Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
85159/13.0YIPRT.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PRINCÍPIO DA OFICIOSIDADE
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
EXCEÇÃO PEREMTÓRIA
CONHECIMENTO OFICIOSO
MORA DO CREDOR
Data do Acordão: 11/22/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / EXCEÇÕES.
Doutrina:
- CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, p. 334;
- JOSÉ J. ABRANTES, A Excepção de não Cumprimento do Contrato…, p. 148 e ss.;
- LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil, Anotado, Volume 2.º, p. 314;
- P. ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, p. 324.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 428.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 576.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 16-03-2010, PROCESSO N.º 97/2002.L1.S1;
- DE 16-06-2015, PROCESSO N.º 3309/08.1TJVNF.G1.S1.
Sumário :
I - A excepção de não cumprimento do contrato, prevista no art. 428.º do CC – exceptio non rite adimpleti contractus – é uma excepção de direito material e nessa medida uma excepção peremptória nos termos do art. 576.º, n.º 3, do CPC.

II - Tal excepção tem natureza disponível e por isso não é de conhecimento oficioso, devendo a respectiva factualidade integradora ser alegada na contestação, sob pena de preclusão.

III - Se os factos integradores da excepção e o efeito jurídico pretendido tiverem sido invocados pelo réu na contestação (ainda que sem terem sido qualificados como tal) e vierem a ser provados, nada impede que o tribunal dela conheça, fazendo a devida qualificação e aplicando o pertinente direito.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


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Relatório[1]

O processo onde se insere o presente recurso iniciou-se como injunção e passou depois, face à dedução de oposição pela ré, a ação de processo comum.

A autora pediu a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de EUR 27.854,21, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data de vencimento da fatura até integral pagamento.

Alegou que no âmbito da sua atividade acordou com a ré fornecer-lhe um moinho de vento e caixa de água, pelo valor total de EUR 56.659,00, destinado a captar a água necessárias aos fins industriais da ré, tendo-lhe ficado a dever parte do preço.

A ré contestou e referiu, em síntese, que impôs à autora como condição para o fornecimento do equipamento que a água assim obtida, captada de furo artesiano, fosse igual à da rede pública, uma vez que a ré se dedica à produção industrial de produtos destinados ao ramo têxtil e necessita de manter a qualidade da água, tendo a ré garantido esta qualidade da água.

Porém, a água captada revelou-se imprópria para os fins industriais da ré e os produtos por si fabricados começaram a apresentar diversas tonalidades e a criar depósito de resíduos no fundo das embalagens, o que implicou a apresentação de diversas reclamações dos clientes da ré, situação que nunca foi sanada apesar da ré ter aberto um segundo furo.

Em sede de direito a Ré alegou que a A., lhe prestou um serviço de modo defeituoso que a impede de utilizar o equipamento para os fins a que se destina e para os quais foi adquirida, motivo pelo qual deve a presente ação ser julgada improcedente.

A ré deduziu ainda pedido reconvencional pedindo a condenação da autora na remoção de toda a estrutura por ela instalada, bem como no aterro dos furos artesianos, por se terem revelado inúteis e ineficazes e ainda a condenação da autora no pagamento de uma indemnização por todos os prejuízos patrimoniais e morais que a montagem da estrutura lhe causou, a liquidar em execução de sentença.

A autora replicou para dizer que não garantiu a boa qualidade da água e que a ré tenha imposto como condição de celebração do negócio que a água obtida fosse igual à da rede pública ou, pelo menos, com a qualidade necessária aos fins industriais a que a destinava.

Alegou ainda que o equipamento fornecido está em boas condições de funcionamento, sendo que foi apenas a isso que a ré se obrigou e que o mesmo tem como única função captar o que está no furo, não tendo qualquer intervenção na qualidade da água captada, pelo que deve a reconvenção ser julgada improcedente.

No final foi proferida a seguinte decisão:

«Julgo a presente acção procedente e, em consequência decido:

a) Condenar a ré no pagamento à autora da quantia de 27.854,21€ (vinte e sete mil, oitocentos e cinquenta e quatro euros e vinte e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa comercial, desde a data de vencimento da factura n.º 2102229, até efectivo e integral pagamento.

- Julgo o pedido reconvencional improcedente e, em consequência, absolvo a autora do pedido reconvencional».


*

Inconformada veio a R. apelar invocando nulidades da sentença, impugnando a decisão de facto e de direito e pugnando pela anulação do contrato por erro sobre os motivos determinantes do negócio (art.º 251º do CC, ex vi do art.º 913º e 905 do mesmo diploma).

