Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A3089
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
ALTERAÇÃO DO TRAJECTO DA SERVIDÃO
SERVIDÃO NOVA
USUCAPIÃO
OMISSÃO DE REGISTO
PRAZO DE USUCAPIÃO
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: SJ20081118030896
Data do Acordão: 11/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I) - A servidão exprime uma limitação ao direito de propriedade do prédio que com ela é onerado (prédio serviente) em favor do prédio que dela beneficia (prédio dominante).
II) – “Conditio sine qua non” para se considerar a existência de uma servidão é que os prédios serviente e dominante pertençam a donos diferentes, uma vez que é antijurídico que, relativamente à mesma coisa, coexistam o direito de propriedade e um direito que o restringe como é a servidão – “nemini res sua servit”.
III) – Se os donos dos prédios serviente e dominante, por consenso, acordam em alterar o trajecto da servidão de passagem que vinha sendo exercida, desde há mais de vinte anos por trajecto antes definido, os AA., (donos do prédio dominante), ao intervirem nesse acordo, tacitamente invocaram actos de posse exercidos em relação ao trajecto inicial - a usucapião apesar de ser um direito potestativo nada impede que possa ser exercida, sequer extrajudicialmente, por tal invocação não estar sujeita a requisito de forma.
IV) – Essa invocação tácita ou implícita da usucapião decorre do facto dos Autores, ao intervirem no consenso negocial que alterou o trajecto da servidão, se apresentarem como donos do prédio dominante, o que não foi questionado pelos RR., que com eles acordaram o trajecto do caminho novo.
V) - Tal acordo, feito em 1991, para alteração do trajecto da servidão, não envolveu o início de um novo prazo de usucapião, por desconsideração e inutilização do prazo de posse exercido em relação ao “caminho velho
VI) – É ininvocável o princípio da inseparabilidade das servidões art. 1545º do Código Civil – para recusar que pudesse ser aproveitado o tempo até aí decorrido, relativamente ao direito adquirido em relação ao “caminho velho”, pelo facto dos prédios serem os mesmos, não ter havido separação, nem a servidão passar a incidir sobre prédios novos.
VII) – No caso dos autos, houve uma mudança de itinerário e não constituição de servidão nova.
VIII) - Existindo mera alteração consensual do itinerário da servidão preexistente, não era de exigir novo prazo para aquisição por usucapião do “caminho novo”, não sendo inutilizado o tempo decorrido até 1991.
IX) – Mesmo que se defenda que as alterações operadas pela mudança do lugar de exercício das servidões devam ser levadas ao registo predial, a sua omissão, como no caso sucede, é irrelevante porque, apenas, estão em causa, agora, direitos dos donos dos prédios dominante e servientes, e não de terceiros.
X) – Incorre em conduta abusiva do direito – venire contra factum proprium – o dono do prédio serviente que, tendo intervindo e proposto o consenso referido, agora obsta ao exercício da servidão de passagem.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA e mulher, BB, intentaram, em 25.11.2002, pelo Tribunal Judicial da Comarca Tomar – 2º Juízo – acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

- CC

- DD e mulher, EE, e;

- FF.

Afirmando serem donos de um prédio urbano, composto de casa de habitação e logradouro, sito na freguesia de Olalhas em Tomar, cuja aquisição por usucapião invocam.

Referem, de seguida, ser tal prédio dominante relativamente a uma “servidão de pé, carroça e carro” da qual são servientes três prédios pertencentes, respectivamente, ao 1º Réu, 2ºs RR. e 3ª Ré, indicando as características dessa servidão, ademais daquelas (“servidão de pé, carroça e carro”).

Referindo que a mesma, em 1986, mudou para o local onde presentemente se encontra, invocam os AA., enfim, a constituição por usucapião dessa mesma servidão, relativamente à sua configuração actual, formulando, em função de actos de perturbação do exercício da mesma que imputam aos 2ºs RR., os seguintes três pedidos:

“ […]

B – Declarar-se que os AA. são os únicos donos e legítimos proprietários, com exclusão de outrem, de todo o imóvel [dos AA.];

C – Declarar-se constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a pé e de carro, com 60 m de comprimento e 3 m de largura, a favor do prédio dos AA. e que onera o prédio dos RR. A servidão nasce junto à estrada, segue no sentido sul-norte, a poente do prédio da 3ª Ré, e segue depois no sentido nascente-poente, sobre a parte sul dos prédios dos 2ºs RR. e do 1º Ré, até atingir o prédio dos AA., estando 29 metros a onerar o prédio da 3ª Ré, 16 m a onerar o prédio dos 2ºs RR. e 15 metros a onerar o prédio do 1º Réu.

D – Devendo, também, os RR. serem condenados a absterem-se da prática de actos que impeçam o acesso dos AA. à referida servidão.

[…]”.

Contestaram os 2ºs RR. e a 3ª Ré (fls. 47/71), excepcionando a falta de registo da acção, negando a existência da servidão indicada pelos AA. e pugnando pela improcedência da acção.

O 1º Réu, por sua vez (a fls. 84/88), reconhecendo a existência da servidão invocada pelos AA., pugna pela procedência da acção.

