Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
21/23.5YFLSB
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR FURTADO
Descritores: ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
INQUÉRITO
QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
ADVOGADO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: PROCESSOS NÃO CLASSIFICADOS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - Nos termos do art.º 162.º, al. a), da CRP, compete à Assembleia da República, no exercício de funções de fiscalização, vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração, mediante actos e procedimentos de diversa natureza, entre os quais se destacam os inquéritos parlamentares, que constituem o meio mais solene e estruturado do exercício de tal competência.
II - A lei atribui às comissões parlamentares de inquérito os mesmos poderes de investigação das autoridades judiciárias, com ressalva dos que a Constituição reserva aos tribunais. Mas para prosseguir uma finalidade de fiscalização política e não judicativa, ou seja, de habilitar a Assembleia da República com conhecimentos que podem levar à adopção de medidas legislativas ou outras no âmbito das competências do Parlamento sobre o assunto inquirido.
III - Os deveres de prestação de depoimento e de entrega de documentos no âmbito do inquérito, por parte dos cidadãos, têm os limites que teriam perante aquelas autoridades, nomeadamente o daqueles direitos que, mesmo em investigação criminal, não podem ser afectados senão por decisão de um juiz. Portanto também os que decorrem da invocação do segredo profissional, para não prestação de depoimento ou recusa de entrega dos documentos solicitados.
IV - O modo de ultrapassar a recusa de colaboração dos particulares com tal justificação é o incidente da quebra de segredo regulado no art.º 135.º, do Código de Processo Penal (CPP), aplicável à recusa de apresentação de documentos fundada em segredo profissional por força do disposto no art.º 182.º, do mesmo Código. Incidente esse que, a partir da alteração do Regime Jurídico Inquéritos Parlamentares, introduzida pela Lei n.º 29/2019, de 23 de Abril, passou a ser da competência do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art.º 13.º-A, do RJIP.
V - O dever de segredo transcende a mera relação contratual entre o advogado e o cliente, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado, não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral.
VI - É legítima a invocação do segredo profissional por parte de uma sociedade de advogados para recusar a entrega do conjunto de documentos que materializem, quer as comunicações com outra sociedades de advogados, quer as estabelecidas com uma das partes, no âmbito de uma negociação. Tal recusa está protegida pelo n.º 3, por referência às hipóteses das als. a) e e) e, seguramente, pela cláusula geral do n.º 1, do art.º 92.º, do EOA.
VII - O segredo profissional de advogado não é absoluto. Porém, não tendo as CPI poderes judicativos ou de investigação criminal, para o seu levantamento por decisão judicial não está em equação algo qualificável como “gravidade do crime”, mas o relevo comunitário do assunto e do apuramento da verdade acerca do facto inquirido.
VIII - O juízo sobre a “prevalência do interesse preponderante” não pode ser produto de uma lógica de subsunção, operando a partir de uma hierarquia de valores ou de ordenação de interesses pré-estabelecidas abstractamente, mas de uma ponderação das circunstâncias do caso concreto, essencialmente construída mediante o que, genericamente, se designa por princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso, princípio estruturante da ordem jurídica, especialmente vocacionado para a apreciação de pretensões intrusivas dos poderes públicos na esfera jurídica dos cidadãos numa sociedade democrática.
IX - Para o levantamento do segredo não basta que a obtenção dos suportes das comunicações se apresente como meio abstractamente idóneo para as finalidades do inquérito. É ainda condição que o contributo que resultaria da imposição ao advogado de apresentação dos documentos que materializam as suas comunicações, no âmbito do exercício da actividade profissional coberta pelo segredo, não possa razoavelmente ser obtido de modo menos gravoso, isto é, que não haja meios alternativos ao meio escolhido para apurar a verdade ou proporcionar a utilidade legítima daquele meio de obtenção da informação relevante.
X - A quebra do sigilo profissional, relativamente a todas as comunicações entre as Sociedades de Advogados na fase negocial preparatória, quando a CPI pode obter por outra via o projecto de acordo ou decisão final, comportaria um sacrifício manifestamente excessivo para os interesses prosseguidos com a consagração do sigilo profissional.
Decisão Texto Integral:


INCIDENTE QUEBRA SEGREDO PROFISSIONAL

COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - TAP

Processo n.º 21/23.5YFLSB

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO
1. A COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO À TUTELA POLÍTICA DA GESTÃO DA TAP, (CPITAP), constituída pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2023, publicada no Diário da República, 1ª série, de 14/02/2023, deduziu o presente incidente de quebra de segredo, nos termos dos art.ºs 135.º e 182.º do Código de Processo Penal e do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, aprovado pela Lei n.º 5/93, de 1 de Março, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 126/97, de 10 de Dezembro, 15/2007, de 3 de Abril e 29/2019, de 23 de Abril, em que é requerida a Sociedade de Advogados M.... 

Mediante ofício do respectivo Presidente, a CPITAP solicitou à referida Sociedade de Advogados cópia das “«Comunicações entre a sociedade de advogados "M..." e a "S..." e a TAP, no âmbito do acordo de desvinculação estabelecido entre a Eng. AA e a TAP»”,  solicitação que foi declinada, com invocação do sigilo profissional de advogado.

Na sequência desta recusa e da não aceitação da subsequente sugestão para que a Sociedade de Advogados tomasse a iniciativa de solicitar dispensa do sigilo ao Presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados ao abrigo do n.º 4  do art.º  82.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, a CPITAP socorreu-se do presente incidente, invocando a essencialidade, imprescindibilidade e exclusividade do acesso à pretendida correspondência para a boa realização do inquérito parlamentar e a prossecução do interesse público da descoberta da verdade material, que defende constituir interesse preponderante prevalente relativamente ao invocado segredo profissional de advogado.


