Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RICARDO COSTA | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO URBANO ARRENDATÁRIO AÇÃO DE PREFERÊNCIA DIREITO DE PREFERÊNCIA DIREITO POTESTATIVO EXECUÇÃO ESPECÍFICA DEPÓSITO DO PREÇO PRAZO DE CADUCIDADE CADUCIDADE DA AÇÃO DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DECLARAÇÃO COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL EFICÁCIA RETROATIVA | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 05/31/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | REVISTA IMPROCEDENTE. | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | I - As preferências legais atribuídas ao arrendatário pelo art. 1091.º do CC encontram na acção de preferência consagrada no art. 1410.º do CC o regime especial para o preferente sanar a violação da preferência dotada de eficácia erga omnes, nomeadamente por alienação a terceiro depois de aceite a comunicação-notificação para preferir no negócio transmissivo da coisa, e desfrutar (pelo menos na fase de reivindicação judicial) de um direito potestativo que lhe permite fazer seu o negócio realizado em incumprimento (ou cumprimento defeituoso) da preferência, convertida em vinculação à celebração do contrato de forma válida e eficaz, de modo a haver para si o “bem” - coisa alienada mediante o pagamento do preço da alienação e a fazer-se substituir ou subrogar ao adquirente, com efeito retroactivo, no contrato celebrado com o obrigado à preferência. II - A aplicação deste regime especial nas preferências legais preclude a alternativa de execução específica assente no art. 830.º, n.º 1, do CC, tendo como pressuposto a qualificação da comunicação-proposta e aceitação em exercício do direito de preferência como promessa bilateral, uma vez que este regime é claramente absorvido pelo regime próprio da preferência legal: o preferente legal é mais do que um promitente-comprador (posição adequada às preferências convencionais meramente obrigacionais) e beneficia, desde logo, do referido direito potestativo (constitutivo) de fazer valer em juízo o direito sem natureza real que incide sobre um contrato com a finalidade de conseguir, à custa de um terceiro, a execução específica da prestação, que o vinculado à preferência não cumpriu, de, em igualdade de condições, realizar o negócio com o preferente interessado em fazer valer o seu direito previamente aceite. III - O prazo legal estatuído pelo art. 1410.º, n.º 1, do CC, para o depósito do “preço devido” constitui um prazo de caducidade da acção enquanto sua condição de procedência (arts. 298.º, n.º 2, 333.º, n.º 2, 303.º do CC, e 576.º, n.º 3, do CPC). IV - A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória e geral, do n.º 8 do art. 1091.º do CC (“No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições: O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão (...).”), por força do acórdão do TC n.º 299/2020, de 16-06, implica a invalidade da norma respectiva e a extinção ex nunc do direito legal de preferência que se atribuía (art. 282.º, n.º 1, da CRP). | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 4354/20.4T8ALM.L1.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I) RELATÓRIO 1. AA propôs acção declarativa constitutiva sob a forma de processo comum contra BB e CC, casados no regime de comunhão de adquiridos, e «Royal Pearl, Investimentos Unipessoal, Lda.», pedindo que (i) sejam os Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade da Autora em adquirir a fracção do imóvel, identificado, de que é arrendatária; (ii) seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial do 1.º Réu, promitente-vendedor, nos termos do art. 830º, 1, do CCiv.; (iii) seja o 1.º Réu condenado a constituir o prédio em propriedade horizontal; (iv) seja ordenada a substituição da sociedade 2.ª Ré sociedade na titularidade da referida fracção, e consequente substituição em sede de registo predial desta pela Autora, cancelando-se o registo eventualmente existente a favor da 2.ª Ré; (v) seja reconhecido o direito de retenção da referida fracção que assiste à Autora. 2. Os Réus BB e «Royal Pearl» apresentaram Contestação, defendendo-se por excepção (falta de depósito em tempo do preço devido; absolvição do pedido) e por impugnação, concluindo pela improcedência da acção. 3. Em sede de audiência prévia, foi proferido saneador-sentença, na qual o Juiz ... do Juízo Central Cível ..., julgando da excepção de caducidade por falta de depósito do preço nos termos do art. 1410º, 1, do CCiv., determinou a sua procedência, o que fez decidir pela absolvição dos Réus dos pedidos contra eles formulados pela Autora (art. 576º, 1 e 3, CPC), mostrando-se inútil o conhecimento das restantes quesões, decidindo a final pela improcedência da acção. 4. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão, no qual se rejeitou a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e, apreciadas as questões de direito – “saber se a comunicação para preferência configura uma proposta contratual, irrevogável depois de ser recebida pelo destinatário ou de ser dele conhecida”; “saber se é possível a execução específica de fração prometida vender integrada em prédio alienado a terceiro” –, se julgou improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida, com fundamentação diversa e registando-se voto de vencido do Juiz Desembargador 2.º Adjunto. 