Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1558/21.6T8VIS.C1.S1 R
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
REQUISITOS
BOA -FÉ
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
SUPRESSIO
COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO
CLÁUSULA PENAL
PAGAMENTO
CONTRATO DE ADESÃO
RESOLUÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – A situação de abuso de direito, em que se traduz o venire contra factum proprium, depende da verificação: de uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredita numa conduta alheia (no factum proprium); de uma justificação para essa confiança (plausível e sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis), de um investimento de confiança (ter havido, por parte do confiante, o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade, pelo venire, e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara) e de uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante.

II - Ainda que na supressio não se exija conduta contraditória, há que verificar-se justificação para a confiança ou para o investimento de confiança

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Referências

Nestlé Portugal, Unipessoal Lda., intentou a presente acção, com processo de declaração e forma comum, contra Requintobrigatório Unipessoal, Ld.ª, e AA, pedindo a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia de € 37.520,00 e juros de mora vencidos calculados à taxa de juro comercial de 7% ao ano, desde 2/12/2020 até 21/4/2021, no valor de € 1.007,39, sem prejuízo dos juros vincendos até integral pagamento, bem como a condenação da R. na devolução de dois moinhos e de uma máquina de café.

Alegou para o efeito ter celebrado com a Ré, com fiança do Réu, um contrato de fornecimento de café que, além do mais, previa a aquisição de 9.000 Kg de café ao longo dos 5 anos da sua duração, e que lhe entregou, como contrapartida, a quantia de € 148.215,00.

Como a R. não adquiriu toda a quantidade de café convencionada, tendo apenas adquirido 5.248 kg dos 9.000 que deveria ter adquirido, entende que a mesma lhe deve, a título de cláusula penal, o montante de 10,00 por cada kilo de café contratado e não adquirido, o que perfaz a quantia de 37.520,00. Pede, em consequência, o pagamento deste valor, acrescido dos juros desde 2/12/2020 – dez dias sobre a segunda carta que lhes enviou - bem como pede a devolução da maquinaria que havia colocado no estabelecimento.

Os RR. contestaram, pretendendo, antes de mais, estar em causa um contrato de adesão que não lhes foi explicado, nada tendo a R. podido negociar, assim pugnando por que unicamente sejam válidas as cláusulas 1ª, 8ª, 9ª e 10ª.

Mais alegaram que, quando a A. resolveu o contrato por incumprimento, já o mesmo havia caducado, em função do decurso do prazo pelo qual foi celebrado e que, de todo o modo, o contrato não foi incumprido pela R., pois que vigoraria até ser consumida a quantidade de café contratada ou até que se encontrasse decorrido o período de 5 anos, facto este que sucedeu.

Sustentam ainda que a A. age em abuso de direito, porque nunca reagiu à circunstância de a Ré nunca ter consumido a quantidade de café mínima mensal prevista no contrato durante a sua vigência, pois nunca os interpelou no sentido de se encontrarem em mora ou em incumprimento.

Pretenderam ainda que a fiança é nula por objecto indeterminado, e que o contrato deve ser modificado por alteração anormal das circunstâncias, atendendo a que surgiram, após a sua celebração, factos insólitos que assim o justificam, entre os quais a pandemia, pretendendo também que a cláusula penal estabelecida é desproporcional e excessiva.

A A. pugnou pela improcedência das excepções.


As Decisões Judiciais

Foi proferida sentença em 1.ª instância, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou os RR. no pagamento, à A., da quantia de € 12.000,00, em sessenta prestações mensais e iguais, a liquidar no último dia útil do mês a que respeitem, e a iniciar no mês seguinte ao do trânsito em julgado da decisão, sendo devidos, em caso de eventual incumprimento, aferido mensalmente, juros, à taxa legal, no momento em vigor entre empresas comerciais, sobre a(s) quantia(s) em dívida, e até integral pagamento da(s) mesma(s), mais absolvendo RR. de tudo o mais contra eles pedido.