2. Nos termos do art.º 135.º, n.º 4 e 182.º, n.º 2, do CPP, foi solicitado parecer à Ordem dos Advogados, que se pronunciou nos seguintes termos:

“(…) olhando para a forma como o pedido de quebra se encontra recortado, não nos é possível concluir pela absoluta necessidade da quebra, pois que desconhecemos os factos concretos e precisos cuja prova a Comissão pretende para cumprir aquela que é a sua missão, não bastando nesta sede, evidentemente, uma remissão genérica para aquele que é o objeto da Comissão.

Só concatenando os factos concretos e precisos cuja prova é pretendida e os documentos cuja quebra é pretendida seria possível aferir da absoluta necessidade da quebra de segredo. Quebra essa que deverá ser sempre norteada pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade e que não nos é possível aferir.

Ademais, só conhecendo os factos concretos e precisos cuja prova a Comissão pretende e os meios de prova já produzidos ou a produzir estaríamos em condições de concluir pela exclusividade, ou não, da prova documental cuja quebra é pretendida.

Não podemos olvidar que o incidente para quebra de segredo é um mecanismo particular que pressupõe uma adequada ponderação dos interesses em conflito e essa ponderação não é passível de ser feita com base em meras ilações ou suposições, antes exigindo uma ponderação ou sopesamento cuidado e devidamente sustentado de todos os parâmetros passíveis de serem objeto de análise.

O recurso aos meios de prova abrangidos pelo dever de sigilo plasmado no artigo 92.º do Estatuto deve ser sempre encarado como um meio excecionalíssimo, sob pena de se banalizar um dever fundamental e estruturante da profissão de Advogado. O que exige que o incidente de quebra seja deduzido de forma devidamente alicerçada e restrita ao facto ou a um conjunto de factos devidamente concretizados e individualizados, apenas estes devendo ser objeto de

análise à luz do princípio do interesse preponderante.

A remissão genérica para todos os factos materializados num vasto conjunto de documentos não cumpre, não permite exercer o direito à audição previsto no artigo 135.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.

Mas mais ainda.

O princípio geral é o de que os Advogados estão obrigados a guardar segredo profissional em relação a assuntos profissionais versados em correspondência trocada com Colegas. Isto é, toda a correspondência que respeite ao exercício da profissão está, em regra, abrangida pela esfera de proteção do sigilo profissional. Tal decorre de forma inequívoca do disposto nos artigos 92.º e 76.º, ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Por sua vez, o artigo 113.º do Estatuto consagra a confidencialidade da correspondência trocada entre Advogados e entre estes e Solicitadores, o qual, por facilidade de exposição, passamos a transcrever:

1- Sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado ou solicitador, tenha caráter confidencial, deve exprimir, claramente, tal intenção.

2 – As comunicações confidenciais não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não lhes sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 92º.

3 – O advogado ou solicitador destinatário da comunicação confidencial que não tenha condições para garantir a confidencialidade da mesma deve devolvê-la ao remetente sem revelar a terceiros o respetivo conteúdo”.

Portanto, a diferença de regime entre a correspondência classificada ou não como confidencial reside apenas no seguinte. A que for classificada como confidencial, ao invés da que não for classificada como confidencial, não poderá nunca ser revelada, não podendo, em qualquer circunstância, ser objeto do pedido de autorização previsto no art.º 92.º, n.º 4 do EOA.

Por outro lado, o dever de confidencialidade estatuído vincula quer o emissor quer o recetor da comunicação sujeita a esse mesmo dever. Tal decorre diretamente do n.º 3 da referida norma legal.

Uma vez expressa a intenção de conferir a determinada correspondência caráter confidencial, a mesma fica sujeita ao regime legal do artigo 113.º do Estatuto, não estando no livre arbítrio do seu emissor ou recetor prescindir da confidencialidade. O que o legislador pretendeu foi que os factos contidos em correspondência sujeita ao dever de confidencialidade fixado no artigo 113.º do Estatuto se mantivessem sempre “sigilosos”, consagrando, assim, a total proibição de levantamento do sigilo profissional em relação a esses mesmos factos. E não sendo aplicável às comunicações confidenciais o disposto no artigo 92.º, n.º 4 do EOA, não podem as mesmas, em qualquer caso, constituir meio de prova, tal como decorre diretamente do artigo 113.º, n.º 2 do Estatuto.

Destarte, e partindo do pressuposto de que a correspondência cuja apresentação foi solicitada à “Morais Leitão” está efetivamente sujeita ao regime da confidencialidade previsto no artigo 113.º do Estatuto, a mesma não poderá ser objeto do incidente de quebra de segredo previsto no artigo 13.º-A do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares porquanto, nos termos do disposto no artigo 113.º, n.º 2 do Estatuto, “as comunicações confidenciais não podem, em

qualquer caso (sublinhado nosso), constituir meio de prova”, não lhes sendo sequer aplicável o disposto no artigo 92.º, n.º 4 do Estatuto.

E não se olvide que o Estatuto da Ordem dos Advogados tem força de lei.”.