5. Novamente sem se conformar, a Autora interpôs recurso de revista para o STJ, apresentando a finalizar as suas alegações as Conclusões que se transcrevem: “I. O contrato-promessa existe e está reduzido a escrito constituído pela comunicação assinada pelo obrigado da preferência e a aceitação assinada pelo preferente, que se verificam no caso presente, tornando as declarações irrevogáveis, e que fazem prova da existência do contrato-promessa – art. 410.º, n.º 2 e 230.º do Código Civil, ficando o vendedor obrigado a alienar a coisa ao preferente. II. A aceitação por parte do preferente vincula o obrigado e, igualmente, o próprio à realização do contrato, nos termos do projeto e do clausulado transmitido. - cfr. Ac. do STJ de 27/11/2018, Proc. 14589/17.1T8PRT.P1.S1. Relator: Cabral Tavares. III. M. Henrique Mesquita, em Obrigações Reais e Ónus Reais, págs. 209 a 213 e notas 131,132 e 137 afirma, essencialmente, que da declaração do preferente de que pretende exercer o seu direito resulta para o obrigado à preferência a obrigação de celebração do contrato. IV. Compreendendo a obrigação de preferência uma obrigação de celebração do contrato que é objecto, quando o vinculado exprima a decisão da sua celebração e do respectivo conteúdo clausular, também o preferente pode recorrer ao instrumento do art.º 830.º do Código Civil para obter a sentença substitutiva do título contratual, se o obrigado não celebrar com ele, espontaneamente, o contrato devido. – cfr. M. Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, págs. 213 e 214, nota 137. V. Segundo Ana Prata (op. cit., pág. 899), “compreendendo a obrigação de preferência – e tanto a legal quanto a contratual - uma obrigação de celebração do contrato que é seu objecto, quando o vinculado exprima a decisão da sua celebração e do respectivo conteúdo clausular, também o preferente pode recorrer ao instrumento do art.º 830.º do Código Civil para obter a sentença substitutiva do título contratual, se o obrigado não celebrar com ele espontaneamente o contrato devido. Também aqui há obrigação de celebrar certo contrato, emergente de fonte voluntária ou da lei, pelo que também aqui se justifica, em aplicação direta - se a fonte do direito de preferência for convencional – ou analógica – se a sua fonte for legal - o recurso à execução específica.” VI. A obrigação de preferência é uma obrigação de celebração do contrato que é objecto sendo legítimo ao preferente recorrer à Execução específica. VII. E bem assim decidiu o ACÓRDÃO RECORRIDO, na sua CONCLUSÃO IV: IV - O obrigado à preferência fica adstrito à celebração do contrato que é seu objeto, uma vez que decida contratar e que o preferente declare querer exercer o seu direito, pelo que pode recorrer à execução específica para exercer o seu direito à conclusão do contrato. VIII. Decorre dos FACTOS PROVADOS que os Recorridos, ao procederem ao negócio de alienação da fração prometida à Recorrente, agiram de má-fé, pois bem sabiam da existência do contrato-promessa celebrado entre o Recorrido BB e a Recorrente. IX. A Recorrente continua interessada na aquisição da fração em que reside, em cumprimento do contrato-promessa que em devido tempo celebrou com o Recorrido BB. X. Pelo que é sua intenção obter uma sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, através da execução específica do contrato-promessa. XI. A Recorrente registou a ação de execução específica no dia em que esta deu entrada em juízo, isto é, em 20/09/2020, mantendo-se a mesma válida, por força do artigo 92.º, n.º 1-a) e n.º 11 do Código do Registo Predial. XII. O registo de aquisição a favor da Recorrida ROYAL PEARL LDA., provisório por natureza, data de 11/09/2020, e não tendo sido renovado, caducou, o que vale por dizer que não existe. XIII. “O direito de execução específica pode adquirir, e adquire, eficácia real (…) através do registo da ação judicial em que seja deduzido” – cfr. Galvão Teles, em Contrato-promessa de compra e venda. Prova do contrato e efeitos da execução específica em relação a terceiro, Parecer na Colectânea de Jurisprudência, Ano IX – 1984, Tomo 4, pág. 9. XIV. Este registo tem efeitos de oponibilidade a terceiros, conforme dispõe o artigo 5.º, n.º 1 doCRP e,emvirtudedoprincípioda prioridadeconsagrado noartigo6.º destediploma legal, “o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem, relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos”. XV. “[as inscrições provisórias] representam como que uma reserva de lugar, permitindo ao beneficiário estar ao abrigo de quaisquer registos posteriores” – cfr. Oliveira Ascenção, em Direitos Reais, Lisboa, 1971, pág. 339. XVI. “I - É através do registo da ação que o autor cumpre o objectivo de garantir antecipadamente a oponibilidade a terceiros da providência ou providências que o tribunal venha a decretar. II - A função do registo da ação é, pois, a de assegurar ao autor que os efeitos materiais da sentença vincularão todos aqueles que, não tendo registado a aquisição antes do registo da ação, hajam adquirido ou venham a adquirir sobre a coisa litigiosa direitos incompatíveis com aquele que o autor pretende fazer valer em juízo.” – cfr. Ac. do TRG de 12/10/2017, Proc. 1718/15.9T8BRG.G1. Relator: Maria dos Anjos Nogueira. XVII. Dispõe o artigo 263.º, n.º 3 do CPC que “A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação.” XVIII. O Acórdão recorrido fez uma errada aplicação das seguintes normas: a) Artigo 263.º, n.º 3 do Código de Processo Civil; b) Artigo 5.º, n.º 1 e 6.