Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
208/11.3TBHRT.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: ASSOCIAÇÕES DE FIÉIS
ASSOCIAÇÃO PÚBLICA OU PRIVADA DE FIÉIS
REGIME DOS CÓD. DE DIREITO CANÓNICO DE 1917 E DE 1983
CRITÉRIOS DE QUALIFICAÇÃO FACE AO NOVO REGIME
ATO CONSTITUTIVO
INICIATIVA E OBJETIVOS DA ASSOCIAÇÃO DE FIÉIS
BENS ECLESIÁSTICOS E BENS NÃO ECLESIÁSTICOS
EXERCÍCIO DO PODER DE VIGILÂNCIA DO BISPO DA DIOCESE
VALIDADE DOS ATOS DE ALIENAÇÃO DE BENS
LICENÇA EPISCOPAL
ALIENAÇÃO A FAVOR DE UM SOBRINHO DA SUPERIORA
CÂNONE 1298º DO CDC DE 1983
PRESSUPOSTOS DA INVALIDADE DA ALIENAÇÃO FACE AO CDC DE 1983
PRESSUPOSTOS DA INVALIDADE FACE AO DIREITO CIVIL E CONCORDATA DE 2004
Data do Acordão: 12/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA / DOAÇÃO / CAPACIDADE PARA FAZER OU RECEBER DOAÇÕES – DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA / CASOS DE INDISPONIBILIDADE RELATIVA.
Doutrina:
- Angelo Vizzari, L’amministrazione dei beni ecclesiatici, I Beni Temporali della Chiesa, p. 71;
- António Martínez Blanco, Derecho Canónico, 1995, p. 233, 318 e 319;
- Artur Bueno, Las confradias y su situación actual ante em CIC-83, p. 13, in www.cofradiacolumnazgj.com;
- Aznar Gil, La Administración de los Bienes Temporales de la Iglesia;
- Bacelar Gouveia, As Associações Privadas de Fiéis no Direito Canónico e no Direito Português: o caso da Pião União das Escravas do Divino Coração de Jesus, Revista de Direito Público, nº 14, in https://run.unl.pt/bitstream/10362/19095/1/JBG_ReDP_2015.pdf;
- Campo del Pozo, Cofradias y asociaciones religiosas en el derecho actual, p. 5, in www.agustinosvalladlid.es;
- Delgado Galindo, Público y privado en el derecho canónico: el caso de las Misericórdias portuguesas, Forum Canónico, vol. V-2, de Junho-dezembro de 2010, in bibliotecanonica.net;
- Fiol Chimelis, Naturaleza y configuración pública o privada de las asociaciones de fieles, REDC 48º, 1991;
- Jean-Piérre Schouppe, Droit Canonique des Biens, 2008, p. 174;
- Joaquím Mantecon, Comentário Exegético ao Código de Direito Canónico, vol. IV/1, p. 168, 169 e 173, in https://www.academia.edu/35763019/Comentario_al_Titulo _III_del_Libro_V_cc._1290-1298;
- Juan José Fasquelle, La Capacidad Economica de los Institutos y sus Limitaciones, p. 201-202;
- Lluís Martínez Sistach, Las Asociaciones de Fieles, 5ª ed., 2004, p. 169 ; Critérios de eclesialidade para las associaciones de fieles, As Associações na Igreja, 2005, p. 44 e ss. ; Asociaciones publicas y privadas de laicos, in https://core.ac.uk;
- M. Prata Roque, Misericórdias e conflito de jurisdições: a impugnação de deliberações das associações religiosas, ROA, Ano 78º, vols. III-IV, p. 835 e ss.;
- Martins Gigante, Código de Direito Canónico de 1917, I vol., 2ª ed., p. 608 e 609;
- Moacy Malaquias Junior, A Vigilância da Sede Apostólica na Administração dos Bens Temporais, 2006, p. 179 e 181;
- Paulo Dá Mesquita, A tutela das Misericórdias e o âmbito das jurisdições eclesiásticas e do Estado, revista Julgar, nº 23, p. 118 ; Misericórdias e conflito de jurisdições: a impugnação de deliberações das associações religiosas, ROA, Ano 78º, vols. III-IV, p. 835 e ss.;
- Pedro Lombardia e José Ignacio Arrieta, Código de Direito Canónico Anotado, p. 334;
- Pinharanda Gomes, Pias Uniões em Portugal: Subsídio Monográfico, Lusitania Sacra, in https://repositorio.ucp.pt;
- Saturnino Gomes, Normas da Conferência Episcopal Portuguesa sobre Associações, As Associações na Igreja, 2005, p. 79 e 80;
- Sebastião Pires Pereira, Bens temporais, Associações na Igreja, p. 133 e 134;
- Silva Marques, As associações de fiéis no contexto civil e eclesial português, Codex Iuris Canonicis de 1983, 10 anos de aplicação na Igreja e em Portugal, 1995, p. 128 e 140 ; Associações e organizações, Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, 2001, p. 99 e 100 ; Código de Direito Canónico Anotado, p. 77;
- Silvana Neckel, A utilidade eclesial da aprovação das associações, Scientia Canonica, v. 1, n.º 2, in Scientiacanonica.org;
- Vittorio Palestro, La disciplina canónica in matéria di alienazioni e di locazioni, I Bieni Temporali della Chiesa, p. 162.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 877.º, 953.º, 2192.º A 2198.º.
CÓDIGO DE DIREITO CANÓNICO (CDC) DE 1917: CÂN. 100.º.
CÓDIGO DE DIREITO CANÓNICO (CDC) DE 1983: CÂNS. 299.º, 301.º, 1291.º E 1298.º.
NORMAS GERAIS DAS ASSOCIAÇÕES DE FIÉIS, APROVADAS PELO DECRETO DA CEP, DE 4-4-2008.
CONCORDATA DE 1940.
CONCORDATA DE 2004: - ARTIGO 11.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 26-04-2007, PROCESSO N.º 07B723;
- DE 22-02-2011, PROCESSO N.º 332/09.2TBPDL.L1.S1;
- DE 10-12-2013, PROCESSO N.º 27/09.7BHRT.L1.S1;
- DE 01-03-2016, PROCESSO N.º 2153/06.5TBCRB-C.C1.S1;
- DE 09-04-2019, PROCESSO N.º 692/11.5TBVNO.E1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 12-12-2002, PROCESSO N.º 0230934, IN WWW.DGSI.PT.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 17-05-2011, PROCESSO N.º 649/09;
- DE 16-10-2018, PROCESSO N.º 4680/08.0TBLRA.C2, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 29-09-2011, PROCESSO N.º 27/09.7TBHRT.L1-8, IN WWW.DGSI.PT.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

- DE 08-02-2018, PROCESSO N.º 692/11.5TBVNO.E1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O Cód. de Direito Canónico de 1917 não estabelecia distinção entre as associações de fiéis, mas o Cód. de Direito Canónico de 1983 passou a distingui-las entre associações públicas ou associações privadas, distinção assente essencialmente em três elementos: natureza do ato constitutivo, iniciativa da constituição e fim prosseguido pela associação de fiéis (câns. 299º e 301º).

II. O CDC de 1983 não contém, porém, qualquer norma transitória relativa à qualificação das associações de fiéis anteriormente constituídas como ocorria com a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus que foi erigida como pessoa jurídica canónica em 1959; por outro lado, depois da entrada em vigor do CDC de 1983, não foram introduzidas modificações nos Estatutos da Pia União, pelo que a sua qualificação como associação pública ou como associação privada de fiéis deve ser feita a partir dos critérios definidos pelo CDC de 1983, para o que releva, no essencial, os seguintes elementos:

- Foi erigida por Decreto Episcopal, em 1959, na vigência do CDC de 1917;

- A sua constituição partiu da iniciativa dos seus membros;

- Tinha o objetivo de “santificação individual pelo cumprimento dos preceitos e conselhos evangélicos e normas da Igreja” e de “evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das obras da misericórdia”;

- Consta dos seus Estatutos que, “uma vez eleita, a Superiora deve apresentar-se imediatamente ao seu Prelado a quem prestará juramento de fidelidade absoluta às normas da Igreja”.

III. Face ao que agora dispõe no CDC de 1983, o facto de a Pia União ter sido constituída por iniciativa de fiéis (cân. 299º) e de a sua finalidade ser de natureza eminentemente particular concorrem para a qualificação como associação privada de fiéis, enquanto o ter sido erigida através de Decreto Episcopal (cân. 301º) e a relação com o Bispo Diocesano são típicos das associações públicas de fiéis.

IV. A Conferência Episcopal Portuguesa publicou, em Abril de 1988, as “Normas Gerais para Regulamentação das Associações de Fiéis”,em cujo art. 116º §4, se previa, quanto às associações de fiéis constituídas antes da vigência do CDC de 1983, que seriam “públicas todas as associações eretas em pessoas moral pela Autoridade eclesiástica, antes da entrada em vigor deste (CDC de 1983), em 27-11-1983, e nomeadamente as denominadas Irmandades e Confrarias”.

V. Porém, tais Normas não estavam sustentadas em qualquer autorização ou ratificação (“recognitio”) concedida pela Santa Sé (como veio a ocorrer com as “Normas Gerais das Associações de Fiéis”aprovadas pelo Decreto da CEP, de 4-4-2008), de modo que o seu teor e, mais concretamente, o teor daquele art. 116º §4, não interfere na qualificação jurídica da Pia União reportada à data em que foi praticado o ato impugnado, em Novembro de 2005.

VI. Considerando exclusivamente o que decorre do CDC de 1983, em conjugação com os aspetos relacionados com a constituição, objetivos e funcionamento da Pia União, o que se mostra mais relevante para a sua qualificação é o facto de ter sido constituída por iniciativa dos seus membros, tendo como objetivos essenciais “a santificação individual pelo cumprimento dos preceitos e conselhos evangélicos e normas da Igreja” e “aevangelização dos pobres pelo exemplo e prática das obras da misericórdia”, não se verificando, por outro lado, que visasse prosseguir “a prática do culto público, em nome da Igreja”, fator que seria característico de uma associação pública de fiéis (cân. 301º §1).

VII. Ofacto de ter sido formalmente erigida por Decreto Episcopal, em 1959, ao abrigo do cân. 100º do CDC de 1917, não determina, por si, a qualificação como associação pública de fiéis, em face do que agora prescreve oCDC de 1983, uma vez que, naquelaocasião, essa forma de constituição era condição necessária para que as associações de fiéis (ou outras pessoas jurídicas) tivessem personalidade jurídica perante o CDC de 1917 e a Concordata de 1940, objetivo essencial que esteve na base do Decreto Episcopal de ereção.

VIII. Sendo a Pia União uma associação privada de fiéis, embora a sua atuação estivesse sujeita à vigilância do Bispo da Diocese, tinha poderes para outorgar validamente na escritura pública de doação de um bem imóvel sem necessidade da licença Episcopal prevista no cân. 1291º do CDC de 1983, a qual, apesar disso, foi obtida antes da realização da escritura de doação.

IX. A validade dessa doação não é posta em causa pelo facto de ter sido realizada em benefício de um sobrinho da Superiora da Pia União, uma vez que este aspeto, a que o cân. 1298º do CDC de 1983 atribui relevo, apenas teria interesse se estivesse em causa um bem eclesiástico, como são os bens pertencentes a associações públicas de fiéis, não sendo relevante quando está em causa a alienação de bens pertencentes a pessoas jurídicas privadas, como era a Pia União.

X. Mas ainda que a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus fosse qualificada, em face do atual CDC, como “associação pública de fiéis” e que, por esse motivo, o imóvel doado fosse classificado como “bem eclesiástico”, nos termos e para efeitos do cân. 1298º do CDC de 1983, improcederia o pedido de declaração de invalidade da doação formulado pela Diocese de Leiria-Fátima e pela Pia União doadora, uma vez que:

a) A Superiora da Pia União era portadora de um documento subscrito pelo Bispo da Diocese de Leiria-Fátima no qual se declarava que aquela tinha “poderes necessários para proceder” à doação a favor do donatário que era identificado, documento que corresponderia, naquele pressuposto, à “licença especial” prevista no cân. 1298º;

b) Nos termos do art. 11º da Concordata de 2004 entre Portugal e a Santa Sé, eventuais limitações à capacidade jurídica das pessoas jurídicas canónicas, com reflexos ao nível do direito civil, só são oponíveis a terceiros de boa fé quando resultem do CDC de 1983 ou de outras normas de Direito Canónico;

c) Não existe qualquer disposição de Direito Canónico ou de Direito Civil que comine com a invalidade uma doação outorgada por uma associação pública de fiéis, precedida de licença subscrita pelo Bispo da Diocese, só pelo facto de não constar dessa licença a alusão à relação de parentesco até ao 4º grau existente entre a representante da associação de fiéis doadora e o donatário.

Decisão Texto Integral:
I – A DIOCESE de LEIRIA-FÁTIMA

e a

PIA UNIÃO das ESCRAVAS do DIVINO CORAÇÃO de JESUS

instauraram ação declarativa com processo comum contra

AA

e

BB (com o nome religioso deIrmã CC”).


Alegaram que a 2ª A., Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, é uma associação pública de fiéis, ficando sujeita à vigilância e autoridade do Bispo da Diocese de Leiria-Fátima, nos termos do Cód. de Direito Canónico de 1983.

A 2ª R., BB vinha exercendo, desde 1991, as funções de Superiora e representante da Pia União.

Em 9-11-05, nessa qualidade, a 2ª R., munida de uma credencial emitida em 28-10-05 pelo anterior Bispo da Diocese de Leiria-Fátima, outorgou a doação de um prédio urbano de que a Pia União era proprietária, a favor do 1º R., AA, seu sobrinho.

Tratava-se de um bem de natureza eclesiástica, na medida em que pertencia a uma associação pública de fiéis, pelo que tal doação carecia de autorização escrita do Bispo da Diocese, a qual deveria ter sido precedida obrigatoriamente da audição e do parecer vinculativo do Conselho para os Assuntos Económicos (CAE) e do Colégio de Consultores (CS), sendo insuficiente a credencial que foi apresentada no ato.

Mais alegaram que, incidindo a doação sobre um bem imóvel de elevado valor, o facto de o respetivo beneficiário ser parente (de 3º grau) da referida Superiora, tornava obrigatória uma licença especial do Bispo da Diocese dada por escrito, nos termos do cân. 1298º do CDC de 1983, a qual não existiu.

Assim, com fundamento em que os atos:

a) Não foram precedidos da audição e dos pareceres do CAE e do CS da Diocese de Leiria-Fátima, os quais seriam obrigatórios, pois estava em causa a alienação de um bem imóvel de que era proprietária a Pia União, qualificada como associação pública de fiéis, e que

b) O donatário é sobrinho da Superiora da Pia União, sem que na licença que foi subscrita pelo Bispo de Leiria-Fátima se indicasse a existência dessa relação de parentesco, como o exigia o cân. 1298º do CDC de 1983,

Pediram as AA. que fosse:

a) Declarada nula ou ineficaz a credencial que foi emitida em …-10-2005 pelo anterior Bispo da Diocese de Leiria-Fátima;

b) Declarada nula a doação do prédio urbano e do respetivo recheio que foi outorgada por escritura pública;

c) Declarada a nulidade dos atos de registo subsequentes a tal doação, ordenando-se o seu cancelamento.

Os RR. contestaram defendendo a ilegitimidade da 1ª A., Diocese, por falta de interesse em demandar, na medida em que, na hipótese de procedência da ação, a única beneficiária seria a 2ª A., Pia União, e porque, independentemente da natureza pública ou privada da Pia União, a A. Diocese não é sujeito da relação material controvertida.

Invocaram ainda a falta de poderes de representação da 2ª A., Pia União, alegando que esta é uma associação privada de fiéis, razão pela qual a Diocese de Leiria-Fátima não pode impor ou escolher quem exerça o cargo de Superiora, a qual, segundo os estatutos da Pia União, será livremente designada pelos fiéis, sem estar sujeita a confirmação, que apenas está prevista para as associações públicas de fiéis. Por esse motivo, o decreto episcopal de …-7-2008 que nomeou um comissário para a Pia União, assim como os subsequentes decretos que o confirmaram são nulos.

Por impugnação, alegaram ainda que, sendo a 2ª A., Pia União, uma associação privada de fiéis, são válidos os atos praticados pela sua Superiora, ora 2ª R., uma vez que se integravam no exercício de poderes de representação, não carecendo de qualquer autorização especial para dispor do seu património.

Mas ainda que fosse necessária a autorização para a prática do referido ato, o Bispo de Leiria-Fátima, ao emitir a credencial que foi apresentada na escritura pública de doação do bem imóvel, autorizou essa doação.

Ademais, a preterição do parecer do CAE e do CS da Diocese não acarreta a nulidade da credencial, tornando o ato meramente anulável, tendo transcorrido já o prazo para a sua invocação quando a ação foi instaurada.

Por outro lado, não sendo os bens da Pia União, bens eclesiásticos, mas particulares, o ato impugnado é válido.

Os AA. replicaram, pugnando pela improcedência das exceções suscitadas.

Foi proferido despacho saneador no qual foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade da 1ª A. Diocese de Leiria-Fátima e se considerou regular a representação judiciária da 2ª A. Pia União, a qual, para o efeito, foi qualificada como associação pública de fiéis.

Os RR. interpuseram recurso de apelação do despacho-saneador, na parte em que reconheceu a legitimidade da 1ª A. e a regularidade da representação judiciária da 2ª A. (fls. 398 e ss.), depois de qualificar a Pia União como associação pública de fiéis. Mas, apesar de se tratar de decisão cuja impugnação deveria ter sido diferida para o recurso interposto da sentença final, nos termos do que então dispunha o art. 691º do CPC de 1961, o Mº Juiz da 1ª instância proferiu despacho de admissão de tal recurso, embora com subida a final (despacho de fls. 677).

Realizada a audiência final, foi proferida sentença na qual a 1ª instância, assumindo a qualificação da Pia União como associação privada de fiéis, julgou improcedente a ação, absolvendo os RR. dos pedidos.

Os AA. interpuseram recurso de apelação da sentença e a Relação, depois de acolher a tese defendida pelas AA. no sentido da qualificação da Pia União como associação pública de fiéis:

a) Julgou improcedente a apelação interlocutória que anteriormente fora interposta pelos RR. relativamente ao despacho saneador que apreciara as exceções de ilegitimidade da 1ª A. e de irregularidade de representação da 2ª A.;

b) Confirmou a sentença da 1ª instância que rejeitou a declaração de invalidade da credencial e da doação sustentada na falta de audição e do parecer do CAE e do CS antes de ter sido subscrita a licença pelo anterior Bispo de Leiria-Fátima que foi apresentada aquando da outorga da escritura pública de doação e considerou que a referida licença correspondia à autorização episcopal exigida pelo cân. 1291º do CDC de 1983;

c) Declarou a invalidade da doação (e dos subsequentes atos de registo predial), com fundamento em que, contrariando o que dispõe o cân. 1298º do CDC de 1983, o ato de alienação beneficiava um sobrinho da Superiora da Pia União, estando submetido a uma licença especial do Bispo da Diocese, exigência que a referida credencial não cumpria, uma vez que nela se não fizera qualquer menção à relação de parentesco existente entre a Superiora e representante da Pia União (2ª R.) e o donatário (1º R.).

d) Considerou que a invocação da invalidade da doação com tal fundamento não estava sujeita a prazo de caducidade.

Assim, com fundamento na anterior al. c):

- Julgou procedente a apelação, na parte em que a sentença absolveu os RR. dos pedidos de declaração de nulidade da escritura de doação e de nulidade do correspondente registo relativo a tal doação, substituindo-a pela:

- Declaração de invalidade da escritura pública de doação outorgada em 9-11-05 (lavrada a fls. 10 e ss. do livro 672-A do extinto Cart. Not. de …, cujo acervo documental foi transferido para o Cart. Notarial de DD), pela qual a 2ª R., BB, em representação da 2ª A., Pia União, declarou doar ao 1º R., AA, o prédio urbano (incluindo todo o seu recheio) destinado a habitação, composto de rés-do-chão e 1º andar, com superfície coberta de 354 m2 e quintal com área de 246 m2, sito na R. … nº …, na cidade da …, freguesia de …, descrito na CRP da … sob o nº 274 da freguesia de … e inscrito na respetiva matriz sob o art. 283º;

- Declaração de nulidade do registo relativo a essa aquisição a favor do 1º R. e cancelamento desse registo constante da apresentação nº 18 de 2006/01/25, feita no prédio descrito na CRP da … sob o nº 2…/1…5 da freguesia … (…).

Foi interposto recurso de revista por parte de ambos os RR., formulando as seguintes conclusões:

A) O presente recurso incide sobre os pontos 7. e 9. do acórdão da Relação e sobre a sua decisão, na parte em que julgou procedente a apelação, o que implica o debate sobre as seguintes questões fundamentais:

- A natureza da A. Pia União, que pela Relação foi qualificada como uma associação pública de fiéis, quando, como julgou a 1ª instância, se trata de uma associação privada de fiéis;

- A nulidade ou invalidade da escritura de doação e do consequente registo.

B) Tendo sido pedida a declaração de nulidade de uma escritura pública, o acórdão em revista é nulo, por condenar em objeto diverso do pedido, nos termos da al. e) do nº 1 do art. 615º do CPC, na medida em que declara a “invalidade” termo que, referido ao negócio jurídico, abrange a nulidade e a anulabilidade, com regimes distintos quanto aos fundamentos e ao prazo de arguição.