3. O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto deste Supremo Tribunal, emitiu parecer no sentido da “(…) obtenção das comunicações entre a sociedade de advogados “M...” e a “S...” e a TAP, no âmbito do acordo de desvinculação estabelecido entre a Eng. AA e a TAP, incluindo-se nestas comunicações as que estejam eventualmente cobertas por segredo profissional.”, considerando, essencialmente, o seguinte:

“(…) é nosso conhecimento funcional que a Comissão Parlamentar em causa formulou outro pedido de quebra de sigilo, que deu origem à abertura neste STJ do processo 20/13.... – no âmbito do qual, entre outros aspetos, veio articular pedido idêntico (comunicações entre as sociedades em causa no âmbito do acordo envolvendo a desvinculação da Eng. AA). Nesse caso, depois de a Sociedade “R...” - S... - ter informado que se encontrava impedida de enviar à Comissão a documentação requerida, por a mesma estar abrangida pelo dever de sigilo.

Ora, a documentação em questão que é pretendida pela Comissão acaba por ser a mesma – comunicações entre as duas sociedades de advogados, reportadas à mesma matéria concreta -, apenas divergindo a ‘perspetiva’ – numa, visa-se obter a documentação através de um dos intervenientes; noutra, através do outro interveniente.

Existe, assim, uma duplicação processual.

Duplicação a que, em nosso entender, deverá ser posto cobro, quer por uma questão de economia processual, quer para evitar possíveis decisões contraditórias (e a perda de efeito útil uma decisão de indeferimento face a uma de deferimento, por exemplo: no caso de haver deferimento num processo, um eventual indeferimento no outro geraria uma situação anómala, pois que este último perderia qualquer efeito útil).

-- Assim sendo, por força da aplicação das regras do processo penal ao caso (o incidente reporta-se, precisamente, a normas deste diploma, sendo que o regime dos Inquéritos Parlamentares igualmente se socorre das normas processuais penais – vejam-se os seus artigos 12º, 13º, 16º e 17º), entendemos que deverá, ao abrigo do disposto no artº 29º do CPP, ser determinada a apensação do presente processo ao atrás referenciado 20/13.... (mais antigo, como resulta da numeração), aí sendo tomada decisão acerca de todos os pedidos.

Caso assim não se entenda:

(…)

Atento o pedido formulado pela Comissão de Inquérito parece-nos que estas objeções colocadas pela Ordem dos Advogados não têm razão de ser. Na verdade, o pedido não é genérico e abstrato - reporta-se a uma situação concreta com intervenientes concretos, qual seja o acordo de desvinculação estabelecido entre Senhora Engenheira AA e a TAP. Está, assim, objetivado o pedido.

Óbvio é igualmente que um ou mais documentos escritos são bem mais fiáveis do que depoimentos que acerca dos mesmos documentos possam ser prestados. A troca de comunicações versando um qualquer assunto, a serem obtidas essas mesmas comunicações, assume claramente maior valor de veracidade do que depoimentos que acerca dessas comunicações sejam transmitidas em «segunda mão», se nos é permitida a expressão.

Para mais quando – como seria necessariamente o caso – viessem os intervenientes invocar, eles próprios, o dever de sigilo, não depondo acerca das circunstâncias que rodearam a situação.

Ou seja, objetivamente falando, inexiste qualquer dúvida quanto a tais elementos - os solicitados pela Comissão de inquérito - terem maior relevância probatória do que quaisquer outros. Não permitem interpretações subjetivas dos intervenientes, constituindo uma base de trabalho incomparavelmente mais «firme» do que meros depoimentos. Depoimentos que, aliás, bem mais fiáveis serão também se na base das questões a colocar às pessoas a ouvir estiverem aqueles mesmos documentos, com os quais aqueles poderão ser confrontados.

(…)

Atento o objeto da comissão parlamentar de inquérito, qual seja, o de avaliar o exercício da tutela política da gestão da TAP, nomeadamente, entre mais, o processo e a natureza da nomeação de AA para o Conselho de administração da Navegação Aérea de Portugal e a eventual conexão com o processo de saída do Conselho de administração da TAP, é indiscutivelmente de grande relevância, tal como refere o pedido da comissão, apurar a factualidade em causa.

(…)

Ora, atenta a finalidade da Comissão, os interesses públicos que esta defende, existe necessidade de descoberta total da verdade, sendo prevalecente o interesse público face aos interesses particulares dos intervenientes.

Tal como referido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 02.02.2017, em caso semelhante em termos de relevância e em que se fazia sentir a necessidade de apurar a verdade (processo 150/17.4YRLSB-8), «Há que proceder a uma equilibrada ponderação dos interesses em jogo, por um lado o direito constitucional à privacidade, que determina o caracter sigiloso de certos dados e por outro lado a prossecução do interesse público, através do inquérito e investigação da comissão parlamentar com vista ao apuramento da verdade e informação da Assembleia da República para dar cumprimento a uma das suas funções constitucionalmente consagradas.» Este último tem, necessariamente, de se sobrepor.

-- Justifica-se, assim, a nosso ver, que o sigilo seja quebrado, estando preenchidos os requisitos constantes nos artºs 135º, nº 3, e 182º do CPP.