Saneado o processo, fixados os factos nessa fase provados e elaborada a base instrutória (despacho de fls. 175/186), avançou-se para o julgamento documentado a fls. 337/343, 359/364 e 375/376 (com gravação dos depoimentos), ao qual se seguiu a Sentença constante de fls. 384/402, dada posteriormente sem efeito pelo despacho de fls. 448/452, que também julgou nulos todos os actos de produção de prova sujeitos a gravação, determinando a sua repetição (tudo isto se ficou a dever a deficiências da gravação efectuada nesse julgamento).

Realizou-se, assim, com gravação e nos termos documentados a fls. 569/574, 577/580 e 581/583, a repetição do julgamento, finda a qual, apurados os factos provados em julgamento (através do despacho de fls. 584/590).
***

Foi proferida a Sentença de fls. 594/612 que culminou com o seguinte pronunciamento decisório:

“ […]
a) Declaro que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio descrito no art. 1º da petição inicial;

b) No demais absolvo os RR.

[…]”

Estribou-se este pronunciamento decisório na consideração de terem os AA. logrado provar a aquisição por usucapião do prédio identificado nas alíneas A) e F) dos factos, e na consideração, referida à servidão por eles invocada, de não terem logrado demonstrar (provar) os elementos respeitantes à constituição da mesma por usucapião, ou seja, que por aí passavam há mais de 50 anos, “ […] a pé, com tractores e de carro à vista de toda a gente, ininterruptamente […] e faze[ndo-o] convencidos de que têm o direito de passar pelo caminho e que ao fazê-lo não ofendem direitos de outrem” (transcrição de fls. 610), acrescentando-se na sentença o seguinte:

“ […] Em sede de julgamento pretendeu-se dizer que houve uma mudança da serventia, do local assinalado a azul picotado no croqui de fls. 239 para o local assinalado a castanho (caminho aberto) do mesmo croqui.
Só que não foi uma mudança de serventia que os AA. pediram. […]” - [transcrição de fls. 611].
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Inconformados, os AA. interpuseram recurso (fls. 619), para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por Acórdão de 1.4.2008 – fls. 751 a 782 – depois de ter alterado parcialmente a matéria de facto, julgou o recurso improcedente, posto que com fundamentação divergente da da sentença.

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De novo inconformados, recorreram os demandantes para este Supremo Tribunal e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

A) - O douto acórdão revidendo alterou a decisão sobre a matéria de facto acrescentando-lhe dois novos números — os números 17 e 18;

B) - No primeiro, deu-me como provado que em 1991 todos os interessados concordaram em alterar o sítio por onde fazia o trânsito no prédio em causa;

C) - No segundo, deu-se como provado que há mais de 20 anos se transitava por determinado sítio no mesmo prédio rústico, sem oposição de ninguém e como se a passagem pelos utentes representasse o exercício de um direito legítimo;

D) - No desenvolvimento do douto acórdão revidendo reconhece-se que os interessados transpuseram as utilidades do caminho velho para o caminho novo, com um sentido que revelava alguns elementos de continuidade.

E) – Donde se extrai que a posse do direito de passagem pelo caminho velho não se extinguiu e se manteve o mesmo, apesar de ser diferente o percurso utilizado;

F) – O direito de posse só se extingue nos termos previstos no n°1 do art. 1267° do Código Civil;

G) – No caso em julgamento, não ocorre nenhuma das situações previstas neste preceito;

H) – Assim sendo, a posse do direito de passagem pelo caminho velho, só pode ser a mesma que continuou a ser exercida pelo caminho novo

I) - Tanto significa que os Recorrentes e os demais interessados vêm passando pelo prédio serviente, tal como já vinham passando há mais de trinta anos, antes da data da propositura da presente acção.

J) - Essa passagem sempre se fez de boa fé, pacificamente, com continuidade e sem oposição de ninguém;

K) - E deixou marcas aparentes, bem visíveis e permanentes no terreno;

L) - A posse deste direito de passagem pode ser adquirida por usucapião ao abrigo do disposto no art. 1296° do Código Civil, porque se mostram reunidos todos os pressupostos de que depende a aquisição;

M) - A solução acolhida no douto acórdão revidendo de que com a passagem pelo caminho novo se iniciou uma nova posse viola o princípio da boa fé consagrado no art. 334° do Código Civil;

N) - Na verdade, foi o próprio dono do prédio serviente (o recorrido), quem pediu aos possuidores do direito de passagem para utilizarem outro percurso dentro do mesmo prédio;

O) - Por isso, a opor-se agora à constituição pela usucapião da servidão de passagem assume um comportamento contraditório, violador da confiança que transmitiu aos utentes do caminho;

P) — O douto acórdão revidendo, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 334°, 1267°, n°1, e 1296° todos do Código Civil.

Nestes termos, deverá dar-se provimento ao recurso revogando-se o douto acórdão revidendo e julgar-se procedente a acção, tudo por imperativo da lei e da Justiça.