Tendo Autora e Réus recorrido de apelação, o acórdão recorrido:

- julgou extinta a instância relativamente ao segundo pedido formulado na acção;

- julgou improcedente a apelação dos RR.;

- julgou parcialmente procedente a apelação da A. e revogou, correlativamente, a sentença recorrida, condenando os RR. a pagarem à A. a quantia de € 37.520,00, em sessenta prestações mensais e iguais, a liquidar no último dia útil do mês a que respeitem, e a iniciar no mês seguinte ao do trânsito em julgado da decisão, sendo devidos, em caso de eventual incumprimento, aferido mensalmente, juros à taxa legal no momento em vigor entre empresas comerciais, sobre a(s) quantia(s) em dívida, e até integral pagamento da(s) mesma(s), mais se absolvendo as RR. de tudo o mais contra eles pedido.


Inconformados ainda os Réus interpõem agora recurso de revista.

São as seguintes as conclusões de alegação:

1. O presente recurso tem por objeto o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido nos autos, que julgou improcedente a apelação dos Réus, aqui Recorrentes, e parcialmente procedente a apelação da Autora, aqui Recorrida, condenando os Réus a pagarem à Autora a quantia de € 37.520,00, em 60 prestações mensais e iguais.

2. Porém, o douto acórdão padece de nulidade, por omissão de pronúncia quanto ao invocado erro de julgamento que fazia parte do objeto do recurso e por excesso de pronúncia por consideração de causa de pedir não alegada pela Autora na sua petição inicial, ou, se assim não se entender, de erro de julgamento quanto à apreciação da caducidade do contrato e das suas consequências na resolução do contrato e indemnização alegada como sua consequência, ou, ainda subsidiariamente, de erro de julgamento quanto à exceção de abuso do direito, que é uma exceção de conhecimento oficioso, ou, por isso, improcedendo as demais questões, sempre padecerá o douto acórdão de erro na fixação do número de prestações mensais.

Da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia

3. No Recurso interposto perante o douto Tribunal da Relação, depois de arguirem a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, para o caso de esta não ser julgada procedente, os aqui Recorrentes alegaram a presença de erro de julgamento na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, fundamentando a sua alegação no facto de aquele Tribunal recorrido não ter considerado a caducidade do contrato e do efeito que esta teve no direito à indemnização invocado pela Autora.

4. Porém, o douto Tribunal da Relação de Coimbra não se pronunciou quanto ao invocado erro de julgamento, não se pronunciando, portanto, sobre uma questão que lhe foi submetida pelos Recorrentes e de que devia tomar conhecimento, o que configura uma nulidade do acórdão por força do disposto na alínea d) do n.º 1 artigo 615.º ex vi artigo 666.º do CPC – nulidade que expressamente se argui para todos os efeitos legais.

5. Pois que, é notório que o Tribunal da Relação apenas conheceu da invocada nulidade da sentença por excesso de pronúncia (cfr. páginas 24 a 27 do acórdão), erro este que vinha desde a delimitação que o douto Tribunal da Relação fez do objeto do recurso, onde não se faz qualquer referência ao erro de julgamento quanto aos efeitos da caducidade do contrato, não obstante constar das alegações e conclusões de recurso. Sem prescindir,

Da nulidade da sentença e do acórdão por excesso de pronúncia e condenação em objeto diverso e apreciação de causa de pedir não alegada

6. No seu recurso perante o Tribunal da Relação de Coimbra, os recorrentes alegaram que, face ao alegado pela Autora na sua petição inicial (pedido e causa de pedir), o que estava (e está) em causa nos presentes autos é a indemnização por consequência da “resolução com justa causa” operada pela Autora.

7. Resulta cristalino dos autos que a Autora fundamenta o seu pedido indemnizatório (cláusula penal) na resolução – ilegal, frisa-se – do contrato celebrado pelas partes, em função da conversão de uma alegada mora em incumprimento definitivo – cfr. Petição inicial, resposta às exceções que se encontra inserida na réplica e cartas de interpelação juntas como documentos nº 3, 4, 6 e 7 da petição inicial.

8. O que significa que, o douto Tribunal da Relação, além de incorrer em grave erro de julgamento do recurso apresentado pelos recorrentes, inquinou o seu próprio acórdão da mesma nulidade de que padece a sentença: excesso de pronúncia, por se basear em causa de pedir não invocada pela Autora e condenação em objeto diverso do pedido, violando o disposto nos artigos 608.º n.º 2 e 609.º n.º 1 ex vi artigo 663.º n.º 2, todos do CPC – nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 alíneas d) e e) ex vi artigo 666.º n.º 1, ambos do CPC, que expressamente se argui para todos os efeitos legais. Sem prescindir,

Da caducidade do contrato

9. Caso se considere que o consta das páginas 24 a 27 do acórdão configura uma pronúncia do douto Tribunal da Relação sobre a questão do erro de julgamento da sentença levantada pelos Recorrentes, o que não se aceita e apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, sempre se dirá que o douto acórdão padece do mesmo vício.