(…)

- No caso concreto, há a reforçar que se desconhece se existe alguma menção expressa a confidencialidade… E, a ser aceite a ideia de que os documentos confidenciais (naqueles moldes) não poderiam ser sujeitos a quebra de sigilo, seria sempre necessário apreciá-los efetivamente, verificar se reuniam os requisitos a tal necessários, não bastando a alegação de que o eram…

- Finalmente, - e principalmente - o que o artº 113º do Estatuto pretende não é que os documentos fiquem para sempre salvaguardados, que tenham um grau de confidencialidade absoluta. O que o Estatuto impede é que os intervenientes, advogados, revelem factos abrangidos pelo segredo profissional que constam de tal tipo de documentos. Mas estes podem ser revelados, como os demais, na sequência de quebra de sigilo, como sucede no presente incidente. Nenhuma limitação é feita pelo artº 182º do CPP, entrando tais documentos no âmbito daqueles cerca dos quais pode ser levantado o sigilo. Daqui que, mesmo a terem aposta a menção «confidencial» (o que se desconhece e não é afirmado com o mínimo de consistência), e de, para além disso, conterem referência expressa à confidencialidade do seu conteúdo por parte do seu autor (o que, igualmente, não se mostra sequer afirmado, muito menos provado), mesmo se isso tudo sucedesse, não estariam as comunicações visadas no presente incidente isentas de serem objeto de levantamento do sigilo.”.


4. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO


1. Da apensação promovida pelo Ministério Público

Na sua pronúncia, o Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal, considerou que, em face de um outro pedido de quebra de sigilo da CPITAP, distribuído neste STJ e que deu origem à abertura do processo 20/13...., se estaria em face de uma “duplicação processual” uma vez que, aquela Comissão dirigiu idêntico pedido a uma outra Sociedade de Advogados, representante da TAP, visando obter as comunicações entre essa sociedade e a TAP e os Advogados representantes da Eng. AA, invocando o disposto no art.º 29.º, do CPP – visto que “(…) o regime dos Inquéritos Parlamentares igualmente se socorre das normas processuais penais” –, para assim, por  uma questão de economia processual, se pôr cobro a eventuais  decisões contraditórias e à perda de efeito útil em face a uma decisão de indeferimento ou em face a uma de deferimento e outra de indeferimento.

O art.º 29.º, do CPP, inserido sistematicamente no Capítulo II, do CPP, sobre a competência, Secção III, relativa à competência por conexão, dispõe o seguinte:

Artigo 29.º

Unidade e apensação dos processos

1 - Para todos os crimes determinantes de uma conexão, nos termos das disposições anteriores, organiza-se um só processo.

2 - Se tiverem já sido instaurados processos distintos, logo que a conexão for reconhecida procede-se à apensação de todos àquele que respeitar ao crime determinante da competência por conexão.

- negrito e sublinhado, nossos.

O presente incidente de quebra de segredo profissional é um processo autónomo regulado nos termos do art.º 135.º do CPP e, por força do disposto no art.º 13.º-A, da Lei n.º 5/93, de 1 de Março, Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (RJIP), é decidido nas secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, por decisão definitiva e irrecorrível. Tal processo incidental não é dependente de nenhum processo, designadamente de natureza penal e, além disso, não se integra na previsão do art.º 29.º, do CPP.

No caso, além de as sociedades de Advogados serem diferentes, também representam sujeitos processuais diferentes: num caso, a pessoa colectiva, o Grupo TAP (englobando as sociedades TAP S.A. e TAP SGPS) doravante apenas TAP, cujos acionistas são a República Portuguesa, através da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, representando 99% das acções e a PARPÚBLICA, com 1%; e, no outro caso, a pessoa individual, Eng.ª AA, ex-vogal do Conselho de Administração daquele grupo – vd. Relatório de Governo Societário 2021, da Transportes Aéreos Portugueses, S.A. e o Relatório de Gestão Consolidado 2021.

O art.º 29.º, do CPP é concebido para o exercício da acção penal, não se verificando, no caso, as condições determinantes da conexão, seja ela subjectiva ou objectiva, no sentido em que se preconiza no Código de Processo Penal.

Com efeito, o regime jurídico dos Inquéritos Parlamentares não determina que se aplique o CPP, em toda a sua extensão, apenas nos remete para a aplicação do regime consagrado na lei processual penal no tocante a alguns aspectos do exercício dos poderes das comissões, a saber: i) no que concerne à coadjuvação dos órgãos de polícia criminal e de autoridades administrativas nos mesmos termos que os tribunais; ii) à quebra do segredo profissional; e, iii) à justificação da falta de comparência ou a recusa de depoimento perante a comissão parlamentar de inquérito (CPI) – tudo conforme os art.ºs 13.º, n.ºs 2 e 7, 13.º-A e 17.º, do RJCPI.

Tanto basta para que não se determine a promovida apensação.


2. Do Incidente de quebra de segredo
2.1. Dos  documentos juntos ao processo resulta o seguinte:
a) Pela Resolução n.º 7/2023, de 3 de Fevereiro, a Assembleia da República constituiu, nos termos do n.º 5, do art.º 166.º e n.º 1, do art.º 178.º, da Constituição e da al. a), do n.º 1, do art.º 2.º, da Lei n.º 5/93, de 1 de Março, alterada pelas Leis n.º 126/97, de 3 de Abril, n.º 15/2007, de 3 de Abril e n.º 27/2019, de 23 de Abril – Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, (RJIP), uma comissão parlamentar de inquérito à tutela política de gestão da TAP – Transportes Aéreos Portugueses, SGPS, S.A., e da TAP, S.A., com o seguinte objecto:

“Avaliar o exercício da tutela política da gestão da TAP SGPS e da TAP, S. A., em particular no período entre 2020 e 2022, sob controlo público, nomeadamente:

a) O processo de cooptação, nomeação ou contratação de AA para a administração da TAP SGPS e da TAP, S. A., e dos restantes administradores e os termos da aplicação do respetivo enquadramento jurídico;

b) O processo e a natureza da nomeação de AA para o Conselho de Administração da Navegação Aérea de Portugal, E. P. E., e a eventual conexão com o processo de saída do Conselho de Administração da TAP;

c) O processo de desvinculação de membros dos órgãos sociais da TAP SGPS e da TAP, S. A., e a prática quanto a pagamentos indemnizatórios;

d) As remunerações pagas aos membros dos órgãos sociais da TAP SGPS e da TAP, S. A., nas suas várias componentes;

e) A qualidade da informação prestada ao acionista e o envolvimento dos decisores públicos na tomada de decisão na TAP SGPS e na TAP, S. A.;

f) As decisões de gestão da TAP SGPS e TAP, S. A., que possam ter lesado os interesses da companhia e, logo, o interesse público;

g) As responsabilidades da tutela, quer do Ministério das Finanças quer do Ministério das Infraestruturas, nas decisões tomadas na TAP SGPS e na TAP, S. A.”.


b) Por ofício de 03/03/2023, a CPITAP solicitou à Sociedade de Advogados M..., cópia das comunicações entre esta Sociedade de Advogados e a S... e a TAP, no âmbito do acordo de desvinculação estabelecido entre a Eng. AA e a TAP;
c) Por comunicação de 13/03/2023, a M... recusou o envio da correspondência solicitada, com invocação do sigilo profissional de advogado;
d) Por ofício de 16/03/2023, a CPITAP sugeriu à referida Sociedade de Advogados que fosse solicitado ao Presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados autorização para juntar os documentos que se relacionem, directa ou indirectamente com os factos sujeitos ao sigilo profissional invocado;
e) O que foi igualmente declinado, com invocação de que o sigilo sobre a correspondência entre Advogados, que cumpra os requisitos previstos no art.º 113.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), não pode sequer ser abrangido pelo mecanismo de dispensa sugerido e que, mesmo que assim não fosse, não estariam reunidos os requisitos para tal dispensa.


3. Do direito
3.1. Nos termos do art.º 162.º, al. a), da CRP, compete à Assembleia da República, no exercício de funções de fiscalização, vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração, competência esta que se desenvolve mediante  actos e procedimentos de diversa natureza, entre os quais se destacam os inquéritos parlamentares, que constituem o meio mais solene e estruturado do exercício de tal competência, correspondendo a um mecanismo de controle democrático com larga tradição na afirmação da supremacia do Parlamento.

O seu regime jurídico, além do que radica na própria Constituição da República Portuguesa (CRP) e em disposições regimentais, consta da Lei n.º 5/93, de 1 de Março, com as alterações que foram introduzidas pelas Leis n.º 126/97, de 10 de Dezembro, n.º15/2007, de 3 de Abril e n.º 22/2019, de 23 de Abril (RJIP). Podem ter por objecto qualquer matéria de interesse público e são realizados através de comissões eventuais da Assembleia da República, constituídas para cada caso, nos termos do art.º 178.º, n.ºs 1 e 4, da CRP e do respectivo Regimento – art.º 1.º, do RJIP.


3.2. Para apreciação do caso sujeito,  importa sobretudo reter deste regime o disposto nos art.ºs 13.º e 13.º-A,  cujo teor é o seguinte:

Artigo 13.º

Poderes das comissões

1 - As comissões parlamentares de inquérito gozam dos poderes de investigação das autoridades judiciais que a estas não estejam constitucionalmente reservados.

 2 - As comissões têm direito à coadjuvação das autoridades judiciárias, dos órgãos da polícia criminal e das autoridades administrativas, nos mesmos termos que os tribunais.

3 - As comissões podem, a requerimento fundamentado dos seus membros, solicitar por escrito ao Governo, às autoridades judiciárias, aos órgãos e serviços da Administração, demais entidades públicas, incluindo as entidades reguladoras independentes, ou a entidades privadas as informações e documentos que julguem úteis à realização do inquérito.

4 – Omitido

5 – A prestação das informações e dos documentos referidos no n.º 3 tem prioridade sobre quaisquer outros serviços e deve ser satisfeita no prazo de 10 dias, sob pena de o seu autor incorrer na pática do crime referido no art.º 19.º [ desobediência qualificada ]

6 – Omitido

7 - No decurso do inquérito, a recusa de prestação de depoimento, de prestação de informações ou de apresentação de documentos só se terá por justificada nos termos da lei processual penal e da presente lei.

E, dispõe o art.º 13.º-A:

Artigo 13.º-A

Incidente para a quebra de segredo

1 - Compete às secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça julgar, por decisão definitiva e irrecorrível, o incidente para a quebra de segredo.

 2 - O incidente para a quebra de segredo tem natureza urgente.

Importa ainda ter presente que as comissões parlamentares de inquérito podem convocar qualquer cidadão para depor sobre factos relativos ao inquérito – art.º 16.º, n.º 1 –, só se tendo por justificada a falta de comparência ou a recusa de depoimento, nos termos gerais da lei processual penal – art.º 17.º, n.º 1.

A lei atribui às comissões parlamentares de inquérito poderes de investigação decalcados nos das autoridades judiciárias, com ressalva dos que a Constituição reserva aos tribunais. Mas para prosseguir uma finalidade de fiscalização política e não judicativa, ou seja, de habilitar a Assembleia da República com conhecimentos que podem levar à adopção de medidas legislativas ou outras no âmbito das competências do Parlamento sobre o assunto inquirido.

Sendo os poderes de investigação das comissões parlamentares de inquérito os que são próprios das autoridades judiciais, o dever de prestar depoimento e de entregar documentos no âmbito do inquérito, por parte dos cidadãos, têm os limites que teriam perante aquelas autoridades, nomeadamente o daqueles direitos fundamentais dos cidadãos que, mesmo em investigação criminal, não podem ser afectados senão por decisão de um juiz. Portanto também, no que para o que ao caso interessa, os que decorrem da invocação do segredo profissional, para não prestação de depoimento ou a recusa de entrega dos documentos solicitados.