º do Código de Registo Predial. XIX. Como decorre dos ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., pág. 383), se se regista a ação, a sentença favorável que nela se obtiver tem uma eficácia superior à que normalmente deriva do caso julgado: além de vincular as partes, produz ainda efeitos contra todo aquele que adquirirem sobre a coisa litigiosa, durante a pendência da ação. XX. Deve a ação de execuçãoespecífica ser julgada procedente e reconhecida a legitimidade da Recorrente para o efeito. XXI. Deve a CONCLUSÃO V DO ACÓRDÃO RECORRIDO ser substituída por outra que julgue procedente a ação de execução específica, e a legitimidade da Recorrente para o efeito. XXII. Devem os efeitos da decisão a proferir retroagir à data do registo da ação de execução específica. XXIII. Bem como deve o Recorrido BB ser condenado a constituir o prédio em propriedade horizontal, de modo a celebrar com a Recorrente o contrato definitivo de compra evendadafração prometida venderaesta, dando cumprimentoao contrato-promessa celebrado.” * O Réu e Recorrido BB veio apresentar contra-alegações, concluindo assim: “I. A recorrente era inquilina do 1º E, do prédio urbano que, embora materialmente dividido em fracções independentes entre si que o recorrido destinava a arrendamento, não se encontrava constituído em regime de propriedade horizontal. II. Em inícios do ano de 2020, altura em que o recorrido negociou a venda do prédio à co-recorrida, na decorrência das alterações introduzidas pela Lei n.º 64/2018, de 29.10, o Código Civil, no seu art. 1091º, n.os 8 e 9, determinava que o inquilino, titular de contrato de arrendamento relativo a parte de prédio não constituído em regime de propriedade horizontal, tinha direito de preferência nos mesmo termos previsto para o arrendatário de fracção autónoma – Cf. A, dos factos provados, da sentença. III. Porque à data se encontrava legalmente obrigado e apenas por isso, o recorrido comunicou à recorrente, por carta de 18.02.2020, o projecto de venda para efeitos de exercício do direito de preferência na aquisição – Cf. G e BB, dos factos provados, da sentença. IV. Ainda antes de celebrada a escritura de compra e venda com a co-recorrida Royal Pearl, veio a ser proferido o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 18/91, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil (CC), na redacção dada pela Lei n.º 64/2018, de 29.10. V. A causa de pedir assenta no facto do recorrido ter vendido à co-recorrida o prédio em propriedade vertical de que a recorrente, em parte, é arrendatária, mesmo depois desta, na sequência de comunicação para o exercício do direito de preferência que lhe foi endereçada pelo recorrido, o ter informado que pretendia exercer tal direito de preferência. VI. O pedido é típico de uma acção de preferência, nomeadamente: “(…) a) Que sejam os Réus condenados a reconhecer o direito de preferência da Autora em adquirir a fração do imóvel de que é arrendatária, melhor identificado supra; b) Que seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial do 1.º Réu, promitente-vendedor, nos termos do artigo 830.º, n.º 1 do CC; c) Para o efeito, que seja o 1.º Réu condenado a constituir o prédio em propriedade horizontal; d) Que seja ordenada substituição da 2.ª Ré na titularidade da referida fracção, e consequente substituição em sede de registo predial desta pela Autora, cancelando-se o registo eventualmente existente a favor da 2.ª Ré; e) Que seja reconhecido odireitoderetençãodareferida fração queassisteàAutora.” VII. A acção foi proposta não apenas contra o recorrente, vendedor, mas também contra a co-recorrida, compradora – configurando-se a legitimidade como própria de uma acção de preferência. VIII. Nos Arts. 96º e 166º, da petição inicial, alude ao depósito do preço [a efectuar nos termos do art. 1410º, do Código Civil (CC)] e no art. 174º, da petição inicial, se propõe a prestar caução ou a consignar em depósito o preço. IX. Estamos perante uma acção de preferência e não uma acção para o exercício do direito de execução específica. X. Como tal a recorrente estava obrigada a depositar o preço devido no prazo de 15 dias contados da data da propositura da acção – Cf. art. 1410º, do CC) e não o tendo não se poderá considerar satisfeito o requisito substantivo respeitante ao exercício do direito peticionado. XI. Mais, o tribunal a quo andou mal ao reconduzir a acção de preferência à acção de execução específica, como fez, sendo certo que a primeira afasta a segunda. XII. A comunicação para exercício de direito de preferência efectuada ao abrigo de uma obrigaçãolegal e a respectiva aceitação não podem transmutar uma acção de preferência numa acção de execução específica, principalmente quando o prédio objecto do direito de preferência foi já vendido a terceiros. XIII. Mas mais ainda, a comunicação para exercício do direito de preferência foi efectuada no estrito cumprimento da obrigação legal prevista no art. 1091º, n.º 8, do CC, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 64/2018, de 29.10. XIV. Tendo sido declarada inconstitucional (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de18/91), a norma prevista no n.º 8, do art.º 1091º, do CC, deixou de existir – Cf. art. 282º, da Constituição da República Portuguesa. XV. À data da venda do prédio, entre o recorrido e a co-recorrida, inexistia norma legal que obrigava o recorrido a dar preferência à recorrente, tudo se passando como se a obrigação nunca tivesse existido, ficando assim eliminados todos os actos materiais praticados que naquela obrigação assentaram. XVI. Considerar que, mesmo depois de declarada ainconstitucionalidade da norma contida no n.