10. Aquando da interpelação dos Réus para cumprirem o contrato, quanto à compra do café, com aviso que se encontravam em incumprimento contratual, ameaça de resolução e pagamento da indemnização prevista no mesmo, e posterior resolução, em Novembro seguinte, com reclamação do pagamento da consequente indemnização indicada, já o aludido incumprimento, resolução contratual e inerente reclamação indemnizatória não tinham virtualidade jurídica nenhuma, pois o contrato já havia cessado os seus efeitos em Março de 2020.

11. Neste sentido veja-se o acórdão proferido por esta Relação de Coimbra, em 23-02-2021, relatado pelo Meritíssimo Juiz Desembargador João Moreira do Carmo, proferido no processo n.º 50/19.3T8CNF.C1, referência 9497461, em caso muito semelhante ao dos autos – cuja cópia aqui se junta.

12. Face ao supra exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o douto acórdão e a sentença da 1ª instância, substituindo-se por outra que julgue a acção totalmente improcedente e absolva os Réus dos pedidos deduzidos pela Autora. Sem prescindir,

Do abuso do direito

13. A Autora peticionou a condenação dos Réus no pagamento da quantia de € 37.520,00, acrescida de juros de mora, alegando que a Ré apenas lhe adquiriu 5.248 quilos de café, quando devia ter adquirido a quantidade total de 9000 quilos, devendo tal aquisição corresponder a um mínimo mensal de 150 quilos.

14. Ora, a ser verdade, quer isto dizer que, em média, a Ré consumiu 87,47 quilos mensais de quantidade de café (5.248,00 kg / 60 meses = 87,47kg) no decorrer da vigência do contrato. Isto é, desde o início do contrato a Ré nunca consumiu as quantidades mínimas mensais alegadas pela Autora (150 kg) no artigo 3.º da sua petição inicial, tendo esta perfeito conhecimento de tal facto.

15. Deste modo, se por mera hipótese académica se admitisse que a Autora teria algum direito, que não tem, a indemnização peticionada pela mesma seria manifestamente excessiva face aos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social do direito da Autora, consubstanciando uma clara injustiça e abuso de direito nos termos do artigo 334.º, do Código Civil – exceção de conhecimento oficioso que expressamente se argui para todos os efeitos legais.

16. Por outro lado, a inacção por parte da Autora durante 5 anos (ao não interpelar os Réus alegando que estes se encontravam em mora ou incumprimento para com a mesma), constitui um dos elementos da modalidade do abuso de direito na vertente da posição do venire contra factum proprium, designada pelo Professor Menezes Cordeiro de suppressio. Sem prescindir,

Do pagamento em prestações

17. O Tribunal de 1.ª instância condenou os aqui Recorrentes no pagamento da quantia de € 12.000,00 em 60 prestações mensais e iguais, significando que cada prestação somaria o valor de € 200,00.

18. Analisada a sentença, resulta evidente que o número de prestações foi fixado tendo em consideração a prévia redução da cláusula penal de € 37.520,00 para € 12.000,00.

19. A Autora, no seu recurso, no que a esta parte respeita, apenas invocou a nulidade da sentença por, no seu entender, a condenação no pagamento da quantia devida em prestações consubstancia uma condenação em objeto diverso do pedido, nulidade essa que foi, e bem, julgada improcedente pelo douto Tribunal da Relação de Coimbra.

20. Nada mais tendo a Autora assacado àquele segmento decisório, que se reporta à modificação do contrato com fundamento na alteração das circunstâncias, ao douto Tribunal da Relação restou aceitar o procedimento do Tribunal de 1ª instância e condenar os Réus no pagamento da quantia devida em 60 prestações mensais.

21. Sucede que, na sequência da procedência de outras questões levantadas pela Autora no seu recurso, a condenação dos Réus deixou de ser no pagamento da quantia de €12.000,00, para passar a fixar-se na quantia de € 37.520,00.