E o modo de ultrapassar a recusa de colaboração dos particulares com tal justificação é o incidente da quebra de segredo regulado no art.º 135.º, do Código de Processo Penal (CPP), aplicável à recusa de apresentação de documentos fundada em segredo profissional por força do disposto no art.º 182.º, do mesmo Código. Incidente esse que, a partir da alteração do RJIP, introduzida pela Lei n.º 29/2019, de 23 de Abril, passou a ser da competência deste Supremo Tribunal, nos termos do art.º 13.º-A, do RJIP.

Nada obstando, cumpre apreciar o pedido de quebra do segredo profissional formulado.


3.3. No capítulo da deontologia profissional, o art.º 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, (EOA), aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro, dispõe que:

Artigo 92.º

Segredo profissional

1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja

associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais

ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.

O dever de guardar segredo profissional que impende sobre os advogados tem as suas raízes na centralidade, numa sociedade democrática, de uma armadura jurídica que garanta a confiança entre advogado e constituinte, que não se esgota num dever de lealdade contratual, mas abrange também a dimensão de manifesto interesse público da advocacia e o seu papel, não só na estrutura dialética de um processo judicial aberto ou em perspectiva – patrocínio forense, como elemento essencial à administração da justiça, conforme art.º 208.º da CRP (“A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.”) –, mas, também, na prevenção e resolução extrajudicial de conflitos intersubjectivos juridicamente relevantes com a autonomia de uma vontade esclarecida – direito à consulta jurídica e ao advogado, conforme art.º 20.º, n.º 2, da CRP .

O dever de segredo transcende, por consequência, a mera relação contratual entre o advogado e o cliente, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral. A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra-individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir à ideia de confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões.

Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e, também, todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue. O segredo profissional não é só, em rigor, um dever do advogado por pertencer a uma classe, mas é, e sobretudo, um dever de toda essa classe e, por isso, vinculativo e obrigatório para cada membro dela, como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 15/02/2018, Proc. 1130/14.7TVLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt.

Parafraseando o que sustentou o Advogado Geral Professor Poiares Maduro nas suas Conclusões apresentadas, em 14 de Dezembro de 2006,  no Proc. 305/05, do TJUE, ECLI:EU:C:2006:788, em  https://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?language=pt&num=C-305/05 , o seu fundamento substancial corresponde à exigência, fundamental numa sociedade democrática, de que todo o cidadão deve ter a possibilidade de se dirigir com toda a liberdade ao seu advogado, cuja profissão implica ela própria o dever de dar de forma independente conselhos jurídicos aos que deles tenham necessidade e a exigência correlativa de lealdade para com o cliente.

Saliente-se que o sigilo profissional respeita tanto aos actos relativos e que se materializem no mandato forense como àqueles que se esgotam na consulta jurídica. E que, além dos factos da relação profissional em si mesmo, o sigilo profissional abrange ainda quaisquer documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo, conforme art.º 92.º, n.º 3, do EOA. Por outro lado, embora o Estatuto da Ordem dos Advogados se possa dizer, ainda semanticamente construído sobre o conceito de advogado em prática individual, estão obrigadas ao segredo as próprias sociedades de advogados.

O objecto da pretensão de quebra de segredo em causa neste incidente é, precisamente, desta natureza, a obtenção do suporte das comunicações sobre factos sujeitos ao sigilo profissional de advogado.


3.4. Ao dever de sigilo, estabelecido na lei substantiva estatutária, faz a lei processual corresponder um direito do advogado a defender o segredo, sem o qual aquele dever ficaria esvaziado de efectividade perante actos intrusivos do poder público.

Traduz-se essa armadura de protecção, naquilo que imediatamente interessa ao caso, na legitimidade da escusa a depor sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional (art.º 135.º do CPP) e na legitimidade de recusa de apresentação à autoridade judiciária – ou investida dos poderes próprios desta, como são as comissões parlamentares de inquérito – dos documentos ou quaisquer objectos cuja posse esteja abrangida pelo segredo profissional, como será o caso dos documentos que materializem as comunicações resultantes do exercício da actividade profissional do advogado no exercício do mandato forense e de consulta jurídica, (art.º 182.º do CPP, com referência ao n.º 3, do art.º 92.º, do EOA), a que a CPITAP pretende ter acesso.

Trata-se de um direito funcionalizado a um dever cuja não invocação, quando reunidas as condições para tanto, será susceptível de constituir violação do dever correspondente.


4. Isto posto, é indiscutível que a invocação do segredo profissional para recusar satisfazer a pretensão de entrega do conjunto de documentos que materializariam, quer as comunicações entre duas Sociedades de Advogados, entre si, quer as estabelecidas com uma das partes, no âmbito de uma negociação é, no caso, formalmente legítima. Tal recusa está protegida pelo n.º 3, por referência às hipóteses das als. a) e e) e, seguramente, pela cláusula geral do n.º 1, do art.º 92.º, do EOA.

Aliás, ninguém pôs em dúvida que se pretende intrusão em matéria objectiva e subjectivamente compreendida no segredo profissional de advogado.

