Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04P4742
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
PENA SUSPENSA
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
COMPETÊNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: SJ200504200047423
Data do Acordão: 04/20/2005
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário : I - A aplicação de uma pena única no caso de concurso de crimes supõe que estejam em causa penas da mesma natureza.
II - A pena suspensa, prevista no art. 50.º do CP, enquanto pena de substituição, é de natureza diferente da pena de prisão, pela natureza e função que lhe está político-criminalmente adstrita.
III - De todo o modo, como quer que se considere a natureza da pena suspensa para efeitos da fixação de uma pena única do concurso, há que decidir, previamente, se a pena de substituição, por ter regras distintas de execução, se extingue ou extinguiu, ou se, em diverso, tem de ser executada como pena de prisão.
IV - A competência para o conhecimento superveniente do concurso e, consequentemente, para a determinação da pena única, pertence ao tribunal da última condenação - art. 471.º, n.º 2, do CPP -, que tem também competência para decidir todas as questões incidentais (art. 474.º), incluindo a decisão relativa às especificidades da execução da pena suspensa que tenha sido aplicada por algum dos crimes do concurso.
V - O procedimento relativo à execução da pena suspensa é um procedimento contraditório, de julgamento, não podendo a decisão sobre a revogação da pena suspensa basear-se em meros indícios, mas em juízo seguro sobre a não verificação do cumprimento das finalidades da suspensão.
VI - Se o acórdão recorrido fez incluir na pena única do concurso penas de substituição sem que tenha havido decisão nos termos dos arts. 56.º do CP e 492.º do CPP relativamente às penas suspensas, não resultando dos elementos dos autos que nos processos em que foram aplicadas tenha sido decidida a revogação ou a extinção das penas suspensas, o acórdão recorrido, não se tendo pronunciado sobre as questões atinentes à natureza das penas suspensas, e sobre as condições, pressupostos e consequências dos termos da respectiva execução, deixou de se pronunciar sobre questão essencial para a determinação dos pressupostos de fixação da pena única, omissão que integra a nulidade a que se refere o art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Por acórdão do tribunal colectivo do Círculo Judicial de Aveiro, o arguido AA, identificado no processo, foi condenado na pena de doze anos e seis meses de prisão, em cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares:
(i) pela prática em co-autoria de dois crimes de roubo, p. e p. no artigo 210º, nº 1 do Código Penal, a pena de dois anos e seis meses de prisão por cada um dos crimes; e um ano e quatro meses de prisão por co-autoria num crime de falsificação de documento, p. e p. no artigo 256º, nºs 1 e 3 do Código Penal (factos praticados em 10/2/200; acórdão de 16/5/2003, proferido neste processo - 86/00.8GBILH, transitado a 2/6/2003);
(ii) pela prática de um crime de roubo, na forma tentada (artigo210º, nº 1, 22º, 23º e 73º do Código Penal), a pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa por quatro anos (factos de 20 a 22 /3/00; acórdão de 17/1/01, no processo 380/00.8APTM - tribunal do Círculo de Portimão, transitada a 9/7/02);
(iii) pela prática em co-autoria de um crime de roubo, p. e p. no artigo 210º, nº 1 do Código Penal, a pena de um ano e seis meses de prisão (factos praticados em 8/3/00, decisão de 7/5/02, do tribunal da comarca de Felgueiras, no processo 77/00.9GBFLG, transitada em 29/1/03);
(iv) pela prática, em co-autoria, de um crime de roubo, p. e p. no artigo 210º, nº 1 do Código Penal, a pena de um ano de prisão, suspensa por dois anos e meio (factos praticados em 27/2/00, decisão de 10/10/01 proferida no processo 149/00.0GAFAF, do tribunal da comarca de Fafe, transitada em 25/10/01);
(v) pela prática, em co-autoria, de um crime de falsificação de documento, p. e p. no artigo 256º, nº 1, alíneas a) e b) e nº 3 do Código Penal, a pena de dois anos e quatro meses de prisão (factos praticados a 11/3/00, acórdão de 24/4/02, no processo 38/00.0GTVIS, do 1º Juízo Criminal de Viseu, transitado em 9/5/02):
(vi) pela prática de dois crimes de roubo, p. e p. no artigo 210º, nº 1 do Código Penal, as penas de um ano e seis messes de prisão por cada um; por um crime de roubo, na forma tentada, p. e p. no artigo 210º, nº 1 e22º do Código Penal, a pena de um ano de prisão; por 21 crimes de roubo qualificados, pp.e pp. no artigo 210º, nº 1, com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea g), do Código Penal, as penas de três anos de prisão por cada um; por três crimes de furto, pp. e pp. no artigo 203º do Código Penal, as penas de oito meses de prisão por cada um; e por sete crimes de falsificação, pp. e pp. no artigo 256º, nº 1, alínea a), do Código Penal, as penas de dois anos de prisão por cada um (factos praticados entre Janeiro e Março de 2000, acórdão do Supremo Tribunal de 29/11/01, proferido no processo 752/00.8JAPRT, do 4º Juízo do tribunal da Matosinhos, transitado em 21/12/01).