22. Porém, salvo o devido respeito, o douto Tribunal da Relação de Coimbra errou ao manter o número de prestações perante a alteração daquela quantia global. Pois que, com este procedimento, o valor de cada prestação deixou de se fixar em € 200,00, para passar a fixar-se em € 625,33.

23. Ora, não tendo o douto Tribunal da Relação de Coimbra decidido sobre o fundamento da fixação daquele pagamento prestacional – porque não foi levantado pela Autora – a fixação do número de prestações deveria ter sido proporcional à nova quantia globalmente fixada.

24. Ou seja, caso se considere improcedente todo o supra exposto, o que não se admite e apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, deveriam os Réus ter sido condenados no pagamento daquela quantia de € 37.520,00, mas em 187 prestações de € 200,00 cada um e 1 prestação de € 120,00, porque só assim se manterá o raciocínio decisório do Tribunal de 1ª instância, que não foi colocado em causa.

25. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, violou, o disposto, entre outros preceitos, dos artigos 224.º, n.º 1, 230.º, 334.º e 801.º, n.º 2, todos do Código Civil, e o artigo 607.º, n.º 5, 5.º, n.º 3, 615 n.º 1 alínea d) e e), 608.º, n.º 2, 609.º, n.º 1, 663.º, n.º 2, e 666.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.

Subsidiariamente,

26. Para a hipótese de não ser admitido o precedente recurso de revista normal, designadamente por improcedência da invocada nulidade por omissão de pronúncia quando ao erro de julgamento sobre os efeitos da caducidade do contrato sobre o direito à indemnização reclamado pela Autora, e constatação de que o Tribunal da Relação de Coimbra, no aresto ora em recurso, confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na primeira instância quanto àquela questão da caducidade do contrato, deverá o presente recurso ser admitido como Revista Excecional.

27. Pois que, encontram-se preenchidos os pressupostos descritos na alínea c) do nº 1 do artigo 672.º do CPC, isto é, o acórdão recorrido está em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pela mesma relação (Coimbra), no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, inexistindo acórdão de uniformização de jurisprudência sobre o tema.

28. Referimo-nos, em concreto, ao acórdão já transitado em julgado, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, a 23-02-2021, no processo n.º 50/19.T8CNF.C1, cuja cópia se junta, protestando-se juntar certidão da data do trânsito em julgado.

29. Perante o mesmo quadro factual, cláusulas contratuais de igual teor, no domínio da mesma legislação (cumprimento contratual), e perante a mesma questão de Direito (efeitos da caducidade do contrato no direito a indemnização por posterior resolução do mesmo contrato) num caso, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou a caducidade do contrato e que esta retirou qualquer efeito à interpelação para cumprimento e à resolução do contrato e o inerente pedido de indemnização e, no outro, assumindo que o contrato efetivamente caducou pelo decurso do prazo, considerou que esta caducidade não tem qualquer efeito, porque a obrigação de pagamento da indemnização/cláusula penal pode verificar-se independentemente da resolução do contrato.

30. Neste âmbito, deverão os presentes autos ser remetidos à formação de juízes prevista no nº 3 do artigo 672.º do CPC, para que seja admitido o presente recurso, a título de Revista Excecional, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

31. Dando como integralmente reproduzido o alegado nos pontos “IV. DA CADUCIDADE DO CONTRATO” e “V. DO ABUSO DO DIREITO”, deverá o presente recurso ser julgado procedente, decidindo-se em conformidade com o entendimento perfilhado no acórdão fundamento, e, em consequência, ser revogado o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nos presentes autos, substituindo-se por outro que absolva os Réus dos pedidos deduzidos pela Autora.

Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência,

I – Ser declarada a nulidade do Acórdão recorrido, com as demais consequências legais;

Sem prescindir, caso assim não se entenda,

II – Ser revogado o Acórdão recorrido, absolvendo-se os Réus de todos os pedidos deduzidos pela Autora;

Sem prescindir, caso assim não se entenda,

III – Ser o Acórdão recorrido parcialmente revogado, condenando-se os Réus no pagamento daquela quantia de € 37.520,00 em 187 prestações mensais de € 200,00 cada uma e 1 prestação de € 120,00.


Por contra-alegações, a Autora sustenta a improcedência do recurso.