C) O acórdão é, ainda, nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art. 615º, nº 1, al. c), do CPC, ao decidir que a credencial emitida pelo Bispo da Diocese se presume válida, mas que, na medida em que habilita para a doação de imóvel a familiar da representante da doadora (Pia União), tal presunção deixaria de ter lugar, sem que haja qualquer razão ou cominação na lei canónica ou civil que imponha solução diversa da presunção de validade.

D) Não cominando a lei, civil ou canónica, com a nulidade a preterição de formalidades relativas a ato administrativo da autoridade eclesiástica – o Bispo Diocesano – não há fundamento para a declaração de nulidade da escritura de doação, mesmo que a Pia União fosse considerada uma associação pública de fiéis, o que só por cautela se equaciona.

E) Como o acórdão recorrido dá nota, existe múltipla jurisprudência contraditória acerca da natureza da Pia União, com acórdãos de tribunais superiores (Relações de Lisboa e de Coimbra e Supremo Tribunal de Justiça) a decidirem de maneira diferente e divergente. Daí que seja conveniente e até necessário que presente recurso seja julgado pelo Pleno das Secções Civis, ao abrigo do art. 686º, nº 1, do CPC.

F) O acórdão recorrido sustenta o entendimento de que a natureza jurídica da Pia União deve ser vista à luz do quadro legal vigente aquando da sua constituição, pelo que, tendo nascido sob a égide do CDC de 1917 – onde não se reconheciam associações privadas de fiéis – se teria de concluir pela sua natureza pública, a qual se manteria imutável, mesmo após a entrada em vigor do CDC de 1983, que não se aplicaria às associações de fiéis constituídas antes da sua vigência.

G) Porém, a questão tem de ser dirimida à luz do CDC de 1983, como sustentam os já citados pareceres de Vieira de Andrade, Bacelar de Gouveia, Rui de Alarcão e Jorge Miranda.

H) É o que resulta do art. 12º, nº 2, do CC, que rege a aplicação das leis no tempo, onde se estabelece que, dispondo a lei diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas. O acórdão recorrido afasta a aplicação do art. 12º do CC, com o fundamento de que o CDC seria uma lei internacional, que não poderia estar sujeito ao regime português da aplicação das leis do tempo. Contudo, não é assim, uma vez que, como bem demonstra Vieira de Andrade, a Pia União, enquanto associação de direito canónico, tem, nos termos previstos nos arts. 11º e 12º da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, uma “dupla natureza de associação religiosa e de associação de direito provado português”, razão pela qual a regra daquele art. 12º do CC também deve ser convocada quando se trata de determinar – para efeitos civis – qual o regime jurídico aplicável às associações de fiéis constituídas antes da vigência do CDC de 1983.

I) Mesmo que assim não fosse, a imediata aplicação às associações de fiéis do regime jurídico do CDC de 1983 resulta do próprio CDC, particularmente dos câns. 3º a 6º, que definem o regime transitório.

J) O CDC de 1983 refletiu a abertura de um novo espírito que o Concílio Vaticano II trouxe para a Igreja Católica e para o mundo em relação à liberdade de associação dos fiéis, consagrado agora no cân. 215º, como um direito fundamental: “Os fiéis podem livremente fundar e dirigir associações para fins de caridade ou de piedade, ou para fomentar a vocação cristã no mundo, e reunir-se para prosseguirem em comum esses mesmos fins.”. Assim se compreende que o novo CDC tenha procedido a uma revogação total do CDC de 1917, mandando apenas que se tenha em conta a tradição canónica quando os cânones do novo código reproduzam os do direito antigo. Veja-se, em conformidade, o que dispõe o cân. 6º §1: “Com a entrada em vigor deste Código, são ab-rogados: 1. O Código de Direito Canónico promulgado no ano de 1917”.

K) Que esta foi a vontade do legislador canónico é também o entendimento de Pedro Lombardia e Juan Ignacio Arrieta, em anot. ao CDC, traduzida e publicada em português em 1997 (Braga), propriedade da CEP, com revisão científica, entre outros, do Bispo D. Serafim – precisamente aquele que outorgou a credencial de fls. 23 e do facto provado nº 19 –, onde, na anot. ao cân. 6º §1, se escreve: “ao contrário daquilo que estabelece o cân. 6º do CIC 17, o CIC não afirma a sua vontade de conservar em princípio a disciplina anterior, uma vez que tem como um dos seus objetivos fundamentais, modificar a legislação para que corresponda às linhas estabelecidas pelo Concílio Vaticano II. Por outro lado, o CDC pretende substituir por completo o CDC 17 e a sua legislação complementar: daí, as fórmulas derrogatórias do §1”.

L) Ademais, os próprios decretos bispais em que se funda a intervenção da Diocese de leiria-Fátima – cf. docs. 25 a 28 juntos com a p.i. – apenas convocam as regras do CDC de 1983, não fazendo qualquer referência ao CDC de 1917. Mais: o Decreto de 29-7-08 (doc. 26 junto com a p.i.) até convoca os câns. 323º e 325º, relativos ao regime das associações privadas de fiéis.

M) Não devem subsistir quaisquer dúvidas quanto à circunstância do regime jurídico da Pia União se dever aferir à luz do CDC de 1983, pelo que o acórdão recorrido, ao considerar que a natureza da Pia União deve avaliada pelo CDC de 1917, interpretou erroneamente o cân. 6º do CDC de 1983, por si só ou conjugado com o art. 12º, nº 2, do CC.

N) Por último, o entendimento normativo dado ao cân. 6º, devidamente conjugado com os arts. 10º, 11º e 12º da Concordata, no sentido de que as novas regras do CDC de 1983 relativas às associações de fiéis não se aplicam às Pias Uniões ou a outras associações de fiéis erigidas à luz do CDC de 1917, é inconstitucional, por violação do princípio da liberdade de associação previsto no art. 46º da CRP, bem como do princípio da separação do Estado e da Igreja ínsito aos arts. 2º e 41º da CRP. É que, por força desse entendimento normativo, tais associações continuariam a ser regidas pelo CDC de 1917, o qual não se mostra conforme ao princípio da liberdade de associação tal como foi configurado pela CRP (e também pelo espírito do Concílio Vaticano II).

O) À luz do CDC de 1983, é claro que a natureza privada das associações decorre de dois critérios fundamentais:

i) Por um lado, a iniciativa da sua constituição;

ii) Por outro lado, os fins prosseguidos, uma vez que, de acordo com o cân. 301º § 1, só às associações públicas cabe ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou prosseguir outros fins cuja função esteja reservada à autoridade eclesiástica.

P) A Pia União foi constituída por convénio privado, a partir de uma iniciativa das Senhoras que se juntaram para esse fim, pelo que nenhuma dúvida se pode colocar quanto ao facto da Pia União ter resultado de uma iniciativa privada (cf. art. 1º dos Estatutos). Por outro lado, os fins prosseguidos – a santificação individual e a evangelização dos pobres pelo exemplo e a prática das obras de misericórdia (cf. art. 2º dos Estatutos) – inscrevem-se nos fins gerais previstos no cân. 298º para todas as associações de fiéis, não se incluindo nos fins reservados às associações públicas, nos termos do cân. 301º §1.

Q) Ademais, o art. 55º das Normas Gerais das Associações de Fiéis de 2008 refere expressamente que a evangelização e a realização de obras de piedade e de caridade podem constituir fins das associações privadas, só lhes estando vedada a promoção do culto público e a transmissão da doutrina cristã em nome da Igreja, o que as Irmãs nunca fizeram.

R) Assim sendo, quer pela iniciativa da sua constituição, quer pelos fins prosseguidos, é incontornável que a Pia União é uma associação privada de fiéis. E foi isso mesmo que foi admitido pelo Bispo D. EE, quando declarou – através da credencial de fls. 79 – que a Pia União detém os poderes necessários para, representada pela sua Superiora, efetuar as doações nela mencionadas, a favor do Santuário de Fátima e do 2º R. AA.

S) Contudo, no acórdão recorrido, a Relação considerou que, mesmo avaliando a Pia União à luz do CDC de 1983, esta continuaria a ser uma associação pública, porque adquiriu personalidade jurídica – canónica e civil – por força do ato do Bispo de Leiria que a erigiu canonicamente em pessoa moral. Ressalvado o devido respeito, essa linha de argumentação também é insubsistente. É que o facto da Pia União ter sido ereta pelo Bispo de Leiria resulta apenas de ter sido constituída na vigência do anterior CDC, quando era esse o único modo de atribuição de personalidade de direito à luz daquele ordenamento jurídico. Como bem explica Vieira de Andrade, “a formalidade reconduziu-se, porém, a um simples ato de aprovação dos respetivos estatutos, o qual, de acordo com o respetivo decreto, consubstanciava uma mera “aprovação à experiência”, indicando, portanto, que se tratava de um reconhecimento de personalidade de uma nova associação externa à hierarquia da Igreja, a qual, por essa razão, teria de dar provas de que a sua atividade era merecedora daquele reconhecimento. O texto do mesmo decreto reforça ainda a ideia do carácter desta associação ao dispor que “esperamos confiadamente que o Sagrado Coração de Jesus e o Coração Imaculado de Maria cujas intenções de misericórdia as Escravas prometem fazer suas, tomem a Sua proteção e amparo esta Pia União e a façam crescer e desenvolver-se no espírito da Mensagem de Fátima”. Tratou-se, portanto, de um procedimento semelhante e equivalente àquele que na vigência do novo código é adotado para a constituição das associações de direito privado.”.

T) A intervenção episcopal visou apenas, em substância, verificar se estavam preenchidos os requisitos para que a Pia União se pudesse constituir como pessoa canónica, exatamente como hoje está previsto nos câns. 299º e 322º, que consideram associações privadas aquelas que se constituem por meio de convénio privado celebrado por fiéis entre si, independentemente de terem sido louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica e sem prejuízo da obrigatoriedade da aprovação dos seus estatutos pela autoridade (da Igreja) competente. De resto, sob a égide do CDC de 1983, não é o facto de uma associação de fiéis ter adquirido personalidade jurídica por decreto formal da autoridade eclesiástica que lhe retira a sua natureza de associação privada, como expressamente está previsto no cân. 322º.

U) Finalmente, o entendimento normativo dado aos câns. 299º e 302º, no sentido de que Pias Uniões ou outras associações de fiéis constituídas ao abrigo do CDC de 1917, quando resultantes de um convénio que levou à sua ereção canónica e desde que prossigam fins não reservados à autoridade eclesiástica, não se regem pelo regime consagrado no CDC de 1983 para as associações privadas de fiéis, é inconstitucional, por violação do princípio da liberdade de associação previsto no art. 46º da CRP, bem como do princípio da separação do Estado e da Igreja ínsito aos arts. 2º e 41º da CRP.

V) Consoante se entenda que a Pia União é uma associação privada ou pública de fiéis, a doação foi feita no uso dos poderes próprios de representação da Superiora da Pia União ou com base numa credencial emitida pelo Bispo da Diocese de Leiria-Fátima que identifica a representante da Pia União pelos seus nomes civil e em religião e os donatários – o Santuário de Fátima e AA (doc. 29 junto com a p.i., a fls. 79).

Z) No caso de a Pia União ser considerada associação privada de fiéis, os poderes de disposição emergem do §2 do cân. 1257º; a ser tida como associação pública, depende de licença especial da autoridade eclesiástica dada por escrito (cf. cân. 1298º). Na segunda hipótese, a “licença especial” não pode deixar de se identificar com a manifestação de vontade constante da “credencial”, que identifica o donatário, cabendo ao Bispo averiguar se estava perante um caso de parentesco. Tratar-se-ia de uma das formalidades cujo cumprimento só ao Bispo era exigível e que não invalida o conteúdo do ato administrativo, desde logo porque nenhuma sanção jurídica está prevista para esse caso.

Z) E havendo documento escrito contendo autorização para doação a uma pessoa concreta, deve presumir-se, na linha do qua foi decidido no ponto 8. do acórdão recorrido, que o mesmo é válido e eficaz, validade que se comunica aos negócios jurídicos civis celebrados em execução da vontade expressa na credencial. Termos em que a escritura, lavrada por oficial público, perante documento emitido pela autoridade eclesiástica – o Bispo Diocesano -, ainda que tenha sido emitido com preterição de formalidades para as quais nenhuma sanção está prevista, deve necessariamente ser considerada válida.

AA) Não foi dado como provado que não tenha havido licença especial da autoridade eclesiástica para que a transmissão se fizesse a favor de parente da Superiora até ao 4º grau, nem que essa situação fosse desconhecida de quem outorgou a credencial de fls. 79.

BB) Deste modo, o acórdão recorrido aplicou erroneamente à situação dos autos o cân. 1298º.


Foram apresentadas contra-alegações pelas AA. que, no essencial:

- Concordaram com a qualificação da Pia União como associação pública de fiéis, em face do critério assente na sua génese, mas também com base nos fins prosseguidos e no grau de autonomia que detinha;

- Consideraram que, não tendo o CDC de 1983 aplicação retroativa, a novidade correspondente à admissibilidade de associações privadas de fiéis é insuscetível de se aplicar a associações anteriormente constituídas com um regime idêntico ao das associações públicas de fiéis;

- Concordaram com a declaração de invalidade da doação pelo fundamento descrito no acórdão recorrido.


Entretanto, as partes foram oficiosamente notificadas para se pronunciarem sobre as Normas Gerais das Associações de Fiéis aprovadas pela Conferência Episcopal Portuguesa em 1988 (e que foram substituídas pelas Normas Gerais das Associações de Fiéis de Abril de 2008), em especial acerca do alcance do seu art. 116º §4, ao que apenas os RR. responderam, insistindo na qualificação da Pia União como associação privada de fiéis.

Pelo Exmº Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça não foi admitido o julgamento ampliado da revista que os RR. recorrentes requereram.


Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II – Factos provados:

1. Nos termos dos Estatutos da 2ª A., Pia União, cuja cópia se mostra junta a fls. 25 e ss.:

“Do Nome

Art. 1º - «Escravas do Divino Coração de Jesus» é o nome de família das Senhoras que por sua livre vontade quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos pobres, em todas as obras de Caridade (…).

Dos fins

art. 2º - O fim desta Pia União é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e Normas da Igreja; em segundo lugar, a evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das Obras da Misericórdia.

Da dedicação

art. 3º - Esta Pia União será consagrada aos Sagrados Corações de Jesus e Maria e propõe-se desagravá-los pela oração, penitência e caridade.


Da Admissão


Art. 9º - Terminada a prova, deve a interessada emitir votos privados de Pobreza, Castidade e Obediência, renováveis todos os anos.

Do dote

Art. 10º - Nenhum dote será exigido às interessadas, a não ser o grande desejo de se entregarem ao Senhor e de se santificarem. A regra para a admissão será sempre esta: que cada uma possa dizer no fim da vida que morre «sem dinheiro, sem dívidas e sem pecado».


Dos meios de manutenção

Art. 12º - As Escravas devem viver da caridade pública. Não podem aceitar heranças, nem exigir qualquer remuneração de seus trabalhos. Nesta matéria seguirão a vida do Mestre, o Divino Pobre que nasceu no Presépio e morreu na Cruz.

Art. 13º - Podem e devem aceitar qualquer oferta que lhes façam, por ocasião dos serviços prestados. Receberão sempre tudo como esmola e nunca a poderão fazer sua.

Art. 14º - Quando possuírem mais do que o suficiente para a sua digna manutenção, devem distribuir pelos pobres, sobretudo pelas crianças e inválidos.

Da Superiora

Art. 15º - A Pia União das Escravas deve ter uma Superiora eleita por três anos e por todas as associadas já com votos.

Art. 16º - Uma vez eleita, a Superiora deve apresentar-se imediatamente ao seu Prelado a quem prestará juramento de fidelidade absoluta às normas da Igreja.

Art. 17º - Depois de eleita, a Superiora deve escolher, entre as associadas já com votos, duas ou três que sejam suas auxiliares na direção das Casas que tiverem à sua conta.

Art. 18º - A Superiora nunca poderá ser eleita por mais de dois mandatos sucessivos.

Art. 19º - A Superiora, as Escravas devem obedecer como a Virgem à voz do Anjo. Devem ser cegas, surdas e mudas para só ouvirem a deus na ordem da sua Superiora.


Da vida ativa

Art. 24º - A regra para a vida ativa deverá sempre resumir-se segundo o espírito do santo Evangelho nesta frase: «Esconde-te sem Me esconderes. Revela-Me sem te revelares»”.


2. A Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus é uma pessoa jurídica canónico-concordatária, ereta canonicamente por Decreto de 2-3-1959 do Bispo de Leiria, D. FF (doc. fls. 29).

Nos termos desse documento:

“Tendo-nos sido pedida a ereção canónica da «Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus», depois de termos examinado os Estatutos que nos foram presentes e julgado que a mesma Pia União, se for fiel, como esperamos, ao espírito que presidiu à sua organização e fins que se propõe, será de grande utilidade para as almas, havemos por bem:

1º Erigir canonicamente em Pessoa Moral, segundo normas do cân. 110º do Código de Direito Canónico, a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus;

2º Aprovar à experiência os seus Estatutos.

Esperamos confiadamente que o Sagrado Coração de Jesus e o Coração Imaculado de Maria, cujas intenções de Misericórdia as Escravas prometem fazer suas, tomem sob sua proteção e amparo esta Pia União e a façam crescer e desenvolver no espírito da mensagem de Fátima”.


3. A comunicação de participação de ereção foi feita ao Governador Civil de Santarém e registada na respetiva Secretaria sob o nº 181, em 6-3-1959 (fls. 30).


4. Da escritura de doação lavrado no Cart. Not. de …, cuja cópia se mostra junta a fls. 81 e ss., consta, designadamente que:

“…

No dia 9-11-2005, no Cart. Not. de …, perante mim (…) notária do concelho, compareceram, como 1ª outorgante, BB (…) em representação de «Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus», pessoa coletiva religiosa (…), conforme credencial emanada pelo Bispo da Diocese de Leiria-Fátima, que me apresentou.

Segundo: AA (…).

Disse a primeira, na qualidade em que outorga: que a sua representada é dona e legítima possuidora de um prédio urbano, destinado a habitação, composto de rés-do-chão e 1º andar, com a superfície coberta de 350 m2, sito na R. …, nº …, na cidade e concelho da …, freguesia da … (…).

Que, pela presente escritura, doa o identificado prédio ao 2º outorgante, bem como todo o recheio mobiliário nele existente, atribuindo a tal imóvel o valor de € 30.386,75 (...).

Que esta doação é feita com as seguintes obrigações por parte do donatário:

- destinar área ou áreas do prédio a fins sociais que o mesmo considere convenientes;

- facultar o direito de residência às Irmãs atualmente pertencentes à Congregação doadora;

- promover todo o tipo de apoio às referidas Irmãs, quer na saúde quer na doença destas.

 Disse o segundo:

- Que aceita.

…”.


5. A fls. 79 consta um documento subscrito pelo então Bispo de Leiria-Fátima, D. EE, datado de 28-10-2005, do qual consta, além do mais que:

“Fazemos saber que a Associação de Fiéis ou Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus … goza de personalidade jurídica do foro canónico e civil e é representada, em juízo e fora dele, em todos os assuntos referentes à mesma Associação, segundo as normas de direito, pela Superiora Geral, BB, em religião, Irmã CC … que tem poderes necessários para proceder às seguintes doações:

- ao Santuário de Fátima, o prédio rústico sito no …, limite de …, freguesia de …, inscrito na matriz rústica sob os arts. 11569 e 11571,

- e a AA … o prédio urbano e o respetivo recheio, sito na R. …, nº …, da freguesia da …, concelho da …, inscrito na matriz sob o art. 823, descrito na CRP da … sob o nº 0…4/1…8”.


6. A credencial emitida pelo Bispo titular da A. Diocese de Leiria-Fátima, à data da celebração da escritura referida em 4., não foi precedida da audição e parecer do Conselho para os Assuntos Económicos e do Colégio dos Consultores.


7. Aquando da escritura referida em 4., a 2ª R., BB, representava a 2ª A., Pia União, na qualidade de Irmã Superiora.


8. O imóvel identificado na escritura referida em 4., à data da celebração desta, tinha um valor superior a € 75.000,00.


9. Nos termos do Decreto da Conferência Episcopal Portuguesa de 7-5-2002 cuja cópia consta de fls. 436:

“…

Requer-se licença do Bispo Diocesano, com o consentimento do Conselho para os Assuntos Económicos e do Colégio de Consultores (ou do Cabido) para alienar património estável de valor compreendido entre € 250.000,00 e € 1.500.000,00”.

Requer-se licença do ordinário do lugar, ouvido o Conselho para os Assuntos Económicos, para alienar bens do património estável de valor compreendido entre € 75.000,00 e € 250.000,00.

 …”.


10. Conforme certidões de registo civil juntas aos autos, o 1º R. AA foi registado como filho de GG e de HH, sendo que tanto HH como a 2ª R., BB, foram registadas como filha de II e de JJ.


III – Decidindo:

1. Questões a apreciar:

a) As nulidades do acórdão que foram arguidas;

b) De forma preliminar, se a 2ª A., União Pia, é uma associação pública ou privada de fiéis, com implicações na maior ou menor autonomia relativamente à alienação de bens imobiliários;

c) Validade da doação do prédio urbano e recheio que a 2ª A., representada pela sua Superiora, a 2ª R., realizou a favor do 1º R., seu sobrinho.

A apreciação da validade deste ato, depende, na perspetiva das AA., da qualificação jurídica que for atribuída à Pia União, como associação pública ou privada de fiéis.

Sendo qualificada como associação privada, tudo passa por verificar se, face ao regime que consta do CDC de 1983, a Superiora da Pia União tinha poderes para outorgar a escritura de doação sem sujeição a qualquer licença especial do Bispo da Diocese.