Contra-alegou o recorrido CC, pugnando pela revogação do Acórdão.
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Atempadamente os AA. juntaram aos autos um Parecer – fls. 849 a 879 – subscrito por eminente Professor de Direito.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

Da Matéria de Facto Assente:

A) No dia 13 de Dezembro de 1951, na Secretaria Notarial de Tomar, Ana... e Maria .... declararam dar a seu único neto e filho, respectivamente, o autor AA, que declarou aceitar, além de outro imóvel, o seguinte:

“Casa de habitação e quintal, no lugar de Olalhas, a confinar do Norte, com herdeiros de António...a, Sul e Poente, com a estrada pública e Nascente com herdeiro de José..., inscrita na matriz sob o art. 82 urbano e 537 rústico...”.

B) Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, referidas em A), Ana... e Maria ...declararam que reservavam para elas “o usufruto vitalício” do mesmo prédio.

C) No dia 29 de Janeiro de 1953, faleceu Ana ....

D) No dia 12 de Novembro de 1967, faleceu Maria ....

E) No dia 25 de Abril de 1954, o autor AA e autora BB celebraram, entre si, casamento, na Conservatória do Registo Civil de Tomar.

F) Na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 03877/000000, em 3 de Outubro de 2003, foi descrita a casa de habitação referida em A), com a seguinte composição: prédio urbano sito em Olalhas, casa de habitação, com a área de 63 m 2 e logradouro, com a área de 224 m2, a confrontar do Norte, com CC , Sul e Poente, com rua e Nascente com AA, inscrito na matriz, sob o art. 2008º.

G) Na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 01579/00000, freguesia de Olalhas encontra-se descrito o prédio misto composto de casa de habitação de rés-do-chão, com a área de 40 m2 e logradouro com a área de 240 m2 e terra de vinha, cultura arvense, oliveiras, pomar misto, cerejeiras, figueiras e pomar de citrinos com a área de 29.440 m2.

H) Inscrito nas matrizes urbana, sob o art. 80º e rústica, sob o art. 228, Secção P, em nome do réu CC

I) Em 19 de Abril de 2000, na mesma Conservatória do Registo Predial, foi registada a desanexação do nº 03173/000000, ficando a parte rústica restante do prédio identificado em G) e H) com a área de 28.440 m2.

J) Na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 03173/000000, encontra-se descrito o prédio urbano sito em Carvalheiro ou Carvalheira, composto de terreno destinado a construção, com a área de 1000 m2, a confrontar do Norte com CC; do Sul com AA e outros; do Nascente com CC da e do Poente com estrada, desanexado do nº 01579/260793, inscrito na matriz, sob o art. 2114º.

L) Na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 01086/000000, em 28 de Agosto de 1992, foi descrito o prédio misto sito em Olalhas, composto de casa de habitação de rés-do-chão com 72,20 m2 e primeiro andar com 55,20 m2, anexos: garagem, arrumos e alpendre, com a área de 58,50 m2 e logradouro com a área de 1.509,30 m2, a confrontar do Norte com CC , do Sul com José.., do Nascente com Francisco ... do Poente com CC

M) Inscrito nas matrizes urbana, sob o art. 79 e, na matriz rústica, sob o art. 224, Secção P, desde 22 de Novembro de 1990, em nome dos réus DD e mulher, EE, na proporção de 1/2, por usucapião e a outra metade, em nome do réu DD, por doação de ICS.

N) Em 21 de Setembro de 2000, o prédio identificado em L) e M) passou a estar descrito, naquela Conservatória do Registo Predial, como urbano, sito em Olalhas, nº 16, composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, com a área de 130,70 m2 e logradouro com a área de 1.509,30 m2, inscrito na matriz, sob o art. 1770.

O) Em 25 de Fevereiro de 2002, na mesma Conservatória do Registo Predial, foi registada a desanexação de uma parcela com a área de 100 m2 que deu origem ao nº 03700/000000, ficando o logradouro descrito em N) com a área de 1.409,30 m2.

P) Também em 25 de Fevereiro de 2002 e na referida Conservatória do Registo Predial de Tomar, foi registada uma “servidão de passagem de pé e de carro, com a largura de três metros e numa extensão de 29 metros, que onera a parte Nascente do prédio descrito sob o nº 03701, servidão esta que nasce a Sul, junto à estrada e segue no sentido Sul - Norte e termina a Norte daquele prédio, tal servidão é constituída a favor do prédio descrito sob o nº 01086 e onerando aquele nº 03701.”

Q) Na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 03701/020225, encontra-se descrito o prédio misto sito em Olalhas, composto de casa de habitação com a área de 80 m2 e logradouro com a área de 80 m2 e terra de olival, hortejo e uma cerejeira com a área de 580 m2, a confrontar do Norte com DD e outro; do Sul com estrada; Nascente com Francisco ...e Poente com J..., formado pela anexação dos nºs 03678/020225 e 03700/020225.

R) Inscrito na matriz rústica sob o art. 225º, Secção P e na matriz urbana, sob o art. 2139º, em nome da ré FF.