2. Não se conformando com a decisão, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal, fundamentado nos termos da motivação que apresentou e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
1ª O Acórdão recorrido não considerou devidamente os factos e a personalidade do recorrente para efeitos da sua condenação na pena única, de acordo com o preceituado no artigo 77° n°l, in fine, do CP;
2ª Desatendeu nomeadamente, ao Relatório Social que constitui peça essencial para o melhor conhecimento da pessoa e das circunstâncias do Recorrente e da aplicação da medida da pena mais adequada ás finalidades da punição penal.
3ª No entanto, como consequência necessária da positiva avaliação feita pelo acórdão, embora sumária, daquele conjunto de factos e da personalidade, impõe-se a aplicação ao recorrente do regime especial dos jovens delinquentes ou, em todo o caso, a decisão da atenuação especial da pena , de acordo com o Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro e o disposto no art 72° n.° l e 2 c) do CP;
4ª Mas, o acórdão recorrido acabou por limitar aquela positiva apreciação, desatendendo expressamente a aplicação de quaisquer atenuantes por o recorrente já ter sido «... em concurso anterior de penas, condenado na pena única de 12 anos de prisão».
5ª E em manifesta contradição com as referidas apreciações positivas o Acórdão recorrido condenou o Recorrente em 12 anos e 6 meses de prisão.
6ª E do mesmo passo, recusou expressamente a aplicação do citado regime especial do jovem delinquente sem atender às imposições legais de ressocialização das penas sobretudo, quando se trata de jovem que á data tinha 18 anos de idade e primário.
7ª A contradição existente manifesta-se também, em sede da operação do cúmulo jurídico por não ter sido desmembrado o anterior cúmulo e atendidas individualmente no cômputo, as respectivas penas parcelares.
8ª Destarte, a pena aplicada pelo Acórdão é manifestamente excessiva em violação do disposto nos arts. 40° n.° 2 , 77° n° l in fine e 72° n.°s l e 2 alínea c) todos do CP.
9ª Resulta por conseguinte, ilegal a decisão recorrida por desconsiderar as consequências advenientes da devida valorarão da matéria fáctica plasmada na fundamentação do acórdão;
10ª É que decorrentemente da referida apreciação impõe-se outrossim, a aplicação ao caso sub iudice do regime especial para jovens delinquentes, consagrado no DL 401/82 de 23.09;
11ª A pena única aplicada deverá em todo o caso, ser atenuada de modo a fazer jus ao limite da culpa do recorrente e aos fins de ressocialização inerentes à aplicação da pena concreta;
12ª Pelo exposto, deverá a pena única ser atenuada em decorrência da aplicação das regras da realização do cúmulo jurídico, de acordo com o enunciado nos art.°s 78 e 77 do CP.
13º Mais deverá tal atenuação resultar da aplicação do regime especial do jovem delinquente, tal como dispõem as diwrmirfies conjugadas dos arts. 72° e 73° do CP e do art. 4° do citado DL. 401/82 de 23.09.
A magistrada do Ministério Público, na resposta á motivação, entende que deve ser dado provimento ao recurso, uma vez que a decisão recorrida «ia violou o preceituado no art.° 77° n.° 2, 72° e 73° do CP, e o disposto no art° 4° do DL401/82 de 23 de Setembro», e «conforme refere o recorrente, do texto da decisão recorrida resulta contradição entre a matéria de facto dada como provada e a não aplicação de atenuação especial da pena imposta ao arguido».