º 8, do art. 1091º, do CC, o conjunto de comunicações trocadas entre o recorrido e a recorrente legitima o direito à acção de preferência ou à execução específica,será permitir aquilo que aquela declaração de inconstitucionalidade deixou de permitir. XVII. Por isso foi lavrado voto de vencido no acórdão recorrido: “Com a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do art. 1091/8 do CC, decorrente do acórdão do TC 299/2020, de 16/06/2020, aquele direito deixou de existir na ordem jurídica (bem ou mal não interessa para aqui).” XVIII. Embora por motivos diferentesdaqueles que foram sufragados no acórdão orasindicado, o recurso terá de improceder.” * Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS 1. Objecto e admissibilidade Vistas as Conclusões, que delimitam a questão ou questões a serem reapreciadas nesta instância, urge tomar posição sobre a invocação da existência e da reivindicação de um direito de preferência legal, com recurso à acção de preferência do art. 1410º do CCiv., na aquisição de parte de imóvel sem propriedade horizontal de que a Autora gozaria como arrendatária e por força desta qualidade à data da comunicação da preferência pelo proprietário-senhorio. * Sem prejuízo da coincidência de julgados, não se aplica o impedimento da “dupla conformidade”, atentos os requisitos do art. 671º, 3, do CPC. 2. Factualidade assente pelas instâncias A – A Autora é legítima arrendatária da fracção 1.º-E do prédio urbano sito na Rua ..., ... ..., União de Freguesias ..., ..., ... e ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº. ...50 livro n.º ...6 e inscrito sob o artigo matricial n.º ...35. B – Desde pelo menos 01 de Março de 1964 que a Autora reside na referida fracção, cujo arrendatário ao tempo era o seu falecido marido DD, pagando pontualmente a renda devida. C – O óbito do marido da Autora foi devidamente comunicado, por carta, ao primitivo senhorio, BB, em 03/03/2011 e a um seu herdeiro em 28/06/2011, vendo ocorrido a transmissão do arrendamento por óbito do seu marido em 24 de Janeiro de 2011 para a ora Autora a partir de 03 de Março de 2011. D – Desde Agosto de 2018, na sequência do processo de inventário, passaram a ser senhorios da Autora o Réu BB e o seu irmão, conforme comunicação escrita que estes dirigiram à Autora. E – Em resposta, a Autora solicitou ao Réu BB a emissão dos recibos de renda desde Janeiro de 2010, que de resto já havia solicitado aos anteriores senhorios, sem êxito, e que até hoje não possui. F – Em Dezembro de 2019, a renda da fracção foi actualizada, conforme cartas trocadas entre a Autora e os seus senhorios. G – O Réu BB, na qualidade de proprietário e senhorio do prédio, dirigiu à Autora uma carta em 18/02/2020, junta a folhas 34 verso e 35 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, com o seguinte teor: “(…) Assunto: Direito de Preferência Exmo(a) Senhor(a): Venho pela presente, na qualidade de proprietário do prédio urbano, sito na Rua ..., freguesia ..., ..., ... e ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo nº ...35 descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...13, freguesia ..., ..., ... e ..., dar conhecimento a V.Exa que irei proceder à venda do mesmo. Não estando o prédio em regime de propriedade horizontal e sendo V.Exa inquilino da habitação correspondente ao Primeiro esquerdo, informo, para efeitos do exercício do direito de preferência que: 1. O prédio será vendido pelo valor global de 550 000€ da forma a seguir discriminada: a. Cave direita – permilagem de 107/1000, correspondente ao preço de 59.057,88€; b. Cave esquerda – permilagem de 107/1000, correspondente ao preço de 59.057,88€; c. Rés-do-chão direito – permilagem de 107/1000, correspondente ao preço de 59.057,88€; d. Rés-do-chão esquerdo – permilagem de 107/1000, correspondente ao preço de 59.057,88€ e. Primeiro direito – permilagem de 130/1000, correspondente ao preço de 71.531,79€ f. Primeiro esquerdo – permilagem de 155/1000, correspondente ao preço de 85.352,44€ g. Segundo direito – permilagem de 130/1000, correspondente ao preço de 71.531,79€; h. Segundo esquerdo – permilagem de 155/1000, correspondente ao preço de 85.352,44€; 2. O preço será pago da seguinte forma: a. 50.000,00€ foram já pagos no dia 13.02.2020, a título de sinal global devido pela venda da totalidade do prédio e em cumprimento de contrato-promessa de compra e venda; b. O remanescente do montante de 500.000,00€ será pago através de cheque bancário ou cheque visado na data da celebração da escritura de compra e venda. 3. A escritura será realizada no prazo de 45 dias contados do dia 13.02.2020, cumprindo ao comprador comunicar, por carta registada com aviso de recepção ou por qualquer meio idóneo, data, hora e local da realização da mesma, com uma antecedência mínima de 18 (dezoito) dias contínuos. 4. O comprador pagará todas as despesas respeitantes e emergentes da aquisição, nomeadamente, Registos Provisórios ou definitivos, Imposto Municipal sobre Transmissão Onerosa de Imóveis (IMT), Imposto de Selo, Escritura de Compra e Venda, ou documento equivalente, e demais emolumentos Notariais ou equivalentes. 5. A não haver preferência o prédio será vendido a Royal Peral – Investimentos Unipessoal, Lda, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o nº único de matrícula e pessoa colectiva ..., com sede na Rua ..., ..., ... .... 