S) Em 25 de Fevereiro de 2002 e na referida Conservatória do Registo Predial de Tomar, foi registada uma “servidão de passagem de pé e de carro, com a largura de três metros e numa extensão de 29 metros, que onera a parte Nascente do prédio descrito sob o nº 03701, servidão esta que nasce a Sul, junto à estrada e segue no sentido Sul - Norte e termina a Norte daquele prédio, tal servidão é constituída a favor do prédio descrito sob o nº 01086 e onerando aquele nº 03701.”

Da Base Instrutória:

(1) Desde há mais de 30 anos os autores dormem, na casa de habitação a que se referem as alíneas A) e F), sendo, nessa casa, que têm tomado as suas refeições, e vêm recebendo os seus familiares e amigos, nela tendo criado a sua filha, e também desde há mais de 30 anos, que os autores vêm utilizando o logradouro da mesma casa para criar animais, e para guardar lenhas, produtos hortícolas e alfaias agrícolas, sem interrupções, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, estando os autores convencidos de estarem a usar aquilo que é seu e de não ofenderem direitos de outrem – quesitos 1 a 11.

(2) O acesso aos logradouros identificados na alínea F) também se faz através de um caminho, com a largura média uniforme de 3,60 metros e o comprimento de 60 metros, caminho esse, que se inicia junto à estrada, segue no sentido Sul-Norte, na zona Poente do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 03701 identificado nas alíneas Q) e R), numa extensão de 29 metros e segue depois, no sentido Nascente - Poente, sobre a parte Sul do prédio descrito, na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 01086 a que se referem as alíneas L) a N), numa extensão de 16 metros, prosseguindo pela parte Sul do prédio descrito, na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 03173 a que aludem as alíneas I) e J), numa extensão de 15 metros, até atingir o prédio descrito F) – quesitos 12 a 22.

(3) No logradouro desse prédio existe uma porta – quesito 23.

(4) No logradouro e junto à porta os autores têm uma fossa séptica, que serve os esgotos da casa de habitação referida em A) – quesito 25.

(5) A fossa é limpa de tempos a tempos – quesito 26.

(6) Na limpeza da fossa tem sido utilizado um carro especializado, o qual tem utilizado o caminho descrito em 12º a 22º – quesito 27.

(7) O transporte dos produtos hortícolas dos autores para o mesmo logradouro é realizado através da porta a que se refere o quesito 23º – quesito 29.

(8) Antes de 1991 o acesso a pé ao prédio descrito em A) e F) também era efectuado por um outro caminho, que começava a Nascente do prédio descrito nas alíneas Q) e R) – quesito 30.
O troço do caminho referido em 12 a 22 é de terra batida, calcada e com marcas do rodado dos veículos que ali passam – quesitos 37 e 38.

(9) Os réus têm colocado madeiras, pedras e tijolos na entrada do caminho, junto à estrada, o que fazem para impedir a utilização do caminho referido em 12 a 22 – quesitos 40 e 42.

(10) A sul do prédio identificado em A) e F) existe uma rua alcatroada, pela qual circulam veículos automóveis – quesitos 43 e 44.

(11) A nascente do prédio descrito em A) e F) há uma rua, denominada “caminho antigo” a todo o comprimento da estrema deste prédio e numa extensão de 39 metros – quesitos 45 e 46.

(12) A casa de habitação descrita em F), ao nível do rés-do-chão e do seu lado sul, tem uma porta, com a largura de 2,30 metros, que é uma entrada de garagem e adega e que deita directamente para a rua alcatroada referida em 43º – quesitos 47, 48 e 49.

(13) Do lado nascente da mesma casa de habitação descrita em F), existem duas portas de acesso directo da rua para o interior da casa, portas essas de largura não superior a 1 metro e que desembocam na rua referida em 45º – quesitos 50, 51 e 52.

(14) A rua (caminho antigo) tem de largura no início 2,40 metros, junto à escada de entrada para a habitação tem de largura 1,60 metros, sensivelmente a meio tem de largura 2 metros e ao cimo tem de largura 2,40 metros, rua esta que parte do sul onde existe a estrada, acompanhando todo o prédio descrito em F) no sentido Sul/Norte – quesitos 53, 54, 55 e 56.

(15) A rua (caminho antigo) referida nos quesitos 53 a 56, em altura tem um desnível de 8 metros e é ladeada por uma parede de pedra – quesitos 58 e 59.

(16) Da cave não há acesso ao piso superior – quesito 62.

[…]” [transcrição de fls. 597/603]

E ainda, em resultado da reapreciação da matéria de facto operada por este Acórdão (da Relação), a seguinte factualidade:

(17) Em 1991, consensualmente entre os interessados e com conhecimento da Junta de Freguesia de Olalhas, o caminho referido em 30 deixou de ser utilizado e de existir, passando o acesso que ele propiciava aos AA. a ser feito através da localização referida em 12 a 27 (o caminho assinalado a castanho a fls. 239) – quesito 31 (respondido por esta Relação).