3. Neste Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto teve intervenção nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência, com a produção de alegações, cumprindo apreciar e decidir.
A aplicação de uma pena única no caso de concurso de crimes supõe que estejam em causa penas da mesma natureza.
Nesta perspectiva, poder-se-á discutir se a pena suspensa, prevista no artigo 50º do Código Penal, enquanto pena de substituição, constitui para efeitos de determinação da pena única do concurso, uma pena da mesma natureza do que a pena de prisão.
Com efeito, a pena suspensa não é comparável, conceptual, político-criminalmente ou em termos de execução, à pena de prisão.
É uma pena de substituição cuja matriz de origem e base está condicionada, e que pode vir a ser declarada extinta através do procedimento adequado; enquanto não puder decorrer o procedimento de execução da pena suspensa, com a decisão de extinção da pena ou revogação da suspensão, não é susceptível de execução como pena de prisão.
Como resulta do artigo 56º do Código Penal, a revogação não é automática; mesmo verificados os pressupostos de que depende, é sempre necessária uma decisão que aprecie e avalie se a quebra dos deveres de que depende a suspensão assume gravidade que determine a revogação, e mesmo em caso de prática de crime, é necessário que uma decisão verifique que, concretamente, não puderam ser alcançadas as finalidades que estiveram na base da suspensão.
Só a revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença - artigo 56º, nº 2, do Código Penal.
A pena suspensa é declarada extinta se, como dispõe o artigo 57º, nº 1, do Código Penal, durante o período da suspensão não houver motivos que possam conduzir à revogação.
A pena de substituição é, pois, uma pena de natureza diferente da pena de prisão, pela natureza e função que lhe está político-criminalmente adstrita.
De todo o modo, como quer que se considere a natureza da pena suspensa para efeitos de fixação de uma pena única do concurso (cfr., v. g., entre outros, o acórdão deste STJ, de 8/7/03, proc. 4645/02, admitindo o cúmulo de pena suspensa com pena de prisão), há que decidir, previamente, se a pena de substituição, por ter regras distintas de execução, se extingue ou extinguiu, ou se, em diverso, tem de ser executada como pena de prisão.

4. A competência para o conhecimento superveniente do concurso e, consequentemente, para a determinação da pena única, pertence ao tribunal da última condenação - artigo 471º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP).
O tribunal da última condenação, porém, tem também competência para decidir todas as questões incidentais (artigo 474º CPP), incluindo a decisão relativa às especificidades da execução da pena suspensa que tenha sido aplicada por algum dos crimes do concurso.
O procedimento relativo à execução da pena suspensa está previsto no artigo 492º do CPP: a falta de cumprimento dos deveres para efeitos do disposto nos artigos 51º, nº 3, 52º, nº 3, 55º e 56º é apreciado por despacho, depois de recolhida a prova e «antecedendo parecer do Ministério Público e a audição do condenado». É um procedimento contraditório, de julgamento, não podendo a decisão sobre a revogação da pena suspensa basear-se em meros indícios, mas em juízo seguro sobre a não verificação do cumprimento das finalidades da suspensão (cfr., v. g., acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 3 de Outubro de 2002, no caso BÖHMER c. Alemanha).
Dos elementos do processo e dos próprios pressupostos do acórdão recorrido, vê-se que na fixação da pena do concurso foram consideradas penas suspensas (as aplicadas nos processos 149/000GAFAF e 380/00.8PAPTM.) sem que tenha havido (ou se mostre ter havido) decisão sobre a sequência de uma pena suspensa - procedimento próprio de execução para determinar se foram cumpridas as condições e se a pena se extingue, ou se, em diverso, pelo não cumprimento, a pena deve ser executada como pena de prisão.
O acórdão recorrido fez, pois, incluir na pena única do concurso penas de substituição, sem que tenha havido decisão nos termos dos artigos 56º do Código Penal e 492º do CPP relativamente às penas suspensas, não resultando dos elementos do processo que nos processos em que foram aplicadas tenha sido decidida a revogação ou a extinção das penas suspensas.
Não se tendo pronunciado sobre as questões atinentes à natureza das penas suspensas, e sobre as condições, pressupostos e consequências dos termos da respectiva execução, o acórdão recorrido deixou de ser pronunciar sobre questão essencial para a determinação dos pressupostos de fixação da pena única (cfr. acórdão do STJ, de 2/6/04, CJ, (STJ), Ano XII, Tomo II, p. 217).
Deste modo, o acórdão recorrido deixou de se pronunciar sobre questão que devia apreciar; tal omissão integra a nulidade a que se refere o artigo 379º, nº 1, alínea c), do CPP.

5. Nestes termos, anula-se o acórdão recorrido.
Não é devida taxa de justiça.

Lisboa, 20 de Abril de 2005
Henriques Gaspar (relator)
Antunes Grancho
Soreto de Barros
Silva Flor (tem voto de vencido, por entender que no englobamento das penas suspensas na pena do concurso não é aplicável o disposto nos arts. 56.º do CP e 492.º do CPP)