e da Biomedicina.[3].

Este direito à informação não deve, contudo, limitar-se ao que se prevê nas disposições citadas, devendo, antes, encarar-se como um princípio estruturante modelador das relações (complexas) que se estabelecem entre utentes e prestadores de cuidados de saúde.

Temos, assim, por inquestionável que, neste domínio, o direito a ser informado só fica salvaguardado se a informação for atempadamente transmitida ao utente, designadamente antes da escolha do prestador, antes de prestados os cuidados de saúde e, depois de prestados, antes do pagamento do preço devido.

Por seu turno, a informação a disponibilizar pelo prestador ao utente deve ser suficiente ao cabal conhecimento dos serviços e valores a pagar, não só perante o prestador dos cuidados, mas também face a terceiros, como sejam, por ex., as entidades seguradoras.

Efetivamente, um utente que celebrou um determinado contrato de seguro de saúde que lhe permite o acesso a determinado estabelecimento hospitalar deve estar devidamente esclarecido sobre a possibilidade de vir a ter que suportar algum custo, relativamente aos cuidados de saúde que lhe forem ministrados.

Sucede que o utente se encontra, em regra, fragilizado e até diminuído nas suas capacidades de discernimento e/ou comunicação, o que reforça, a nosso ver, o dever de o prestador, conhecedor por excelência do seu estado de saúde, lhe transmitir informação, de forma acessível, objetiva, completa e inteligível.

Neste contexto, é de sublinhar que o utente assume a qualidade de consumidor na relação com o prestador de cuidados de saúde, nos termos da Lei n.º 24/96, de 31 de julho que aprovou o regime legal aplicável à defesa do consumidor (Lei do Consumidor).

Na verdade, estabelece a Lei do Consumidor, na versão vigente à data dos factos, que se considera consumidor “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.” - cf. art. 2º, nº1.

Por seu turno, consigna-se no art. 3º, als. d), e) e f) que “o consumidor tem direito “à informação para o consumo”; “à proteção dos interesses económicos e “à prevenção e à reparação dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que resultem da ofensa de interesses ou direitos individuais homogéneos, coletivos ou difusos (…).”.

No que respeita ao “Direito à informação em particular”, preceitua o n.º 1 do artigo 8.º da referida Lei que “o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve, tanto nas negociações como na celebração de um contrato, informar de forma clara, objetiva e adequada o consumidor, nomeadamente, sobre características, composição e preço do bem ou serviço (…).”.

Sendo certo que “o fornecedor de bens ou o prestador de serviços que viole o dever de informar responde pelos danos que causar ao consumidor (…).” – cf. n.º 5 do artigo 8.º da Lei do Consumidor.

Por sua vez, no que se refere ao “direito à proteção dos interesses económicos”, estipula-se no art. 9.º da Lei do Consumidor que: “o consumidor tem direito à proteção dos seus interesses económicos, impondo-se nas relações jurídicas de consumo a igualdade material dos intervenientes, a lealdade e a boa fé, nos preliminares, na formação e ainda na vigência dos contratos” (nº1); e que “o consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens ou serviços que não tenha prévia e expressamente encomendado ou solicitado, ou que não constitua cumprimento de contrato válido, não lhe cabendo, do mesmo modo, o encargo da sua devolução ou compensação, nem a responsabilidade pelo risco de perecimento ou deterioração da coisa.” (nº4).

Dito isto, retornemos ao caso em apreço.

Resulta dos factos provados que entre a autora e o já falecido EE (marido da 1ª ré e pai das 2ª e 3ª rés) foi celebrado um contrato de prestação de serviços (cf. art. 1154º e ss, do CC), tendo por objeto o internamento daquele no Hospital FF (cuja exploração pertence à autora) a fim de ser sujeito à prática de determinados atos médico-cirúrgicos.

Mais se provou que, para o efeito, o referido EE acionou o seguro de saúde que havia celebrado com a II Seguros (Plano HH), através do qual a seguradora se obrigou a cobrir riscos relacionados com a prestação de cuidados de saúde ao tomador, até ao montante estipulado na apólice.[4]

Efetivamente, “antes do aludido internamento, o médico JJ formalizou junto do Departamento Médico da HH, S.A. um pedido de pré-autorização para hospitalização” - cf. ponto 1.1.6, dos factos provados.

E, na sequência desse pedido de autorização, a HH enviou ao segurado, o referido EE, uma carta na qual lhe comunicava que o procedimento estava autorizado e enviou, diretamente à autora um “Termo de Responsabilidade”, informando que o limite máximo de capital era de € 35.930,00, devendo ser faturado a EE um copagamento de 10%, no mínimo de € 200,00 e no máximo de € 500,00 - cf. pontos 1.1.7 e 1.2.1, dos factos provados.

Posteriormente, a HH emitiu e enviou à autora novo ‘’Termo de Responsabilidade’’, em que, anulando o anterior, assumia a responsabilidade pelo pagamento da hospitalização, até ao capital disponível de € 50.000,00 - cf. ponto 1.1.8, dos factos provados.

Provou-se, ainda que:

- EE permaneceu internado no Hospital FF, no período compreendido entre 4 de agosto e 10 de setembro de 2011, data em que faleceu – cf. ponto 1.2.5, dos factos provados.