(18) Desde há mais de 20 anos, no caminho mencionado em 30 (o caminho assinalado a azul tracejado na planta de fls. 239), e desde 1991, no caminho indicado em 12 a 22 (o caminho assinalado a castanho na planta de fls. 239), os AA. passavam, e passam neste último, a pé, de tractor, passando igualmente viaturas destinadas ao seu prédio, designadamente as que necessitem de aceder ao logradouro deste prédio, fazendo-o ininterruptamente e comportando-se nessa utilização como quem podia e pode legitimamente utilizar esse caminho na sua configuração inicial e na actual – quesitos 32 a 36 – (respondidos por esta Relação).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se:

- deveria ter sido reconhecido que o prédio dos RR. está onerado com servidão de passagem a favor do prédio dos AA. adquirida por usucapião, mesmo considerando o seu trajecto;

- se a conduta dos RR. é abusiva do direito – art. 334º do Código Civil.

Em síntese, podemos resumir os termos do litígio da seguinte forma; os AA. alegam ter adquirido por usucapião uma servidão de passagem – “pé, carroça e carro” – pelos prédios dos RR.

A partir de 1991, por consenso entre AA. e RR., essa passagem passou a fazer-se pelos mesmos prédios, mas por outro trajecto.

Os AA. pretendem que a servidão agora exercida pelo “caminho novo” – que os RR. – impedem – é a mesma que exerceram pelo “caminho velho” e que, por isso, se tem de considerar adquirida por usucapião, por ser aditável o tempo em que foi antes exercida, não devendo o prazo de usucapião considerar-se apenas desde 1991.

No Acórdão recorrido, mesmo com alteração da matéria de facto em sentido claramente favorável aos AA./recorrentes, tal tese não vingou por se ter considerado que a posse desta alegada servidão pelo “caminho novo”, por se ter iniciado apenas em 1991, não podia conduzir à usucapião, por falta do requisito temporal de 20 anos à data da propositura da acção, o que vale por dizer que a posse exercida sobre o “caminho velho”, não releva para que se considere ter havido aquisição por usucapião do actual trajecto.

Para fundamentar esta asserção – não consideração do tempo de posse do “caminho velho” – foi invocado o princípio da inseparabilidade das servidões – art. 1545º do Código Civil.

Vejamos:

“Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.” – art. 1543º do Código Civil.

“Podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor” – art. 1544º do citado diploma.

Este normativo consagra a possibilidade de constituição de servidões atípicas, ao definir que podem ser objecto da servidão “quaisquer utilidades”.

As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família – nº1 do art. 1547º do Código Civil.

Nos termos do art.1550º do Código Civil;

“1.Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.
2. De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio.”

A servidão exprime uma limitação ao direito de propriedade do prédio que com ela é onerado (prédio serviente), em favor do prédio que dela beneficia (prédio dominante).

Conditio sine qua non” para se poder falar na existência de uma servidão é que os prédios serviente e dominante pertençam a donos diferentes, uma vez que é antijurídico que relativamente à mesma coisa coexistam o direito de propriedade – que em princípio é absoluto – e um direito que o restringe como é a servidão – “nemini res sua servit”.

Para se poder considerar a forma de aquisição originária do direito de propriedade, ou de qualquer direito real por via da usucapião, é necessário – não estando em causa forma de aquisição derivada ou presunção registral – avaliar se existem actos de posse e se a actuação do possuidor preenche os requisitos legais, de modo a que se possa afirmar a aquisição do direito real, in casu, do direito real menor que a servidão de passagem é.

O art. 1251º do Código Civil define posse como – “O poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.

O art. 1548º do citado diploma estatui “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião”.

A posse conducente a usucapião, tem de ser pública e pacífica, influindo as características de boa ou má-fé, justo título e registo de mera posse, na determinação do prazo para que possa produzir efeitos jurídicos.

A posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja a relação material com a coisa, e o “animus”, ou seja, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade, ou outro.

“A doutrina dominante (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, III, 2ª edição, pág. 5; Mota Pinto, “Direitos Reais”, p. 189; Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 69 e ss; Orlando de Carvalho. RIJ, 122- 65 e ss; Penha Gonçalves, “Direitos Reais”, 2ª ed., págs. 243 e ss.) entende que o conceito de posse, acolhido nos arts. 1251º e ss., deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, analisando-se por isso numa situação jurídica que tem como ingredientes necessários o “cor­pus" e o “animus possidendi” (contra, Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1º-563 e ss; Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 4ªed., págs. 42 e ss.).
O “corpus” da posse traduz-se no “poder de facto” manifestado pela actividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (arts. 1251º e 1252º nº2).
Actividade que não carece, aliás, de ser sempre efectiva, pois uma vez adquirida a posse, o “corpus” permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (art. 1257º, n.º1).
Quanto ao “animus possidendi”, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a actividade em que o “corpus” se traduz pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu bene­fício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.” cfr. Abílio Neto, in “Código Civil Anotado”, 12ª edição 1999, pág.971.

A presunção registral constante do art. 7º do C.R.Predial é ilidível pois, que, como afirma, o Professor Oliveira Ascensão, in “Direitos Reais”, 5ª edição, pág.382:

É preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião.
Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais; vale por si.
Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes mas nada pode contra a usucapião”.

Decorre das respostas dadas aos quesitos 32º a 36º, que os AA. exerceram actos de posse, em nome próprio, em relação ao “caminho novo” “(1) – quesitos 32 a 36” – (matéria de facto que a Relação alterou)..