Factos Apurados

Da Petição Inicial

1. A autora celebrou com a ré em 25.03.2015, um contrato para fornecimento de café nº 28512, cujo teor – que aqui se dá por integralmente reproduzido, nos seus precisos termos – é o que foi junto com a petição como “documento 1”.

2 - Na cláusula segunda, números 1) e 3) do contrato, a ré obrigou-se durante o período de vigência do contrato, a não adquirir a terceiros, nem publicitar ou revender outras marcas de café e descafeinado no seu estabelecimento, e bem assim, a revender e publicitar em exclusivo o café Buondi, lote Gold da autora.

3 - Na mesma cláusula segunda, mas no número 2, obrigou-se também a adquirir 9.000 kg daquele café, devendo tal aquisição ser efectuada através de uma compra mensal de 150 kg, durante os 60 meses do contrato previstos no n.º1 da cláusula sexta.

4 - Como contrapartida das obrigações assumidas pela ré a autora entregou-lhe a quantia de 148.215,00€, com IVA incluído, a título de comparticipação publicitária, como resulta da cláusula quinta, número 1) do contrato.

5 - Na cláusula quinta, número 2), ficou estipulado que, resolvido o contrato com fundamento em qualquer causa não imputável à autora, e sem prejuízo de quaisquer indemnizações a que haja lugar, a ré obrigava-se a restituir a comparticipação publicitária, deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses.

6 - Estabelecendo-se no número 3) da mesma cláusula, que, sem prejuízo da responsabilidade decorrente do incumprimento de outras obrigações contratuais, o incumprimento das obrigações previstas no número dois da cláusula segunda, directamente ou como consequência da resolução do contrato por incumprimento de outras obrigações nele previstas, obrigava a ré a pagar à autora, a título de cláusula penal, o montante de € 10,00 por cada kg de café contratado e não adquirido.

7 - Também como contrapartida das obrigações assumidas pela ré, a autora, conforme o estabelecido na cláusula quarta, número 1) do contrato, colocou no seu estabelecimento, a título de comodato, o seguinte equipamento: \a) Um moinho de café Md 3000, no valor de 1.112,00€, acrescido de IVA; b) Um moinho de café Cimbali Special, no valor de 905,00€, acrescido de IVA; c) Uma máquina de café Cimbali M39 Dosatron 3gr Tall C, no valor de 8.485,65€, acrescido de IVA. No valor global de 12.918,26€, com IVA incluído.

8 - Na cláusula quarta, número 2) do contrato, estipulou-se que o equipamento seria exclusivamente utilizado para a venda dos produtos objecto do contrato, pelo que seria comodatado pelo período que coincidisse obrigatoriamente com a vigência do mesmo, devendo ser devolvido à autora no prazo de 10 dias a contar do seu termo.

9 - O réu AA constituiu-se fiador e principal pagador solidário, garantindo a satisfação de todas as obrigações da sociedade, ficando pessoalmente obrigado perante a autora conforme o estabelecido na cláusula nona do contrato.

10 - A partir de Março de 2020 a sociedade deixou de consumir no seu estabelecimento o café da autora, não mais retomando o seu consumo, tendo mudado a marca de café.

11 - Interpelação de que a autora deu conhecimento ao réu como fiador por carta também de 27.10.2020.

12 - Na data em que deixou de adquirir o café da A., apenas tinha consumido 5.248kg dos 9.000kg contratados.

13 - A autora dirigiu à ré, para morada que não a comunicada pela mesma ré em Junho de 2020, carta de 18.11.2020, exigindo o pagamento da quantia de 37.520,00€ (9.000 kg -5.248 kg x 10,00€), correspondente à indemnização pelos quilos de café não consumido, de acordo com o estipulado na cláusula quinta, número 3) do contrato.

14 - Exigindo ainda a devolução dos dois moinhos de café e da máquina de café.

15 - Importância que também exigiu ao réu fiador por carta de 18.11.2020.

16 - Os réus nada pagaram à autora.

17 - A Ré, em momento anterior a 4/5/2021, procedeu à devolução à Autora do moinho de café Md 300, do moinho de café Cimpali Special e da máquina de café M39 Dosatron 3gr Tall C.

18 - Em 27-10-2020 a autora enviou uma carta aos réus, na qual referenciava que a Ré não se encontrava a consumir a quantidade de café acordada, em violação do disposto na cláusula segunda, 2), do contrato.