- Em 8.9.2011, uma coordenadora dos internamentos do HFF informou os familiares de EE que os valores relativos aos serviços já prestados ao doente excediam os que se encontravam inscritos no Termo de responsabilidade recebido pela A. – cf. ponto 1.2.8., dos factos provados.

- Os referidos familiares, logo nesse dia, disseram que iam proceder à transferência de EE para um Hospital público – cf. ponto 1.2.9, dos factos provados.

Desde a sua admissão e até 8.09.2011, a A. não informou o doente nem as rés dos valores despendidos nem informou que os valores relativos aos serviços prestados tinham sido excedidos e/ou estavam fora do contrato de seguro HH - cf. ponto 1.2.10, dos factos provados.

- Anteriormente a 8.09.2011, a autora não informou as rés da data em que os serviços prestados tinham sido excedidos - cf. ponto 1.2.11 dos factos provados.

- As rés desconheciam o que se passava no que concerne ao valor dos serviços de saúde prestados e até 08.09.2011 nunca lhes foi pedido consentimento ou prestados quaisquer esclarecimentos da importância faturada nem esclarecido que serviços estariam fora do seguro e que teriam sido debitados – cf. ponto 1.2.14, dos factos provados.

- A A. não comunicou, em data anterior a 08.09.2011, nem a EE, nem às RR. o preço dos serviços prestados ou a prestar - cf. ponto 1.2.16, dos factos provados.

Em face da factualidade provada, é manifesto que a autora não disponibilizou ao doente, nem aos familiares que o acompanhavam durante o internamento (as ora rés), informação precisa, completa e atempada, quer sobre os cuidados de saúde prestados, quer sobre os respetivos custos, quer sobre a responsabilidade do próprio utente quanto ao pagamento daqueles valores, tanto mais que a sua admissão no Hospital FF se fez em função de um seguro de saúde celebrado com a HH.

Por outro lado, tendo em conta que a autora, desde o início, se prontificou a efetuar toda a comunicação com a seguradora, tendo em vista a realização da intervenção cirúrgica, é de admitir que o utente e as rés tenham confiado que aquela os alertaria, antecipadamente, como seria seu dever, para o facto de o plafond previsto no contrato de seguro estar em vias de se esgotar.

Na verdade, só a autora estava em condições de saber o que é que previsivelmente iria ser consumido durante o internamento, o respetivo custo e sobre se o capital disponibilizado pelo seguro poderia vir a ser ultrapassado.

Por seu turno, só perante essa informação teria o utente ou as rés (caso estivesse incapacitado, como tudo leva a crer), condições para decidir, de forma esclarecida, se permanecia no HFF ou se preferia ser transferido para um hospital público.

Considerando a “assimetria da informação“, bem patente nas situações como a dos autos, não nos parece legítimo transferir para o utente o ónus de recolher, a cada momento, elementos sobre os cuidados de saúde prestados, o seu custo e os reflexos desse custo no capital disponível, no âmbito do seguro de saúde.

Ora, no quadro factual em apreço, não podem restar dúvidas de que o utente, se tivesse sido devidamente informado pela autora sobre o impacto financeiro da sua permanência no HFF, não teria continuado internado neste estabelecimento hospitalar, pois, logo que as rés foram informadas do esgotamento do plafond do seguro, de imediato, declararam pretender a sua transferência para uma unidade de saúde pública.

É, assim, de concluir que o utente não quis contratar com a autora a prestação de cuidados de saúde, caso o seu custo viesse a exceder o montante do capital previsto no “termo de responsabilidade”, que a seguradora enviou diretamente à autora, para efeitos da sua admissão no HFF.

Ora, sendo o contrato um meio de deslocação de valores patrimoniais da esfera do devedor para a do credor, a sua vinculação só é fundamento material da prestação efetivamente contratada, pelo que nenhuma responsabilidade pode ser assacada às rés pelo pagamento da quantia peticionada nesta ação.

Procede, pois, o recurso.


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IV – Decisão

11. Nestes termos, concedendo provimento ao recurso, acorda-se em revogar a decisão recorrida e, em consequência, em absolver as rés do pedido.

Custas pela recorrida.


Lisboa, 5 de junho de 2018


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

José Sousa Lameira

Hélder Almeida

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[1] A redação dada a este ponto resultou da decisão proferida pela Relação, no âmbito da impugnação da matéria de facto.
[2] A redação dada a este ponto resultou da decisão proferida pela Relação, no âmbito da impugnação da matéria de facto.
[3] Celebrada no âmbito do Conselho da Europa, em 4.4.1997, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 1/2001, de 3 de janeiro, publicada no DR, I série. A, nº2/2001 e ratificada por Decreto do Presidente da Republica nº 1/2001, de 20 de fevereiro, publicado no DR I Serie-A, nº 2/2001.
[4] No que tange aos seguros de saúde, estabelece o art. 213º, do DL nº 72/2008, de 16 de Abril, diploma que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro e cuja aplicação ao caso dos autos resulta do disposto nos arts. 2º e 3º daquele diploma legal, que “… o segurador cobre riscos relacionados com a prestação de cuidados de saúde”.
Atenta a definição legal, e sem prejuízo do que for convencionado pelas partes, tem sido entendido que o seguro de saúde compreende não só as modalidades de seguro de doença (alteração involuntária do estado de saúde), como também as despesas resultantes de tratamentos e outras realidades (parto, por ex.). .