Não se questiona que o prédio dos AA., como prédio dominante, beneficia de servidão de passagem sobre os prédios dos RR. exercida desde há mais de 20 anos, a pé e de tractor.

Sucede que, por consenso dos donos dos prédios servientes, os RR., e do dono do prédio dominante os AA., o trajecto da servidão, o local do seu exercício, foi alterado.

Não obstante essa alteração ter sido consensual e envolver os mesmos prédios, o 2º Réu vem impedindo a passagem dos AA. pelo novo trajecto, recusando, objectivamente, que por aí tenham direito de passar em função dos actos de posse e do exercício de passagem pelo caminho novo.

A questão está, pois, em saber se há uma nova servidão de passagem por este caminho, ou, se o tempo por que foram exercidos actos de posse em relação ao “caminho velho”, se aditam ou devem ser considerados no que respeita ao caminho novo.

Será que se está perante uma nova servidão de passagem, ou meramente perante alteração do itinerário da servidão, digamos inicial, ou seja, apenas há mudança do “locus servitutis”.

A Relação, citando Tavarela Lobo, in “Mudança e Alteração de Servidão, 1984, págs. 15-16 – afirma a fls. 779:

“ […] Valem estas considerações para sublinhar que a passagem da servidão exercida pelos AA. /Apelantes do chamado “caminho velho” para o denominado “caminho novo”, não se projecta no direito correspondente à nova (nova em 1991) localização, em termos de aproveitamento do decurso de tempo referido à anterior localização, não obstante a utilidade extraída desta nova localização se prefigurar como uma espécie de sucedâneo da anterior.
Constitui esta incidência emanação do princípio da inseparabilidade das servidões dos prédios aos quais, activa ou passivamente, pertencem (…), importando ter presente que a passagem por aquele “caminho velho” nunca se alcandorou à categoria de servidão efectivamente constituída por usucapião, relativamente à qual se colocasse, depois de constituída – e só então se colocaria –, a questão da mudança do locus servitutis, por verificação de qualquer uma das facti species do artigo 1568° do Código Civil…”. (sublinhado nosso)

No douto Parecer junto aos autos, considerou o seu autor, a fls. 12, que “…Todos estiveram concordes que os ora apelantes [os AA. dizemos] eram titulares da servidão que invocavam, tratando-se apenas de demarcar o novo trajecto; e que a servidão passava a ter um novo lugar de exercício dos prédios servientes”.

Daí importa concluir que, tacitamente, invocaram os AA. a usucapião, (apesar de ser um direito potestativo nada impede que possa ser exercido, sequer extrajudicialmente, já que tal invocação não está sujeita a requisito de forma).

Essa invocação tácita ou implícita decorre do facto dos Autores, ao intervirem no consenso negocial que alterou o trajecto da servidão, se apresentarem como donos do prédio dominante que beneficiava de servidão sobre os prédios rústicos dos RR., o que não foi questionado por estes, que com eles acordaram o trajecto do caminho novo.

Mas será que, como considerou o Acórdão recorrido, o acordo de 1991 envolveu o início de um novo prazo de usucapião – 15 anos – por desconsideração e inutilização do prazo de posse exercido em relação ao caminho velho.

De notar que o Acórdão reconhece, senão íntima, ao menos uma estreita ligação da utilidade desta nova localização, à utilidade anteriormente extraída pelos AA. – “…A passagem da servidão exercida pelos AA. /Apelantes do chamado “caminho velho” para o denominado “caminho novo”, não se projecta no direito correspondente à nova (nova em 1991) localização, em termos de aproveitamento do decurso de tempo referido à anterior localização, não obstante a utilidade extraída desta nova localização se prefigurar como uma espécie de sucedâneo da anterior.”

Foi invocado o princípio da inseparabilidade das servidões art. 1545º do Código Civil “(2) –, para recusar que pudesse ser aproveitado o tempo até aí decorrido, relativamente ao direito adquirido em relação ao “caminho velho”.

No douto Parecer a que aludimos, discorda-se da invocação deste princípio pelo facto dos prédios serem os mesmos, não ter havido separação, nem a servidão passar a incidir sobre prédios novos.

Com efeito, temos de convir na ininvocabilidade de tal princípio se apenas se está mediante alteração do trajecto da servidão dentro dos mesmos prédios servientes. “(3).

Sendo o prédio dominante e servientes os mesmos, havendo alteração consensual do trajecto por onde é exercida a “antiga” servidão de passagem, não é invocável o princípio da inseparabilidade das servidões prediais.

No caso em apreço, preexistia uma servidão – já vimos que apresentando-se o Autor a negociar com os RR. donos dos prédios servientes (e com o apoio do Presidente da Junta de Freguesia), a mudança de trajecto – que a todos interessava e foi solicitada pelo 2º Réu – implicitamente, invocou um direito já adquirido por usucapião – pelo que não existiu, nem foi querida a extinção da servidão antiga – art. 1569º do Código Civil – assim como não existiu constituição de uma nova servidão, meramente, o que aconteceu foi uma alteração do trajecto da servidão existente, apenas tendo mudado o seu locus servitutis.