Perspetivada a Pia União como associação pública de fiéis, importará verificar, ainda que de forma complementar ou subsidiária, se a credencial que foi subscrita pelo anterior Bispo de Leiria-Fátima, na qual se afirmava que a 2ª R. era representante da Pia União e tinha poderes para a referida doação, integra ou não a exigência prevista no art. 1298º do CDC de 1983 a respeito da “licença especial” para regularidade da alienação de bens a favor de familiares, perante o Direito Canónico e, depois, no confronto com o Direito Civil.

Como adiante se justificará, por qualquer das vias se atinge o mesmo resultado, ou seja, a revogação do acórdão recorrido, com a consequente declaração de improcedência total da presente ação.


2. Começando pelas nulidades do acórdão que foram arguidas pelos RR.:

Suscitaram os RR. as nulidades por excesso de pronúncia (condenação em objeto diverso do pedido) e contradição entre os fundamentos e a decisão.

Nenhuma das nulidades se verifica.

Quanto ao alegado excesso de pronúncia, tratou-se, como o acórdão recorrido bem o explicita, de proceder à qualificação jurídica do vício que foi arguido relativamente ao contrato de doação, tendo em consideração a conjugação entre as normas de direito civil e de direito canónico, tarefa que estava ao alcance do Tribunal da Relação sem correr o risco de nulidade.

A leitura da petição inicial faz sobressair a vontade das AA. de reverterem o efeito jurídico translativo do direito de propriedade emergente da doação realizada no dia 9-11-2005, concluindo pelo pedido de declaração da nulidade, designadamente por falta de licença especial escrita da autoridade eclesiástica exigida pelo cân. 1298º do CDC de 1983. No seguimento, o acórdão recorrido entendeu faltar essa licença especial, determinando a invalidade da doação.

Neste contexto, o acórdão recorrido não exorbitou do objeto do processo, formado pela causa de pedir e pelo pedido: quanto à causa de pedir, quedou-se por um dos factos jurídicos invocados pelas AA. para sustentar o pedido (reconduzido, no caso, à previsão daquele cân. 1298º); quanto ao pedido, qualificou juridicamente o vício que afetava o negócio, divergindo da qualificação concedida pelas AA. (nulidade), como a lei lho permite, mas atingindo o mesmo efeito prático, atuação legitimada pelo art. 5º, nº 3, do CPC.

Deste modo, tendo o acórdão respeitado a matéria de facto que foi alegada e provada e tendo observado os limites do objeto do processo, não se verifica a alegada nulidade.


No que concerne à alegada contradição entre os fundamentos e a conclusão, constata-se simplesmente a discordância dos RR. relativamente ao que foi decidido, o que também não se pode confundir com aquela nulidade decisória.

O acórdão considerou ainda que o facto de a autorização para a doação não ter sido precedida da audição e do parecer do Conselho para os Assuntos Económicos (CAE) e do Colégio de Consultores (CS) não afetava nem a validade da credencial, nem a validade da alienação do bem. Este vício apenas foi encontrado no facto de a alienação ter sido feita a favor de um sobrinho sem precedência de licença especial na qual se fizesse expressa menção ao grau de parentesco. Assim interpretou o regime jurídico emergente dos câns. 1291º a 1290º.

Sendo legítimo discordar de tal solução, a divergência interpretativa revelada não se confunde com a alegada contradição, já que o que pode estar em causa é unicamente um erro de julgamento que a este Supremo Tribunal de Justiça cumpre apreciar.

Por conseguinte, também improcede a arguição desta segunda nulidade do acórdão.


3. Delimitação do objeto do recurso de revista na parte respeitante ao respetivo mérito:

3.1. A complexidade do caso e as divergências que se manifestaram no processo justificam que, antes de proceder à apreciação das questões suscitadas, se teçam algumas considerações preliminares destinadas as circunscrever o verdadeiro objeto do recurso de revista.

A ação foi instaurada visando as AA. obter a declaração de invalidade tanto da credencial que foi subscrita pelo Bispo da Diocese de Leiria-Fátima, como da doação que foi outorgada por escritura pública na qual a 1ª R. surgiu em representação da 2ª A. Pia União.

Como fundamentos dessa invalidade invocaram as AA. que:

a) Tais atos não foram precedidos da audição e dos pareceres do Conselho para os Assuntos Económicos (CAE) e do Colégio de Consultores (CS) da Diocese de Leiria-Fátima, os quais seriam obrigatórios, pois estava em causa a alienação de um bem imóvel de que era proprietária a Pia União, qualificada como associação pública de fiéis (cân. 1291º do CDC de 1983)

e que

b) O donatário é sobrinho da Superiora da Pia União que interveio na escritura de doação sem que na licença subscrita pelo Bispo de Leiria-Fátima se indicasse a existência dessa relação de parentesco, como o exigia o cân. 1298º.

Na perspetiva das AA., a qualificação jurídica da A. Pia União revelava-se essencial para a apreciação dos pedidos de invalidade, na medida em que da resposta obtida dependeria o maior ou menor grau de autonomia relativamente à alienação de bens em face das regras que constam do CDC de 1983.

Com efeito, sendo qualificada, como pretendiam, como associação pública de fiéis, a autonomia da Pia União, no que concerne à alienação de imóveis, era mais reduzida, ficando sujeita a licença especial do Bispo da Diocese, precedida dos aludidos pareceres obrigatórios. Além disso, a validade da doação debater-se-ia ainda com limitações no que concerne a alienações a favor de familiares da Superiora da Pia União, sua representante no ato.

A 1ª instância, depois de qualificar a Pia União como associação privada de fiéis, julgou improcedentes os pedidos.

No recurso de apelação que as AA. interpuseram a Relação acolheu a tese que foi defendida pelas AA. no sentido da qualificação da Pia União como associação pública de fiéis e:

a) Confirmou a sentença da 1ª instância que rejeitou a declaração de invalidade sustentada na falta da audição e do parecer do Conselho para os Assuntos Económicos (CAE) e do Colégio de Consultores (CS) da Diocese de Leiria-Fátima, antes da subscrição da licença subscrita pelo Bispo da Diocese de Leiria-Fátima que foi apresentada aquando da outorga da escritura pública de doação, considerando que a referida licença correspondia à autorização episcopal exigida pelo cân. 1291º;

b) Declarou a invalidade da doação (e a nulidade dos subsequentes atos de registo), ao abrigo do cân. 1298º, com fundamento em que o ato de alienação beneficiava um sobrinho da Superiora da Pia União, estando, por isso, submetido a uma licença especial do Bispo da Diocese, exigência que a referida credencial não cumpria, uma vez que nela se não fazia menção à relação de parentesco entre a Superiora, representante da Pia União, e o donatário;

c) Considerou que a invocação da invalidade da doação com tal fundamento não estava sujeita a prazo de caducidade.


3.2. Este o foi resultado fixado pela Relação.

Ora, o recurso de revista foi interposto unicamente pelos RR. que limitaram o seu objeto à reapreciação do acórdão da Relação na parte em que:

(i) Procedeu à qualificação jurídica da Pia União (reclamando que se considere associação privada de fiéis)

e em que

(ii) Declarou a invalidade da doação e dos registos subsequentes com fundamento na falta da licença especial referida no cân. 1298º do CDC de 1983.

É este, pois, o objeto da revista centrado essencialmente na apreciação da invalidade da doação, por falta de referência na credencial à relação de parentesco entre a Superiora da Pia União e o donatário, constituindo a qualificação jurídica da Pia União uma questão cuja resposta serve unicamente para identificar as normas a que estava sujeita a alienação de bens imóveis da referida Pia União.

O objeto da revista poderia ter sido porventura ampliado, nos termos do art. 636º do CPC, mas o certo é que não existiu qualquer iniciativa das AA. nesse sentido.

Por conseguinte, com relação ao objeto inicial da ação, mais alargado, formou-se um outro círculo menor que já não engloba a declaração de invalidade da credencial e da doação sustentada na falta de audição e de parecer quer do CAE quer do CS da Diocese, circunscrevendo-se, assim:

a) À reapreciação da qualificação jurídica da Pia União (questão de natureza instrumental ou de enquadramento);

b) E à verificação da invalidade da doação pelo facto de a licença especial exigida pelo cân. 1298º não referir o grau de parentesco entre a Superiora da Pia União e o donatário.


4. Natureza jurídica da Pia União, como associação pública ou privada de fiéis:

4.1. A apreciação da natureza jurídica da Pia União, como associação pública ou privada de fiéis, é de natureza instrumental, servindo essencialmente para identificar as normas jurídicas que serão aplicáveis para integrar a pretensão das AA. em torno da invalidade da doação.

Sendo qualificada como associação privada, somos confrontados com normas do CDC de 1983 que concedem à Pia União maior autonomia no que concerne à prática de atos relacionados com o seu património, sem necessidade de autorização prévia ou de licença especial do Bispo da Diocese a que está agregada. Já se, ao invés, for considerado uma associação pública de fiéis, são maiores as restrições colocadas quanto a tais atos, tudo passando por apurar se, apesar disso, a licença que foi apresentada pela 1ª R. satisfaria as exigências do cân. 1298º.

A resolução da primeira questão não se afigura fácil. Como os autos bem o revelam, além das divergências que se manifestaram em cada uma das instâncias, a resposta não é pacífica nem em termos doutrinais (máxime na doutrina canónica nacional e estrangeira), nem jurisprudenciais.

É abundante a doutrina nacional e estrangeira no que respeita à delimitação da qualificação jurídica das associações de fiéis constituídas depois do início da vigência do CDC de 1983, mas são mais raras e menos aprofundadas as posições a respeito da qualificação jurídica das associações anteriormente constituídas, como ocorre com a Pia União que foi erigida por Decreto Episcopal datado de 1959, em plena vigência do CDC de 1917, diploma que não estabelecia qualquer distinção dessa natureza.

No entanto, apesar de, como veremos posteriormente, a qualificação jurídica que for considerada não se revelar determinante para o resultado do presente recurso de revista, não deixaremos de tomar posição sobre tal questão, na medida em que, como se disse, dela depende a identificação das normas do CDC de 1983 que regem a matéria.

Importa, pois, apreciar, em primeiro lugar, se a Pia União, com reporte à data em que foi outorgada a escritura de doação (Novembro de 2005), deve ser qualificada como associação pública de fiéis, como decidiu a Relação e advogam as AA., ou como associação privada de fiéis, como concluiu a 1ª instância e defendem os recorrentes.

Para o efeito interessa ponderar especialmente as regras de direito canónico em vigor na data em que foi outorgada a escritura pública de doação, envolvendo, no essencial, o CDC de 1983 e a Concordata de 2004.


4.2. A Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus é uma entidade de natureza associativa de cariz religioso constituída (ereta ou erguida, segundo a terminologia canónica apropriada) em 1959, antes da entrada em vigor do CDC de 1983.

O anterior Cód. de Direito Canónico de 1917 não estabelecia qualquer distinção em função da natureza pública ou privada de associações religiosas como a Pia União dos autos.

A respeito de tais associações previa o cân. 100º que:

“A Igreja Católica e a Sé Apostólica possuem a natureza de pessoas morais por ordenação divina; as outras pessoas morais inferiores possuem-na ou por disposição do direito ou por concessão especial do competente superior eclesiástico, outorgada por decreto formal para um fim religioso ou caritativo”.

As associações de fiéis em geral estavam reguladas nos câns. 684º e ss., prescrevendo o cân. 685º que:

“As associações distintas das religiões e sociedades referidas nos câns. 487º-681º podem ser constituídas pela Igreja ou para promover a perfeição cristã dos seus membros, ou para o exercício de alguma obra de caridade ou piedade ou finalmente para incremento do culto público”.

Como referia Martins Gigante, em CDC de 1917, I vol., 2ª ed., p. 609:

“o fim diverso constitui associações diferentes de forma que estas dizem-se


b) pias-uniões, se têm por finalidade principal o exercício da caridade ou piedade;

c) confrarias, se têm por objetivo principal o incremento do culto público”.

A figura das “pias uniões” estava prevista no cân. 707º, no qual expressamente se estipulava que:

“As associações eretas com o fim de exercitar alguma obra de piedade ou caridade chamam-se pias uniões …”.

Acrescentava o cân. 686º que:

“Não é reconhecida na Igreja nenhuma associação que não tenha sido ereta ou ao menos aprovada pela competente autoridade eclesiástica.

Além do S. Pontífice, pode erigir ou aprovar associações o Ordinário Local …”.

O processo de criação das associações de fiéis ou de outras instituições religiosas era importante, designadamente para efeitos de obtenção de personalidade jurídica na Igreja e, por arrastamento, segundo a Concordata de 1940, em face da lei civil.

Dispunha para o efeito o cân. 687º:

“Conforme o cân. 100º, as associações de fiéis só obtêm personalidade jurídica, na Igreja, quando conseguirem do legítimo superior eclesiástico o decreto formal de ereção”.

O art. III da Concordata de 1940 estabelecia, a este respeito, que:

“A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas de Direito Canónico, e constituir por essa forma associações ou organizações a que o Estado reconhece personalidade jurídica.

O reconhecimento por parte do Estado da personalidade jurídica das associações, corporações ou institutos religiosos, canonicamente eretos, resulta da simples participação escrita à Autoridade competente feita pelo Bispo da diocese, onde tiverem sede, ou por seu legítimo representante”.

Constava ainda do art. IV da Concordata, em concordância com o que então dispunha o CDC de 1917, que:

“As associações ou organizações a que se refere o artigo anterior, podem adquirir bens e dispor deles nos mesmos termos e que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica”.


4.3. Refletindo sobre estas disposições, Martins Gigante, no CDC 1917 anot., vol. I, 2ª ed., 1951, pp. 608 e ss., referia que:

Associações de fiéis em geral são sociedades de fiéis eretas ou ao menos aprovadas pela Igreja e distintas das religiões, destinando-se a promover a perfeição da vida cristã ou a exercer alguma obra de caridade ou piedade no incremento do culto público”.

Associações eretas pela Igreja são as que obtiveram o decreto de ereção dada pela competente autoridade eclesiástica”, sendo que “a ereção de associações religiosas é o ato pelo qual a autoridade eclesiástica competente lhes reconhece existência canónica e lhes outorga a personalidade jurídica” (p. 608).

“O Estado Português reconhece a personalidade jurídica destas associações, canonicamente eretas, desde que sejam participadas por escrito à autoridade civil competente pelo Bispo da Diocese onde tiverem a sua sede ou pelo seu legítimo representante” (p. 612).

“O Estado Português, às associações reconhecidas por ele de harmonia com o art. III da Concordata ou art. 450º § único do Cód. Adm., reconhece o direito de :

a) Adquirir bens e dispor deles nos mesmos termos por que o podem fazer segundo a lei civil as pessoas morais perpétuas …” (p. 616).

Sobre o art. III da Concordata de 1940, afirmava Silva Marques, em “Associações e organizações”:([1])

“Em 1940, quando foi assinada a Concordata entre Portugal e a Santa Sé, as únicas associações ou fundações que tinham personalidade jurídica na Igreja eram as canonicamente eretas ou as que tinham essa personalidade por prescrição do próprio direito”, referindo ainda que “a expressão «canonicamente eretos» é equivalente a com personalidade jurídica”. A razão é que “então, só as entidades canonicamente eretas eram pessoas jurídicas no ordenamento canónico”.

Mais referia que, em face do CDC 1917:

“Para a constituição de pias uniões é suficiente a aprovação do Ordinário, embora também possam ser erigidas canonicamente, se isso se mostrar necessário” e que “a inclusão da expressão canonicamente eretos no texto do parágrafo segundo do art. III da Concordata não significa que o Estado dê importância direta à ereção canónica das associações ou fundações, mas sim ao facto de tais associações e fundações terem personalidade jurídica da Igreja, facto que lhe é comunicado pela participação do Bispo da Diocese onde elas têm a sua sede”.

Concluía que o preceito aplicava-se:

“não só às associações ou fundações públicas constituídas por um decreto formal de ereção, mas também às associações ou fundações privadas com personalidade jurídica na Igreja”.

Conforme conclui Martínez Blanco, em Derecho Canónico, 1995, pp. 318 e 319:

“O Código de 1917, tendo em conta de modo quase exclusivo os fins próprios de cada associação dividia-as em ordens terceiras, confrarias e pias uniões. Pelo contrário, o atual Código estrutura as associações atendendo à sua relação com a hierarquia eclesiástica.

De acordo com este critério, é associação pública a erigida pela autoridade eclesiástica competente, ainda que na sua origem provenha da iniciativa privada de fiéis. Constituindo uma pessoa jurídica pública, atua em nome da Igreja, visando o bem público.

São associações privadas as constituídas pelos fiéis para os fins próprios da Igreja (c. 299º, 1 e 2). Os seus estatutos devem ser revistos pela autoridade competente (cân. 299º, 3). Se desejar adquirir personalidade jurídica deve obter o decreto formal da autoridade competente (cân. 322º §1) e os seus estatutos, neste caso, devem ser aprovados pela mesma autoridade, sem que se modifique a natureza privada da associação (cân. 322º §2) e os seus bens não se transformam em eclesiásticos.

As associações podem ser simplesmente louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, sem que adquiram personalidade jurídica (cân. 299º §2)”.

Por conseguinte, em face do CDC de 1917, tendo em conta os elementos de facto relevantes, dúvidas não existiam de que a 2ª A., Pia União, era uma associação de fiéis ereta por Decreto do então Bispo da Diocese de Leiria e cuja oficialização em face do direito civil foi alcançada através da comunicação daquela constituição ao Governador Civil competente, como o determinava a Concordata de 1940 entre Portugal e a Santa Sé.

O modo como foi erigida a Pia União, por Decreto Episcopal, foi determinante para que lhe fosse atribuída personalidade jurídica perante a Igreja (cân. 687º) e, por arrastamento, em face do direito civil comum, estatuto que não teria se acaso, em vez do aludido Decreto Episcopal, a intervenção hierárquica da autoridade eclesiástica se tivesse limitado a aprovar a sua existência, nos termos que também estavam previstos no cân. 686º. Neste caso estaríamos perante uma mera agremiação de facto de fiéis, sem dúvida, também legítima em face do direito canónico e do direito civil, mas sem as características inerentes a uma pessoa jurídica coletiva.

Foi, aliás, pelo facto de ter adquirido personalidade jurídica canónica e civil que a Pia União ganhou a suscetibilidade de ser titular de direitos como o direito de propriedade que incidia sobre o imóvel objeto da doação que nesta ação se discute, qualidade que não teria se acaso se tratasse de uma mera entidade de facto.


4.4. Entretanto entrou em vigor o CDC de 1983 que passou a assumir uma distinção entre associações públicas de fiéis e associações privadas de fiéis, com consequências de ordem diversa, designadamente em termos de governo e de autonomia relativamente a atos de alienação de bens.

Como refere Silva Marques, em “As associações de fiéis no contexto civil e eclesial português”:([2])

“A maior novidade no tema associativo da igreja consiste precisamente na admissão e reconhecimento do direito de associação aos fiéis com o consequente reconhecimento das associações privadas no Direito canónico”.

Essa novidade é assinalada, aliás, por todos os canonistas e resulta bem evidente quando se confronta o CDC de 1983 com o CDC de 1917.

A respeito da configuração das associações religiosas de direito canónico passou a dispor o CDC de 1983 o seguinte:

Cân. 114º:

§1. As universalidades de pessoas ou de coisas ordenadas a um fim consentâneo com a missão da igreja, que transcenda o fim de cada indivíduo, são constituídas pessoas jurídicas por prescrição de direito ou por especial concessão da autoridade competente feita por decreto.

§2. Os fins mencionados no §1 são aqueles que se referem a obras de piedade, de apostolado ou de caridade, quer espiritual quer temporal.

(…)

Cân. 116º:

§1. As pessoas jurídicas públicas são universalidades de pessoas ou de coisas, constituídas pela autoridade eclesiástica competente para, dentro dos fins que a si mesmas se propuseram, segundo as prescrições do direito, desempenharem em nome da Igreja o múnus próprio que lhes foi confiado em ordem ao bem público; as outras pessoas jurídicas são privadas.

§2. As pessoas jurídicas públicas adquirem esta personalidade quer pelo próprio direito quer por decreto da autoridade competente que expressamente a conceda; as pessoas jurídicas privadas adquirem esta personalidade apenas por decreto especial da autoridade competente que expressamente a conceda.

Cân. 298º:

§1. Na igreja existem associações, distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, nas quais os fiéis quer clérigos quer leigos, quer em conjunto clérigos e leigos, em comum se esforçam por fomentar uma vida mais perfeita, por promover o culto público ou a doutrina cristã, ou outras obras de apostolado, a saber, o trabalho evangelizado, o exercício de obras de piedade ou de caridade, e por informar a ordem temporal com o espírito cristão.

(…)

Cân. 299º:

§1. Podem os fiéis, por meios de convénio privado, celebrado entre si, constituir associações para alcançarem os fins referidos no cân. 298º §1, sem prejuízo do prescrito no cân. 301º §1.

Cân. 301º:

§1. Pertence exclusivamente à autoridade eclesiástica competente erigir associações de fiéis, que se proponham ensinar a doutrina cristã em nome da igreja ou promover o culto público, ou que prossigam outros fins, cuja prossecução pela sua natureza está reservada à mesma autoridade eclesiástica.

(…)        

§3. As associações de fiéis eretas pela competente autoridade eclesiástica designam-se associações públicas.

Por seu lado, a Concordata de 2004 veio estabelecer no seu art. 9º, nº 2, que:

“A República Portuguesa reconhece a personalidade jurídica das dioceses, paróquias e outras jurisdições eclesiásticas, desde que o ato constitutivo da sua personalidade jurídica canónica seja notificado ao órgão competente do Estado”.