Apreciando a apelação a Relação de …, julgou improcedente a arguição de nulidades, a impugnação da decisão de facto e a existência de fundamento para a anulação do contrato. Porém considerou que havia mora creditoris, por incumprimento parcial do contrato imputável à A.. e consequentemente, julgou improcedente a acção e absolveu a R. do pedido.


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Inconformada com o decidido, veio, desta feita a A. interpor recurso de revista, tendo rematado as suas alegações com as seguintes

Conclusões:

1«- Vem o presente recurso de revista do Acórdão proferido na Relação de … que julgou procedente o recurso interposto da decisão da 1.a instância, uma vez que o douto Acórdão ora recorrido alterou a qualificação dos factos, nos termos do n.° 3 do artigo 5.° do CPC e qualificou como excepção de não cumprimento do contrato, a posição da Ré, nos termos do artigo 428º n.° 1 do CC referindo que "não tendo a autora cumprido ainda integralmente o contrato, é lícita a recusa da ré quanto ao pagamento do resto do preço

2 - Ao contrário, a douta sentença da primeira instância, enquadrou, e bem, a nosso ver, o litígio no âmbito do cumprimento defeituoso, nos termos do 905.° do CC, Concluindo que, a Ré, não demonstrou em tempo algum, que afastou a presunção de culpa, que sobre ela impendia, ou seja, o pagamento da totalidade do preço, o que, também, a Ré defendeu na contestação e nas suas alegações de recurso para a Tribunal da Relação.

3 - Não pode a ora recorrente, concordar com esta alteração da qualificação jurídica, operada em segunda instância.

4 - Vejamos os requisitos da mora e o que nos diz o professor Antunes Varela, em "Das Obrigações em Geral", vol. II:, 7.a edição, pag. 160: " (...) diz-se que há mora do credor, sempre que a obrigação não foi cumprida no momento próprio, porque o credor, sem causa justificativa, recusou a prestação que lhe foi regularmente oferecida ou não realizou os actos (de cooperação) se sua parte necessários ao cumprimento" e continua "Não basta, para haver mora credendi, que o credor se recuse a receber a prestação ou omita os actos que deveria praticar (...) daí que, como requisito de mora do credor, se tenha antes incluído a falta de motivo justificado".

5 - Além da jurisprudência conhecida sobre a temática, deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14-01-2014, "Para haver mora do credor - art. 813° do Código Civil - não basta qualquer recusa de colaboração deste, quando exigível, para que o devedor execute proficientemente a sua prestação, sendo antes de exigir que essa recusa se relacione com actos de cooperação essenciais, omitidos ou recusados pelo credor que impeçam a realização da prestação pelo devedor; não estando provado, in casu, que a desmontagem do veículo era essencial à realização da vistoria pelo perito da Ré, como esta alegara, não houve recusa injustificada, e, como tal, não existiu mora credendi. Não obstante se considerar que a mora do credor, ao invés da do devedor, não pressupõe a culpa daquele, é requisito da mora credendi que os actos não praticados pelo credor, ou por ele voluntariamente omitidos, sejam actos de cooperação essenciais; de outro modo, cair-se-ia num campo movediço pela falta de critério objectivo pelo qual se aferisse se o seu comportamento era essencial para o cumprimento pelo devedor. As exigências da boa-fé são recíprocas: os direitos subjectivos, por definição, são direitos a prestações e implicitam relações intersubjectivas de cooperação." acessível online in…

6 - Veja-se, também, o Acórdão do Tribunal da Relação de …, de 29-05-2007: "-O art° 813° C. Civ. estabelece que o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceite a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação - o credor tem o dever de cooperar no cumprimento da obrigação."Publicado on-line in…

6 - Dando-se como provado em primeira instância, o ponto 5.° e o ponto 9.° da matéria de facto alegada: "Ponto n.° 5 - "A autora procedeu à instalação de equipamentos referidos em 4), de modo em adequado, após abertura do furo artesiano para o efeito, realizado por terceiro, em local da escolha deste", Ponto n.° 4 - "O equipamento referido em 4) encontra-se em boas condições de funcionamento e destina-se a captar água existente no furo, sem qualquer intervenção na qualidade da água", ficou patente que todos os actos de cooperação da credora foram realizados e que as boas condições de funcionamento não têm qualquer intervenção na qualidade da água.