Tavarela Lobo – obra citada – págs. 93-94:

O sítio de exercício da servidão — o locus servitutis dos romanos — é o lugar preciso em que a servidão pode exercitar-se, a parte do prédio em que, sem implicar a sujeição a tal exercício do prédio inteiro, a servidão praticamente se localiza.
E nesse exercício se compreende o que respeita aos adminicula (ex.: as obras necessárias ao exercício da servidão). […].
A servidão é sempre a mesma, quer se fixe em definitivo o sítio indeterminado do seu exercício, quer esse sítio seja mudado de um lugar para outro do mesmo prédio que por inteiro suporta o ónus.
Estamos perante uma simples modificação objectiva de uma servidão que mantém o mesmo conteúdo (…), modificação que para alguns autores é uma simples modificação de uma modalidade de exercício…”.

No caso dos autos houve uma mudança de itinerário que podia, até, ser exigida, dentro de certo condicionalismo, pelos titulares dos prédios serviente e dominante – art. 1568º do Código Civil – e que, por maioria de razão, pode ser acordada consensualmente.

No caso existe uma alteração factual em relação a uma situação jurídica já consolidada.

No douto Parecer, págs. 18 e 19, pode ler-se:

“Ocorre então saber se, havendo mudança do lugar por onde primitivamente se fazia a passagem, há mudança do conteúdo ou mudança do objecto do direito real.
Tomemos o art.1568º do Código Civil, que é o que respeita directamente à nossa matéria.
A epígrafe é “mudança de servidão”, o que faria supor que se versaria uma mudança de conteúdo e até possivelmente uma mudança de modalidade de servidão.
Mas não é assim, como logo resulta dos nºs l e 2.
O que está em causa é a mudança do itinerário “para sítio diferente do primitivamente assinado”.
Portanto, desde logo, uma alteração fáctica.
Efectivamente, a servidão de passagem, mesmo que o seu exercício se delimite por um percurso específico, grava todo o prédio serviente: é o que resulta do princípio da indivisibilidade das servidões (art. 1546º do Código Civil).
Por isso, a mudança do lugar de exercício não altera o objecto jurídico da servidão, que era e continua a ser o prédio serviente.
Por isso ainda, está na disponibilidade dos interessados mudar uma ou mais vezes, consoante entenderem, o local de exercício da servidão.
São alterações meramente fácticas, que não se reflectem no conteúdo da servidão apenas no modo de exercício desta.”

Concordamos com tal entendimento.

Cumpre referir que, mesmo que se defenda que as alterações operadas pela mudança do lugar de exercício das servidões devem ser levadas ao registo predial, a sua omissão, como no caso sucede, é irrelevante porque apenas estão em causa direitos dos donos dos prédios dominante e servientes, e não de terceiros.

Como se alude no Parecer – fls. 27 – a “inexistência de registo é para o presente litígio completamente irrelevante”.

Concluímos, assim, que não houve constituição de servidão nova, mas apenas alteração consensual do itinerário da servidão preexistente, pelo que não era de exigir novo prazo para aquisição por usucapião do “caminho novo”, pois que havendo, apenas, alteração do itinerário de uma servidão de passagem já constituída esse facto não inutiliza o tempo decorrido até 1991.

Mas, mesmo que assim não fosse, importa ajuizar a actuação dos RR., já que se provou que em 1991, consensualmente, entre os interessados e com conhecimento da Junta de Freguesia de Olalhas, o caminho referido em 30 deixou de ser utilizado e de existir, passando o acesso que ele propiciava aos AA. a ser feito através da localização referida em 12 a 27, e que os Réus têm colocado madeiras, pedras e tijolos na entrada do caminho, junto à estrada, o que fazem para impedir a utilização do caminho referido em 12 a 22 pelos AA. (diga-se o novo caminho).

Será que tal actuação exprime abuso do direito?

Respondemos afirmativamente.

A propósito do instituto do abuso do direito, no que respeita aos direitos reais, Carvalho Fernandes, in “Lições de Direitos Reais” 3ª edição, pág. 198, ensina:

“Cumpre desde logo assinalar que o instituto do abuso do direito se afastou, na sua evolução histórica, do campo dos actos emulativos, que constituem a sua fonte remota, para assumir uma configuração objectiva e funcional.
Nesta base, e quanto ao primeiro aspecto, são condenadas violações objectivas de valores jurídicos ou extra jurídicos; quanto ao segundo, faz-se apelo ao fim económico ou social determinante do direito subjectivo abusivamente exercido.
Assim, o sentido fundamental do instituto, quanto interessa à fixação do conteúdo dos direitos reais, é o de não permitir o exercício das faculdades que os integram em termos que afectem interesses sociais relevantes.
Os limites assim estabelecidos aos direitos reais podem ser violados tanto por comportamentos positivos (acções), como por comportamentos negativos (omissões), sendo ambos de igual modo ilegítimo, enquanto abusivos”. (destaque nosso)

Ora, no caso em apreço, a actuação dos RR. exprime conduta contraditória – venire contra factum proprium – já que ao impedirem a fruição da servidão pelo trajecto actual, quando, no remoto ano de 1991, com o conhecimento da Junta de Freguesia [o que introduz, até, uma componente de solenidade, já que houve intervenção de quem tem por competência tradicional zelar pela paz vicinal – acordaram em alterar o trajecto da servidão], violam a confiança induzida pelo seu comportamento anterior, quanto à estabilidade de uma situação que, frise-se, não foi imposta, mas consensual.