E de acordo com o art. 10º, nº 1, da Concordata de 2004:

“A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil”.

Nos termos do seu nº 2:

“O Estado reconhece a personalidade das pessoas jurídicas referidas nos arts. 1º, 8º e 9º, nos respetivos termos, bem como a das restantes pessoas jurídicas canónicas, incluindo os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica canonicamente eretos, que hajam sido constituídas e participadas à autoridade competente pelo bispo da diocese onde tenham a sua sede, ou pelo seu legítimo representantes, até à data da entrada em vigor da presente Concordata”.


4.5. Uma vez que o ato impugnado ocorreu em Novembro de 2005, em plena vigência do CDC de 1983 e depois da aprovação da Concordata de 2004, deve ser integrado nas normas de direito canónico e de direito civil que nessa ocasião vigoravam.

Como refere Vieira de Andrade no parecer cuja cópia foi junta (fls. 223), não pode questionar-se a aplicação ao caso corrente das novas regras aprovadas pelo CDC de 1983 no que respeita à distinção entre pessoas jurídicas de direito canónico, “por este Código ab-rogar o anterior (cân. 6º)”, devendo “ser interpretado nos termos do direito canónico (cân. 20º) em conformidade com as linhas estabelecidas pelo Concílio Vaticano II”.([3])

Trata-se também de uma asserção que é repetida por todos os canonistas nacionais e estrangeiros que sobre a matéria se pronunciam.

Tais linhas foram, aliás, sintetizadas na Constituição Apostólica Sacrae Disciplina Eleges, pela qual o Papa João Paulo II promulgou o CDC de 1983, que serve de adjuvante à resolução de problemas de aplicação da lei canónica no tempo, nela se exarando, além do mais, que:

“(…) o Código é considerado como complemento do magistério proposto pelo Concílio Vaticano II, de modo peculiar no que diz respeito a duas Constituições, a saber, a dogmática e a pastoral.

Daqui se segue que aquela razão fundamental de novidade, que não se afastando nunca da tradição legislativa da Igreja, se encontra no Concílio Vaticano II, sobretudo no que se refere à doutrina eclesiológica, constitua também a razão de novidade no novo Código.(…) portanto, se o Concílio Vaticano II tirou do tesouro da Tradição elementos antigos e novos e a sua novidade consiste precisamente nestes e noutros elementos, é evidente que o Código recebe em si a mesma nota de fidelidade na novidade e de novidade na fidelidade (…).

O novo Código de Direito Canónico é publicado no momento em que os Bispos de toda a Igreja não só pedem a sua promulgação, mas a solicitam com insistência e veemência.

De facto, o Código de Direito Canónico é absolutamente necessário à Igreja. (…)

Depois de todas estas considerações, deve sem dúvida augurar-se que a nova legislação canónica se torne um instrumento eficaz com que a Igreja possa aperfeiçoar-se de acordo com o espírito do Concílio Vaticano II, e mostrar-se cada vez mais capaz de cumprir neste mundo a sua missão salvífica. (…).

Confiantes (…) com a suprema autoridade de que dispomos, mediante esta Nossa Constituição para valer no futuro, promulgamos o presente Código”.


O cân. 6º do CDC de 1983 limitou-se a revogar o CDC 1917. Por isso, a não ser que se dispusesse de modo diferente, todas as relações jurídico-canónicas passaram a ser reguladas pelo novo CDC. E apesar do que consta do cân. 9º, sobre a aplicação da lei no tempo, é possível concluir, como Pedro Lombardia e Juan Ignacio Arrieta, que:

“quando a lei valora os atos ou factos da vida em ordem à criação, modificação e extinção de relações jurídicas, com a consequente modificação de direitos e deveres, a eficácia retroativa, ainda que deva ser sempre considerada excecional, não pode excluir-se de modo absoluto” (CDC anot., trad. de Silva Marques, p. 77).

As dificuldades de caracterização da Pia União e de outras entidades congéneres constituídas antes da vigência do CDC de 1983 poderiam ter sido resolvidas, porventura com a inserção de uma norma de direito transitório.

A falta de expressa previsão no CDC de 1983 de uma norma com essa natureza e função está na base da polémica em torno da qualificação jurídico-canónica de associações de fiéis instituídas antes do CDC de 1983, em termos que não se afiguram pacíficos, suscitando-se dificuldades que transparecem quer do antagonismo das posições assumidas pelas instâncias e pelas partes, quer da diversidade de soluções que vêm sendo assumidas pelos tribunais e por jurisconsultos noutros processos que ultrapassam o que se discute nestes autos.


4.6. Segundo as AA., o critério essencial deve partir do processo constitutivo da Pia União, invocando para o efeito que tal entidade foi ereta canonicamente por Decreto do Bispo de Leiria.

Neste ato genético buscam fundamento para a qualificação como associação pública de fiéis no quadro de aplicação do CDC de 1983 (cân. 301º §3), na medida em que um dos fatores distintivos assenta precisamente no processo de ereção das associações de fiéis: as associações públicas de fiéis são eretas por decreto do Bispo competente; as associações privadas de fiéis não demandam tal instrumento de direito canónico, bastando-se com a comunicação da constituição da associação (cân. 299º §1).

A Relação, depois de assinalar a insuficiência do critério distintivo em função dos fins de cada associação, também deu prevalência ao processo constitutivo da Pia União, referindo que:

“O que distingue objetivamente as associações privadas das associações públicas de fiéis é, apenas e só, o ato instituidor. As públicas são eretas canonicamente pela competente autoridade eclesiástica (cf. câns. 301º §3 e 312º §1 do CDC). As privadas são instituídas por meio de “convénio privado” celebrado pelos fiéis entre si (cf. cân. 299º §§1 e 2 do CDC).

Isso mesmo é repetido nas Normas Gerais das Associações de Fiéis, pois aí também se estabelece que as associações públicas são as: «eretas, como tais, pela autoridade eclesiástica competente e (…) prosseguem o bem público em nome da Igreja (cf. cân. 313º). (art. 19º, 1º), o que pressupõe que as mesmas são instituídas «mediante o decreto de ereção» (cf. art. 19º, 2º). Já as associações privadas são constituídas por «livre iniciativa dos fiéis» (art. 55º, 1º).

Sucede que, no caso, a 2ª A. foi constituída por decreto do Sr. Bispo de Leiria que decidiu: «erigir canonicamente em Pessoa Moral, segundo as normas do cân. 100º do CDC, a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus» (sic - cf. doc. a fls. 29).

O ato originário de instituição desta associação foi, portanto, um ato administrativo emanado duma autoridade eclesiástica com competência para o efeito, correspondente ao formalismo previsto nos atuais câns. 301º §3 e 312º §1 do CDC de 1983.

O ato instituidor não foi o “convénio acordado entre si” pelos fiéis, porque no momento em que a associação foi constituída, independentemente do que pudesse ter sido a hipotética vontades dos fiéis, em face do CDC de 1917, não era sequer formalmente possível constituir uma “associação de direito privado”. A Igreja não reconhecia então essa faculdade aos fiéis. Pelo que, todas as associações dessa índole eram necessariamente públicas.

Temos por certo que quando o CDC de 1917, na sequência do Concílio Vaticano II, veio a ser “revogado” pelo Código de 1983, não estava na “mens legis” do legislador eclesiástico converter as associações públicas já constituídas em associações privadas. Caso fosse essa a sua intenção seguramente que o teria dito, porque semelhante alteração provoca modificações muito relevantes que abalam a segurança jurídica, nomeadamente na gestão da vida interna das associações, mas também na natureza e disponibilidade do património dessas entidades.

É essencialmente em homenagem ao princípio da segurança jurídica e da inerente estabilidade das relações associativas e patrimoniais que ao seu abrigo se estabelecem, que não se justificam interpretações, mais ou menos criativas, que não têm correspondência com a letra e o espírito da lei.

Aliás, esta questão já foi decidida no âmbito da jurisdição eclesiástica, pois o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, cidade do Vaticano, no processo nº 23.966/93 C. A. nº 5, foi também no sentido já exposto, quando aí referiu explicitamente: «As associações já existentes antes da promulgação do código agora vigente conservam a sua condição que de facto e quanto à substância já tiveram. Portanto não é lícito a ninguém, nem mesmo à autoridade eclesiástica, atribuir-lhes uma qualificação que contradiga completamente a condição passada» (citação retira do texto “Estatuto jurídico-Canónico das Misericórdias em Portugal”, da autoria do Sr. Cón. Silvério Benigno Pires -Vigário Judicial da Diocese Bragança-Miranda e Vigário Judicial Adjunto do Tribunal Eclesiástico Interdiocesano de Vila Real).

A este respeito, realçamos muito em particular, que não faz sentido fazer apelo à aplicação do art. 12º, nº 2, do CC, ao CDC, porque o CDC estabelece normas de Direito Internacional, destinadas a vigorar em qualquer país do mundo onde existam instituições e sujeitos de direito subordinados à Igreja Católica.

O CDC é universal na mesma medida da universalidade da Igreja que serve. Pelo que, as soluções jurídicas para a sucessão de leis não podem ser encontradas no art. 12º nº 2 do CC, pela simples razão que estaria sempre por demonstrar que igual princípio está universalmente consagrado e, em particular, em todos e cada um dos países onde o CDC pode ser aplicado.

Por todo o exposto, concordamos com o entendimento já sustentado pelo Tribunal da Relação de Lisboa (Ac. de 29/9/2011 - Proc. nº 27/09.7TBHRT.L1-8 - Relatora: Maria Amélia Ameixoeira), bem como pelas Relações de Coimbra (Ac. de 16/10/2018 - Proc. nº 4680/08.0TBLRA.C2 -Relator: Freitas Neto) e de Évora (Ac. de 8/2/2018 (Proc. nº 692/11.5TBVNO.E1 - Relatora: Elisabete Valente - todos disponíveis em www.dgsi.pt): A 2ª A. é uma associação pública de fiéis.

Neste aspeto temos de referir que a 1ª instância colocou o problema de forma muito sucinta, mas reportando-se a uma questão que é particularmente interessante.

De facto, a sentença coloca a questão no sentido de nos perguntarmos se fosse hoje constituída a mesma associação qual seria a sua natureza?

A resposta a essa questão, do nosso ponto de vista, é que a mesma seria indiscutivelmente pública. Porquê? Porque perante a opção consagrada no CDC entre instituir a associação por “convénio dos fiéis” ou por ato de “ereção canónica”, constata-se que a associação foi efetivamente constituída por Decreto do Bispo da Diocese competente, logo é uma associação pública. Se o ato constitutivo da associação de fiéis fosse o mero “convénio”, não haveria Decreto de ereção canónica da associação, como de facto houve.

Poderemos é conjeturar se, perante a opção agora consagrada no Código de 1983, os fiéis não poderiam hoje ter-se limitado a acordar entre si a constituição da associação, sem necessidade da sua ereção canónica por decreto do Bispo da diocese. Mas as conjeturas são irrelevantes e não podem ser consideradas para efeitos da determinação da natureza jurídica pública ou privada duma associação de fiéis.

De todo o exposto, procedem as conclusões da Recurso da Recorrente conformes ao entendimento agora veiculado, no sentido de considerar que a 2.ª A. é, e sempre foi, uma associação pública de fiéis.

Como decorre da referida fundamentação, a natureza pública da associação Pia União assentaria, assim, no seguinte:

- A distinção entre associações privadas e associações públicas de fiéis é o ato instituidor: são públicas as eretas canonicamente pela competente autoridade eclesiástica – câns. 301º §3 e 312º §1; são privadas as instituídas por convénio privado celebrado pelos fiéis entre si – cân. 299º §§1 e 2;

- A Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus foi ereta por Decreto do Bispo e não por convénio privado;

- Ao tempo em que foi constituída, o CDC de 1917 não reconhecia associações privadas, pelo que as existentes eram necessariamente associações públicas de fiéis;

- Não foi intenção do legislador canónico de 1983 converter associações públicas em associações privadas de fiéis;

- O CDC de 1917 é direito internacional, pelo que não faz sentido convocar o disposto no art. 12º, nº 2, do CC e, por via dele, decidir da natureza jurídica da Pião União à luz dos critérios consagrados no CDC de 1983;

- Ainda assim, se fosse convocado, a Pia União é uma associação pública porque constituída por decreto do Bispo.


4.7. A mesma questão tem suscitado noutras latitudes (v.g. em Espanha), problemas semelhantes, especialmente em torno da qualificação das “Confradias” da Semana Santa, o que tem levado os canonistas a debater o assunto.

O cardeal e canonista espanhol Cardeal Lluís Martínez Sistach, em“Las Asociaciones de Fieles”, 5ª ed., 2004 (numa tradução livre), mas reportando-se a associações anteriormente constituídas, refere:

“Assim, nem todas as associações erigidas ou aprovadas existentes na Igreja no momento em que entrou em vigor do novo Código podem considerar-se como públicas.

Em primeiro lugar, porque algumas delas eram unicamente aprovadas e não erigidas e, em segundo lugar, porque as finalidades não concordam com as estabelecidas para as associações públicas na legislação vigente.

O mesmo cabe dizer da personalidade jurídica que têm as associações erigidas em virtude da legislação anterior, dado que o novo Código distingue entre pessoas jurídicas públicas e privadas.

A clarificação e a classificação torna-se necessária. No que se refere àquela primeira questão, a autoridade eclesiástica competente pode optar por aplicar, a respeito daquelas associações existentes, unicamente o critério estabelecido no cân. 301º §1, e as associações que não se ajustem às finalidades ali estabelecidas considerá-las privadas, ou então aplicar o critério assinalado no cân. 301º §2, e considerar algumas delas como públicas” (p. 169).([4])

Segundo o mesmo autor (citando para o efeito uma instrução da Conferência Episcopal Espanhola), seria então aconselhável rever os Estatutos das associações de fiéis anteriormente constituídas, de modo a acomodá-los ao direito atual, situando-as no enquadramento jurídico mais idóneo à sua natureza, asseverando que:

“ … se uma associação pública antes do Código passa a ser privada, os bens deixam de ser eclesiásticos na aceção técnica deste qualificativo, significando que se regem pelos seus próprios estatutos e não por estes cânones, se não se indica expressamente outra coisa” (p. 171).

Entre as regras a seguir na adaptação dos Estatutos refere o seguinte:

“Tratando-se de associações que foram eretas:

a) Se as finalidades destas associações não coincidem com as assinaladas no cân. 301º, deverão configurar-se como associações privadas. É normal que disponham e personalidade jurídica privada.

b) Se as finalidades coincidem com as assinaladas no referido cânone, configuram-se como associações públicas” (p. 187).

Em “Critérios de eclesialidade para las associaciones de fieles”, em As Associações na Igreja, 2005, pp. 44 e ss., embora focado nas associações de fiéis a constituir na vigência do CDC de 1983, refere o mesmo autor, a este propósito, o seguinte (em tradução livre):

 “O critério dos fins nem sempre é absoluto e determinante. Contudo há que dizer que este critério embora não seja o único, é, sem embargo, o principal a discernir se uma associação deve ser pública ou privada” (p. 44).


“Deverão ser públicas as associações de fiéis que se proponham como finalidades a de transmitir a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou que persigam outros fins reservados pela sua natureza à autoridade eclesiástica” (p. 45).


“Poderão ser públicas aquelas associações de fiéis que direta ou indiretamente busquem alcançar fins espirituais distintos daqueles três antes mencionados, para os quais não se adapte de modo suficiente com a iniciativa privada. A decisão de constituir como públicas estas associações não depende dos responsáveis das mesmas, mas unicamente da autoridade eclesiástica competente.


… é preciso considerar que a autoridade eclesiástica fica mais comprometida nas atuações das associações públicas.

Neste sentido, poderia aconselhar constituir uma associação em pública se a atividade da mesma ou a abundância dos seus bens temporais tem uma relevância considerável na sociedade, na opinião pública ou na comunidade eclesial” (p. 47).

Por fim, o mesmo autor, em “Asociaciones publicas y privadas de laicos”, acessível através de https://core.ac.uk, assevera que (em tradução livre):

“A nova regulação das associações de fiéis pede um considerável esforço às associações existentes na Igreja para adaptar os seus estatutos configurados segundo o Cód. de 1917. Mas nesta tarefa participa também a autoridade eclesiástica, porquanto deverá formular critérios em ordem à transformação jurídica das associações erigidas ou aprovadas em associações públicas ou privadas, tendo em conta o considerável número de associações eclesiais já existentes no momento de entrar em vigor o novo Código”. (p. 140)

Também os canonistas Pedro Lombardia e Juan Ignacio Arrieta, ob. cit., pp. 238 e 239, referem:

“Outra importante diferença relativamente ao CDC 17 consiste no critério empregado para classificar as associações: o CDC 17, tendo em conta de modo quase exclusivos fins próprios de cada associação, divide-as em ordens terceiras, confrarias e pias uniões. Pelo contrário, o atual CDC estrutura as associações atendendo à sua relação com a hierarquia eclesiástica, de acordo com o qual podem ser:

a) Públicas, se forem erigidas pela autoridade (cân. 301º §3);

b) Privadas, no caso contrário, mesmo quando tenham sido louvadas ou recomendadas pela autoridade (cân. 299º) ou inclusivamente obtiverem personalidade jurídica mediante decreto dado pela mesma (cân. 322º §1)” (p. 236).


“… o §3 do cân. 299º estabelece que não se reconhece na Igreja nenhuma associação privada se os seus estatutos não tiverem sido revistos previamente pela autoridade (para as associações públicas é necessária a aprovação dos estatutos: câns. 314º e 322º §2”.


“… trata-se, por isso, de comprovar a conformidade dos estatutos com a doutrina da Igreja e com as prescrições do direito comum e particular, exigindo em seu caso que se introduzam as emendas necessárias; sem que por isto passe a ser a autoridade a fonte de produção dos estatutos, que conservam o seu caráter estritamente privado, fruto da vontade daqueles que desejam associar-se” (p. 237).


“O §3 do cân. 301º estabelece o princípio de que se entende por associação pública aquela que foi erigida por ato formal da autoridade eclesiástica competente, ainda que talvez, na sua origem, a associação provenha da iniciativa privada de fiéis” (p. 238).

Quanto às associações públicas:

“O cân. 116º §1, precisa que a pessoa jurídica dotada deste caráter atua em nome da Igreja dentro do âmbito para o qual foi instituída.

Nos dois primeiros §§ deste cân. precisa-se que:

a) Só a autoridade competente (cân. 312º) pode erigir associações de fiéis para fins que, pela sua própria natureza, estão reservados à Hierarquia eclesiástica, como são o ensino da doutrina cristã em nome da Igreja, o fomento do culto público, etc.;

b) As associações estabelecidas com esses fins podem ser unicamente públicas; isto é, erigidas pela autoridade, que lhes outorga o mandato correspondente e da qual dependem no exercício da sua atividade …;

c) Pode além disso a autoridade eclesiástica promover – ou erigir, se o considera conveniente – associações para alcançar outros fins direta ou indiretamente espirituais, não reservados à Hierarquia …”.

Segundo Campo del Pozo, em “Cofradias y asociaciones religiosas en el derecho actual”, p. 5)([5]), no CDC de 1917 o tema das associações de fiéis constituiu uma novidade devendo ser erigidas, aprovadas ou ao menos recomendadas, distinguindo-se as confrarias, que eram irmandades erigidas e aprovadas para o incremento do culto público, considerando-se pessoas jurídicas públicas, as ordens terceiras e as pias uniões “criadas para exercer  alguma obra de piedade ou caridade (câns. 685º, 700º e 707º §1). Os bens destas últimas não eram eclesiásticos”. Acrescenta que, tal como ocorreu em Portugal, também em Espanha, em função da Concordata, se “reconhecia a sua personalidade jurídica, uma vez que fossem erigidas ou aprovadas pela autoridade eclesiástica competente”.

Na p. 22, nota 62, citando Aznar Gil, em La Administración de los Bienes Temporales de la Iglesia, refere ainda que:

“Depois da promulgação do CDC de 1983, bastantes pessoas jurídicas, já constituídas anteriormente, podem ser pessoas jurídicas privadas eclesiásticas segundo a atual legislação eclesiástica. E portanto os seus bens temporais, que antes eram considerados para todos os efeitos de eclesiásticos, passarão a ser bens privados”.

Para Fiol Chimelis ([6]) são quatro os elementos característicos da pessoa jurídica pública que se deduzem do cân. 116º: constituição pela autoridade competente, atuação em nome da Igreja, âmbito e limites dentro dos quais a pessoa jurídica exerce a sua ação em nome da Igreja e, finalmente, atuação em função do bem público da Igreja. Por contraposição, as associações privadas são aquelas que emanam do direito fundamental de todos os fiéis a participar na missão da Igreja e colaborar nela com as suas iniciativas (p. 502).

Especificamente assinala este mesmo autor:

“A dificuldade do uso das categorias público e privado na Igreja. Na realidade, não se pode falar de público e privado como realidades totalmente independentes e com limites definidos. Pelo contrário existem diferentes graus de publicidade na medida em que um instituto canónico tenha uma maior ou menor representatividade e incidência eclesial em função do bem comum da Igreja e da sua maior ou menor expressão da identidade da mesma” (p. 514).

Por seu lado, Delgado Galindo, em “Público y privado en el derecho canónico: el caso de las Misericórdias portuguesas([7]), incidindo especificamente sobre o caso das “Misericórdias Portuguesas”, mas referindo-se também às “Pias Uniões” constituídas antes da entrada em vigor do CDC de 1983, refere que:

“As associações de fiéis preexistentes ao CIC (de 1983) não careciam de atos administrativos de qualificação do carácter público ou privado; passaram automaticamente a ficar submetidas ao regime jurídico a que estavam sujeitas na vigência do CIC 1917” (p. 19).