Assim sendo,  importa passar ao momento seguinte de apreciação e saber se deve ser autorizada judicialmente a quebra do segredo e ordenar-se a entrega dos documentos pretendidos à CPITAP, isto é, aqueles em que materializem as comunicações: (i) entre a Sociedade de Advogados requerida e a Sociedade de Advogados congénere que representava a TAP,  nas negociações a propósito da saída da Eng.ª AA, do Conselho de Administração da TAP; (ii) bem como as comunicações entre a Sociedade de Advogados requerida e a TAP, ao mesmo propósito .


4.1. Com efeito, o segredo profissional de advogado não é absoluto.

Além dos limites intrínsecos, comporta a possibilidade de dispensa – art.º 92.º, n.º 4, do EOA – e de quebra por decisão judicial, esta sempre que “(…) se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos” – art.º 135.º, n.º 3, do CPP. Fundamento ou critério jurídico aqui aplicável ex vi do art.º 13.º, n.º 1, do RJIP, mas mutatis mutandis, porque não tendo as CPI poderes judicativos ou de investigação criminal, não está em equação algo qualificável como “gravidade do crime”, mas o relevo comunitário do assunto e do apuramento da verdade acerca do facto inquirido no funcionamento do mecanismo constitucional de “cheks and balances”.       

Nesta tarefa de apreciação concreta, o juízo sobre a  “prevalência do interesse preponderante” não pode ser produto de uma lógica de subsunção, operando a partir de uma hierarquia de valores ou de ordenação de interesses pré-estabelecidas abstractamente, mas de uma lógica ponderativa, essencialmente construída mediante o que, genericamente, se designa por princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso, princípio estruturante da ordem jurídica,  especialmente vocacionado para a  apreciação de pretensões intrusivas dos poderes públicos na esfera jurídica dos cidadãos numa sociedade democrática.

Princípio este que analiticamente se desdobra em três subprincípios ou três máximas na metódica de aplicação ao objecto de apreciação: i) o princípio da adequação ou da idoneidade – as medidas intrusivas devem revelar-se como adequadas para a prossecução do fim visado; ii) princípio da indispensabilidade, da necessidade ou da exigibilidade – as medidas pretendidas devem ser as necessárias, porque os fins visados não podem ser alcançados por outros meios menos onerosos para os direitos ou interesses sacrificados; e, iii) princípio da proporcionalidade em sentido estrito – o sacrifício provocado com a medida restritiva e os fins prosseguidos devem situar-se entre si numa justa medida, evitando-se efeitos excessivos relativamente aos resultados com isso obtidos.


4.2. A CPITAP apresentou uma pretensão de grande amplitude, querendo obter a totalidade das comunicações entre as Sociedades de Advogados envolvidas nas negociações entre si e com a TAP – mais precisamente, com duas empresas do universo TAP, a TAP SGPS e a TAP S.A. – e, oferecendo para tanto uma fundamentação genérica, consistindo na afirmação da superioridade probatória da prova documental e na importância da disponibilidade dos elementos pretendidos para confronto dos depoentes no contexto das inquirições em curso e para elaboração do relatório final.

Não se ignora a relevância dos inquéritos parlamentares no sistema constitucional e a importância fundamental de que sejam postos à disposição das comissões parlamentares de inquérito os meios necessários a estabelecer a verdade dos factos respeitantes ao objecto do inquérito. E, apesar da formulação genérica da pretensão, pode considerar-se que o levantamento ou quebra do segredo e a consequente entrega dos documentos em causa seria idónea para o fim visado, atento o objecto do inquérito tal como a Resolução da Assembleia da República o definiu e a CPITAP o interpreta, nomeadamente quanto às alíneas c) e f), do n.º 1, da Resolução da Assembleia da República.

Haverá, como se diz no requerimento inicial da CPITAP, uma sobreposição natural entre os factos controvertidos que conformarão os depoimentos e as informações constantes da documentação solicitada, com a patente utilidade desta como corroboração ou confronto com as declarações dos inquiridos. Além disso, os documentos constituem um meio de prova especialmente importante (scripta manent, verba volant …).

Aliás, no acórdão n.º 195/94, Processo n.º 478/93, em  https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19940195.html, o Tribunal Constitucional salientou essa relevância da prova documental nos inquéritos parlamentares, reportando-se à requisição de documentos em poder de entes públicos e para pôr em evidência a cooperação e interdependência entre órgãos de soberania – no mesmo sentido NUNO PIÇARRA, “Poderes e limites de atuação das comissões parlamentares de inquérito no Direito brasileiro e no Direito Português”, em  O DIREITO,  Ano 143º ( 2011), II, pág.. 250).

Embora, nas condições actuais de difusão pública dos trabalhos das comissões parlamentares de inquérito, em que o seu inegável efeito performativo decorre mais dos momentos de prova pessoal, dos interrogatórios e dos depoimentos dos inquiridos, já seja duvidosa a afirmação de que a obtenção de prova documental constitua o “núcleo essencial” do inquérito parlamentar.


4.3.Todavia, não basta que a obtenção dos suportes das comunicações em causa se apresente como meio abstractamente idóneo para as finalidades do inquérito.

É ainda condição do levantamento do segredo que o contributo que resultaria da imposição ao advogado de apresentação dos documentos que materializam as suas comunicações, no âmbito do exercício da actividade profissional coberta pelo segredo, não possa razoavelmente ser obtido de outro modo menos gravoso, isto é que não haja meios alternativos ao meio escolhido para apurar a verdade ou proporcionar a utilidade legítima daquele meio de obtenção da informação relevante.