21 - Em 18-11-2020 a Autora resolveu o contrato com base na dita cláusula, reclamando a quantia de € 37.520,00, a título de cláusula penal.

22 - O contrato foi celebrado em 25-03-2015 e a sua duração (…) era de 5 anos.

25 - A ré não recebeu as referidas cartas.

26 - A 05-06-2020, a ré enviou uma carta à Autora, cujo teor – que aqui dou por integralmente reproduzido, nos seus precisos termos – é o que consta do texto junto como documento nº 1 com a contestação, além do mais, a solicitar que as futuras comunicações lhe fossem remetidas para a Urbanização ..., ..., ... ... e a Autora ignorou tal menção

29 - A A Autora (…) substituiu 30 conjuntos.

51 - Após a celebração do contrato aqui em causa (…) ocorreu a pandemia.

52 - A referida situação repercutiu-se sobre a empresa aqui Ré e também na capacidade do fiador aqui réu.

56 - A autora não forneceu os quilos de café que a ré não adquiriu.

Da réplica

5 - O contrato a que se referem os réus, antes de elaborado foi previamente negociado e as suas cláusulas reflectem essa negociação.

7 - O réu gerente da sociedade ficou ciente do que assinava, não só na qualidade de gerente da sociedade, mas também como fiador.

18 - Dispõe a clausula sexta, nº 3) do contrato junto aos autos: “No final do prazo de duração do contrato, caso a quantidade de café indicada no número dois da cláusula segunda não tenha sido adquirida na totalidade, o contrato será prolongado, nos termos e por acordo entre as partes, até a quantidade remanescente seja adquirida…”

22 - A cláusula quinta, número 3) do contrato (…) . 23. (…) estabelece, “sem prejuízo da responsabilidade decorrente do incumprimento de outras obrigações contratuais, o incumprimento das obrigações previstas no número dois da clausula segunda, directamente ou como consequência da resolução do contrato por incumprimento de outras obrigações nele previstas, obriga o segundo outorgante a pagar á Nestlé, a título de cláusula penal, o montante de 10,00€ por cada quilograma de café contratado nos termos do número dois da clausula segunda e não adquirido pelo segundo contratante.”

50 - Durante o período em que vigorou o contrato era a autora quem dava assistência a todo o equipamento utilizado para tirar café, oferecia as chávenas, pires e açúcar.


Factos Não Provados:

Da petição:

3 - (…) devendo tal aquisição ser obrigatoriamente efectuada através de uma compra mínima mensal de 150 kg, durante os 60 meses do contrato previstos no número 1) da cláusula sexta.

10 - (…) interpelada pela autora por carta de 27.10.2020.

57 - O preço do fabrico e distribuição do quilo de café em causa ascende a cerca de € 15,00.

Da contestação

4 - As cláusulas que constam do contrato celebrado entre as partes em 25 de Março de 2015, estão (…) redigidas e contêm linguagem (…) que os Réus não dominam.

4 - Todas as cláusulas foram previamente e exclusivamente elaboradas pela Autora, na qualidade de proponente, não podendo os Réus, na qualidade de aderentes, influenciar ou negociar o conteúdo das mesmas.

5 - Os Réus apenas podiam tomar uma de duas decisões: aceitar ou repudiar, sem qualquer possibilidade de negociação, as cláusulas do dito contrato.

11 - Não foi lido, comunicado nem explicado a nenhum dos aqui Réus, nem ao legal representante da Ré “Requintobrigatório” o conteúdo da cláusula segunda, da cláusula terceira, da cláusula quarta, da cláusula quinta, da cláusula sexta e da cláusula oitava do contrato celebrado entre as partes.

14 - Em caso de incumprimento, (…) a Autora aufere vantagens patrimoniais superiores às que obteria com o cumprimento do contrato.

22 - (…) máxima.

25 - Os Réus não tiveram conhecimento de nenhuma das referidas cartas, o que apenas ocorreu com a citação para a presente acção.

25 - À excepção daquelas que foram devolvidas, as outras foram recebidas por terceiros que, por motivos que os Réus desconhecem, não lhes foram entregues nem dadas a conhecer de qualquer forma.

29 - A Autora prometeu a Ré trocar as esplanadas e não cumpriu com o acordado.

48 - A quantidade de café a ser consumido pela Ré foi definida unilateralmente pela Autora, desconhecendo a Ré quais os indicadores analisados por aquela para a determinação da quantidade de 9.000 quilos totais e de 150 quilos mensais.