Noutro local, sintetizando a doutrina extraída de duas decisões do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica precisamente sobre o caso das “Confrarias da Misericórdia Portuguesas”, mas nas quais também se referiam as “Pias Uniões”, o mesmo autor concluiu que:

 “O Dicastério chegava à conclusão de que as Confrarias e as Pias Uniões dotadas de personalidade jurídica estavam submetidas a determinados controles da autoridade eclesiástica, idênticos aos que caracterizam o regime público. No momento da entrada em vigor do CIC (1983) era este regime a que estavam sujeitas as Misericórdias Portuguesas. Um estudo atento das disposições do CIC leva a constatar que se tratava de um regime substancialmente idêntico à atual disciplina das associações públicas de fiéis” (p. 23)

Essas decisões, segundo o mesmo autor, assentavam em dois princípios importantes:

“a) As associações existentes antes da promulgação do código vigente, deixando de parte a questão do nome - privadas ou públicas – conservam a condição que, de facto e quanto à substância, tinham;

b) A ninguém é lícito, nem sequer à autoridade eclesiástica, atribuir-lhes uma qualificação que contradiga diretamente a sua condição anterior. Do mesmo modo, não está permitido às associações modificar a sua natureza arbitrariamente e segundo a sua vontade, para os fins que não são intrínsecos à vida substancial da mesma associação, conforme se possa e deva deduzir claramente da história. E neste caso deve advertir-se de imediato que as Misericórdias recorrentes não provaram, atendendo á história, que só podem ser consideradas como associações privadas” (p. 25).

Num trabalho de Silvana Neckel, intitulado “A utilidade eclesial da aprovação das associações”, em Scientia Canonica, v. 1, n. 2 (acessível através de Scientiacanonica.org), refere-se a este respeito o seguinte:

“Estas associações privadas para que possam existir juridicamente devem ter os seus estatutos revistos e devidamente aprovados pela autoridade eclesiástica que a constituirá por decreto (cân. 322º §2). A administração caberá aos fiéis, segundo prescrição do estatuto, no entanto estas associações estarão sujeitas a vigilância e autoridade eclesiástica competente, à qual cabe cuidar que nelas se conserve a integridade da fé e dos costumes e não se pratiquem abusos na disciplina eclesiástica. Assim a autoridade eclesiástica tem o dever e o direito de visitar essas associações e vigiar a sua atuação (câns. 305º §2 e 323º §1), contudo a aprovação dos estatutos e a vigilância pela autoridade eclesiástica competente não altera a natureza privada da associação” (pp. 273 e 274). E, mais adiante, a respeito da alteração dos estatutos, refere a mesma autora que as “reformas dos estatutos devem ocorrer num clima de diálogo, evitando a interrupção dos planos da associação, mantendo a sua natureza e respeitando as competências próprias da autoridade que a tenha erigido. Para a aprovação das sucessivas mudanças no estatuto requer-se um novo decreto da autoridade eclesiástica ao qual será anexado o estatuto alterado” (p. 275).


4.8. Centrados nas respostas que foram dadas por diversos jurisconsultos nacionais, verificamos, antes de mais, que terão sido apresentados noutros processos em estádios bem diversos daquele em que agora nos encontramos, designadamente para resolver questões de ordem adjetiva em torno da competência dos tribunais judiciais para apreciar questões conexas com o direito canónico e da legitimidade e capacidade judiciária de alguns dos sujeitos.

Tais pareceres visaram responder a dificuldades surgidas em fases processuais em que ainda não estava em causa a apreciação do mérito substancial das pretensões ligadas à validade de atos praticados, segundo as circunstâncias, pela Diocese de Leiria-Fátima, pela Fundação do Divino Coração de Jesus, pelo Seminário Pio XII, pela Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus e por cada um dos ora RR.

A tese assumida no acórdão recorrido tem a adesão de Saturnino Gomes (fls. 319 e ss.) que atribui relevo ao facto de a Pia União ter sido ereta por Decreto Episcopal, com base nos argumentos do “reconhecimento da autoridade” e “dependência” da Pia União do Bispo de Leiria-Fátima, bem como no “cumprimento das normas de direito canónico aplicáveis às associações públicas de fiéis” e de que “pela dependência do Bispo diocesano” a “dita organização funciona como instituto Religioso …” ou “comportava-se como se fosse uma comunidade religiosa, pois pretendia tornar-se Instituto Religioso”.

Trata-se de um parecer apresentado numa ação em que se discutia se a ora 2ª R. estava ou não habilitada a representar a Pia União e a agir em seu nome, depois de ter sido exarado o Decreto Episcopal de 15-7-2008, concluindo o seu autor que “do estudo dos estatutos, esta associação de Senhoras é pública, devido ao seu estilo de vida como Instituto Religioso e à sua dependência do Bispo de Leiria”, sendo uma “associação de fiéis que se reveste de natureza pública, tal como definido pelo Direito canónico” (pontos 73 e 74 a fls. 327).

O mesmo canonista, noutro local, em “Direito de associação um direito fundamental da Igreja”([8]), pp. 257 a 259, refere:

Associações públicas - são aquelas eretas pela autoridade competente eclesiástica e cujos fins sejam: o ensino da doutrina cristã em nome da Igreja, o incremento do culto público, fins cujo alcance é reservado por sua natureza à autoridade eclesiástica, fins espirituais, consoante a oportunidade e desde que falte a iniciativa dos cristãos.

Estas associações têm relações com a hierarquia na medida seguinte:

- são eretas pela autoridade competente, a qual constitui a associação em pessoa jurídica e lhe dá a missão;

- estão sob a direção superior da autoridade eclesiástica;

- a elaboração, revisão e mudança dos estatutos deve ter a aprovação da autoridade competente;

- a associação administra os bens sob a autoridade eclesiástica;

- a autoridade pode confirmar, instituir ou nomear o diretor da associação; tem direito a nomear o capelão ou assistente eclesiástico e a removê-lo. Esta norma vale para as associações eretas pelos membros de um Instituto religioso, em força de um privilégio apostólico, fora das próprias igrejas ou casas. Se estão junto da igreja ou da própria casa, a nomeação ou confirmação do moderador e capelão respeita ao superior do Instituto;

- a autoridade deve vigiar para que as associações não se abastem da integridade da fé, de costumes e que não haja abusos; tem o direito e o dever de visitar as associações;

- as associações podem estar sob a vigilância de Santa Sé e do Ordinário do Lugar.

Associações privadas - são associações constituídas por iniciativa livre e privada dos fiéis para atingir os objetivos indicados no c. 298º, §1.

Só as associações públicas poderão ter o ensino da doutrina cristã em nome da Igreja ou o incremento do culto público. As associações privadas são presididas e dirigidas pelos fiéis, segundo os estatutos.

Se a associação não tiver personalidade jurídica não pode ser sujeita de direitos e de deveres. Contudo, os seus membros podem exercer direitos e deveres através de mandatário ou procurador.

Se a associação é legitimamente constituída tem a faculdade, segundo os estatutos, de emanar normas peculiares sobre a própria associação, de fazer reuniões e de designar os seus dirigentes e oficiais. Para tudo isso, terá de possuir os meios necessários e ser conhecida por um título ou nome.

No que concerne às relações com a autoridade eclesiástica:

- mesmo que essa autoridade louve e recomende a associação, ela não deixa de ser privada;

- a associação fica sob a vigilância da autoridade em tudo aquilo que respeita a fé, costumes, disciplina eclesiástica, governo e bens;

- a autoridade poderá conceder-lhes personalidade jurídica;

- a autoridade deve vigiar para que a associação não disperse as suas forças mas tenha um trabalho comum no apostolado;

- o conselheiro espiritual, escolhido pela associação, deve ser confirmado pelo Ordinário do Lugar”.

Por seu lado, Silva Marques, em “As associações de fiéis no contexto civil e eclesial português([9]), acaba por defender que a aplicação das regras do CDC de 1983 não significa que:

“As associações já existentes no momento da entrada em vigor do novo Código tenham de abandonar a designação e o título que têm. Mais ainda, como já dissemos, se foram erigidas pela autoridade eclesiástica são para todos os efeitos associações públicas, o que constitui um direito adquirido que o novo Código não revogou (cân. 4º). Tal doutrina aplica-se à tão discutida questão entre nós do carácter público ou privado das Misericórdias. Se foram erigidas canonicamente são associações públicas”.

Entendimento em que insiste de novo em “O direito de associação e as associações de fiéis na Igreja à luz do Vaticano II e no Novo CDC([10]), onde refere que:

“Desde já importa dizer que são eclesiásticas todas as associações eretas ou aprovada – as reguladas no CIC 17 – e também as ulteriormente aprovadas pela hierarquia para facilitar a colaboração dos leigos nos seus apostolados”.


4.9. Outros autores, porém, inclinam-se no sentido oposto.

Desde logo, Jorge Miranda (fls. 1331 e ss.) cuja parecer, conforme os RR. alegam a fls. 1303, terá sido apresentado pelas próprias AA. noutro processo. Nele se concluiu que, “quando foi constituída, a Pia União entrava na categoria de pessoas jurídicas morais contempladas no CDC 1917. Se tivesse sido criada na vigência do Cód. de 1983 situar-se-ia no âmbito de associações canónicas privadas por na sua origem se achar uma iniciativa espontânea de fiéis”, concluindo que “deverá agora ser considerada associação privada, com as inerentes consequências” (fls. 1341).

Mais incisiva é a posição de Vieira de Andrade (parecer de fls. 210 e ss. que também foi junto noutro processo congénere). Elegendo como critério de qualificação a iniciativa da constituição e o modo de atuação, conclui que a Pia União deve ser considerada associação privada de fiéis, “pois se trata de uma entidade que resulta da iniciativa privada/cân. 299º §1 e arts. 1º e 2º dos Estatutos) e que atua em nome próprio na prossecução das respetivas finalidades que não são reservadas à Igreja – evangelização dos pobres pelo exemplo e prática de obras de misericórdia, tendo sempre, durante estes anos, fins assistenciais e de solidariedade e que nunca expressou qualquer vontade de se transformar em Instituto de Vida Consagrada” (fls. 219).

Acrescenta que “o facto de esta associação ter sido ereta canonicamente pelo Bispo de Leiria, em 1959, resulta apenas do facto de a mesma ter sido constituída na vigência do anterior Cód. Canónico, quando era esse o único modo de atribuição de personalidade de direito à luz daquele ordenamento jurídico”, sendo que a “formalidade reconduziu-se, porém, a um simples ato de aprovação dos respetivos estatutos, o qual, de acordo com o respetivo decreto, consubstanciava uma mera «aprovação à experiência», indicando, portanto, que se tratava de um reconhecimento de personalidade de uma nova associação externa á hierarquia da Igreja …” (fls. 221).

Mais refere que “o estatuto jurídico-privado desta associação de fiéis não pode ser posto em causa pelo facto de a Pia União ter sido constituída antes da entrada em vigor do Cód. canónico de 1983; não pode designadamente afirmar-se que essa circunstância temporal implica, de forma automática, a sua natureza pública, por se tratar de uma associação de fiéis ereta canonicamente, tendo em conta que a ereção canónica era, à data da instituição da pia União, a única forma de constituição de pessoas jurídicas de direito canónico, não se fazendo naquele ordenamento jurídico uma distinção expressa entre pessoas jurídicas de direito público e de direito privado” (fls. 222).

Rui Alarcão, tratando do problema da legitimidade da Pia União para constituir uma Fundação (questão discutida noutro processo), aderiu ao parecer de Vieira de Andrade e concluiu que a “Pia União é uma associação de fiéis de direito privado canónico, cuja constituição resultou da livre iniciativa dos fiéis …” (fls. 1352).

Mais expresso e mais extenso é o entendimento de Bacelar de Gouveia, em parecer, datado de 2016, também junto noutro processo em que se suscitava a qualificação jurídica da mesma Pia União destes autos (fls. 983 e ss.), no qual formulou, entre outras, as seguintes conclusões:

“…

- O novo CDC … veio introduzir a distinção – já de si implícita no anterior CDC de 1917 – entre as associações públicas e privadas de fiéis, distinção que assenta nas finalidades prosseguidas, na sua estrutura de governo e no modo de criação dessas instituições, decorrendo desta separação importantes consequência de regime, com uma mais intensa intervenção da autoridade eclesiástica sobre as primeiras do que sobre as segundas.

- A Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, criada em 1959 por ereção canónica ainda ao abrigo do CDC de 1917, não pode deixar de se integrar num destes dois termos desta nova contraposição trazida pelo CDC de 1983, sendo fácil perceber que esta associação deve ser qualificada como uma associação privada de fiéis, em atenção às finalidades prosseguidas (não sendo nenhuma delas daquelas finalidades canonicamente reservadas às associações públicas de fiéis) à estrutura do seu governo – e também se julgando que não pode tal qualificação, na decorrência da dicotomia estabelecida, deixar de ter aplicação imediata, mesmo para as associações que tenham sido erguidas ao abrigo do anterior ordenamento canónico, caso em que o critério do tipo de ato de criação não tem qualquer valia porque o mesmo já ocorreu na altura em que o novo CDC entrou em vigor, sendo este diploma insuscetível de aplicação retroativa”.


4.10. A questão também tem sido objeto de apreciação nos tribunais judiciais e designadamente neste Supremo Tribunal de Justiça, embora em sede de apreciação de questões de direito adjetivo ou de natureza cautelar.

a) No Ac. do STJ de 22-2-11, 332/09.2TBPDL.L1.S1, cuja cópia consta de fls. 134 e ss. e que está acessível em www.dgsi.pt, a natureza privada da mesma Pia União dos autos foi afirmada para sustentar a competência do tribunal judicial para apreciar a validade de uma confissão do pedido feita pela mesma.

Aí se concluiu que a questão de saber se a Pia União era “uma associação de natureza pública ou privada depende, fundamentalmente dos fins pela mesma prosseguidos, estabelecidos nos respetivos estatutos”.

O resultado de tal aresto, em torno de uma questão adjetiva ligada a competência dos tribunais judiciais, foi sintetizado no respetivo sumário, do qual consta, além do mais, que:

“III - O atual CDC, promulgado pelo Papa João Paulo II, faz uma distinção, que não constava do anterior CDC (de 1917), das associações de fiéis ligadas à Igreja Católica, entre as associações públicas e privadas, sendo que as primeiras adquirem a personalidade jurídica, quer pelo próprio direito, quer por decreto da autoridade competente, e as segundas adquirem essa personalidade apenas por decreto especial da autoridade competente que expressamente a conceda, correspondendo essa distinção aos dois modos de atuação de tais associações: as primeiras fazem-no em nome da igreja e comprometendo-a como instituição social, e as segundas atuam em nome próprio, ainda que visando uma e outra o bem da Igreja.

IV - Esta distinção tem relevância na autonomia de umas e outras. Enquanto as associações públicas estão sob a efetiva direção da autoridade eclesiástica e se consideram os respetivos bens como bens eclesiásticos, as associações privadas apenas estão sujeitas a vigilância da autoridade eclesiástica, pertencendo-lhes a livre administração dos bens próprios.

V - A Concordata em vigor, de 2004, ao mesmo tempo que declara as pessoas jurídicas mencionadas nos arts. 1°, 8°, 9º e 10° regidas pelo direito canónico e pelo direito português, determina no art. 11°, nº 1, que as questões canónicas e civis são decididas por cada uma das respetivas autoridades e que tais pessoas têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas coletivas da mesma natureza, estabelecendo o nº 2 que as limitações canónicas ou estatutárias à capacidade das pessoas jurídicas só são oponíveis a terceiros de boa fé desde que constem do Código de Direito Canónico ou de outras normas publicadas nos termos do direito canónico”.

b) No Ac. do STJ 10-12-13, 27/09.7BHRT.L1.S1, em www.dgsi.pt, concluiu-se pela natureza pública da Pia União dos autos para afirmar a incompetência do tribunal judicial para apreciar a invalidade de atos da Diocese de Leiria-Fátima relacionados com a sua intervenção na Pia União, nele se asseverando que:

“Com o CDC de 1983 foi criada a figura das Associações de Fiéis com natureza privada. Anteriormente, todas as Associações de Fiéis tinham natureza pública, regendo-se pelo direito canónico.

A “BB” foi canonicamente ereta na vigência do anterior CDC e, não tendo sido alterada a sua natureza, como decorre dos seus Estatutos e também da sua atuação, conserva essa natureza, estando sujeita à autoridade, direção e controle da autoridade eclesiástica.

É uma pessoa coletiva canónica-concordatária, sob a autoridade do Bispo DD, que nos termos do CDC, em caso especiais pode intervir na vida interna da Associação, nos termos dos câns. 305º, 318º e 1267º”.

c) Este juízo foi repetido no Ac. do STJ, de 1-3-16, 2153/06.5TBCRB-C.C1.S1, www.dgsi.pt, afirmando-se quer a natureza pública da Pia União dos autos, quer a incompetência do tribunal judicial para apreciar a invalidade de uma confissão de pedido feita no âmbito do proc. 2153/06.5TBCRB.

d) O mais recente Ac. do STJ, de 9-4-19, 692/11.5TBVNO.E1.S1, www.dgsi.pt, não chegou a apreciar o mérito da revista interposta relativamente ao acórdão da Relação que apreciou a qualificação jurídica da Pia União, com fundamento na irrecorribilidade de tal acórdão sobre uma decisão interlocutória e, além disso, na verificação de uma situação de dupla conformidade.

Subjacente a tal acórdão estava o Ac. da Rel. de Évora, de 8-2-18, 692/11.5TBVNO.E1, em www.dgsi.pt, em cujo sumário se concluiu, além do mais, que:

“Se a associação de fiéis nasceu numa altura em que a legislação ainda não previa expressamente as associações privadas de fiéis (o que veio a acontecer apenas em 1983, na senda do Concílio Vaticano II, em que se passou a valorizar - de entre outras importantes inovações introduzidas no direito e na doutrina católica - o papel do laicado) temos de concluir que nasceu como associação pública e não tendo sido alterada a sua natureza pelos seus estatutos conserva essa natureza, estando sujeita à autoridade, direção e controle da autoridade eclesiástica”.

e) Encontra-se pendente no Supremo um outro recurso de revista interposto no âmbito do proc. nº 4680/08.0TBLRA.C2.S1, em que igualmente se discute a natureza jurídica da Pia União que objeto de apreciação pelo Ac. da Rel. de Coimbra de 16-10-18, proc. nº 4680/08.0TBLRA.C2, em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:

“I - Independentemente do quadro jurídico vigente à data dos factos – o CDC de 1917 – não consentir que se operasse qualquer distinção substantiva entre associações públicas ou privadas, o facto de a referida A. ter sido canonicamente ereta em 2 de Março de 1959 pelo então Bispo de ..., ainda que acedendo a uma solicitação privada, conferiu-lhe irrecusavelmente, não só o reconhecimento da ordem jurídica canónica como pessoa de direito canónico (como “pessoa moral” de direito canónico), mas a natureza de uma entidade pública de direito canónico, diante do quadro legal instituído pela mesma ordem canónica vigente.

II - Temos assim como adquirido que a A. Pia União nasceu como uma associação pública de fiéis e, por via disso, deverá ser tratada como uma associação pública de fiéis, agora no âmbito do atual CDC, estando por isso especificamente sujeita aos câns. 312º a 320º desse tipo de associações, para além de se lhe aplicarem as normas comuns dos câns. 298º a 311º do mesmo Código.

III - Independentemente da opção que se tome sobre a natureza da A. Pia União como associação pública ou privada – dicotomia inelutável à luz do CDC de 1983 que não pode deixar de atravessar todas as entidade e associações criadas após a cessação da vigência do CDC de 1917 – certo é que sempre ela participará da característica essencial de uma entidade ou pessoa de direito canónico, por isso se submetendo inteiramente a essa específica ordenação jurídica em tudo quanto diga respeito à sua estrutura, organização e modo de funcionamento.

IV - Por conseguinte, não tinha o tribunal a quo – como não tem a Relação – fundamento para se pronunciar sobre uma relação de direito canónico como é aquela que se estabelece entre uma pessoa de direito canónico como é a 1ª A. e a autoridade eclesiástica corporizada no Bispo de ...

Com esse alcance, o dito pronunciamento seria mesmo indiscutivelmente violador da regra da separação jurisdicional consagrada no art. 11º da Concordata em vigor”.


4.11. Na interpretação conjugada dos cânones que anteriormente se transcreveram concorda-se inteiramente com Bacelar Gouveia quando afirma que “o ponto central a esclarecer é o dos critérios que alimentam a summa divisio – que agora se passou formalmente a aceitar no Direito Canónico – entre as associações públicas e as associações privadas de fiéis”.([11])

Não sendo o CDC inteiramente claro a este propósito, cabe ao intérprete-aplicador dogmaticamente proceder à sua análise, podendo referir-se que são três os critérios relevantes:

 - o critério dos fins prosseguidos pela entidade;

 - o critério da estrutura de governo da entidade;

 - o critério do ato de criação da entidade”.

Argumenta ainda:

a) Quanto ao critério dos fins prosseguidos pela entidade, o CDC 1983 consagra fins que podem ser prosseguidos por ambas as categorias de associações – os referidos no cân. 298º §1, aplicável às associações privadas por força do cân. 299º – e fins exclusivos das associações públicas  - os enunciados no cân. 301º §1;

b) Quanto ao critério da estrutura de governo, terá ele que ver com a intervenção “forte” ou “fraca” da autoridade eclesiástica: no primeiro caso, essa forma de intervenção é própria das associações públicas – v.g. nas situações previstas nos câns. 317º e 319º; no segundo caso, é própria das associações privadas – v.g. nos casos aludidos nos câns. 323º §2 e 325º §§1 e 2;

c) Por fim, quanto ao critério do tipo de ato de criação, conclui que no caso de uma associação pública o ato criador é da entidade eclesiástica, que procede à “ereção” canónica – cân. 314º; no caso de uma associação privada, será da autoria de pessoas jurídicas privadas, com índole contratual e intervenção posterior da autoridade eclesiástica através de decreto formal da autoridade eclesiástica competente – cân. 322º §1.