7 - A recorrente defende como correcta a qualificação jurídica operada na sentença proferida em primeira instância: " (...) é possível concluir que o que a ré pretende é a anulação do contrato celebrado (...) por se tratar de uma compra e venda de coisa defeituosa. 0 artigo 913.° n.° 1 do CC refere: Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes (...) contudo, o vários meios jurídicos facultados ao comprado de coisa defeituosa, não podem ser exercidos de forma aleatória ou discricionária, os mesmo acham-se estruturados de forma sequencial e escalonada. (...) o comprador que tiver adquirido a coisa com defeito pode solicitar a anulação do contrato, por erro ou dolo, desde que se verifiquem, no caso concreto, os requisitos legais da anulabilidade (...) em caso de erro exige-se a essencialidade e a cognoscibilidade dessa essencialidade do erro para o declaratário (...) em caso dolo, basta que a o dolo tenha sido determinante da vontade do declarante (...) ora tais factos não foram sequer alegados pela ré a quem incumbia o ónus de alegação e prova dos mesmos".

Nestes termos, nos mais de Direito deve ser revogado o acórdão proferido na Relação de …, mantendo-se a decisão proferida na primeira instância…».


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Respondeu a recorrida oferendo o merecimento dos autos.


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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[2], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[3], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do  novo Cód. Proc. Civil).

Das conclusões acabadas de transcrever decorre que a questão objecto do recurso se limita a saber se no caso ocorre excepção de não cumprimento e se era lícito ao Tribunal recorrido conhecer da mesma.


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Dos factos

Nas instâncias foram considerados provados os seguintes factos:

«1. A autora é uma sociedade que se dedica com carácter habitual e fins lucrativos, ao comércio por grosso e a retalho de máquinas agrícolas e industriais, material de floresta e jardim, ciclomotores, quadriciclos, veículos automóveis ligeiros e pesados, peças para todo o tipo de material comercializado; oficina de reparação; indústria de serralharia, construção de estruturas metálicas e sua aplicação e montagem; comércio por grosso e a retalho de equipamentos de energias renováveis.

2. A ré é uma sociedade que tem como objeto representações têxteis, comercialização de artigos de papel, produtos auxiliares e corantes têxteis.

3. No âmbito da atividade referida em 1), a autora instala equipamentos de captação de água, conhecidos por moinhos de vento.

4. A ré adquiriu à autora um Moinho de Vento 3…2, Galvanizado PFL, Série n.º 0…6 e uma Caixa de Água «Tipo Taça» Inox Pintada, pelo preço de EUR 56.659,00.

5. A autora procedeu à instalação dos equipamentos referidos em 4), de modo adequado, após abertura de furo artesiano para o efeito, realizada por terceiro, em local da escolha deste.

6. Iniciada a produção industrial pela ré com a água obtida através dos equipamentos referidos em 4), verificou-se que a qualidade dos produtos produzidos ficava alterada, quer na coloração, quer através de resíduos depositados no fundo da embalagem.

7. Em virtude do referido em 6) diversos clientes da ré reclamaram dos produtos.

8. A ré reclamou de tal facto à autora e, em consequência, foi aberto um segundo furo, noutro lugar, mas a situação manteve-se inalterada.

9. O equipamento referido em 4) encontra-se em boas condições de funcionamento e destina-se a captar a água existente no furo, sem qualquer intervenção na qualidade da água.

10. A água captada através do equipamento referido em 4) destinava-se à produção industrial, pela ré, de produtos destinados ao ramo têxtil.

11. A água captada através do equipamento referido em 4) é distinta da água da rede pública e não tem a qualidade necessária para os fins industriais referidos em 10).

12. Em virtude do referido em 11), a ré encontra-se impossibilitada de utilizar o referido equipamento para os fins referidos em 10).

13. Para pagamento do montante referido em 4) a autora emitiu à ré a fatura nº 21…29, datada de 31/12/2010, com data de vencimento em 30/01/2011.

14. A ré procedeu ao pagamento parcial da quantia referida em 4), encontrando-se ainda em dívida a quantia de EUR 27.854,21, a título de capital.

15. A autora garantiu à ré que a água captada através da estrutura referida em 4) teria a qualidade necessária para os fins industriais a que se destinava.


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Do Direito

Excepção do não cumprimento do contrato.

A Recorrente defende que a Relação fez uma incorrecta aplicação do direito ao considerar que dos factos provados e em particular do facto descrito sob o nº 15 (alegado pela R. na sua oposição) decorria uma situação de excepção de não cumprimento. Alega que não se verifica qualquer mora creditoris, porquanto a A. cumpriu integralmente aquilo a que se obrigou e o equipamento que forneceu e cujo preço reclama na presente acção, não padece de qualquer defeito que afecte o seu bom funcionamento.