6. Sendo o prédio vendido na sua totalidade e não estando o mesmo no regime de propriedade horizontal, V.Exa. tem preferência na compra do local onde habita ou de todo o prédio conjuntamente com os demais inquilinos. Por último, informo V. Ex. que o exercício do direito de preferência deverá ser exercido, sob pena de caducidade, no prazo de 30 dias após a recepção da presente. (…)”. H – A Autora respondeu em 09/03/2020, manifestando a intenção de exercer tal direito, relativamente à fracção em que habita, “nas condições propostas pelo adquirente interessado”, disponibilizando-se para entrega de um sinal no valor de €7.750,00, na data de celebração de eventual contrato-promessa ou, em alternativa, proceder ao agendamento da celebração da escritura do contrato definitivo de compra e venda, logo que, para o efeito lhe fossem facultados os documentos necessários para tal, sendo que neste caso o pagamento total do preço seria efectuado em simultâneo com a referida escritura. I – Em 16/03/2020, o Réu BB entrou em contacto telefónico, através do seu telemóvel ...11, com a Autora para o telemóvel ...93 desta, tendo nesta comunicação telefónica, o Réu BB acusado a recepção da carta da Autora, e declarou o seguinte à Autora: “para não andarmos com correio para trás e para diante, vamos falando pelo telefone” e que iria proceder ao envio dos elementos necessários para a celebração da escritura do contrato definitivo de compra e venda da fracção, assim dispensando a celebração de um contrato-promessa por escrito. E que a escritura de compra e venda da fracção seria celebrada em simultâneo com a escritura de compra e venda do restante imóvel, sendo embora imprevisível a sua data, devido à situação decorrente da crise pandémica em curso. J – O Réu BB, em Maio de 2020, por comunicação telefónica solicitou à Autora um endereço electrónico, a fim de lhe remeter as informações necessárias para os procedimentos prévios à celebração do contrato, cuja data ainda desconhecia. L – Em 05/06/2020, a Autora recebeu uma comunicação electrónica do Réu BB, na qual informa “que apenas deve proceder ao pagamento do IMT e imposto de selo 2/3 dias antes da realização da escritura (quando tiver a data da mesma informo-a)”. M – Em 20/06/2020, a Autora tenha respondido ao Réu BB pela mesma via: “Fico a aguardar a indicação do dia, hora e local da realização da escritura, para proceder em conformidade”. N – No dia 16/07/2020, uma quinta-feira, pelas 16:00 horas, o Réu BB informou a Autora telefonicamente que a escritura estava marcada para o dia 20/07/2020, às 14:30 horas, a segunda-feira seguinte, embora ainda não soubesse o local da mesma. O – Cerca de 30 minutos depois, às 16:43 horas, por intermédio de uma das filhas da Autora, cujo telemóvel tem o número ...05, o Réu BB voltou a ser contactado telefonicamente, a fim de reiterar que, não obstante a Autora ir envidar todos os esforços para proceder ao pagamento dos impostos devidos e à disponibilização do montante necessário para pagar o preço, tal se revelava deveras improvável, face ao tempo útil disponível para tal, que era apenas o dia seguinte. P) Na sequência dessa comunicação, o Réu BB endereçou um SMS à filha da Autora disponibilizando o contacto do mediador imobiliário, Sr. EE – telemóvel nº ...27, no intuito de este poder auxiliar a desbloquear a questão do pagamento dos impostos devidos. Q) Às 17:11 horas do dia 17/07/2020, via WhatsApp, o Sr. EE comunicou a morada do local de celebração da escritura, e às 17:25 horas foi solicitada a freguesia de nascimento da Autora. R) Às 17:04 horas desse dia 17/07/2020, a filha da Autora contactou o Réu BB, dando conta que aparentemente a questão da liquidação dos impostos estaria ultrapassada, mas ainda não tinha a certeza da disponibilização do valor para pagamento do preço à hora agendada para a escritura. S) Na sequência dessa comunicação, às 17:12 horas, o Réu BB solicitou informação sobre a freguesia de naturalidade da Autora, que lhe foi transmitida. T) A Autora no dia 20/07/2020 comunicou telefonicamente ao Réu BB, às 9:30 horas, que não tinha ainda a quantia e a quem foram adiantadas duas alternativas: a emissão de um cheque simples, a apresentar na hora agendada para a escritura (14:30 horas desse dia) ou o adiamento da escritura para o dia seguinte ou posterior. U) No dia 20/07/2020, às 9:37 horas o Réu BB foi informado telefonicamente da impossibilidade da Autora de efectuar o pagamento do preço à hora marcada para a escritura, sendo certo que este pagamento poderia ser efectuada seguramente no dia seguinte, 21/07/2020, mediante entrega de cheque bancário. V) O Réu BB informou então que ia pensar na melhor solução, e voltaria ao contacto com a Autora a fim de a esclarecer quanto à decisão que tomasse. X) Às 13:23 horas e 13:24 horas, em virtude de não contacto do Réu, a Autora tentou entrar em contacto telefónico com o mesmo, mas sem sucesso. Z) A Autora voltou a tentar entrar em contacto telefónico com o Réu no dia 20/07/2020 ao fim da tarde e no dia 21/07/2020 da parte da manhã, sem sucesso, motivo pelo qual lhe endereçou, em 21/07/2020, uma comunicação electrónica. AA) Na mesma data e com o mesmo teor, a Autora remeteu ao Réu BB uma carta registada com aviso de recepção que foi devidamente recepcionada por este em 27/07/2020. BB) O Réu BB endereçou à Autora uma carta datada de 20/07/2020, remetida às 17:49 horas desse dia e que foi recepcionada pela A. em 