Conclui que para todos os efeitos, a Pia União dos autos deve ser qualificada como associação privada de fiéis, uma vez que o critério diferenciador assente no modo de ereção foi introduzido apenas com o CDC 1983, de modo que o seu relevo para o caso deve ser relativizado.

Com efeito, sendo relevante a natureza do ato instituidor no que concerne às associações de fiéis criadas na vigência do CDC de 1983, esse aspeto mostra-se insuficiente para resolver as situações anteriores, pelo motivo evidente de que, na vigência do anterior CDC, todas as associações de fiéis de natureza eclesiástica para que beneficiassem de personalidade jurídica teriam de ser eretas por decreto do Bispo competente.([12])

Discordamos do entendimento defendido por Silva Marques e por Saturnino Gomes que acima reproduzimos, na medida em que se o CDC 1983 subdivide as associações de fiéis entre públicas e privadas, reservando para aquelas a exigência da ereção por Decreto Episcopal, não pode encontrar-se no mecanismo de ereção das associações de fiéis anteriormente constituídas por essa via o critério essencial para a sua qualificação. Se esse critério fosse determinante, todas as associações de fiéis anteriormente constituídas por Decreto Episcopal teriam de se qualificar como associações públicas de fiéis em face do novo regime, ainda que o teor dos estatutos ou os objetivos da associação revelasse outro figurino, ou seja, ainda que a iniciativa da constituição da associação e os objetivos da mesma nos remetessem para uma associação privada de fiéis.

Ora, este resultado é negado por outros canonistas ou juristas que anteriormente também citámos, no sentido de atribuir relevo ao critério atinente aos fins da associação e não tanto ao facto gerador da sua constituição.

Realce-se, de novo, a metodologia defendida pelo canonista Cardeal Lluís Martínez Sistach, em Las Asociaciones de Fieles”, 5ª ed., 2004, p. 169, quando, a respeito de uma questão semelhante à que está em causa neste processo, isto é, relativamente ao tratamento a dar a associações de fiéis anteriormente constituídas, defende que:

“Assim, nem todas as associações erigidas ou aprovadas existentes na Igreja no momento em que entrou em vigor do novo Código podem considerar-se como públicas.

Em primeiro lugar, porque algumas delas eram unicamente aprovadas e não erigidas e, em segundo lugar, porque as finalidades não concordam com as estabelecidas para as associações públicas na legislação vigente”.

Concluía que:

“Tratando-se de associações que foram eretas:

a) Se as finalidades destas associações não coincidem com as assinaladas no cân. 301º, deverão configurar-se como associações privadas. É normal que disponham e personalidade jurídica privada” (p. 187).

Destaca-se ainda a solução propugnada por Aznar Gil, em La Administración de los Bienes Temporales de la Iglesia, citado por Campo del Pozo, em “Cofradias y asociaciones religiosas en el derecho actual”, p. 5), quando conclui que:

“Depois da promulgação do CDC de 1983, bastantes pessoas jurídicas, já constituídas anteriormente, podem ser pessoas jurídicas privadas eclesiásticas segundo a atual legislação eclesiástica. E portanto os seus bens temporais, que antes eram considerados eclesiásticos, passarão a ser bens privados”.

Por conseguinte, ao menos em relação às associações de fiéis constituídas ao abrigo do CDC de 1917, o critério distintivo essencial não pode basear-se, apenas ou principalmente, no ato de constituição, devendo intervir necessariamente outros aspetos relevantes face ao CDC de 1983, diploma que pretendeu inovar nesta matéria e cujas soluções devem abarcar não apenas as associações constituídas ao abrigo do novo regime como ainda as anteriormente erigidas mas que acabem por comungar das mesmas características que importam para a classificação como associação pública de fiéis ou como associação privada de fiéis.

Só deste modo pode ser respeitado o espírito do Concílio Vaticano II que o CDC pretendeu assegurar e promover, no sentido de uma efetiva separação de regimes jurídico-eclesiásticos a respeito das associações de fiéis, quer as que viessem a ser constituídas, quer obviamente as que já estavam constituídas e que continuariam (e continuaram) a prosseguir a sua atividade e objetivos segundo as novas normas de direito canónico.


4.12. A Pia União foi ereta canonicamente por Decreto de 2-3-1959 do Bispo de Leiria, quando vigorava o CDC 1917 que distinguia entre pessoas morais canonicamente eretas e pessoas não canonicamente eretas: às primeiras era reconhecida e às segundas não era reconhecida personalidade jurídica.

Relativamente a outras possíveis categorizações, encontrávamos no cân. 685º do CDC de 1917 a alusão aos fins típicos das associações de fiéis: promover a perfeição cristã entre os seus membros, exercer alguma obra de caridade ou piedade ou incrementar o culto público.

Daqui se pode concluir que o fim diverso constituía associações diferentes, de forma que estas diziam-se:

a) Ordens terceiras, se o seu fim era a promoção da perfeição cristã entre os seus membros;

b) Pias-uniões, se tinham por finalidade principal o exercício da caridade ou piedade;

c) Confrarias, se tinham por objetivo principal o incremento do culto público.

Pinharanda Gomes, em “Pias Uniões em Portugal: Subsídio Monográfico([13]), refere que “… o que na essência distingue a Pia União da Confraria é o facto de o seu propósito ser o de piedade/caridade e não de um culto público” (p. 472)

Foi nesta distinção que o Ac. do STJ 26-4-07, 07B723, em relação à qualificação de uma Confraria da Misericórdia, assentou a sua conclusão no sentido da sua qualificação como associação pública de fiéis, uma vez que, “atento o seu compromisso, é uma instituição integrante da ordem jurídica canónica como associação de fiéis pública, que visa – enformada pelos princípios da doutrina e moral cristãs – satisfazer carências sociais e praticar atos de culto católico …”.

A respeito dos objetivos ou fins da Pia União, nos termos dos respetivos Estatutos, verifica-se que tal instituição religiosa visa, “em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e Normas da Igreja; em segundo lugar, a evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das Obras da Misericórdia”.

Ora, estes fins não são exclusivos das associações públicas de fiéis porque não se reconduzem ao ensinamento da doutrina cristã em nome da igreja, à promoção do culto público, ou a outros fins exclusivos da autoridade eclesiástica (cân. 301º). Ao invés, são fins que podem ser prosseguidos por associações públicas como por associações privadas de fiéis e que genericamente se reconduzem a fomentar uma vida mais perfeita ou outras obras de apostolado, a saber, o trabalho evangelizado, o exercício de obras de piedade ou de caridade, e por informar a ordem temporal com o espírito cristão (cân. 298º).

A leitura dos estatutos revele um elevado grau de eclesialidade nos objetivos da Pia União, na medida em que não se trata de um agrupamento inorgânico de pessoas, antes de uma instituição de cariz religioso que pretendeu integrar Senhoras que, por diversas formas, visavam objetivos que são comuns às demais instituições religiosas.

Porém, ainda que esse objetivos apresentem muitas semelhanças com os prosseguidos por Institutos Religiosos, a verdade e que os fins prosseguidos não são atribuídos exclusivamente a associações públicas de fiéis, o que faz propender para a classificação como associação privada de fiéis.

Classificação que também encontra justificação no facto de a iniciativa da constituição ter partido das referidas Senhoras e não da Diocese, embora com a intermediação de outros sacerdotes em termos que, contudo, não desfiguraram aquela iniciativa particular, já que se limitaram a apoiar junto da Diocese a constituição da Pia União.


4.13. Neste contexto, poderia ganhar relevo um argumento formal retirado de alguma alteração estatutária na qual se assumisse a natureza jurídica que passaria a ser atribuída à Pia União ou, porventura, mediante a aprovação de uma norma geral que fosse aplicável a associações anteriormente constituídas independentemente da alteração estatutária.

Com efeito, a ausência de uma norma transitória no CDC de 1983 teria justificado que, depois da entrada em vigor, tivessem sido atualizados os Estatutos da Pia União, assumindo, em termos inequívocos, uma ou outra das referidas modalidades que passaram a estar tipificadas, o que correu, mantendo-se os Estatutos intactos.

As dificuldades de subsunção de realidades diversificadas aos critérios legais dotados, ainda assim, de alguma maleabilidade teriam justificado também uma posição da Conferência Episcopal Portuguesa, no âmbito dos seus poderes de regulação das associações e de assuntos religiosos, ao abrigo do art. 10º, nº 1, da Concordata, nos termos do qual: “A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas de direito canónico e constituir, modificar ou extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o estado reconhece personalidade jurídica civil”.

Assim ocorreu aparentemente.

A CEP aprovou e publicou as “Normas Gerais para a Regulamentação das Associações de Fiéis”, em 15-3-1988,([14]) em cujo art. 116º §4 se prescrevia que:

1º - Quanto às associações anteriores ao atual CDC, em razão dos câns. 1497º §1, 685º e 707º do CDC de 1917, dos arts. 14º §§2 e 3 do supracitado Regulamento Geral das Associações Religiosas dos Fiéis e do cân. 9º do atual CDC, são públicas todas as associações de fiéis eretas em pessoa moral pela autoridade eclesiástica, antes da entrada em vigor deste, em 27-11-1983, e nomeadamente as denominadas Irmandades ou Confrarias”.

O preceito não ocultava as dificuldades de qualificação das associações religiosas anteriormente constituídas, com destaque para as que giravam em torno das associações de fiéis.

No sentido de ultrapassar tais dificuldades de forma pragmática, superando uma alteração individualizada de cada um dos Estatutos das associações então existentes, a CEP pretendeu tomar uma posição inequívoca – ainda que fortemente questionada por Misericórdias Portuguesas e pela União das Misericórdias – atribuindo prevalência ao critério formal ligado ao ato gerador ou constitutivo da associação, a que o CDC de 1983 não era de todo indiferente para efeitos de distinguir as associações públicas e privadas de fiéis.

Mas existem obstáculos formais que impedem que, a partir dessa intervenção, se resolva a questão sobre a qual incidimos.

Em primeiro lugar, tal preceito apenas discriminava as Irmandades e Confrarias, tendo por objetivo essencial o de procurar resolver o diferendo que então existia em torno da qualificação jurídica das Misericórdias Portuguesas e que, aliás, suscitou a intervenção de órgãos jurisdicionais da Santa Sé. Diferendo que apenas foi resolvido posteriormente mediante a publicação de um Decreto especificamente dirigido à qualificação jurídica das Misericórdias.

Em segundo lugar, qualquer norma emanada de autoridade eclesiástica a respeito de matéria que são reguladas no CDC de 1983 não pode deixar de se ajustar aos critérios que neste são referidos a respeito da distinção entre associações públicas e privadas de fiéis, não podendo determinar que uma associação anteriormente constituída e que, de acordo com os ditames do CDC de 1983, tenha uma determinada natureza, seja atribuída uma natureza diversa. Qualquer Decreto da CEP deve ajustar-se ao CDC de 1983 que naturalmente prevalece.

Mas acima de tudo, o que impede a consideração daquele argumento para a resolução do caso é o facto de tais Normas Gerais não terem sido precedidas ou acompanhadas de trâmites formais junto da Santa Sé, como o exigia o cân. 455º do CDC (“recognotio”), com o seguinte teor:

“§1. A Conferência episcopal apenas pode fazer decretos gerais nos casos em que o prescrever o direito universal ou quando o estabelecer um mandato peculiar da Sé Apostólica por motu proprio ou a pedido da própria Conferência.

§2. Os decretos referidos no §1, para serem validamente feitos em assembleia plenária, devem ser aprovados ao menos por dois terços dos votos dos Prelados pertencentes à Conferência com voto deliberativo, e só adquirem força obrigatória quando forem legitimamente promulgados após a revisão pela Sé Apostólica”.


4.14. Importa aprofundar este ponto.

Acerca da validade e aplicação daquelas Normas Gerais de 1988, refere Saturnino Gomes, em “Normas da CEP sobre associações”, em Associações na Igreja, p. 79:

 “Não temos um decreto formal de promulgação destas Normas, pelo menos não aparece no fascículo. Segundo o cân. 7º: «A  lei é instituída quando se promulga».

Mas pelo contexto acerca da publicação e da explicitação da entrada em vigor, penso que não se poderá pôr em causa a sua validade.

Aliás, o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, ao lidar com a questão das Misericórdias, teve conhecimento destas Normas Gerais e não levantou qualquer obstáculo”.

Outro canonista, Sebastião Ferreira, em “Os bens temporais das associações de fiéis([15]), esclarece que tais normas, “embora não tenham sido promulgadas por Decreto da CEP (CDC, 455º §4), manifestaram o seu relevante valor de sistematização doutrinária” aquando da tomada de decisão das autoridades episcopais acerca da constituição ou aprovação de novas associações de fiéis.

Ou seja, segundo este autor, terão servido de orientação geral para os Bispos das Dioceses relativamente à criação ou aprovação de novas associações, mas não servem de critério formal para a qualificação de associações erigidas antes da entrada em vigor do CDC de 1983.

A aplicabilidade de tais “Normas” para o efeito foi rejeitada no Ac. da Rel. do Porto, de 12-12-02, 0230934,([16]) embora aceite no Ac. do STJ de 26-4-07, 07B723,([17]) e no Ac. da Rel. de Coimbra, de 17-5-11, 649/09,([18]) todos em www.dgsi.pt.

Às mesmas se refere também Paulo Dá Mesquita em “A tutela das Misericórdias e o âmbito das jurisdições eclesiásticas e do Estado”, na revista Julgar, nº 23, p. 118, mas sem tomar posição sobre a sua validade.

O que releva para o caso é que os Decretos da CEP não podem deixar de obedecer aos câns. 29º e ss. e, além disso, a sua vigência depende de promulgação (cân. 7º), a qual é exigível, nos termos do cân. 455º.

Isto mesmo concluem Pedro Lombardia e José Ignacio Arrieta, em CDC anot., p. 334, quando referem que “para que esses acordos (da CE) validamente adotados obtenham força jurídica vinculante, requer-se, além disso, a recognitio da Santa Sé, e a posterior promulgação pelas vias que a CE determine”.

Ora, na falta desta promulgação, não poderemos contar com o referido art. 116º §4 das Normas Gerais de 1988 para resolver a questão sobre a qual agora incidimos.


4.15. Assim se explicará que, em 2008, tenha sido declarada a abrogação e substituição das referidas Normas Gerais de 1988 por outras que então foram aprovadas, agora devidamente respaldadas em autorização da Santa Sé.

De útil para o caso concreto extrai-se apenas destas Normas Gerais de 2008([19]) a distinção que se pretendeu consagrar entre associações públicas e privadas de fiéis.

Segundo o art. 19º, são associações públicas:

“As eretas, como tais, pela autoridade eclesiástica competente e que normalmente prosseguem o bem público em nome da Igreja” (cf. cân. 313º)”.

Já nos termos do art. 55º, são associações privadas:

“As constituídas por livre iniciativa dos fiéis, para fins de caridade e piedade, ou para fomentar a vocação cristã no mundo, não carecendo de ereção canónica (cf. câns. 215º e 299º §1)”.

Acresce ainda o art. 63º, com o claro objetivo de solucionar a questão da qualificação jurídica das Misericórdias, que, sob o título de “Confrarias e Irmandades”, prescreve que:

 “As Confrarias e Irmandades, uma vez que têm como finalidade promover o culto público, hão de ser eretas pela autoridade eclesiástica competente e consideradas associações públicas de fiéis”.

Porém, nestas Normas Gerais de 2008 (de todo o modo, inaplicáveis ao caso, já que, como se disse, tratamos de uma realidade anterior à sua vigência) não se fez constar uma norma de teor semelhante à do art. 116º §4 das Normas Gerais de 1988 especificamente dirigida às associações de fiéis constituídas antes da entrada em vigor do CDC de 1983.


4.16. Neste contexto, nem sequer podemos extrair proveito do que entretanto foi decidido pelos órgãos jurisdicionais eclesiásticos, em torno da qualificação jurídica das Misericórdias Portuguesas.([20])

Ainda assim não deixaremos de referir o que a tal respeito foi decidido.

Junto do Conselho Pontifício para os Leigos foi acionada a impugnação de um Decreto do Bispo da Diocese do Algarve, de 19-7-1991, confirmado pelo mesmo Bispo em 24-8-1991, que qualificou de “pessoas jurídicas públicas, como Associações Canónicas de Fiéis”, “todas as irmandades das Santas Casas de Misericórdia canonicamente eretas”.([21])

No Decreto de tal instituição pontifícia, de 30-11-1992 (Prot. 1600/92/S-61/F-26), refere-se que:

“Segundo o CDC de 1917 tanto as «confraternitas» como as «piae uniones» dotadas de personalidade jurídica obedeciam a um regime constituído, entre outras, pelas seguintes disposições:

- estatutos aprovados pela autoridade eclesiástica competente (cân. 708º) graças ao qual adquirem personalidade jurídica (cân. 100º §1) e, com ela, a faculdade de possuir bens temporais;

- ereção exclusivamente numa igreja, num oratório público e semipúblico (cân. 712º §1);

- submissão ao poder jurisdicional e à vigilância do ordinário local/cân. 690º);

- obrigação de informar anualmente o ordinário local sobre administração de bens eclesiásticos (câns. 1518º e ss.);

- direito do ordinário de confirmar a eleição dos oficiais e ministros, assim como recusar ou remover aqueles considerados indignos ou não idóneos (cân. 715º §1).

Do conjunto destas disposições deduz-se a certeza de que as confraternitas e piae uniones dotadas de personalidade jurídica estavam submetidas a controles pela autoridade eclesiástica, idênticos àqueles que caracterizam o regime público. No momento da entrada em vigor do novo CDC era este o regime ao qual estavam sujeitas as «Misericórdias» portuguesas. Um estudo atento das disposições do Código de 1983 leva a constatar que se tratava de um regime substancialmente idêntico à atual disciplina para as associações públicas de fiéis.

Em consequência, as Misericórdias Portuguesas, quanto à sua substância, têm que ser necessariamente consideradas associações públicas de fiéis. Por outro lado, as disposições emanadas das competentes autoridades eclesiásticas portuguesas que esclarecem e declaram – sem criar um novo status jurídico – o carácter público ou privado de uma associação ou categoria de associações de fiéis, de um ponto de vista formal, são absolutamente legítimas.

No caso específico das Misericórdias Portuguesas é evidente a legitimidade jurídica dos atos administrativos das autoridades eclesiásticas para reconhecer e declarar (e não ara constituir) o carácter público daquelas associações”.

Rematou que o Decreto Episcopal que qualificou as Misericórdias de “pessoas jurídicas canónicas públicas como associações públicas de fiéis como Associações Canónicas de Fiéis”, é legítimo.([22])

Tal Decreto foi impugnado, por seu lado, junto do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica (Prot. N. 23966/93) que, no entanto, o confirmou.([23])

Semelhante resultado foi declarado num conflito aberto em torno de um Decreto Episcopal de 25-3-2001 relativo à Misericórdia de Montargil (nomeação de um comissário), tendo em conta a qualificação desta entidade como associação pública de fiéis, em face da referida Declaração da CEP de 15-11-1989.([24])

Submetido também ao Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, foi proferida decisão no Prot. B. 34864/03.C.A, reproduzida no Estatuto Jurídico das Misericórdias, em Apêndice, a pp. 337-368, confirmando o decreto impugnado.([25])

Estas decisões foram comentadas por Delgado Galindo, o qual analisou com mais profundidade a problemática da natureza jurídica das Misericórdias, em artigo intitulado “Publico y privado en el derecho canónico: el caso de las Misericórdias portuguesas”, em bibliotecanonica.net.

Mas, como se disse, tinham como objeto específico a qualificação jurídica das Misericórdias, instituições a cujos objetivos não é alheia a realização do culto público em nome da Igreja, diferindo, nesta parte, das Pias Uniões a quem não compete promover o culto público ou ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja, girando essencialmente em torno dos objetivos de evangelização de piedade e de caridade dos fiéis que promoveram a sua instituição, in casu, as Senhoras que tomaram a iniciativa da instituição de uma Pia União.

Ademais, não foi clarificada – nem fazia parte do objeto específico do processo canónico - a validade formal das Normas de 1988 das CEP, face ao CDC de 1983.

Por ambos os motivos, a resolução da questão da qualificação jurídica da Pia União não é diretamente influenciada pelo que se decidiu ou decretou acerca da qualificação jurídico-canónica das Confrarias da Misericórdia Portuguesas, questão que, aliás, acabou por ser resolvida por via de um Decreto específico da CEP em 2009.([26])


4.17. Por conseguinte, fazendo prevalecer os critérios delimitadores previstos no CDC de 1983, a natureza do ato constitutivo constitui um aspeto que apresenta, para o caso concreto, um relevo secundário, pelo facto de, aquando da constituição da Pia União, ser necessário o Decreto Episcopal de ereção para que adquirisse personalidade jurídica.

Somos, pois, levados a concluir que a Pia União, considerando os estatutos que definem os objetivos dessa associação e a iniciativa que presidiu à sua criação, deve ser considerada uma associação privada de fiéis.