As instâncias concluíram não haver qualquer fundamento para a anulação de negócio e julgaram os pedidos reconvencionais improcedentes. Divergiram quanto ao desfecho da acção, porquanto o Tribunal da Relação considerou que a matéria de facto provada, configurava uma excepção de não cumprimento e que apesar da R. não ter invocado expressamente o n.º 1 do artigo 428.º (exceção de não cumprimento de contrato) do Código Civil, nada impedia que se declarasse verificada essa excepção, já que era esse o efeito prático e jurídico pretendido pela R. ao deduzir a contestação, embora não tivesse feito a qualificação jurídica certa, sendo o Tribunal «livre no que respeita à qualificação dos factos alegados, nos termos do n.º 3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe que «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito» nada impedia que qualificasse a situação como de excepção de não cumprimento do contrato.

A excepção de incumprimento é, no dizer de Alves Velho – Ac. do STJ de 16-3/2010, proc . nº 97/2002.L1.S1 - uma verdadeira excepção dilatória de direito material, mas peremptória na classificação do art. 493º-3 CPC. Mas tal excepção, de direito material e peremptória, tem natureza disponível, não é de conhecimento oficioso, devendo a respectiva factualidade integradora ser alegada na contestação, sob pena de preclusão – arts. 487º, 489º e 496º, todos do CPC – correspondentes aos art.ºs 571º, 573º e 579º do Novo CPC - (cfr., no mesmo sentido, CALVÃO DA SILVA, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 334; JOSÉ J. ABRANTES, “A Excepção de não Cumprimento do Contrato…”, 148 e ss.; LEBRE DE FREITAS “CPC, Anotado”, vol. 2º, 314). No mesmo sentido veja-se Ac. do STJ de 16-6/2015, proc. nº 3309/08.1TJVNF.G1.S1, relatado por Fonseca Ramos, onde observa que «a exceptio inadimpleti contractus permite ao excipiente não realizar a prestação a que se encontra adstrito (que tanto pode ser uma prestação de coisa, como uma prestação de facto), enquanto a outra parte não efectuar a contraprestação no contrato bilateral ou sinalagmático que a ambos vincula» e reafirma que «A exceptio não é de conhecimento oficioso, carece de ser invocada pela parte de que dela pretende beneficiar». Também é esse o nosso entendimento.

No caso sub judicio a R. não invocou expressamente a exceptio, nem fez qualquer referência ao preceito legal que a contempla. Aliás na sua oposição (que não na reconvenção) não fez referência a qualquer preceito legal, nem se preocupou em dar cumprimento às obrigações impostas no art.º 572º do CPC, designadamente de individualizar e especificar as excepções. Mas isso não significa que a defesa não tenha sido feita por via de excepção ou que essa defesa não possa ser considerada como tal. Na verdade desde que os factos integradores da excepção constem da contestação e o efeito pratico/jurídico tenha sido pedido, tem de se considerar validamente invocada a excepção.

Analisando quanto se encontra vertido na contestação-reconvenção, onde deve ser deduzida toda a defesa (art.º 573º do CPC) e expostas as razões de facto e de direito, com especificação das excepções, entre as quais as excepções de direito substantivo, peremptórias ou dilatórias, cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado – arts. 571º, 572º, 576º-1 e 3 e 583º, todos do CPC – verifica-se que a R., alegou que o fornecimento e instalação do equipamento de extracção de água constante da factura, pressupunha que a água «a obter e a extrair do furo, pela forma proposta pela requerente, seria igual à da rede pública» não no sentido de ser potável, mas sim de permitir a sua utilização «para os fins industriais da oponente, para fabrico de produtos destinados ao sector têxtil». Mais alegou que feito um primeiro furo e constatando-se que a qualidade da água não servia aos fins visados pela R., a A. contratou a empresa que abriu o primeiro furo para abrir um segundo furo, cuja água produzida se revelou igualmente imprópria para os ditos fins.

Sobre esta matéria vem provado que efectivamente 

«A autora garantiu à ré que a água captada através da estrutura referida em 4) teria a qualidade necessária para os fins industriais a que se destinava» - facto nº 15 ;

que «A água captada através do equipamento referido em 4) é distinta da água da rede pública e não tem a qualidade necessária para os fins industriais referidos em 10) »- Facto nº 11 ;

«em virtude do referido em 11), a ré encontra-se impossibilitada de utilizar o referido equipamento para os fins referidos em 10)» - Facto nº 12 .

A R. invoca que a A. lhe prestou um serviço de «forma defeituosa» e que nessas circunstâncias o equipamento fornecido é inútil e não serve para os fins que pretendia e que eram do conhecimento da A., sendo que esta sabia que se a água não tivesse as qualidades necessárias ao fim visado, a construção e montagem da estrutura de capatação não interessava à R., e daqui sustenta a improcedência da acção com base numa alegada nulidade do negócio de onde assenta o pedido reconvencional.