23/07/2020, na qual dava a conhecer à Autora a “não concretização da sua preferência, em virtude do artigo que a fundamenta ter sido declarado inconstitucional”. CC) O Réu nunca invocou que teria um “prejuízo apreciável” pelo facto de ter de dar preferência à Autora na compra da sua fracção. DD) Não se conformando com tal, em 05/08/2020, a Autora enviou uma carta ao Réu BB, junta a folhas 50 a 51 dos autos, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde consta: “(…) Assunto: Marcação de escritura (2ª comunicação) Exmo. Senhor: BB, Dirijo-me a V.Exa. na qualidade de promitente compradora da fracção correspondente ao 1º-Esquerdo do prédio sito na Rua ..., ... ..., sobre o qual exerci o direito de preferência, tempestivamente, na qualidade de arrendatária na sequência da interpelação de V. Exa, em 18 Fevereiro de 2020, com vista a aquisição para habitação própria e permanente. Acuso a recepção, em 23/07/2020, da vossa comunicação datada de 20/07/2020, cujo teor se prende com a “lnconstitucionalidade do Direito de Preferência”. O devido respeito por entendimento diferente, o Acórdão do Tribunal Constitucional a que V. Exa alude nessa comunicação não tem aplicação no caso presente. Com efeito, o que existe entre nós é um contrato-promessa de compra e venda em da fração em apreço, que se consubstancia na sua proposta de venda feita em 18/02/2020 e na minha aceitação da mesma em 09/03/2020, com vista à celebração do contrato definitivo de compra e venda, na forma de escritura pública. Esta promessa de compra e venda foi entre nós confirmada repetidas vezes verbalmente, pese embora lhe tenha pedido a redução a escrito e pretendido pagar o sinal, o que foi recusado por V. Exa. Na verdade, na sua comunicação de 05/06/2020, via email: ... sua declaração de vontade é explicita ao dizer-me quando deveria pagar o IMT e o imposto de Selo, confirmando a venda do imóvel pelo valor de 85352,44€, a forma de pagamento e a indicação dos elementos de identificação dos vendedores: BB e CC, casados sob o regime da comunhão de adquiridos, à qual respondi, também por escrito, em 20/06/2020, aceitando as condições de compra da fracção acima referida. Não existe erro na declaração da vontade nem quanto o objecto e muito menos existe um impedimento para a constituição da propriedade horizontal, sob a forma de escritura pública que é da responsabilidade dos vendedores e proprietários do prédio. Tendo presente que o prédio construído com a finalidade de ser vendido em fracções autónomas, tem subjacente a obrigação de o projecto conter todas as especificações necessárias à constituição da propriedade horizontal, neste sentido ver: al. f) – (v), do nº 15 do Anexo I respeitante aos elementos instrutórios a que se refere o artº. 2º nº 1 da Portaria nº 113/2015, de 22/04, para os edifícios projectados que se destinem a ser constituídos em Propriedade Horizontal – que impõe a discriminação das partes do edifício correspondentes às várias fracções e partes comuns, valor relativo de cada fracção, expressa em percentagem ou em permilagem do valor total do prédio, caso se pretenda que o edifício fique sujeito ao regime da propriedade horizontal. Sendo certo que o documento passado pela Câmara Municipal que ateste que as fracções autónomas reúnem os requisitos legais para a constituição da propriedade horizontal só com as telas finais, se mostra insuficiente. Pelo que encontra-se V.Exa. obrigado a cumprir pontualmente com o contrato promessa de compra e venda celebrado entre nós, de acordo com o estabelecido no art. 410.º, nº 3, parte final. Assim, e com o intuito de proceder ao agendamento da celebração da escritura do contrato de compra e venda, venho por este meio reiterar que aguardo que me sejam facultados os documentos necessários para tal, e que já foram solicitados por mim em 21/07/2020, tendo V.Exa. recepcionado tal comunicação em 27/07/2020, bem como o título constitutivo da propriedade horizontal, no prazo de oito dias, após a recepção desta carta, a fim de ser indicada a data, hora e local para a celebração da escritura pública de compra e venda no prazo de quinze dias a contar da recepção dos documentos solicitados. Na expectativa de receber notícias em breve, e a documentação solicitada, subscrevo-me com os melhores cumprimentos. Atentamente, (AA)” EE) No dia 05 de Agosto de 2020 o Réu e a Ré Royal Pearl, Investimentos Unipessoal, Lda outorgaram documento particular autenticado através do qual o primeiro vendeu o prédio à segunda. 3. Fundamentação de direito 3.1. Da factualidade provada, que compete a este STJ subsumir no direito aplicável, o Réu BB, enquanto senhorio do imóvel sem propriedade horizontal, a que corresponde “parte” (como, digamos assim, unidade habitacional independente) em que a Autora era arrendatária, comunicou a esta a venda de todo o prédio a sociedade terceira (aqui Ré), para o efeito do exercício do direito de preferência enquanto arrendatário “na compra do local onde habita ou de todo o prédio conjuntamente com os demais inquilinos” – facto provado G). Este direito de preferência constituía à data da comunicação-notificação uma preferência legal; encontrava-se consagrado no art. 1091º, 8, do CCiv., introduzido pelo DL 64/2018, de 29 de Outubro, que assim prescrevia: «No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições: a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão; b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior; c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.» 