Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A3881
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: CHEQUE
TÍTULO EXECUTIVO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
Nº do Documento: SJ200401190038816
Data do Acordão: 01/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 422/03
Data: 05/13/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. No âmbito das relações credor originário/devedor originário, e para execução da obrigação fundamental (causal), o cheque prescrito pode valer como título executivo, agora na veste de documento particular assinado pelo devedor.
2. Para isso, no entanto, é necessário que na petição executiva (não na contestação dos embargos à execução) o exequente alegue aquela obrigação e que esta não constitua um negócio jurídico formal.
3. O regime previsto no artº 458º do CC para as declarações unilaterais de reconhecimento de dívida só é válido nas relações estabeleci-das entre credor e devedor originários.
4. Assim, quem adquiriu um cheque prescrito por endosso do tomador não pode executá-lo contra o emitente a coberto dos artºs 46º, c), do CPC, e 458º do CC.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A", requereu em 26.9.01 uma execução ordinária para pagamento de quantia certa contra B com base num cheque de 2.500 contos por este sacado sobre uma conta de que é titular na agência de Leiria C.
O cheque foi emitido em 30.11.98 a favor de D, que posteriormente o endossou à exequente, e devolvido pelos serviços de compensação do Banco de Portugal em 12.5.99.
Na petição executiva a exequente alegou que o executado emitiu o cheque e entregou-o a D para pagamento de parte do preço devido pela venda que ela lhe fez de dois prédios que lhe pertenciam.
O executado deduziu embargos, alegando que o cheque prescreveu, nos termos dos artºs 29º e 52º da LUC, razão pela qual não vale como título executivo (não foi apresentado a pagamento no prazo de oito dias e a acção executiva não foi proposta dentro de seis meses a contar do termo do prazo de apresentação).
Os embargos foram contestados e julgados procedentes no despacho saneador, decisão que a Relação de Coimbra confirmou.
A exequente, mantendo-se inconformada, pede revista, concluindo que foram violados os artºs 46º, c), 811º e 811º-A, do CPC, e ainda o artº 458º do CPC.
No essencial, sustenta que em face dos textos legais citados, e considerando todos os elementos que constam do cheque, agora entendido como documento particular, designadamente o respectivo valor e a assinatura (não impugnada) aposta pelo executado, nenhum fundamento existe para que ele não valha como título executivo.
O recorrido não contra alegou.
2. Os factos a considerar são os mencionados no acórdão recorrido, para o qual se remete, e no relatório que antecede.
Rejeitou-se a apelação com dois fundamentos:
- Em primeiro lugar, considerou-se que o cheque ajuizado não é título executivo porque a obrigação a que se reporta, segundo a exequente alega na petição da execução, resulta de um negócio jurídico formal, e, nessa hipótese, a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste;
- Em segundo lugar, ponderou-se que não resulta do cheque, enquanto documento particular, o reconhecimento duma obrigação pecuniária do executado para com a exequente; portanto, estando o documento na posse de um credor não originário, não pode valer como título executivo nos termos do artº 46º, c), do CPC.
Em nosso entender, o acórdão recorrido merece confirmação, não procedendo os argumentos em contrário aduzidos no recurso.
Não sofre dúvida que o cheque executado, como tal, isto é, como título cambiário, está prescrito, atento o disposto nos dois artigos da respectiva Lei Uniforme que atrás se referiram. O recorrente, aliás, conformou-se com este segmento das decisões das instâncias, e por tal motivo não inseriu nas conclusões da minuta a sua discussão.
Assim, o problema em aberto traduz-se em saber se o cheque poderá continuar a ser admitido como título executivo, mas agora enquanto documento particular, assinado pelo devedor, que importa a constituição ou o reconhecimento duma obrigação pecuniária de montante determinado ou determinável, como se consigna no artº 46º, c), do CPC.
Ora a respeito disto, depois de alguma hesitação inicial, o Supremo Tribunal tem decidido de modo bastante uniforme em sentido que poderemos enunciar na seguinte proposição:
Depois de prescrita a obrigação cambiária incorporada no cheque este pode continuar a valer como título executivo, agora na veste de documento particular assinado pelo devedor, no quadro das relações credor originário/devedor originário e para execução da obrigação fundamental (subjacente); ponto é que, nesse caso, o exequente alegue no requerimento executivo (não na contestação dos embargos) aquela obrigação (obrigação causal), e que esta não constitua um negócio jurídico formal (1).
No caso presente, a exequente alegou uma causa para a emissão do cheque exequendo: o preço da compra e venda de um imóvel pelo embargante à embargada. Causa que, sem qualquer dúvida, resulta dum negócio formal, já que a compra e venda de imóveis está sujeita a escritura pública (artºs 875º do CC e 80º, nº 1, do C. Notariado).
Nestas circunstâncias, de harmonia com a orientação acima exposta, o título executivo não poderá ser o documento particular apresentado (cheque prescrito), pois é documento que não se reveste da forma legalmente prescrita para a realização do negócio; teria antes de ser, como refere a sentença da 1ª instância, a escritura que formalizou a compra e venda invocada pela exequente/embargada.
O segundo fundamento apontado no acórdão recorrido para negar razão ao recurso mostra-se de igual modo inteiramente procedente. Com efeito, do documento particular dado à execução não resulta o reconhecimento duma obrigação pecuniária do executado para com a embargante que autorize a chamada à colação do regime previsto no artº 458º do CC para as declarações unilaterais de reconhecimento de dívida. Este regime é válido apenas nas relações estabelecidas entre credor e devedor originários (2). Ora, segundo o documento, o credor - credor originário - é um terceiro (D), não a exequente, que só assumiu a qualidade de credora por virtude do endosso. O endosso, porém, sendo um acto jurídico próprio da relação cartular, não pode ser repristinado quando o título de crédito, pela prescrição do direito cartular, deixou de o ser, transformando-se num simples quirógrafo. Caso contrário, a obrigação cartular extinta continuaria a nortear o direito do credor através do título como título de crédito cambiário e não já como documento particular.
Improcedem, deste modo, as conclusões do recurso.
3. Nos termos expostos, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 19 de Janeiro de 2004
Nuno Cameira
Afonso de Melo
Sousa Leite
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(1) Neste sentido, e por último, podem confrontar-se os acórdãos deste Tribunal de 17.6.03 e de 30.10.03, proferidos nos recursos de revista 1404/03 e 814/02, acessíveis em www.dgsi.pt/stj.
(2) Neste exacto sentido pode ver-se o acórdão deste tribunal de 18.1.01, na CJ IX-1-71.