 

Com efeito, embora sem substituir-se ao órgão responsável pela condução do inquérito parlamentar na identificação concreta dos factos a averiguar – desde que abstractamente pertinentes ao seu objecto – e sobre a escolha dos meios de prova, o Tribunal não pode alhear-se da existência de alternativa ao meio escolhido com eficácia semelhante e mais poupada para o direito sacrificado. Só assim pode concluir-se pela imprescindibilidade do meio escolhido para a descoberta da verdade.

Ora, é manifesto que, pelo menos quanto às comunicações realizadas entre a Sociedade de Advogados M... e a TAP – quer esta figure nessas comunicações como destinatário, quer como emitente –, não é necessário proceder ao levantamento do sigilo que impende sobre esta Sociedade de Advogados para reconstituir o que, em definitivo, possa ter sido relevante no processo de desvinculação da Eng.ª AA, do Conselho de Administração do Grupo TAP.

Efectivamente,  não se vislumbra obstáculo a que  tais documentos (lato sensu) possam ser obtidos junto do outro sujeito do processo comunicacional, ou seja, junto da TAP. Por essa via, a CPITAP obtém o mesmo que pretende – o conhecimento das comunicações entre a Sociedade de Advogados requerida e a TAP – sem necessidade de que se imponha a entrega dos respectivos suportes aos Advogados que representaram a Eng.ª AA.


5. Resta apreciar a pretensão de quebra do sigilo relativamente aos suportes das comunicações trocadas entre as Sociedades de Advogados envolvidas no processo de desvinculação da Eng.ª AA, a sociedade aqui requerida por parte ou em aconselhamento desta e a S..., por parte ou em aconselhamento da TAP.

Quanto a este universo de documentos não vale nos mesmos termos a fundamentação exposta para recusar o levantamento do segredo quanto às comunicações trocadas directamente com a TAP. Só por eventual reencaminhamento ou via indirecta poderão tais comunicações entre as Sociedades de Advogados ter sido levadas ao conhecimento da TAP. Apesar disso, também nesta parte o pedido deve ser indeferido.

Com efeito, os factos cujo conhecimento resulta de negociações empreendidas para prevenção ou resolução de um diferendo ou litígio, quer respeitem ao cliente do advogado,  quer à parte contrária, estão seguramente cobertos pelo dever de sigilo profissional – art.º 92.º, n.º 1, cláusula geral e als. a) e e), do EOA. Além de que a correspondência entre advogados é susceptível de uma protecção reforçada, nos termos do art.º 113.º, do EOA.

Com  a inclusão dos factos respeitantes a negociações entre advogados, no âmbito da proteção geral e com a protecção reforçada da confidencialidade da correspondência, pretendeu o legislador assegurar  a confiança não só de cada cliente no seu advogado, como, neste aspecto, no advogado da parte contrária e dos advogados entre si, de molde a favorecer um ambiente propício à prevenção ou resolução concertada dos diferendos ou litígios, favorecendo a via autocompositiva dos conflitos efectivos ou potenciais.

Ora, constituindo objecto genérico do inquérito parlamentar averiguar o modo como foi exercida a tutela política da gestão da TAP SGPS e da TAP SA, no período entre 2020 e 2022, sob controlo público, e tendo presente os diversos aspectos em que as averiguações tendentes a essa finalidade se desdobram, o que sobretudo releva no episódio da desvinculação e compensação da Eng.ª AA não são tanto os actos prodrómicos e de tratativa negocial entre Advogados enquanto se mantiveram nesse círculo profissional,  mas mais o seu resultado final, sobre o qual possa ter repousado (ou divergido) a decisão dos órgãos de gestão da empresa e a apreciação (ou falta dela) dos órgãos de tutela política.

Sem pretender invadir seara alheia, mas num plano de razoabilidade de que o tribunal não pode abdicar porque lhe compete preservar a concordância prática dos interesses em confronto, para apreciar os actos de gestão do órgão tutelado e o modo como foi exercida a tutela, avulta o que em resultado, final, das negociações tenha sido apresentado e não os avanços e recuos destas.  Mas esse, quer se tenha materializado na forma final de proposta da interessada, projecto de decisão, relatório ou parecer, da autoria de uma das Sociedades de Advogados envolvidas ou de uma delas, está naturalmente em poder da TAP e, também por essa via, ao alcance da CPITAP, sem necessidade de levantar o segredo profissional que impende sobre os Advogados envolvidos na negociação.

Mesmo admitindo que o conhecimento da evolução de propostas e contrapropostas pudesse dar algum contributo para os fins do inquérito parlamentar, sempre seria marginal, pelo que a quebra do sigilo profissional, relativamente a todas as comunicações anteriores entre as Sociedades de Advogados envolvidas na fase negocial preparatória da decisão, comportaria um sacrifício manifestamente excessivo para os interesses prosseguidos com a consagração do sigilo profissional, relativamente às vantagens diminutas para a descoberta da verdade relevante e o resultado do inquérito parlamentar ou da sua expressão.


6. Em conclusão, o levantamento do sigilo profissional dos Advogados, nos termos pretendidos pela CPITAP, não se afigura imprescindível para a condução dos trabalhos, a descoberta da verdade sobre factos relevantes e a formulação das conclusões do inquérito parlamentar, pelo que, não se considera justificado – art.º 135.º, do CPP.

 


III – DECISÃO

Termos em que, acordando, se decide:
a) Indeferir o pedido de quebra do segredo profissional formulado neste incidente deduzido pela Comissão Parlamentar de Inquérito à Tutela Política da Gestão da TAP;
b) Sem custas.

Lisboa, 27 de Abril de 2023 (processado e revisto pelo relator)

Leonor Furtado (Relator)

Agostinho Torres (Adjunto)

António João Latas (Adjunto)