3.2. Em resposta, a arrendatária aceitou exercer o direito de preferência comunicado, em 09/03/2020, relativamente à “fracção” (assim descrita nos factos) em que habita, “nas condições propostas pelo adquirente interessado” – ou seja, o pagamento do preço de 85.352,44€, correspondente ao 1.º Esquerdo – cfr. facto provado G) –, disponibilizando-se para entrega de um sinal no valor de €7.750,00, na data de celebração de eventual contrato-promessa ou, em alternativa, proceder ao agendamento da celebração da escritura do contrato definitivo de compra e venda, logo que, para o efeito lhe fossem facultados os documentos necessários para tal, sendo que neste caso o pagamento total do preço seria efectuado em simultâneo com a referida escritura – facto provado H). O proprietário e senhorio, em resposta, dispensou a proposta de realização de contrato-promessa, com entrega de sinal, optando, tendo em vista a compra e venda com preferência do adquirente dessa “quota-parte” do prédio (como vem referido no CCiv.), pela imediata celebração da escritura do contrato definitivo de compra e venda da referida “parte-unidade habitacional”, a ser celebrada juntamente com a escritura de compra e venda do restante imóvel – cfr. facto provado I). Daqui emerge que, atenta a surpreendida vontade comum das partes (art. 236º, 2, CCiv.), não houve celebração de qualquer contrato-promessa de compra e venda entre senhorio e arrendatário para a aquisição da “quota-parte ideal” do prédio urbano correspondente à habitação própria da arrendatária. Antes – assim julgamos – um típico processo de comunicação-notificação ao-do credor de um direito legal de preferência, com subsequente declaração de preferência, assumindo esta o significado de uma aceitação da proposta anterior de contrato pelo senhorio-proprietário vinculado legalmente ao direito de preferência do arrendatário, seguido do procedimento de formalização da aquisição da “quota-parte” preferida pela arrendatária no prédio urbano em que se integra. Por aqui se demonstra que ambas as partes manifestaram desde logo a vontade de uma vinculação definitiva, com a necessidade de observância da forma necessária para a validade integral do contrato a celebrar em execução da preferência. 3.3. A arrendatária aceitou exercer o direito de preferência no prazo legal e assim concedido pelo proprietário – 30 dias: cfr. factos provados G) e H); v. art. 1091º, 4, CCiv. 3.4. Decorre da factualidade que o preço devido seria pago na data da escritura pública – cfr. factos provados H) a P) e T) a U). 3.5. Mais tarde, o senhorio e proprietário comunicou à Autora a extinção do direito legal de preferência consagrado pelo n.º 8 do art. 1091º do CCiv., facto superveniente à data da comunicação para exercício do mesmo e sua aceitação, por força da declaração de inconstitucionalidade desse normativo; assim como vendeu o prédio à sociedade Ré – cfr. factos provados BB) e EE). 3.6. Remetendo o art. 1091º, 5, para o art. 1410º do CCiv., «com as necessárias adaptações», tal deve significar que pouco importa que se possa converter desde logo a comunicação-notificação e a declaração afirmativa da preferência em contrato-promessa relativo ao contrato definitivo – acima de tudo ponderável para as preferências convencionais com eficácia obrigacional, com protecção essencialmente indemnizatória[1] – para tutela do interesse do preferente em celebrar o contrato definitivo que aceitara (com observância da forma legal necessária). Este interesse está suficientemente protegido pelo recurso ao art. 1410º, 1, que, devidamente adaptado como é timbre nas preferências admitidas por lei, permite ao preferente legal (como também ao preferente convencional com eficácia real: art. 421º do CCiv.) desfrutar (pelo menos na fase de reivindicação judicial) de um direito potestativo habilitante a fazer seu o negócio realizado em incumprimento (ou cumprimento defeituoso, até mesmo formalmente) da preferência, convertida assim em vinculação à celebração do contrato de forma válida e eficaz, de modo a haver para si o “bem”-coisa alienada, mediante o pagamento do preço da alienação[2]. Nessas “adaptações” integra-se a serventia da referida “acção de preferência” para o preferente beneficiado por lei – que vê incumprida, por facto da alienação a terceiro, a sua aceitação da preferência atribuída por lei, pelo sujeito vinculado à comunicação da preferência nos termos do art. 416º, 1, do CCiv. e à conformação subjectiva do arrendatário como contraparte[3] – fazer seu o “bem” sobre o qual tinha preferência no negócio transmissivo desse mesmo “bem”-coisa. Ou seja, exercer o direito potestativo para fazer constituir um dever de celebrar um contrato e adquirir o “bem” no exercício da preferência e exercitável por via judicial – tendo em vista fazer-se substituir ou subrogar ao adquirente (a sociedade Ré) pela Autora, com efeito retroactivo, no contrato celebrado com o obrigado à preferência (cfr. facto provado EE). Isto, claro está, sem prejuízo da indemnização de danos causados por violação da boa fé e dos correspondentes deveres acessórios de conduta no procedimento de conclusão (também de ordem formal) do contrato aos quais se vincularam em razão da obrigação a que o obrigado à preferência se encontrava submetido. 