Dispõe o art. 334º do Código Civil:

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que o exercente de um direito o faz em termos tais que, na concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.

O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” Ac. deste STJ, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, III, 117.

A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.

Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou – “venire contra factum proprium”.

“Há abuso do direito, segundo a concepção objec­tiva aceite no artigo 334º sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito.
Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. – Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536.

O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.
A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

Como ensina o Professor Antunes Varela, obra citada, pág. 536:

Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.

Cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. deste STJ, de 7.1.93, in BMJ, 423-539 e de 21.9.93, in CJSTJ, 1993, III, 19.

No âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória – “venire contra factum proprium” – que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.


O abuso do direito – “como válvula de escape”, que deve ser, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito.

Como escreve o Prof. Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745:

“O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo.
O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”

A conduta dos RR., para ser integradora do “venire” terá, objectivamente, de trair o “investimento de confiança”, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, in concreto, injustiça.

Como, lapidarmente, ensina o citado civilista, in “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:

“ (...) 1°- Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”


No caso, a actuação do Réu DD é deveras censurável e infractora do agir de boa-fé, ou seja, com lisura e consideração pelos interesses alheios, já que, como consta do documento de fls. 336 e verso – a que se alude na fundamentação da decisão da matéria de facto na sentença da 1ª Instância – aquele Réu, em 13.1.1986, escreveu ao Presidente da Junta de Olalhas, no sentido de se alcançar um consenso no sentido de realizar obras para facilitar o acesso à sua casa isolada, decorrendo dos autos que a realização dessas obras coenvolveu a aquiescência dos AA. e também da 3ª Ré, implicando a alteração do trajecto inicial da servidão de passagem em favor do prédio dos AA.

Ao impedir a utilização do novo caminho pelos AA., trai a confiança incutida naqueles com quem negociou, mormente, contradizendo, assim, sem motivo e de forma intolerável, o compromisso que livremente assumiu.

Radicando a sua oposição em razões que são estranhas ao conceito de Justiça e aos princípios da boa fé e do fim social do direito de propriedade, de modo algum merece a tutela do Direito, porque abusiva.

Pelo exposto o recurso merece provimento.

Decisão:

Nestes termos, concede-se a revista, revogando-se, consequentemente o Acórdão recorrido, na parte impugnada, e na procedência dos pedidos formulados e aqui em apreciação:

- Declara-se constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a pé e de carro, com 60 m de comprimento e 3 m de largura, a favor do prédio dos AA. e que onera o prédio dos RR.
Tal servidão nasce junto à estrada, segue no sentido sul-norte, a poente do prédio da 3ª Ré, e segue depois no sentido nascente-poente, sobre a parte sul dos prédios dos 2ºs RR. e do 1º Ré, até atingir o prédio dos AA., estando 29 metros a onerar o prédio da 3ª Ré, 16 m a onerar o prédio dos 2ºs RR. e 15 metros a onerar o prédio do 1º Réu.

- Condenam-se os RR. a absterem-se da prática de actos que impeçam o acesso dos AA. à referida servidão.

Custas neste Tribunal e nas Instâncias pelos Réus.

Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Novembro de 2008

Fonseca Ramos (relator)

Cardoso de Albuquerque.

Azevedo Ramos.

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(1) “Desde há mais de 20 anos, no caminho mencionado em 30 (o caminho assinalado a azul tracejado na planta de fls. 239), e desde 1991, no caminho indicado em 12 a 22 (o caminho assinalado a castanho na planta de fls. 239), os AA. passavam, e passam neste último, a pé, de tractor, passando igualmente viaturas destinadas ao seu prédio, designadamente as que necessitem de aceder ao logradouro deste prédio, fazendo-o ininterruptamente e comportando-se nessa utilização como quem podia e pode legitimamente utilizar esse caminho na sua configuração inicial e na actual – quesitos 32 a 36” – (matéria de facto que a Relação alterou).

(2) “As servidões são indivisíveis: se o prédio serviente for dividido entre vários donos, cada porção fica sujeita à parte da servidão que lhe cabia; se for dividido o prédio dominante, tem cada consorte o direito de usar da servidão sem alteração nem mudança”.

(3) “Deve entender-se que a mudança do sítio de exercício da servidão para outro lugar do mesmo prédio serviente determina uma simples modificação (…); se, porém, for efectuada a mudança para uma parcela ou prédio não onerados mas fundidos já com outro prédio serviente no momento da mudança, esta determina a constituição de uma nova servidão se for possível identificar devidamente aquela parcela ou aquele prédio” – Tavarela Lobo, in “Mudança e Alteração de Servidão” – pág. 104.