Na realidade, segundo o cân. 116º §1:

“As pessoas jurídicas públicas são universalidades de pessoas ou de coisas, constituídas pela autoridade eclesiástica competente para, dentro dos fins que a si mesmas se propuseram, segundo as prescrições do direito, desempenharem em nome da Igreja o múnus próprio que lhes foi confiado em ordem ao bem público; as outras pessoas jurídicas são privadas”.

E nos termos do cân. 298º:

“§1. Na Igreja existem associações, distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, nas quais os fiéis quer clérigos quer leigos, quer em conjunto clérigos e leigos, em comum se esforçam por fomentar uma vida mais perfeita, por promover o culto público ou a doutrina cristã, ou outras obras de apostolado, a saber, o trabalho de evangelização, o exercício de obras de piedade ou de caridade, e por informar a ordem temporal com o espírito cristão.

§ 2. Os fiéis inscrevam-se de preferência em associações eretas ou louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica competente”.

Por seu lado, segundo o cân. 299º:

“§1. Podem os fiéis, por meio de convénio privado, celebrado entre si, constituir associações para alcançarem os fins referidos no cân. 298º §1, sem prejuízo do prescrito no cân. 30lº § 1.

§2. Tais associações, ainda que louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, chamam-se associações privadas.

§3. Não se reconhece nenhuma associação privada na Igreja, a não ser que tenha estatutos revistos pela autoridade competente”.

Prescreve ainda o cân. 322º que:

“§1. A associação privada de fiéis pode adquirir personalidade jurídica por decreto formal da autoridade eclesiástica competente, referida no cân. 312º. 

§2. Nenhuma associação privada de fiéis pode adquirir personalidade jurídica sem que os seus estatutos tenham sido aprovados pela autoridade eclesiástica referida no cân. 312º §1; contudo a aprovação dos estatutos não altera a natureza privada da associação”.

Ora, como já se disse, sem embargo do aspeto ligado ao modo de constituição da Pia União, cujo relevo não pode ser decisivo para a resolução do caso concreto, tendo em conta o contexto jurídico-canónico em que surgiu o respetivo Decreto Episcopal de ereção, todos os demais elementos relevantes a respeito da Pia União, confrontados com os preceitos do CDC de 1983 que servem de base à delimitação entre associações públicas e privadas de fiéis, conduzem-nos a considerar que a qualificação que concretamente se ajusta é a de uma associação privada de fiéis.

Com efeito, como decorre dos Estatutos, a Pia União resultou das “livre vontade” das Senhoras que se associaram para “viver em comunidade”, tendo como objetivo o da “santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e Normas da Igreja “ a “evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das Obras da Misericórdia”. Ademais, “a regra para a vida ativa deverá sempre resumir-se segundo o espírito do santo Evangelho nesta frase: Esconde-te sem Me esconderes. Revela-Me sem te revelares”.

Enfim, sem prejuízo também da ligação ao Bispo da Diocese que se revela, além do mais, pela prestação de juramento e de fidelidade absoluta às normas da Igreja prestado pela Superiora que periodicamente fosse eleita pelas referidas Senhoras, não existe qualquer objetivo de praticar o culto público ou evangelizar em nome da Igreja.

Deste modo, a iniciativa particular das Senhoras que empreenderam a constituição da Pia União, os objetivos evangelizadores, caritativos e piedosos que pretenderam assumir através dessa entidade de cariz religioso e o facto de a mesma não ter como finalidade promover o culto público em nome da Igreja nem prosseguir fins que são exclusivos da autoridade eclesiástica (cân. 301º) convergem no sentido de se afirmar que, ao abrigo do CDC de 1983, deve ser considerada associação privada de fiéis.

Repare-se que o Decreto Episcopal de ereção da Pia União foi orientado essencialmente pelo “espírito que presidiu à sua organização e fins que se propõe (…) de grande utilidade para as almas”, aprovando “à experiência os seus Estatutos”, encontrando a sua justificação fundamental no propósito de conferir à referida entidade personalidade jurídica, não constando dele quaisquer referências a condições ou características que tornem expetável a existência de motivos para ponderação do uso da prerrogativa a que agora se refere o cân. 301º §2 do CDC de 1983.


4.18. Por esta via, que reconhecemos ser tão sinuosa quanto as regras a que tivemos de recorrer e os argumentos que tivemos de enfrentar, alcançamos o plano em que situa a autonomia de que gozava a Pia União no que concerne a administração do seu património.

É iniludível que, atenta aquela qualificação, a alienação dos seus bens, fosse por venda ou por doação, não estava dependente nem de licença Episcopal, nem de autorização prévia de qualquer entidade consultiva Diocesana, nem recebia qualquer interferência da qualidade do beneficiário da doação, fosse ou não familiar da Superiora.

Tais bens não tinham natureza eclesiástica, qualificação que é reservada aos pertencentes a pessoas jurídicas públicas como o são as associações públicas de fiéis (cân. 1257º §1). É sobre os bens eclesiásticos, isto é, sobre os bens pertencentes a pessoas jurídicas de natureza pública, que prescreve o cân. 1276º §1, que

“Compete ao Ordinário vigiar diligentemente sobre a administração de todos os bens, pertencentes às pessoas jurídicas públicas que lhe estão sujeitas, sem prejuízo dos legítimos títulos que ao mesmo Ordinário confiram direitos mais amplos”.

Regime diverso vigora para os bens de pessoas jurídicas privadas, atento o disposto no cân. 1257º §2:

“Os bens temporais da pessoa jurídica privada regem-se pelos estatutos próprios … a não ser que outra coisa se determine expressamente”.

Sobre a referida Pia União, o Bispo Diocesano tinha poderes difusos que se traduziam num mero poder de controlo de aspetos de natureza eclesiástica, sem qualquer possibilidade de interferir na administração do seu património submetida unicamente aos órgãos próprios dessa entidade.

É o que afinal resulta cân. 321º, segundo o qual:

“Os fiéis dirigem e governam as associações privadas segundo as prescrições dos estatutos”, embora estejam sujeitas, atento o cân. 323º §1, à “vigilância da autoridade eclesiástica nos termos do cân. 305º, bem como ao governo da mesma autoridade”.

Esta sujeição à vigilância da autoridade eclesiástica competente, in casu, o Bispo da Diocese, decorre ainda do cân. 305º §1, nos termos do qual:

“Todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, à qual pertence velar para que nelas se mantenha a integridade da fé e dos costumes, e cuidar que não se introduzam abusos na disciplina eclesiástica; por isso, compete-lhe o dever e o direito de as visitar segundo as normas do direito e dos estatutos; estão igualmente sujeitas ao governo da mesma autoridade, segundo a prescrição dos cânones seguintes”.

Todavia, este poder de exercer a vigilância não interfere na autonomia da associação privada quando se trata de proceder à alienação de bens.

Ainda assim, no caso concreto, os factos apurados revelam que a Superiora da União fez preceder a sua intervenção na escritura de doação de uma posição favorável do Bispo da Diocese competente. A licença que foi concedida pelo Bispo da Diocese de Leiria-Fátima apenas se compreende no exercício do aludido poder dever de vigilância e de controle da autoridade eclesiástica relativamente ao destino dos seus bens, o qual, aliás, não foi posto em causa pela própria associação religiosa.

Segundo o cân. 325º §1:

“A associação privada de fiéis administra livremente os bens que possui, de acordo com as prescrições dos estatutos, salvo o direito da autoridade eclesiástica competente de vigiar no sentido de que esses bens sejam utilizados para os fins da associação”.

Uma vez que a 2ª R. era a Superiora da Pia União e, deste modo, era detentora dos poderes representativos dessa entidade, podia validamente outorgar na escritura pública sobre bem do património da referida entidade.

Como os Estatutos da Pia União nada referem a respeito da alienação de bens, o seu regime deve ser encontrado nas regras do CDC de 1983 e da Concordata, não se descobrindo em qualquer destas fontes normativas motivo para declarar a invalidade da doação, nem em termos eclesiásticos nem muito menos em termos de direito civil.

Nos termos do cân. 124º:

“§1. Para a validade do ato jurídico, requer-se que este seja realizado por pessoa hábil, que nele se verifiquem os elementos que essencialmente o constituem, e ainda as solenidades e requisitos exigidos pelo direito para a validade do ato.

§2. O ato jurídico, devidamente realizado quanto aos seus elementos externos, presume-se válido”.

Por outro lado, segundo o cân. 1255º:

“A Igreja universal e a Sé Apostólica, as Igrejas particulares e ainda qualquer pessoa jurídica, quer pública quer privada, são sujeitos capazes de adquirir, conservar, administrar e alienar bens temporais, nos termos do direito”.


4.19. Em conclusão, atenta a autonomia patrimonial de que gozava a Pia União dos autos, não existe qualquer motivo para declarar a invalidade da doação imobiliária que em seu nome foi outorgada.

Como anteriormente já se referiu, a declaração de invalidade com fundamento na análise da licença que foi emitida pelo Bispo de Leiria-Fátima, conexionada comos pareceres do CAE e do CS, já foi julgada improcedente pela Relação (mesmo depois de considerar que se tratava de uma associação pública de fiéis).

Este segmento decisório transitou em julgado.

Agora, é julgada improcedente a mesma pretensão de invalidade sustentada numa alegada exigência extraída do cân. 1298º do CDC de 1983, seja pelo facto de o concreto ato de alienação ter sido realizada a favor de um sobrinho, parente em 3º grau, da Superiora da Pia União, seja pelo facto de a licença episcopal não referir expressamente a existência dessa relação de parentesco.

Consequentemente, revoga-se, nesta parte, o acórdão da Relação, na medida em que nenhuma licença episcopal era exigida para a validade da doação, por estar em causa um bem imóvel que não tinha natureza eclesiástica, uma vez que pertencia a uma associação privada de fiéis.


5. Quanto à licença episcopal para a realização da doação:

5.1. Tendo em conta a anterior conclusão quanto à natureza privada da associação de fiéis Pia União, seria legítimo rematar com a concreta decisão do caso concreto.

Ocorre, porém, que, como o sinuoso percurso o revela, aquela solução está longe de ser pacífica e continua a alimentar numerosos processos que se encontram pendentes, sendo conveniente que sejam enunciados outros argumentos que, independentemente daquela conclusão, confluam para o mesmo resultado no caso concreto.

No acórdão recorrido, partindo da qualificação da Pia União como associação pública de fiéis, foi decidido que a credencial que foi apresentada pela 2ª R. em representação da Pia União não estava afetada de invalidade, uma vez que foi subscrita pelo Bispo competente.

No que concerne à invalidade da doação do imóvel, sustentada na ausência de parecer emitido pelo Conselho dos Assuntos Económicos da Diocese (previsto nos câns. 492º a 494º) e pelo Colégio de Consultores (regulado pelos câns. 495º a 502º), nos termos dos câns. 1291º e 1292º, também improcedeu a pretensão dos AA., concluindo o acórdão que a falta de demonstração dessa exigência não se repercute na validade do contrato de doação.

Como se disse anteriormente, estes segmentos decisórios não foram objeto de impugnação (nem pelos RR., que deles beneficiaram, nem pelas AA. que não ampliaram o objeto do recurso)

A Relação sustentou a invalidade do contrato de doação apenas no facto de a mesma ter tido como beneficiário um sobrinho da Superiora da Pia União, que, em nome da doadora, interveio na escritura pública de doação, sem que houvesse uma licença especial, nos termos exigidos pelo cân. 1298º do CDC. Segundo a Relação, a invalidade da doação decorreu do facto de na licença não ser referido especificamente que o beneficiário era um familiar até ao 4º grau da linha de consanguinidade.

Analisemos, pois, os efeitos que derivariam se acaso se pudesse qualificar a Pia União como associação pública de fiéis, sujeita, além do mais, às exigências do cân. 1298º no que concerne à alienação de bens eclesiásticos.


5.2. Nos termos do cân. 319º:

“Se outra coisa não estiver determinada, a associação pública legitimamente ereta administra os bens que possui, em conformidade com os estatutos, sob a direção superior da autoridade eclesiástica …”.

Nos termos do cân. 1291º do CDC de 1983 (que corresponde ao cân. 1540º do CDC de 1917):

“Para alienar validamente bens que por legítima atribuição constituam o património estável da pessoa jurídica e cujo valor exceda a soma estabelecida no direito, requer-se licença da autoridade competente”.

Ademais, de acordo com o cân. 1298º:

“Se não se tratar de coisa de somenos importância, os bens eclesiásticos não devem vender-se ou arrendar-se aos próprios administradores ou aos seus parentes até ao quarto grau de consanguinidade ou afinidade, sem licença especial da autoridade eclesiástica competente, dada por escrito”.

Para justificar a declaração de invalidade do contrato de doação que foi outorgado pela Pia União (qualificada aí como associação pública de fiéis), representada pela 2ª R. a favor do 1º R., a Relação discorreu da seguinte forma:

“Uma vez mais fala-se em “vender” ou “arrendar”, sem nada se referir relativamente a “doações”. Mas, desta feita, parece-nos claro que está subjacente ao espírito da lei a inclusão de qualquer ato de administração extraordinária, como seja um ato de disposição gratuita a favor do próprio administrador dos bens eclesiásticos ou seus parentes ou afins até ao 4º grau.

O cân. 1298º do CDC tem ínsito um princípio de sã administração dos bens eclesiásticos e procura que sejam respeitadas regras de transparência na gestão da coisa pública, convocando para o efeito a intervenção e corresponsabilização da autoridade eclesiástica competente.

A sanção aí expressamente estabelecida é que, não havendo licença especial, por escrito, da autoridade eclesiástica competente, os bens “não devem vender-se” às pessoas aí referidas.

Trata-se duma situação de indisponibilidade relativa a determinadas pessoas, semelhante ao que se estabelece na nossa lei quanto à venda de pais a filhos ou netos (v.g. art. 877º do CC) e, mais em concreto, quanto às doações a acompanhante e administrador legal de bens, ou a médicos, enfermeiros e sacerdotes (v.g. art. 953º conjugado com os arts. 2192º a 2198º do CC). Nestes últimos casos estabelecendo-se na nossa lei que semelhantes doações são mesmo nulas.

Mas, uma vez mais, também neste caso o CDC não diz que a doação ao parente do administrador do bem eclesiástico é inválida, nula ou anulável ou sequer ineficaz. Sem prejuízo, como a cominação de “não dever vender-se” reporta-se à omissão duma licença especial da autoridade eclesiástica competente, ao que o Cód. Canónico, noutros lugares, faz sempre corresponder a invalidade do ato (v.g. os já mencionados câns. 1281º §1 e 1291º do CDC), julgamos que a omissão dessa licença só pode ter a mesma consequência jurídica.

Deste modo a doação de bens eclesiásticos de associações públicas de fiéis só é válida se for autorizada por escrito pelo “Ordinário do lugar” (cân. 1291º) e, caso seja feita a parente do administrador do bem até ao 4º grau, depende ainda de licença especial dada por escrito pela autoridade eclesiástica competente: o Bispo (cân. 1298º).

Está provado que a 2ª R. era, à data da doação, a Superiora da Pia União aqui 2ª A. (facto provado 5), tendo por força dessas funções a incumbência de administrar os bens eclesiásticos dessa associação pública de fiéis. Sendo que o 1º R. é neto de JJ, que por sua vez é a mãe da 2ª R. (facto provado 8). Pelo que, o 1º R é sobrinho da 2ª R, sendo parentes colaterais no 3º grau. Em consequência, a validade da doação estava dependente da licença especial da autoridade eclesiástica competente.

Não foi feita prova de que semelhante licença especial, que deveria ser formalizada por escrito, tivesse sequer sido pedida pelos interessados ou emitida. Pelo contrário, os RR. sustentaram a sua defesa na falta de necessidade dessa licença e que a credencial emitida pelo Sr. Bispo era suficiente.

De facto, a autoridade eclesiástica competente para a emissão dessa licença especial é, uma vez mais, o Bispo da Diocese, que é o autor material do ato de emissão da credencial de fls. 79 com base na qual foi feita a doação posta em causa nesta ação.

Sucede que, a “Credencial” não faz qualquer menção ao parentesco entre os RR. e não poderá corresponder ao cumprimento da formalidade estabelecida no cân. 1298º do CDC. Pelo que, só poderemos julgar que a doação é inválida por omissão dessa condição formal de validade do ato.

Dizemos “inválida” e não nula, ou anulável, porque o Direito Canónico não estabelece essa diferença, nem faz a ela corresponder um regime jurídico diverso. O que nos leva à questão da caducidade.

Os RR. sustentaram na sua contestação que o vício verificado é a anulabilidade, sujeita ao regime do art. 289º do CC.

Se fosse admissível a analogia com a nossa lei, a situação mais próxima desta realidade seria a prevista no art. 953º, conjugado com o art. 2192º do CC, que estabelece a nulidade das doações a acompanhante ou administrador legal de bens. No entanto, a analogia com o nosso direito interno não é admissível, pelas razões que já deixámos expostas atrás.

Assim, se o CDC estabelece que a omissão de licença pela autoridade eclesiástica competente determina a invalidade do ato de alienação, só nos resta reconhecer que, verificada essa omissão, o ato praticado sem a mesma é inválido.

Por outro lado, não estabelecendo o CDC prazo de caducidade para a invocação dessa invalidade, a consequência só pode ser que a mesma pode ser invocada a todo o tempo, sem prejuízo da procedência doutras exceções de direito substantivo conflituantes que pudessem ser oponíveis por força do “Direito Comum”, como as que regulam a usucapião (arts. 1287º e ss. do CC) ou, por exemplo, situações de inalegabilidades de invalidades formais, emergente do princípio da boa-fé (art. 334º do CC).

Em suma, é só com este fundamento único que julgamos dever declarar a invalidade da doação a que se reporta o 2º pedido formulado na petição inicial, devendo a sentença ser revogada nessa parte, procedendo as conclusões que apontam no sentido mencionado.

Por força da procedência do 2º pedido, procede igualmente, por consequência lógica e necessária, o 3º pedido relativo ao cancelamento do registo da inscrição correspondente, tendo em atenção o disposto nos arts. 3º, nº 1, al. a) e 13º do Cód. de Reg. Predial”.


5.3. Ainda que, em face do CDC de 1983, qualificássemos a Pia União como associação pública de fiéis e o imóvel doado como bem de natureza eclesiástica, nem assim o resultado declarado pelo acórdão recorrido poderia ser confirmado, surgindo, então, como elemento preponderante o facto de estarmos perante um ato que, além de ter sido precedido de uma autorização concedida pelo Bispo de Leiria Fátima, beneficiou um terceiro alheio às relações existentes entre a Pia União e a Diocese, sem que se percecione nas normas de Direito Canónico, nem aquela consequência, nem a sua transmissão para o Direito Civil.

Numa situação em que estava em causa a alienação (mais concretamente a doação) de um bem imóvel de elevado valor que fazia parte do património da Pia União, a respetiva Superiora não agiu à revelia da hierarquia eclesiástica, antes se muniu de um documento emanado do Bispo da Diocese que a legitimava a alienar tal imóvel por via de doação, quer perante o Notário e o donatário, quer perante a própria instituição que dirigia e a Diocese de que dependia canonicamente.

É de presumir, aliás, que a emissão de tal credencial tivesse sido precedida das diligências consideradas pertinentes (due diligences, no quadro ou fora do quadro de funcionamento dos órgãos específicos de aconselhamento ou de consentimento representado pelo CAE ou do CS da Diocese), na defesa dos interesses da Pia União ou da Diocese, ou de ambas, como é característico das instituições diocesanas ou das entidades canónicas em geral.

Conclusão que, posto que não seja necessária, se aponta também à compreensão, pelo Bispo da Diocese que subscreveu a licença, das regras de direito canónico que estavam em causa.

Afinal, tratava-se de um ato gratuito que, numa parte (o donatário da doação do outro imóvel era o Santuário de Fátima), beneficiava um particular que, ao menos aparentemente, nenhuma relação tinha com nenhuma das instituições religiosas.

Artur Bueno, assessor jurídico do Arcebispado de Saragoça, em “Las confradias y su situación actual ante em CIC-83”, p. 13([27]) refere que:

“A Igreja é zelosa da conservação dos patrimónios. Daí que mereçam todo o nosso respeito os controles que ele coloca para a alienação dos bens eclesiásticos. E tal zelo explica-se pelo risco que a alienação comporta, consistente em pôr em perigo a substância da mesma pessoa jurídica”.

Também Moacy Malaquias Junior, em A Vigilância da Sede Apostólica na Administração dos Bens Temporais, 2006, conclui que a Igreja sempre se opôs à caprichosa delapidação dos seus bens, protegendo o património de delapidações (p. 179), servindo as licenças que são previstas no direito canónico para concretizar o dever especial de tutela de bens concretos e de vigilância contar possíveis abusos e negligências (p. 181).

Por razões que não foram expostas na presente ação, a A. Diocese de Leiria-Fátima, para a qual entretanto fora designado outro Bispo, terá alterado a sua posição acerca da doação que foi realizada, mas esse é um aspeto de ordem meramente subjetiva que não constitui, perante o Direito Civil (ou mesmo perante o Direito Canónico), motivo relevante para o reconhecimento do pedido que veio formular.


5.5. O CDC de 1983 é parco na previsão dos mecanismos conducentes à tomada de posição do Bispo Diocesano sobre a atribuição de uma licença para a alienação de bens eclesiásticos, segundo a classificação prevista no cân. 1257º, quando se trate de entidades religiosas públicas.

Tendo sido afastada pela Relação a invalidade da doação com base na alegada insuficiência da credencial, em face da exigência do cân. 1291º (relacionado com a falta de pareceres obrigatórios), também não se detetaria fundamento para sustentar o mesmo resultado perante o cân. 1298º.