3.7. Verifica-se que o pedido da Autora se configura servindo-se legitimamente do regime coercivo especial do art. 1410º, 1, sendo Réus o obrigado à preferência e o terceiro adquirente, a fim de afastar este terceiro adquirente e subingressar na posição da Ré sociedade na aquisição da referida “quota-parte” habitada como arrendatária preferente. Assim, deve ser precludida a eventual alternativa de execução específica assente no art. 830º, 1, do CCiv., tendo como pressuposto a qualificação da comunicação-proposta e aceitação em exercício do direito de preferência como promessa bilateral[4] – como dele se pretende fazer prevalecer o Recorrente. Acima de tudo o mais porque este regime do art. 830º é claramente absorvido (uma vez teleologicamente coincidente) pelo regime próprio da preferência legal: o preferente legal (dotado de um direito com eficácia erga omnes) é mais do que um promitente-comprador (posição adequada às preferências convencionais meramente obrigacionais, em que a convocação do art. 830º poderá ser avisada) e beneficia, desde logo, do referido direito potestativo (constitutivo) de fazer valer em juízo o – por muita doutrina vista como – direito real de aquisição proporcionado pela lei ou – mais correctamente visto como – o direito sem natureza real que incide sobre um contrato com a finalidade de conseguir, à custa de um terceiro, a execução específica da prestação, que o vinculado à preferência não cumpriu, de, em igualdade de condições, realizar o negócio com o preferente interessado em fazer valer o seu direito previamente aceite[5] –, de acordo com o regime especial do art. 1410º do CCiv. para o qual remetem as preferências legais. 3.8. Atento o regime do art. 1410º, 1, demandado pelo art. 1098º, 5, do CCiv., a Autora, como preferente legal à data, não depositou o preço devido no prazo legal: 15 dias após a propositura da acção. Assim resulta dos autos, assim foi invocado pelos Réus na sua contestação e assim foi sublinhado como fundamento do julgado pela decisão de 1.ª instância. A falta de depósito desse preço nesse prazo ulterior à instauração da acção é causa de caducidade do direito de preferência na aquisição, que se pretende reconhecer e exercer em detrimento do terceiro adquirente – é um prazo de caducidade, de acordo com a regra geral do art. 298º, 2, em conjugação com os arts. 333º, 2, e 303º do CCiv.[6] –, tal como acentuou a sentença proferida em 1.ª instância (absolvição do pedido: art. 576º, 3, CPC) –, o que, vista a tramitação dos autos da presente acção e tal omissão da Autora, determinaria sempre o falecimento do respectivo pedido. 3.9. Por outro lado – e decisivamente –, o direito legal de preferência que se aprecia nesta acção consagrou-se em norma que foi objecto de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória e geral, pelo Ac. do TC n.º 299/2020, de 18 de Junho[7]. De acordo com o art. 282º da CRP: «1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado. 2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infracção de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última. 3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido. 4. Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restritivo do que o previsto nos n.os 1 e 2.» Ora, aplicando o art. 282º, 1, da CRP, o n.º 8 do art. 1091º não produziu quaisquer efeitos desde 30 de Outubro de 2018, data da entrada em vigor da Lei 64/2018, de 29 de Outubro. Assim é porque a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral nesses precisos termos do art. 282º, 1, implica “vinculação geral” – para todos os órgãos constitucionais, tribunais e autoridades administrativas – e “força de lei” – tem valor normativo (semelhante ao das leis) para todas as pessoas singulares e colectivas (e poderes públicos) juridicamente afectadas nos seus direitos e obrigações pela norma declarada inconstitucional, fazendo com que todos os tribunais estejam obrigados a resolverem os processos pendentes “desaplicando” a norma considerada inconstitucional[8]. Logo, em face dessa declaração com efeito invalidatório, ou seja, com eliminação retroactiva da norma e dos seus efeitos (com salvaguarda de eventual “caso julgado”) – nulidade “ipso iure” – desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional[9] – neste contexto a 30 de Outubro de 2018 –, à data da comunicação da preferência a arrendatária deixou de ter qualquer benefício a título de preferência sobre «parte de prédio não constituído em propriedade horizontal» como se fosse arrendatário de fracção autónoma em prédio constituído em propriedade horizontal e o proprietário-senhorio deixou de ter qualquer obrigaço-vinculação a comunicar a preferência consagrada na norma depois declarada inconstitucional. Logo, cai sequencialmente toda a materialidade e efeitos pretendidos ao abrigo de um direito de preferência legal que é considerado como extinto ex nunc desde a sua criação[10], não podendo por isso recorrer-se, também, à acção do art. 1410º do CCiv. nos termos da remissão feita pelo art. 1091º, 5, do CCiv. O que faz cair, por si só e sem mais, toda e qualquer pretensão que por via desta acção de preferência quisesse realizar a Autora. Improcedem, pois, as Conclusões com que a Recorrente pretendia obter vencimento nesta instância. III) DECISÃO Em conformidade, nega-se a revista e, ainda que com fundamentação diversa, confirma-se o acórdão recorrido. Custas da revista pela Recorrente. STJ/Lisboa, 31 de Maio de 2023 Ricardo Costa (Relator) António Barateiro Martins Luís Espírito Santo SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC). __________________________________________________
|