51 - Após a celebração do contrato aqui em causa, Grande parte das faculdades que funcionavam muito perto do estabelecimento da Ré, deslocaram-se para outros locais, designadamente para o polo 3 – facto ocorrido em Setembro de 2015.

2 - A “Cantina ...” encerrou – facto ocorrido em setembro de 2015;

3 - Encerrou o posto dos “CTT” que se situava na Praça ... - facto ocorrido em Fevereiro de 2018;

4 - O Município ... procedeu a uma redução dos horários de funcionamento dos estabelecimentos como o da Ré - facto ocorrido em Abril de 2016.

56 - A Ré não teve qualquer prejuízo.

58 - Foi a Autora que criou na Ré a expectativa que o consumo de café naquele estabelecimento, diga-se, que ainda nem sequer tinha aberto ao público, era muito superior ao que efectivamente se veio a verificar.

59 - Ao contrário do que a Autora contrata com a maioria dos seus clientes, no contrato que aqui nos ocupa a Autora impos à Ré o consumo de 9.000 quilos, ao invés de 7200 quilos.

Da réplica

7 - Depois de elaborado o contrato, todas as cláusulas foram explicadas ao réu gerente da sociedade.

8 - O réu já tinha celebrado com a autora contratos idênticos.

9 - O contrato foi deixado no estabelecimento da ré, só dias depois sido levantado pelo representante da autora.

20 - Ao abrigo da cláusula sexta, número 3), o contrato prorrogou-se.

48 -Viu a publicidade à sua marca de café restringida.

49 - Teve que proceder à alteração da rota do vendedor da zona que passou a ter menos um cliente.

51 - (…) todas as despesas associadas à propositura da presente acção, nomeadamente, com os seus advogados, taxas de justiça, deslocações, bem como perda de horas de trabalho com os seus trabalhadores arrolados como testemunhas.

52 - O preço do quilo de café ronda os 26€/kg.


Conhecendo:


I


Pela ordem da exposição das matérias, nas alegações, começaremos pela invocada omissão de pronúncia, do art.º 615.º n.º1 al.d) do CPCiv – entende-se que o acórdão recorrido não se pronunciou quanto ao efeito da caducidade do contrato no direito à indemnização invocado pela Autora.

Dissentimos porém da invocação em causa, posto que a fundamentação do acórdão, na interpretação do clausulado assente entre as partes, é clara – o incumprimento contratual invocado pela Autora tornou-se definitivo, não exactamente em função das cartas enviadas pela Autora à Ré (para efeitos de operar a resolução do contrato), “mas da circunstância de o contrato ter findado com o decurso do prazo de cinco anos convencionado como o da sua duração”.

Ou seja, de o contrato ter caducado, pelo decurso do prazo pelo qual foi estabelecido ou estabelecidas suas prestações recíprocas.

Ora, “quando o contrato finde pelo decurso do prazo contratado e nessa altura nenhum outro incumprimento se possa imputar ao Segundo Contratante senão aquele referente à não aquisição de café contratada, ainda aí lhe poderá ser exigida a indemnização prevista a título de cláusula penal”.

Portanto, não existe a invocada omissão de pronúncia.

Tão pouco terá incorrido o acórdão em nulidade por excesso de pronúncia ou condenação em objecto diverso do pedido – art.º 615.º n.º1 als. d) e e) do CPCiv.

Na verdade, o acórdão abordou a questão, que teria inquinado também a sentença recorrida, quando justificadamente aludiu a que o petitório não se fundamenta na resolução do contrato estabelecido entre as partes, mas apenas no respectivo incumprimento, que, como visto, se tornou definitivo não exactamente em função das cartas enviadas pela Autora à Ré (para efeitos de operar a resolução do contrato), “mas da circunstância de o contrato ter findado com o decurso do prazo de cinco anos convencionado como o da sua duração”.

Na verdade, a Autora juntou cartas onde se alude à “resolução contrato”, mas não fundou o pedido nessa resolução, antes no incumprimento definitivo da contraparte, relativamente às prestações que decorriam do contrato inicialmente celebrado, e não quaisquer outras, designadamente as que pudessem decorrer da eventual prorrogação de prazos contratuais.