No pressuposto - que já anteriormente afastámos, mas que aqui é chamado apenas para reforçar a decisão - de se tratar de uma associação pública de fiéis e de um bem eclesiástico, constatamos que o cân. 1298º, relativo à alienação de bens eclesiásticos, limita-se a assinalar, de forma muito genérica e sem prever qualquer consequência, que não devem vender-se determinados bens a familiares “sem licença especial da autoridade eclesiástica”.([28])

Ora, o teor da credencial que foi emitida, no contexto em que tal sucedeu, não poderia deixar de corresponder à referida “licença especial”, sendo a “especificidade” revelada, por um lado, pela indicação de que se tratava de um ato gratuito (a que o CDC nem sequer faz referência explícita, ainda que deva integrar-se, por maioria de razão, nas exigências que são previstas para atos onerosos de venda ou arrendamento) e, por outro lado, pelo facto de ser identificada a pessoa do donatário.

Como refere Joaquím Mantecon, à margem do cân. 1298º, em Comentário Exegético ao CDC, vol. IV/1, p. 173,([29]) “por licença especial há que entender uma licença outorgada ad casum, de modo que não cabem neste caso licenças de tipo genérico – isto é, para um caso mas não determinado – nem gerais”.

Mas, no caso concreto, constava da credencial que a Pia União “é representada, em juízo e fora dele, em todos os assuntos referentes à mesma Associação, segundo as normas de direito, pela Superiora Geral”. Além disso, referia-se que esta tinha os “poderes necessários para proceder” à concreta doação a favor do 1º R. que era identificado.

Neste contexto, não se entende o que mais seria exigível para considerar a regularidade de todo o procedimento canónico-administrativo que a precedeu e que acompanhou a outorga da escritura pública de doação.

O que ressalta de tudo quanto as partes alegaram neste processo (ou que é visível da leitura de outros arestos com base semelhante) é uma manifesta alteração da posição que a A. Diocese de Leiria-Fátima, representada pelo anterior Bispo, vinha assumindo, de forma aparentemente pacífica, relativamente ao destino a dar aos bens da Pia União.

Só assim se compreende que tenha sido emitida a referida credencial, tendo em conta os propósitos que à Diocese de Leiria Fátima terão sido apresentados pela 2ª R., na sua qualidade de Superiora da Pia União.


5.6. O único aspeto que, em abstrato, poderia ser convocado para sustentar a tese da Relação, a partir de uma putativa da qualificação da Pia União como associação pública de fiéis, centrar-se-ia na falta de indicação, na credencial referida, de que o 1º R. donatário, é sobrinho da 2ª R., Superiora e representante da Pia União, logo, seu familiar no 3º grau, nos termos do cân. 108º.

Ainda que custe a aceitar que tal facto fosse desconhecido da Diocese, num quadro em que, como se referiu, se manifesta um grande zelo na administração dos bens que integram as várias instituições religiosas, as AA. nem sequer alegaram esse desconhecimento que seria imprescindível para eventualmente se encontrar no procedimento administrativo alguma irregularidade cujos efeitos devessem ser depois apreciados.

Além disso, o CDC de 1983 é totalmente omisso quanto à extração de efeitos determinantes da invalidade de atos jurídicos a partir da mera verificação da falta de uma indicação explícita na licença prevista no cân. 1298º de que a alienação será feita a um familiar até ao 4º grau de quem tenha a qualidade de administrador do bem em causa.

Surgindo como relevante no procedimento que precede a alienação de bens de associações públicas de fiéis a existência de uma “licença especial”, não existe no CDC qualquer preceito que comine com a invalidade o ato subsequente pelo simples facto de em tal licença não ser assinalado explicitamente o referido grau de parentesco.

Extrair da omissão dessa putativa exigência, que nenhuma norma canónica consagra, a invalidade em termos eclesiásticos e, depois, a invalidade em termos civis, constitui uma consequência manifestamente infundada.

É para situações semelhantes a esta, isto é, para atos de alienação que sendo, porventura, inválidos perante o direito canónico, sejam válidos à face do ordenamento jurídico-civil que o cân. 1296º prescreve:

“Se alguma vez os bens eclesiásticos tiverem sido alienados sem as devidas solenidades canónicas, mas a alienação for válida civilmente, pertence à autoridade competente decidir, tudo maduramente ponderado, se deve intentar-se uma ação e qual, se pessoal ou real, por quem e contra quem, para reivindicar os direitos da Igreja”.


5.7. A procedência da pretensão debater-se-ia ainda com outras dificuldades que, naquele pressuposto da qualificação jurídica da Pia União e da natureza eclesiástica do bem imóvel, seriam inultrapassáveis.

Nos termos do art. 11º, nº 2, da Concordata de 2004, “as limitações canónicas ou estatutárias à capacidade das pessoas jurídicas canónicas só são oponíveis a terceiros de boa fé desde que constem do CDC ou de outras normas, publicadas nos termos do direito canónico …”.

Ora, não há qualquer preceito no CDC de 1983 que comine com a invalidade a doação feita a um familiar que não seja como tal identificado na licença especial subscrita pelo Bispo competente.

Tratando-se de uma situação que não se traduz na falta de licença do Bispo, nem na falta de identificação do donatário, mas simplesmente na falta de menção de que entre o donatário e a administradora da associação de fiéis existia uma relação de parentesco de 3º grau, a segurança jurídica que deve ser preservada pelas normas reguladoras, sejam de direito canónico, sejam de direito civil, exigiria a clareza quanto à identificação do vício e respetivas consequências na validade do ato.

Esta é a conclusão que também se extrai do cân. 10º, nos termos do qual “apenas se consideram irritantes ou inabilitantes as leis que estabelecem expressamente que o ato é nulo”, efeito que, de todo o modo, não é possível atribuir a uma qualquer irregularidade no processo administrativo que preceda a prática do ato, e ainda menos a um elemento de natureza acessória como seria uma alegada exigência de identificação da relação de consanguinidade na licença especial.

Essa mesma clareza na identificação dos vícios determinantes da invalidade é induzida pelo cân. 124º, quando nele se prescreve que “para a validade do ato jurídico, requer-se que este seja realizado por pessoa hábil, que nele se verifiquem os elementos que essencialmente o constituem, e ainda as solenidades e requisitos exigidos pelo direito para a validade do ato”, sendo que, nos termos do §2, se presume a validade do “ato jurídico, devidamente realizado quanto aos seus elementos externos”, ou seja, quanto aos seus “elementos constitutivos essenciais” (Pedro Lombardia e Juan Ignacio Arrrieta, ob. cit., p. 132).


5.8. Acresce ainda que não devem confundir-se os vícios relevantes para efeitos de direito canónico, designadamente para sustentar alguma ação de responsabilidade, com os efeitos no direito civil ou no direito comum.

Nesta perspetiva, constata-se que também nenhuma consequência se observa em face do ordenamento jurídico nacional com base no mero facto de não se ter feito constar da licença especial - subscrita pelo Bispo da Diocese - a relação de parentesco existente entre a Superiora da Pia União e o donatário, seu sobrinho.

Aliás, como refere Joaquím Mantecon, à margem do cân. 1296º, em Comentário Exegético ao CDC, vol. IV/1, p. 168:

“O normal é que os ordenamentos civis não tenham em conta as disposições que se estabelecem na legislação canónica sobre a validade das alienações. Assim pode suceder que uma alienação nula para a Igreja por inobservância de um requisito para a validade seja, contudo, perfeitamente válida para o Estado, colocando a Igreja numa situação delicada para defesa do seu património”.

Juan José Fasquelle, em La Capacidad Economica de los Institutos y sus Limitaciones, pp. 201-202, em face da ocorrência de alguma alienação não sustentada em licença especial, como a referida no cân. 1298º, geradora da ilicitude do ato, refere que as normas de direito canónico (especificamente o cân. 1290º) remetem para o direito civil de cada Estado, pelo que é neste que devem observar-se as consequências jurídicas extraídas daquela situação.

Mas o mesmo autor logo alerta para o facto - que aqui se comprova - de que não será pouco frequente que as leis civis prescindam da verificação de solenidades canónicas, considerando como válidas alienações que são nulas em face do direito canónico.

Semelhante conclusão é extraída por Jean-Piérre Schouppe, em Droit Canonique des Biens, 2008, p. 174, quando observa que pode acontecer que a lei civil não reconheça as regras canónicas exigidas para a validade dos atos de alienação (atos de alienação civilmente válidos mas canonicamente inválidos), casos em que é de aplicar o disposto no cân. 1296º quando se trata de instaurar alguma ação de reivindicação ou optar por outra medida que defenda os interesses da pessoa coletiva religiosa. Acrescenta que a implicação civil de invalidades decorrentes da violação de normas de direito canónico acaba por exigir, em regra, uma cobertura expressa do ordenamento jurídico nacional. E dá como exemplos de ordenamentos jurídicos onde essa relação se estabeleceu o da Itália (citando a Legge nº 222, de 20-6-1985) e o de Espanha (citando o Acordo para os Assuntos Jurídicos, de 3-1-1979),([30]) que atribuíram relevo civil a exigências de direito canónico relacionadas com o processo de alienação de bens eclesiásticos (nota 489).

Nada disso ocorre em Portugal, já que, com relevo para o caso, apenas se dispõe do art. 11º, nº 2, da Concordata, que faz depender os efeitos de alguma invalidade perante terceiros do facto de essas invalidades constarem “do CDC ou de outras normas, publicadas nos termos do direito canónico …”).


6. Por conseguinte, ainda que porventura a Pia União fosse qualificada como associação pública de fiéis e que, por essa via, o bem imóvel fosse de considerar bem eclesiástico, nem assim procederia o pedido de declaração de invalidade da doação ou dos registos prediais que foram efetuados.

Em suma, e para rematar:

a) Para além de a invalidade da credencial e da doação já ter sido considerada improcedente por ambas as instâncias quando sustentada na falta de parecer do CAE e do CS (questão sobre a qual se formou caso julgado),

b) Improcede a mesma invalidade sustentada no alegado desrespeito do cân. 1298º do CDC de 1983 sobre a licença especial em casos de alienação a familiares, tendo em conta:

i) A qualificação jurídica da Pia União como associação privada de fiéis e a correspondente exclusão do bem imóvel da categoria de bens eclesiásticos,

ii) E a falta de apoio para tal invalidade na eventual aplicação ao caso do cân. 1298º do CDC de 1983.


IV – Face ao exposto, acorda-se em revogar o acórdão recorrido que declarou a invalidade do contrato de doação e dos registos subsequentes sustentada na falta da licença especial do cân. 1298º do CDC de 1983, julgando a ação totalmente improcedente e absolvendo as RR. de todos os pedidos nela formulados.

Custas da revista e nas instâncias a cargo das AA.

Notifique.

Lisboa, 5-12-19


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo

______

[1] Na obra “Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa” (2001), pp. 99-100.
[2] Em Codex Iuris Canonicis de 1983: 10 anos de aplicação na Igreja e em Portugal (1995), p. 140.
[3] Semelhante entendimento foi exposto por António Martínez Blanco, em Derecho Canónico, 1995, p. 233, onde concluiu que o propósito do CDC de 1983 foi o de substituir por completo o Código de 1917 e a sua legislação posterior.
[4] Opinião reproduzida pelo mesmo autor em “Asociaciones publicas y privadas de laicos”, p. 180, acessível através de https://core.ac.uk.
[5] Acessível através de www.agustinosvalladlid.es.
[6] Em “Naturaleza y configuración pública o privada de las asociaciones de fieles”, em REDC 48º (1991).
[7] Em Forum Canónico, vol. V-2, de Junho-dezembro de 2010, também acessível através de bibliotecanonica.net.
[8] Acessível através de https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/15721/1/V01901-191-262.pdf.
[9] Em Codex Iuris Canonicis de 1983: 10 anos de aplicação na Igreja e em Portugal (1995), p. 128.
[10] Em Separata de Theologica, vol. XIX, tt. III-IV, 1986, p. 70.
[11] Em “As Associações Privadas de Fiéis no Direito Canónico e no Direito Português: o caso da Pião União das Escravas do Divino Coração de Jesus”, na Revista de Direito Público, nº 14, acessível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/19095/1/JBG_ReDP_2015.pdf.
[12] É verdade que a doutrina canónica já reconhecia a existência de associações laicas que eram criadas exclusivamente pelos fiéis sem nenhuma participação da hierarquia.
Como refere Fiol Chimelis, ob. cit., p. 490, nota 19, tratava-se de associações que podiam ser louvadas ou recomendadas pelas autoridades eclesiásticas, mas que não tinham a natureza das demais associações suscetíveis de serem reconhecidas civilmente como pessoas morais de direito canónico, designadamente por via da Concordata entre Portugal e a Santa Sé. Mais concretamente refere esse autor que “ainda que na Igreja sempre tenham existido associações fundadas e dirigidas pelos próprios fiéis, o Cód. de 1983, ao incorporar tais associações no seu ordenamento em paridade com as associações que têm a sua origem na autoridade eclesiásticas, introduz uma grande novidade na legislação. Efetivamente, segundo o Cód. de 1983, a causa eficiente das associações canónicas não está já unicamente na autoridade pública da Igreja, mas também a iniciativa pessoal dos fiéis pode dar origem a uma associação que se configura como privada”.
[13] Em “Lusitania Sacra”, acessível através de https://repositorio.ucp.pt.
[14] Publicadas em Conferência Episcopal Portuguesa, Documentos Pastorais, vol. III, cujo extrato mais relevante se encontra reproduzido em Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 9, t. I, como doc. nº 18.
Tais normas são citadas por Saturnino Gomes, em “Normas da Conferência Episcopal Portuguesa sobre Associações”, em As Associações na Igreja, 2005, pp. 79 e 80. Às mesmas se refere também Paulo Dá Mesquita, em “A tutela das Misericórdias e o âmbito das jurisdições eclesiásticas e do Estado”, na revista Julgar, nº 23, p. 118, onde refere explicitamente que “momento importante nessa matéria é constituído pelo Decreto de 15-3-1988 da CEP que determinou que «são públicas todas as Associações de fiéis eretas em pessoa moral pela Autoridade eclesiástica, antes da entrada em vigor deste [Cód. Can.], em 27-11-1983, e nomeadamente as denominadas Irmandades ou Confrarias”.
[15] Em Forum Canónico, vol. V, Janeiro-Junho de 2010, p. 45.
[16] Incidindo sobre a qualificação jurídica da Misericórdia de Matosinhos, aí reputada de associação privada de fiéis, refere-se na fundamentação deste aresto, alem do mais, o seguinte:
“A esta conclusão parece não obstar a regulamentação aprovada, em 15-3-1988, pela CEP, constituída pelas Normas Gerais para Regulamentação das Associações de Fiéis, uma vez que, pelo menos, não ficou demonstrado que as mesmas tenham obtido força jurídica vinculante através de recognitio da Santa Sé – cân. 455º §2. Aliás, a possuir essa eficácia, não se compreenderia que na Declaração Conjunta de 15-11-1989 não lhe fosse feita qualquer referência, continuando a aludir-se à existência de dúvidas quanto à natureza jurídica de algumas associações de fiéis, entre as quais as Misericórdias.
De qualquer forma, as referidas Normas, em alguns aspetos, dificilmente se harmonizam com os princípios fundamentais da autonomia privada e da liberdade de associação de fiéis [verdadeiro direito nativo e fundamental, segundo Pedro Lombardia e J. Ignacio Arrieta, ob. cit., 237] proclamados no Concílio Vaticano II (Dec. Apostolicam actusitatem, 19 e 24), que o CDC de 1983 consagrou e que aquelas normas pretendem regulamentar (cf. designadamente o art. 116º § 4)”.
[17] Refere-se na fundamentação que:
 “Atualmente, o CDC de 1983, dedica os câns. 298º e ss. às “Associações de Fiéis”, precisando logo que “existem na Igreja” associações distintas, incluindo as destinadas a atividades de apostolado, contando-se entre elas, as que visam o exercício de obras de piedade ou de caridade.
Dos câns. 305º e 323º resulta que todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente. O que é reafirmado no art. 11º das “Normas Gerais para Regulamentação das Associações de Fiéis”, aprovadas pela CEP e publicadas para entrarem de imediato em vigor em 15-3-1988, sujeitando a tais normas gerais – agora já no art. 116º §1º - todas as associações de fiéis, quer existentes antes do atual CDC, quer surgidas depois”.
[18] Nele se refere que:
“Daí decorre que todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, ideia que é reafirmado pelo art. 11º das “Normas Gerais para Regulamentação das Associações de Fiéis”, aprovadas pela CEP e publicadas para entrarem de imediato em vigor em 15-3-1988, sujeitando a tais normas gerais – agora já no art. 116º §1 - todas as associações de fiéis, quer existentes antes do atual CDC, quer surgidas depois, sendo que, em conformidade com o disposto no § 2 do art. 41º as associações de fiéis podem ser, no plano civil, instituições particulares de solidariedade social”.
[19] Cujo texto está acessível em https://www.agencia.ecclesia.pt.
[20] Sobre essa matéria e distinguindo os casos em que as Confrarias da Misericórdia são qualificadas como associações públicas ou como associações privadas de fiéis, cf. M. Prata Roque, “Misericórdias e conflito de jurisdições: a impugnação de deliberações das associações religiosas”, ROA, ano 78º, vols. III-IV, pp. 835 e ss.
[21] Tendo por base a Declaração da CEP intitulada “Declaração conjunta sobre a dimensão pastoral e canónica das Misericórdias Portuguesas”, de 15-11-1989, publicada em Lumen 50/1989, pp. 445 e 446.
[22] Acessível através de https://summa.upsas.es, reproduzindo uma parte da “Colectánea de Jurisprudencia Canónica”.
[23] Acessível através de iuscangreg.it/stsa-contadmin/23966-CA.pdf.
[24] Proc. N. 671/03/S-61/F-40, acessível através de bibliotecanonica.net/docsao/btcaoz.pdf.
[25] Acessível através de iuscangreg.it/stsa-contadmin/34864-03-CA.pdf.
[26] Foi este aspeto que, depois de ter sido assinalado nas referidas decisões apostólicas e, em face das divergências suscitadas em torno das Normas de 1988, acabou por ser resolvido pela CEP, mediante o Decreto de 23-4-2009 (Decreto Geral para as Misericórdias) devidamente respaldado pelo Decreto da Santa Sé, de 17-6-2010 (nele se refere precisamente que se trata de “Norme emanate con mandato speciale della Santa Sede; recognitio 17 giugno 2010; in Lumen Julho/Agosto 2010, p. 36-38”).
Acessível através de bibliotecanonica.net, consta do respetivo Preâmbulo, além do mais, que:
“…
Com a promulgação do CDC em 1983, foram levantadas dúvidas quanto à natureza jurídica de algumas associações de fiéis, entre as quais as Misericórdias, dada a nova distinção entre associações públicas e associações privadas.
Nesta conformidade e tendo em conta que a Autoridade Eclesiástica interveio, habitualmente, na existência e ação das Irmandades da Misericórdia através de atos jurídicos; que as Misericórdias têm, na sua maior parte, ereção canónica e Estatutos aprovados pelo Ordinário diocesano; que mantêm culto público em igrejas e capelas próprias com capelão nomeado; que continuam a dedicar-se a atividades de pastoral social de grande alcance; a CEP considerou através de uma Declaração, em 15-11-1989, as Misericórdias Portuguesas Associações Públicas de Fiéis, com os benefícios e exigências que lhes advêm do regime do CDC, especialmente nos câns. 301º e ss. e 312º e ss.
…”
Assim decretou a Conferência Episcopal Portuguesa, devidamente sustentada na recognitio da Santa Sé, o seguinte:
Nestes termos, de acordo com a doutrina e a opinião dos autores, sendo clara a atual legislação canónica e civil sobre as mesmas instituições e tendo em conta as mais recentes decisões administrativas e judiciais da Santa Sé, nomeadamente, através do Pontifício Conselho para os Leigos e do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, bem como a publicação por parte da Conferência Episcopal Portuguesa das Normas Gerais das Associações de Fiéis (2008), mediante o presente Decreto Geral,
Havemos por bem determinar que:
Nos termos do cân. 455º do CDC e do art. 60º dos Estatutos da CEP, são as seguintes as sujeições canónicas a que ficam vinculadas as Misericórdias Portuguesas:
1. Estão sujeitas à ereção canónica da autoridade eclesiástica competente (can. 312º §1, 30), considerando-se associações públicas para todos os efeitos (cân. 313º; Normas Gerais..., art. 190).
”.
[27] Acessível através de www.cofradiacolumnazgj.com.
[28] Sobre o objetivo do preceito cf. Sebastião Pires Pereira, em “Bens temporais”, em Associações na Igreja, pp. 133 e 134.
Conclui Angelo Vizzari, em “L’amministrazione dei beni ecclesiatici”, em I Beni Temporali della Chiesa, p. 71, que se procura com tal preceito evitar suspeitas de interesses privados no exercício das funções.
Noutra perspetiva, refere Vittorio Palestro, em “La disciplina canónica in matéria di alienazioni e di locazioni”, em I Bieni Temporali della Chiesa, p. 162, que se pretende tutelar e salvaguardar os bens que foram confiados para a realização da missão da Igreja no mundo.
[29] Também acessível através de https://www.academia.edu/35763019/Comentario_al_Titulo _III_del_Libro_V_cc._1290-1298_.
[30] A este Acordo se refere também Joaquím Mantecon, à margem do cân. 1296º, em Comentário Exegético ao CDC, vol. IV/1, p. 169, em cujo art. I, nº 4, se prescreve que “para efeito de dispor dos seus bens se atenderá ao que disponha a legislação canónica que atuará neste caso como direito estatutário”.