Toda a contestação da R., assenta na alegação de factos tendentes a demonstrar que a A. não cumpriu a obrigação contratual de assegurar que a qualidade da água a extrair do furo era apta ao fim a que a R. a destinava, sendo certo que a A., sabia que essa era uma condição essencial do negócio. Daí que a R. pedisse a improcedência da acção. Mas na sua contestação, que nada tem de modular, a R. , também contesta a obrigação de pagar precisamente porque a A. ainda não cumpriu o que se obrigou e daí que logo no inicio da contestação o afirme ao dizer que ficou surpreendida com o pedido da A., quando esta sabia que a falta de pagamento se devia ao facto de ela ainda não ter cumprido aquilo a que se obrigara – garantir que a água teria as qualidades necessárias ao fim visado. É verdade que o fez com argumento jurídico assente na alegada anulabilidade do negócio. Porém, como bem se observa no acórdão recorrido, o Tribunal não está vinculado à qualificação jurídica que as partes deram aos factos, nem «à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito» pertinentes. Trata-se de um princípio de Direito processual, que remonta ao Direito romano e tem consagração em dois aforismos «iura novit curia» e «da mihi factum, dabo tibi ius». Daquela época trazem a carga com a qual ainda hoje se nos apresentam: às partes compete alegar e provar os factos alegados e em formular correctamente o pedido, ao juiz cabe, a partir do que ficou provado, aplicar o direito, ou seja, subsumir ao caso concreto a norma jurídica mais adequada (as normas jurídicas mais adequadas).

No caso, os factos acima descritos sob os nºs 11,12 e 15 não deixam margem para duvidar de que a A., ainda não cumpriu integralmente o contrato a que se obrigara e que aquilo que falta cumprir é essencial à concretização do objectivo que motivou a R. a celebrar o negócio com a A.. Tais factos foram alegados pela R., que também invocou o efeito pretendido de, por ora nada dever à A. e por isso a acção dever improceder. Entendemos assim que ainda que de forma imperfeita foi invocada pela R., a excepção de não cumprimento e por isso nada impedia o tribunal recorrido de dela tomar conhecimento e de aplicar o pertinente direito.

A excepção do não cumprimento do contrato traduz-se na recusa de execução da prestação por um dos contraentes, em contrato bilateral, quando o outro a reclama, sem, por sua vez, ter ele próprio realizado a respectiva contra prestação – art. 428º C. Civil.

Ao opor a exceptio o excipiente suspende a execução da prestação a que está adstrito até à realização da contraprestação pela outra parte, colocando-se numa posição de recusa provisória de cumprimento, que o direito acolhe como uma causa justificativa de incumprimento em homenagem ao princípio da simultaneidade do cumprimento das obrigações recíprocas que nos contratos sinalagmáticos são também reciprocamente causais.

Consequentemente, oposta a excepção, o excipiens vê suspensa a exigibilidade da sua prestação, suspensão que se manterá enquanto se mantiver a posição de recusa do outro contraente que deu causa à invocação da exceptio.

Trata-se, assim, de uma recusa temporária do devedor, perante um credor que também ainda não cumpriu, que, por essa via, retarda legitimamente o cumprimento enquanto a outra parte no sinalagma contratual também não realizar a prestação a que está adstrita.

O cumprimento defeituoso integra um dos modos de não cumprimento das obrigações, que permite ao credor da prestação imperfeita o recurso à excepção do não cumprimento do contrato (P. ROMANO MARTINEZ, “Cumprimento Defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada”, 324). Não se tratando de um incumprimento total, mas de uma prestação executada deficientemente, ocorre, então a denominada “exceptio non rite adimpleti contractus”.

No caso, a prestação da Recorrente, revelou-se uma prestação defeituosa ou mal executada, pois que não correspondeu à efectivamente devida. É, assim, seguro que a Autora não cumpriu a prestação a que estava adstrita contratualmente, encontrando-se demonstrada a desconformidade entre a prestação devida e a realmente efectuada.

Assim a R. só estará obrigada a pagar o preço reclamado pela A. quando esta realizar integralmente a prestação a que se obrigou, no caso, proporcionar à R. uma água com a qualidade necessária ao fim a que esta a destinava.

Não merece pois qualquer censura o acórdão da Relação.

Concluindo

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Notifique.


Lisboa, em 22 de novembro de 2018.

José Manuel Bernardo Domingos (Relator)

João Luís Marques Bernardo

Fernando Oliveira Vasconcelos

__________

[1] Parcialmente transcrito do acórdão recorrido.
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.