Daí que o acórdão não tenha incorrido, à semelhança da sentença, em qualquer excesso de pronúncia.



II


Igual ordem de razões nos conduz a valorar menos os argumentos do Ac.R.C. de 23/2/2021, p.º n.º 50/19.3T8CNF.C1.

Na verdade, pode ter-se por adquirido que o contrato tinha a duração de 60 meses, celebrado que foi em 25/3/2015.

Ora, decorridos esses 60 meses de vigência contratual, extinto contrato pelo decurso do prazo respectivo, constatava-se que a Ré sociedade deixou de consumir o café da Autora (facto 10) e, nessa data, a mesma Ré apenas tinha consumido 5 248 kg, dos 9 000 kg que se tinha obrigado a adquirir à Autora (cláusula 2.ª n.º2).

Assim, operava de pleno a cláusula 5.ª n.º3 do contrato no sentido em que o incumprimento da obrigação de aquisição de café obrigava a Ré a pagar à Autora determinado montante, a título de cláusula penal devida por cada quilograma de café contratado e não adquirido pela Ré – como expressamente alude a citada cláusula, “directamente ou como consequência da resolução do contrato”.

Portanto, como decorre do acórdão recorrido, a obrigação de pagamento decorrente da cláusula penal tem apenas a ver com o incumprimento contratual, nanja com a resolução do contrato, ou com a possibilidade de resolução de um contrato que havia já caducado pelo decurso do seu prazo.

A possibilidade de exigência judicial do cumprimento da obrigação, no caso decorrente de contrato, decorre simplesmente do disposto no art.º 817.º do CCiv.



III


Vejamos agora quanto ao invocado abuso de direito.

Quanto ao argumento retirado do consumo mensal mínimo de 150 kg de café, não pode concluir-se que “desde o início do contrato a Ré nunca consumiu as quantidades mínimas mensais alegadas pela Autora” (o que seria forçosamente do conhecimento da Autora), conclusão a que a Recorrente chega em função de um raciocínio apenas abstracto de divisão das quantidades totais invocadas pelo número de meses do contrato, não concretizando o conhecimento prévio de que a Autora seria possuidora, no caso dos autos.

Igualmente inexiste qualquer indício de venire contra factum proprium, se considerarmos todas as vertentes interpretativas do instituto:

1º - uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredita numa conduta alheia (no factum proprium);

2º - uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3º - um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido, por parte do confiante, o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade, pelo venire, e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4º - uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança, no factum proprium, lhe seja de algum modo recondutível (assim, Menezes Cordeiro, O Direito 126º/pg. 701 ou R.O.A 58º/pg. 964).

A Autora simplesmente actuou logo que findo o prazo do contrato e após ter constatado o incumprimento da Ré.

Ainda que na invocada supressio não se exija conduta contraditória – cf. Prof. Baptista Machado, Revista Decana, 118º/227, não se passou longo tempo sem o exercício do direito, nem existe justificação para a confiança ou para o investimento de confiança.



IV


Não se divisa o erro do acórdão recorrido, ao ter fixado que o valor de cada prestação passaria a fixar-se, de € 200,00, em € 625,33.

Na verdade, a apelação da Autora peticiona expressamente que a condenação dos ali recorridos orce a quantia global de € 38 527,39.

Em conformidade, tendo o acórdão fixado condenação dos RR. no montante de € 37.520,00, sancionando tal pagamento em prestações mensais (sessenta prestações mensais e iguais), não poderia esse montante mensal deixar de constituir montante superior ao que resultava da sentença recorrida, tudo na decorrência do recurso da Autora.

Nada existe que decidir em matéria de revista excepcional subsidiária, posto que se conheceu do recurso em revista normal.


Concluindo:

I – A situação de abuso de direito, em que se traduz o venire contra factum proprium, depende da verificação: de uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredita numa conduta alheia (no factum proprium); de uma justificação para essa confiança (plausível e sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis), de um investimento de confiança (ter havido, por parte do confiante, o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade, pelo venire, e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara) e de uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante.

II - Ainda que na supressio não se exija conduta contraditória, há que verificar-se justificação para a confiança ou para o investimento de confiança.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelos Recorrentes.


S.T.J., 2/3/2023

                                                          

Vieira e Cunha (Relator)                                              

Ana Paula Lobo                                              

Afonso Henrique Cabral Ferreira